Discurso Pedagógico e Incompetência Individual1
Flávio Miguel da Silva – UCB
Comecei este trabalho a partir de algumas reflexões sobre observações feitas
para a pesquisa “Alfabetização: a conquista de uma autoria”, coordenada pela
professora Mariza Vieira da Silva.
Procurávamos compreender como ocorria a passagem do sujeito iletrado para o
mundo letrado, especialmente na questão da autoria. Como esse sujeito apropriava-se
desta forma de linguagem e fazia uso dela, controlando-a e dando sentido a ela.
Trabalhei, especificamente, com alunos da alfabetização de jovens e adultos de
uma escola da cidade satélite do Gama, durante quatro meses, período em que fiz coleta
de dados e entrevistei alguns alunos. A metodologia empregada na pesquisa foi a da
linha teórica da Analise de Discurso francesa, através da qual pude formular algumas
questões a respeito da situação desses alunos.
A partir das entrevistas que elaborei com três alunos, uma em especial chamou
minha atenção. Tal entrevista era com um aluno adolescente e reparei como sua fala
estava marcada ideologicamente, no sentido de formar um imaginário de incompetência.
Explico. Este aluno falava de um lugar de sujeito/aluno que não era capaz de aprender o
conteúdo ministrado. Como esse imaginário se produziu? Quais os seus efeitos de
sentido em termos sociais e políticos?
Na fala deste sujeito, uma frase me chamou a atenção pelo que ela denuncia em
relação a este lugar de “incompetência”. A frase é: "num sirvo pra estudá". Este aluno
trazia uma história de passagem por várias escolas de alfabetização e até então não
conseguira aprender a escrever o próprio nome. Sua situação econômica era muito
precária, pois estava desempregado, não tinha uma profissão e vivia de fazer "bicos." A
partir desses dados histórico-sociais percebemos a posição enunciativa deste sujeito, ou
seja, o lugar de onde ele falava. Um lugar marcado ideologicamente, pela divisão social
que indicava. Esta mesma frase – “num sirvo pra estudar” - dita por um estudante de um
bairro elitizado, por exemplo, teria outro sentido. Estaríamos diante do que em Análise
do Discurso tratamos como formação discursiva, ou seja, "aquilo que numa formação
ideológica dada (...) determina o que pode e deve ser dito". (Orlandi 1999).
1
Texto apresentado na II Semana de Letras da Universidade Católica de Brasília, em 2000.
A formação discursiva é o lugar de onde o sujeito fala, lugar este afetado pela
história, pela ideologia. As formações discursivas hão várias e heterogêneas, já que
existem várias posições enunciativas, ou seja, o sujeito pode falar de vários lugares
enunciativos. Há várias formações discursivas interligadas, o que nos faz chegar à noção
de Discurso Pedagógico, essencial para compreendermos os efeitos de sentido e os
efeitos sujeito presentes em nossa análise.
E o que vem a ser o Discurso Pedagógico?
Para a Análise de Discurso, discurso não é mera transmissão de mensagem entre
interlocutores e sim o efeito de sentido entre eles. Nesse processo, tanto o dito como o
não dito significam, e o social está presente na linguagem de forma constitutiva. O
Discurso Pedagógico será um "dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se garante,
garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende: a escola". (Orlandi
1994:21). O Discurso Pedagógico, no entanto, caracteriza-se por uma neutralidade já
que transmite uma informação científica, validada pela própria cientificidade e por ter
origem institucional: a escola e, conseqüentemente, o Estado.
Neste sentido aquele dizer, "num sirvo pra estudá," denuncia que algo saiu
errado no processo de alfabetização, porém esse "algo" o sujeito-aluno assume como de
responsabilidade sua e não da escola. A isso chamo de Incompetência Individual. Não
me interessa, aqui, saber o que exatamente saiu errado, mas como o discurso faz parte
desse funcionamento geral. Interessa-me a relação entre a escola, o DP e o sujeito.
A Escola é importante lembrar que, segundo Althusser (1980), substituiu a Igreja
no século XIX como aparelho ideológico do Estado. Na Escola o saber é histórico:
institucionalizado, burocratizado. Tem a representatividade do Estado no conhecimento.
Para tanto, basta observar que a Escola abriga toda a semana, várias horas por dia,
durante muitos anos a maioria das crianças de várias classes sociais. Durante esse tempo
inculca-lhes dizeres e saberes atravessados pela ideologia dominante e permeados pela
isenção e cientificidade. Nesse momento, manifesta-se o DP que se dissimula como
transmissor de informação, porém, faz isso sob a rubrica da ciência, através de
conteúdos ensinados, avaliações, interpretações dirigidas pelo professor. Vai se
construindo, assim, um jogo de sentidos (mecanismo de funcionamento da ideologia),
que cria um imaginário de incompetência no aluno, pois a escola é a detentora do
conhecimento, e este é materializado, ao aluno, através da fala do professor, que é o
sujeito em sala que ocupa o lugar daquele que já sabe, que tem conhecimento, diferente
do lugar do aluno.
O saber do professor será transmitido ao aluno através da língua e se há dizer há
ideologia, não no sentido de ocultação da realidade, mas como fator constituinte e
constitutivo de um imaginário de sentidos para os sujeitos.
Esse nosso adolescente, na posição de sujeito/aluno - atravessado pela ideologia
-, não delega a responsabilidade de não aprender à escola, pois estaria delegando esta
responsabilidade ao Estado que tem maior representatividade na relação de forças que
ali se estabelece. Este aluno sabe que o Estado promove meios para que ele aprenda escolas, livros didáticos, professores, merenda - porém ele não consegue mensurar a real
(in)eficiência de tudo isso. Só percebe que mesmo com os meios não consegue
aprender. Como foi domesticado pelo DP, acaba assumindo a responsabilidade da
falência do sistema educacional brasileiro. Este lugar de aluno, no Brasil, já é histórico.
Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad. Joaquim José
de Moura Ramos. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1980.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes, 1999.
____. Para quem é o discurso pedagógico. In: A linguagem e seu funcionamento: as
formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1994, 18-31.
Download

Discurso Pedagógico e Incompetência Individual