SOCIEDADE E SABER: UMA ESTRUTURA COMPLEXA André Veríssimo* Resumo Promovemos hermenêutica e procedimentalmente uma investigação de tipo complexo na linguagem filosófica: se não conhecemos os termos, como poderemos conhecer o sentido da frase ? Podemos contra-definir uma frase duma não-frase ? Podemos inspeccionar o sentido da frase num contexto que aprimore a boa harmonia do dito e não um mero equívoco? As frases ensinam-nos o mundo. Na ética: a sugestão ética e epistemológica de Foucault encontra uma saída operativa na perspectiva da sócio-cibernética: e em particular nas investigações luhmannianas. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma coisa. A crise pós-moderna do capitalismo pode ser considerada basicamente como uma ruptura moral. Esta última é causa dos distúrbios e desordens da vida política: a paz significa pelo contrário o seguinte: a legitimação da necessidade da coerção, sendo esta instância de sujeição não contrária ao direito das sociedades e às formas de vida das diversas culturas (maioritárias e minoritárias). No entanto, a relação do homem às normas de civilidade tem valorações profundas: o respeito à autoridade e a aceitação e acatamento da lei. Ora, as instituições políticas são débeis ou vulneráveis à crise de cultura e aos modelos de civilização (tecnocientífica); esta crise afecta não somente as condutas individuais como também as instituições democráticas, com as suas contradições. Em que se baseia o escândalo do desrespeito pela condição humana? Palavras-chave Linguagem; Sistemas; Pensamento-Movimento; Direitos; Educação; Moralidade; Normas; Política. 42 1. Reforma do pensar, pensar os sistemas O pensamento é impropriamente um conhecimento fragmentário, parcelar, monodisciplinar. Todavia a atitude humano normal é a de ligar as partes e fazer algo mais que um puzzle solving-problems. As operações lógicas da configuração do saber exigem um esforço por integrar os elementos e as disposições tácitas do saber. Colher, separar, unir, dispor, agregar, codificar, hierarquizar, sintetizar, mesmo aí complexificar. Uma busca ininterrupta, uma busca sem fim, esse é aliás o papel oximórico do investigador. Um bicho raro: na selva virgem do saber que convida à exploração com regras, um termo certo é a contextualização, o saber sistémico. As condições da cultura numa era planetária exigem a solidariedade dos elementos, a saber, a cultura das ciências e das humanidades: e isso comporta a literatura, a filosofia, a investigação teórica como possibilidade de assimilação dos saberes. Essas condições interpelam-nos tanto quanto vivemos e se abre para nós uma era de solidariedade interplanetária. A possibilidade de assimilação dos saberes é hoje mais viva do que no passado : entre duas culturas, entre culturas das humanidades com a possibilidade de reflexão que a nova cultura científica com a excessiva compartimentação e análise teima em manter separadas agravando a possibilidade da integração. Entre o paradigma da disjunção e as formas de religação ou pela necessidade de operadores que denominamos de elementos conceptuais vive a frase. Vive o espírito dum texto. 2. Contextualização Dificilmente, hoje sob temáticas quer do âmbito científico ou humanista poderíamos desejar realizar uma discriminação absoluta. As investigações associadas a uma perspectiva científica tendem a utilizar dados quantificados, a procurar um alto nível de fiabilidade recolhida através de 43 medições rigorosas. Nos estudos realizados segundo uma perspectiva humanística há uma maior tendência para usar informação qualitativa e holística para enfatizar a natureza idiossincrática dos achados e para se abster de generalizações. É cada vez mais consensual que a posição de cada uma das duas perspectivas não constituem uma dicotomia e que as distinções usualmente apontadas são artificiais. A diferença entre dados quantitativos e dados qualitativos reside essencialmente no nível de abstracção que lhe é conferido. No âmbito específico da educação é facilmente constatável que qualquer trabalho de investigação ainda que não o explicite dá contribuições, primeiro, para a teoria dos processos educacionais, segundo, para a prática educacional terceiro para a planificação de posterior actividade educativa. Logo engloba sempre uma metodologia qualitativa e uma metodologia quantitativa. As ideias convencionais sobre estudos quantitativos e estudos qualitativos em educação apresentam-nos os primeiros a envolverem uma abordagem altamente estruturada enquanto que os estudos qualitativos se caracterizam por muito pouca préestruturação e por um desenho muito vago. Nenhuma destas imagens é apropriada e aceitável visto que muitos investigadores quantitativos são mais flexíveis do que é sugerido acima e verifica-se que muitos investigadores qualitativos trabalham entre estes dois extremos. 3. Sistema Moriniano Uma primeira noção ou concepção é a de sistema1. Brotou recentemente no nosso conhecimento, enquanto que tem dominado na ciência a ideia de conhecimento das partes ou elementares para o conhecimento dos conjuntos. Estes comportam peças que a ciência tem por função distinguir. O todo é ainda assim mais que a soma das respectivas partes. Um dos grandes mistérios da organização do saber assenta na «completude» e no espírito hologramático dos conjuntos, das séries do saber e não das parcialidades do saber que favorecem apenas o paradigma disjuntivo. Este novo tipo de organização realça qualidades, memórias, movimentos e sistemas de auto-reprodução paradigmática. 1 Vd. em especial : l Communication au Congrès International "Quelle Université pour demain ? Vers une évolution transdisciplinaire de l'Université " (Locarno, Suisse, 30 avril - 2 mai 1997) ; texte publié dans Motivation, N° 24, 1997. Bulletin Interactif du Centre International de Recherches et Études transdisciplinaires n° 12 - Février 1998. 44 Deste modo, podemos considerar as éticas tradicionais de enquadramento do saber como orientadas para o aqui e agora, para o que os homens fazem nas situações recorrentes e típicas da vida do quotidiano. Acrescente-se que a intuição do valor intrínseco do agir não exige necessariamente um conhecimento superior ao do senso comum. Os ideais típicos, tradicionais, entre os quais surgia o progresso, a liberdade e a verdade, ideais fundados na razão optimista, foram sendo sujeitos a um desgaste progressivo, que terá atingido uma quase total erosão já no nosso século. As duas últimas guerras mundiais, mormente a segunda, com manifestações de selvático irracionalismo, contribuíram para se instalar a desilusão, geradora de um discurso de crise, incerteza e negatividade absoluta. (Baptista Ferreira). No rigor da palavra a conversão do conceito do pensar no ser e do pensamento e movimento geram a produção e o prodígio da consciência de um no outro. A arquitectura de tal descoberta em que “tudo é e nada é”2realiza aquela plenitude que vemos em Edith Stein e valoriza o peso profético do dizer, como simulacro e alethéia ou metáfora abismal deste fenómeno à consciência de quem produz o dito que “ora sobe, ora desce, ora generaliza, ora abstrai; ora oculta, ora revela, adequando as coisas e as não-coisas, à mente translativa, sem traduzir nenhuma delas, mas de todas significando o que importa, na instância medial do pensar e do ser. Falar é pensar.”3 Em outros termos, «o facto de ser é desde agora e em diante perfeito». Porém convém compreender ainda que esta «perfeição» é a de uma natureza muito particular, porque é deve dizer simultaneamente que «o facto de ser se situa mais além da distinção do perfeito e do imperfeito», e logo que «o ser é imperfeito' enquanto ser e não enquanto ser finito». “A «perfeição» do ser não é comensurável com a dos entes, e por isso ela situa-se mais além da distinção do perfeito e do imperfeito assim como se situa mais além da do finito e do infinito. A «perfeição» do ser é «a verdade elemental de que há ser» quando este «se revela com uma profundidade que dá a medida da sua brutalidade e de sua seriedade». A «perfeição» do ser é a sua brutalidade, a brutalidade de seu há.4 É com efeito a sua perfeição de verbo, a sua pura verbalidade, quer dizer, a sua pura 2 Gomes, Jesué Pinharanda Pensamento Português, Biblioteca da Filosofia Portuguesa, Edições do Templo Lisboa, 1979, p. 290. 3 Id. Ibid, p. 291. 4 A palavra há usa-se aqui sem referência ao sentido preciso que toma em Levinas. 45 afirmação. O ser é, a proposição não sai da tautologia, porém, em si mesma, significa que o ser se afirma ou se coloca; significa, poder-se-ia dizer, a sua energia de ser. (…) Porém, simultaneamente afirmação ou posição imperfeitas, essencialmente imperfeitas enquanto que horríveis na maneira que têm de afirmar-se sem moderação ou de pôr-se até impor-se absolutamente.” 5 Hans Jonas6, neste sentido, considera que tudo então mudou decisivamente. A técnica moderna introduziu alterações de tão diferentes escalas, objectos e consequências na nossa cultura que o quadro da ética anterior não pode já ser suficiente. Acompanhando o fim da proximidade e da contemporaneidade, as acções da era da técnica moderna, reunidas num conjunto magnânimo, são agora um conjunto novo, irreversível e cumulativo. Esbateram-se as diferenças entre o dentro e o fora, a cidade e a floresta, o virtual e o real, o bem e o mal. (Baptista Ferreira7). 5 Jacques Roland, in Introdução a Emmanuel Levinas, Da Evasão, Estratégias Criativas, Porto, 2001, p. 19. 6 Sobre Jonas, Hans : Denis Colin :http://perso.wanadoo.fr/denis.collin/jonas.htm#technique _ [Acedido em 30 Abril de 2003] Premier problème: le développement technique et scientifique conduit à une "prolifération" de l'humanité en raison de son "succès biologique". Je ne sais si c'est un problème de traduction mais l'expression prolifération de l'humanité me semble connotée assez dangereusement. Contre la prolifération des insectes et autres poux, on utilise des gaz ... Mais cette affaire revient assez souvent dans le texte et fait irrésistiblement penser à ces déclarations de feu le commandant Cousteau qui n'hésitait pas à affirmer qu'il y avait plusieurs centaines de millions d'habitants en trop sur la planète. Or, nous avons payé assez cher pour savoir comment ce genre d'anti-humanisme théorique se transforme en anti-humanisme pratique. Deuxième problème: celui des limites de nos ressources. Sur toute cette affaire, Jonas montre le caractère fragmentaire, arriéré et souvent purement obscurantiste de ses connaissances scientifiques. Tout d'abord le problème de la nourriture: Jonas affirme que l'encouragement de la terre à produire un fruit démultiplié devra recourir massivement aux engrais chimiques alors que 1° le châtiment est déjà là et que 2° l'augmentation de productivité générée par les engrais chimiques ira nécessairement en décroissant. Or, les progrès de la productivité du travail agricole sont de moins en moins dus à l'emploi massif de produits chimiques; ils sont de plus en plus la conséquence de l'amélioration des espèces (avec les progrès de la génétique) et d'une meilleure connaissance de l'effet des traitements chimiques. Ainsi au cours des dernières années on a vu une baisse massive de la quantité d'intrants chimiques sans affecter, bien au contraire, les rendements. C'est là une conséquence directe non de la crainte jonasienne, mais des nouveaux développements de la chimie, de la biologie, des techniques mécaniques d'épandage on peut pratiquer maintenant la "frappe chirurgicale" grâce au contrôle par microprocesseurs des outils d'épandage. Que tout cela ruine les préjugés malthusiens sur lesquels s'appuie Jonas, c'est incontestable, mais les faits sont têtus. Ensuite, Jonas s'attaque à ce qui était l'obsession des années 70, à savoir le problème de l'énergie. Or, Jonas commence par une très grosse bêtise puisqu'il considère qu'il s'agit du "double problème de l'obtention et de l'utilisation de l'énergie à l'intérieur du système fermé de la planète." La planète est tout sauf un système fermé! Elle est au contraire une énorme machine à transformer l'énergie solaire, essentiellement par le biais de la vie végétale et par les animaux microscopiques (dont les sources d'énergie fossiles ne sont que les résidus). 7 Gil A. Baptista Ferreira Ética e ecologia: perspectivas para uma discussão na actualidade; Universidade da Beira Interior, 1998. 46 4. Sociedade e direitos humanos A sugestão ética e epistemológica de Foucault encontra uma saída operativa na perspectiva da sócio-cibernética: e em particular nas investigações luhmannianas8. Uma das funções da educação ou do saber seria representar o irrepresentado. Este "irrepresentado", segundo uma explicação de Luhmann (1988)9, com a fenomenologia de Husserl em que a representação é também simbolização de algo que deve ser recolhido na representação do saber mas que não é a representação mesma10. Porém, diferentemente de Husserl para quem o não representado do saber podia representar-se, Luhmann introduz um outro significado elaborado historicamente, do conceito de representação (em alemão, ' Vertretung' vertreten' (' = fazer as vezes de): algo necessita "representar-se" porque está ausente. E se sairmos das paredes da escola para a cidade em que queremos sentir o valor do voto político e das decisões democráticas, sabemos que a teoria política nos diz que o povo como unidade não está em nenhum lado e necessita de representantes: como o saber não existe em nenhum lado mas em todas as partes. Com o conceito de irrepresentação expresso por outro lado na teoria política muda-se simplesmente a ideia de uma agregação, a ideia de algo que vem coapresentado, um acréscimo, uma agregação, uma simbolização, um suplemento, como a referência a algo que estando presente simboliza algo ausente11. Assim se nos colocam toda uma gama de dificuldades na hora de aplicar uma observação segundo a ordem, às funções da educação, enquanto irrepresentável como o todo do saber. Os mais irracionais pretendem saber tudo, o que nos lançaria nas distinções históricas tensionais entre o sistema do saber teórico tradicional na sociedade ocidental e os subsistemas sociais que ajudam de forma diversa ao estabelecimento básico da elaboração da aprendizagem, ou seja, dos graus de conhecimento, como fonte do acervo civilizacional. Não admira assim que esta filosofia de base prossiga hoje, na mente dos «eurocratas», afim de garantir a eficácia da política, o respeito dos direitos humanos e da democracia que devem ser tidos em conta na definição de outras políticas da União Europeia. A cláusula "elementos essenciais" estipula que o respeito dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais do 8 Em francês, pode ver-se a revista Sociétés (nº 43, 1994, pp. 3-64) e os artigos de IZUZQUIZA [1990b] e GRAS [1990] 9 Luhmann, Niklas, ([1988], Erkenntnis als Konstruktion, Bern, Bentelli, 1988, 74 pp. 10 Luhmann refere-se a um texto da V Meditação Cartesiana de Husserl: “ Trata-se portanto de uma espécie de fazerse-presente-com, uma espécie de “Apresentação”: HUSSERL, Edmund, Cartesianische Meditationen, § 50 (Hamburg, Felix Meiner, 1992, p.112 47 Homem, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem constitui o fundamento das políticas internas e externas. Estas cláusulas têm por objectivo favorecer o diálogo e as medidas positivas, tais como um apoio comum à democracia e direitos humanos, adesão, ratificação e aplicação de instrumentos internacionais consagrados aos direitos humanos, sempre que estes não existam, e ainda a prevenção de crises, através do estabelecimento de relações coerentes do todo e a longo prazo. Assistimos hoje a uma revolução nos modos de percepção. O que é determinante nos paradigmas de uma nova sensibilidade. O ethos hedonista, que se expressa tentando conciliar a distracção, o ideal, o prazer e o coração. Hoje a conduta comum é o gozo das paixões egoístas e os vícios privados. Sem problemas de consciência para com o Outro. Emergem as prerrogativas do indivíduo soberano como diz Lipovetsky12. Em simultâneo, a excessiva mediatização leva ao desaparecimento do corpo como espaço de relação com o outro e daí que desapareça a noção clássica (aristotélica) de justiça ao desaparecer a comunidade de cidadãos. Ora a justiça supõe em sentido normativo, a virtude completa e a igualdade jurídica que requer o contacto com os indivíduos que intercambiem bens materiais e imateriais (cargos, poder, reconhecimento, …) A relação de ética hedonista e a justiça enquanto comutáveis confundem a noção de felicidade do indivíduo e da comunidade. Porque justiça comunitária impõe o respeito pelas minorias: o bem do outro semelhante e não excessivamente diferente; ora o prazer enquanto fim em si parece excluinte do bem compartilhado (e justo). A crise pós-moderna do capitalismo pode ser considerada basicamente como uma ruptura moral. Esta última é causa dos distúrbios e desordens da vida política: a paz significa pelo contrário o seguinte: a legitimação da necessidade da coerção, sendo esta instância de sujeição não contrária ao direito das sociedades e às formas de vida das diversas culturas (maioritárias e minoritárias). Esse direito é a garantia da convivência em sociedade, porém não garante de forma alguma o sentido da verdadeira justiça, como também não pode exercer-se como legiferação do foro interno dos homens, quer dizer, no sentido moral. Pode pois imputar-se-lhe a importante função reguladora de comportamentos externos e a interioridade está resguardada para o domínio do pístico. No entanto, a relação do homem às normas de civilidade tem valorações profundas: o respeito à autoridade e a aceitação e acatamento da lei. Ora, as instituições políticas são 11 Ver também [1990], Die Wissenschaft der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1990, 732 pp. Lipovetsky, Gilles, Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1994, 23. 12 48 débeis ou vulneráveis à crise de cultura e aos modelos de civilização (tecnocientífica); esta crise afecta não somente as condutas individuais como também as instituições democráticas, com as suas contradições. Em que se baseia o escândalo do desrespeito pela condição humana? Como construir uma sociedade orgânica, ou uma comunidade nas actuais condições de crise, de legitimação do poder em termos económicos, sociais e familiares? Não vemos por todo o lado a fragmentação, o individualismo exacerbado, o desinteresse pelos excluídos, as minorias e as drop-out communities? A nosso ver o hedonismo económico e ecóico tem como efeitos inelutáveis a perda da civitas, o egocentrismo e a indiferença face ao bem-comum. Para John Rawls uma comunidade política (um Estado) tem que construir-se sem abraçar concepções do bem (da moral, da verdade, ou da justiça) que sejam totalizantes ou completas, quer dizer, que não abarquem a conduta total dos indivíduos. Isto devese, segundo o autor, a que "não cabe esperar racionalmente que se chegue a um acordo político sobre estas polémicas questões"13, e portanto, tais consequências pedagógicas, que surgem delas, não devem ser adoptadas no âmbito da administração da coisa pública. 5. Causalidades Causalidade circular ou fecho : podemos conhecer as partes sem o todo e o todo sem as partes? Esta forma dedutiva de por o problema releva duma instância judicial sobre a força do conhecimento que consiste na impossibilidade de pensar uma parte do discurso científico sem a relacionar ao todo de que é parte mesmo pela multiplicidade dos contextos e da genética dos saberes. Isso é o verdadeiro conhecimento : o caso da investigação não foge ao modelo mesmo quando ensaiamos expressar um sentido global provisório, epistemológico da ciência ou da construção de um documento científico. Se não conhecemos os termos, como poderemos conhecer o sentido da frase ? E contra-definir uma frase duma não-frase ? E inspeccionar o sentido da frase num contexto que aprimore a boa harmonia do dito e não um mero equívoco? Podemos sentir mesmo a gostosa percepção do non-sense contextual pela culta anamorfia dos ditos chistosos : as frases ensinam-nos o mundo. 13 MULHALL, Stephen, SWIFT, Adam, El individuo frente a la comunidad, Ed. Temas de Hoy, Madrid, 1996, 285. 49 Retiram-nos da imprecisão de fecho regulador, em que o retorno do efeito sobre a causa anula o desvio e assegura uma relativa autonomia do sistema, mesmo pelo sentido de inesperado14 O universo do saber é autoregenerado, tal como as moléculas mortas são substituídas por novas e esse é também o sentido permanente do construccionismo do saber e da autorganização lógica dos sistemas de informação. A busca permanece inacabada : os seres que autoproduzem os seres que conhecemos na natureza: os que são dotados de subjectividade e razão, todos os que dependem de uma efectiva regeneração. Como se tratasse dum processo permanente. Esse é também o processo da escrita e da leitura : uma de-formação tautológica de saberes e acumulações visando um cosmos: uma leitura de leituras que precipitam uma troca permanente de valores, de conhecimentos de verbalidades e de noções que nos afastam do mistério das imprecisões primitivas e nos precipitam de vez ou muito devagar na luz do entendimento. Esta autorganização dos saberes tem afinal um efeito paradoxal segundo Von Foerster15, um ser, uma realidade auto-organizada consome energia, assim como a degrada, a necessidade de buscar energia no seu meio envolvente é vital e portanto, depende dele : isso significa que depende e procura face a ele a sua autonomia. Esta autonomia não tem uma firmeza platónica mas está baseada nas interdependências organísmicas, vitais que nos levam a compreender que a autonomia é do pensamento ; a diferenciação existe nos modelos culturais como nos científicos e é nessa biodiversidade cultural e nomológica que se encontram as raízes para a complexidade dos dispositivos de leitura e de organização dos saberes. Isso leva-nos a perceber que toda a diferença científica começa como uma duplicidade de dois num mesmo ou seja, como identidade alterada, ou alteridade que é de um num meio. O pensamento é complexo por natureza. Isso permite integrar os modos de ligação conceptual. A questão da dimensão moral e cívica das obras de Aristóteles, Levinas e Morin, Maffesoli, representam em épocas distintas um peso específico para a 14 Saddam Hussein telefonou para Clinton. Olá, disse, o motivo de minha ligação é um sonho que tive. Na noite passada, sonhei que estava sobrevoando Nova York e encima de todos os arranha-céus, torres, pontes, monumentos, museus, tinha faixas onde se lia em árabe Allah Akbar. Fiquei tão feliz com isto que resolvi telefonar. Clinton sem demonstrar grande surpresa lhe responde: mas que coincidência, eu tinha também a intenção de lhe telefonar pois na noite passada também tive um sonho. Não me diga, respondeu Saddam, qual o sonho que você teve? Responde Clinton: eu estava sobrevoando Bagdad toda reconstruída, com parques, arranha-céus, museus, viadutos, shopping centers, enfim uma cidade das mais belas que jamais vi e observei que havia inúmeros outdoors com mensagens escritas. E o que diziam essas mensagens? Perguntou Saddam. Não sei ler hebraico, respondeu Clinton. 50 cultura, o saber e a moral e tornam óbvia a necessidade dum novo paradigma que revele não analogias fenomenais, mas encontre princípios de evolução comuns e os princípios dos princípios, os caracteres de diversificação modal e entrópica.16 Com a noção de carácter, Aristóteles assinala o modo de ser individual pelo qual o sujeito está capacitado para agir duma forma ou outra, a forma como actua ou vive. Fruto de dotação natural e do exercício enquanto este ethos é dirigido e impulsionado e fortalecido por outros – tal é a educação do carácter. Aristóteles não concebe que um indivíduo possa viver sem os outros: é o gregarismo social inevitável na acção política, sendo essa mediação e convivência fundamentais. Para Aristóteles a educação do carácter é sempre moral no sentido em que se pensa a relação do homem com os outros; para Aristóteles ser homem em plenitude é ser bom e ser cidadão, bom cidadão, o que conduz a viver bem. Desde a perspectiva aristotélica a educação é sempre moral porque a perspectiva teleonómica implica que a educação do carácter é sempre moral: e fazer o indivíduo ser humano é fazê-lo bom. Na base da distinção entre a educação moral e do carácter encontramos as bases antropológicas que sustentam as teorias de Aristóteles bem como as de Edgar Morin e Emmanuel Levinas17 e pelas quais se estabelecem relações fecundas com os conceitos de sociabilidade e individualidade. Tal visão da sociedade e da história supõe na verdade que quer a finalidade individual ou social sejam preferíveis segundo o paradigma educativo ou epistemológico sugerido. A educação é sempre uma relação de pessoas. No ponto de vista ontogenético parece claro devermos ressaltar que é válido que o indivíduo assimile, faça por si, cresça, amadureça, destaque enfim a autoeducação porém como motivação intrínseca do seu crescimento. A educação é sempre um processo de poder social implícito. Aí mesmo se produz uma relação social. Daí 15 Vd. Heinz von Foerster, Observing Systems: Selected Papers of Heinz von Foerster ,Seaside, CA: Intersystems Publications, 1981. 16 Vd. E. Morin, Introdução ao Pensamento Complexo, Instituto Piaget, Lx., 1991, p. 34. 17 Vd, v.g.,Levinas, Emmanuel, Totalité et Infini, Essai sur l’Extériorité, Haia, Col Phaenomenologica, 8, Nijhoff, 1961, XVIII --- 284 pp.; novas ed. conformes à primeira em 1963, 1968 e 1971.( Le Livre de Poche, Biblio-Essais, nº 4120, Martinus Nijhoff, La Haie, 1971(1961) / Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70. (TI) --, Difficile Liberté, Albin Michel, Paris, 1976. --, De l'évasion, Fata Morgana, 1982 ;Da Evasão, Estratégias Criativas, VNG, 2001. --, Autrement qu’être ou au-delà de l’Essence, Haia, M. Nijhoff,1974. De Dieu qui vient à l'idée . -- Paris : Vrin, 1982. -- 270 p (DQVI) Entre nous, Essais sur le penser-a-l'autre, Grasset, 1991, pp.13-24. 51 resulta que a postura antropológica sobre a socialidade humana influa muito sobre a forma teórico-prática de conceber a educação. A educação do carácter é em termos aristotélicos algo conatural ao ser humano porque é natural à sua sociabilidade, e entende-se neste plano que só a relação do homem com os homens possa coactivamente formar a razão de ser da sociedade como algo profundamente dialógico: se essa relação é qualificada pode o homem chegar a ser um bom homem. Assim se cria uma natureza segunda num plano social que cria a dinâmica da responsabilidade intelectual e moral na explicação dos actos comuns praticados e das regras aceites ou interditas numa sociedade. O respeito pela natureza é assim e desde a origem um dos planos de atenção moral que Edgar Morin virá a desenvolver mas dentro duma concepção dos princípios epistemológicos da complexidade, opondo-a à totalidade ensimesmada da tecnociência neopositivista, biologista ou antropologista e aos seus dogmas. Longe da questão da autoridade supõe-se a responsabilidade de todos os indivíduos da polis para intervir na educação social, no debate e no esclarecimento dos fins da actividade educativa ou política. Vários acontecimentos na história recente anunciam uma mudança de época: “Os acontecimentos de 1989 incitam a abandonar um modo de pensamento a respeito da história que dominou a civilização ocidental durante séculos. Estamos a afastar-nos da ideia de que podemos controlar a história. O destino de tantos aprendizes de feiticeiro do nosso século (técnicos e políticos) dissipou esta convicção. Mas não devemos tender para a convicção, simétrica e oposta, de que a história é incontrolável, de que a história é demasiado complexa para deixar um lugar ao indivíduo e que por conseguinte o indivíduo tem de se contentar em viver renunciando ao sentido da história. Devemos, isso sim, descobrir a ideia de uma ecologia da história, na qual o indivíduo se aproxima da história, nela encontra a cada instante algo de imprevisto e aprende que, se não pode ser a causa ou o artífice deste imprevisto, pode no entanto ser seu co-autor e intérprete.” 18 O fim de grandes projectos que fazem da educação uma tarefa ciclópica. Da política e da moral. Que são mesmo fenómenos transdisciplinares. O fim dos grandes projectos da modernidade e a emergência de novos sentidos civilizacionais e históricopolíticos e adrede educativos e morais. 52 O signo mais eloquente da oligofrenia antropo-política é a crise ambiental e a reconstrução social dos potenciais da natureza e dos múltiplos sentidos da cultura humana. Isso enuncia pela primeira vez numa história económica o limite da arquiracionalidade estratégica, levando-nos a cuidar19 do futuro e proclamando os valores da vida, da justiça social e do compromisso com as futuras gerações. Na verdade, as grandes narrativas da modernidade ignoram o tempo que determina e delimita as suas possibilidades de progresso, como uma entropia/neguentropia20 fluida e multigénica que brota desde o futuro.21 6. O pensamento progride ? O pensamento está sujeito à confusão, ao embaraço à incapacidade de se exprimir e de fazer valer a realidade. A realidade complexa. Que se exprime numa realidade quântica que as ciências normativas tardam em reconhecer como incerteza dos seus próprios princípios e métodos e outra vertente: a revolução sistémica que manifestam certas ciências que têm configurações complexas, multidisciplinares como a ecologia, a cosmofísica, a epistemologia, a biogenética, entropia cibernética. Aí palpitam as desregulações ecossistémicas, a esquizoidia, que elimina os conceitos estáveis de natureza, de homem, de cosmos. Aqui encontra-se a possibilidade de falar, de repetir experiências, sobre o homem, a natureza e o cosmos, ressituar os dados do problema duma forma inacabada. As condições desfavoráveis são sobretudo institucionais e de mentalidade. A reforma de mentalidade é algo de muito duro. È afinal uma teoria do real que é preciso reequacionar. “Como teoria do real, a ciência moderna não é, pois, nada de espontâneo e natural. Não se trata de um simples feito do homem e nem de uma imposição do real. Ao contrário, a vigência do real carece da essência da ciência quando se ex-põe na objectividade do real. Este momento, como qualquer outro semelhante, é um mistério. Se os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio, muito mais ainda é 18 Edgar Morin, Gianlucca Bochi, Mauro Ceruti, Os Problemas de fim de Século, Ed. Notícias, Lisboa, 1991. p. 138. 19 Vd. Leonardo Boff, Saber Cuidar: ética do Humano – Compaixão pela Terra, Editorial Vozes, Petrópolis, RJ,1999. 20 vd. Edgar Morin, O Método: A natureza da Natureza, Biblioteca Universitária, P. Europa-América, V.g. p. 271: entropia e neguentropia, embora constituindo o carácter positvo e negativo da mesma grandeza, correspondem a processos antagónicos do ponto de vista da organização : desorganização e degenerescência, por um lado, reorganização e regeneração, e até desenvolvimento e complexificação, por outro. 21 Meyrowitz, Joshua, No Sense of Place: The Impact of Electronic Media on Social Behavior, 416 pages, Oxford University Press, 1985, Cap. 3. 53 o que acontece com a transformação de todo o vigente” 22 e logo adiante Heidegger expressa este conhecimento da vigência entendido como “cálculo”: “O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma coisa. Neste sentido, toda a objectivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, uma explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos, um sistema de relações e ordenamentos. Também a matemática não é um cálculo com números para se obter resultados quantitativos. A matemática é um cálculo que, em toda parte, espera chegar à equivalência das relações entre as ordens por meio de equações. E por isso mesmo”conta” antecipadamente com uma equação fundamental para todas as ordens possíveis.” 23 É essa procura do desvio, do «erratismo» virtuoso que faz da ciência um anelo de sábios e permite prognosticar a emissão de uma tendência. * Docente universitário e investigador. R. Eugénio Franco, 33 – 1º D 4465 Leça do Balio MTS Tel. 967458135 ; e.mail: [email protected] Investigador do GFMC da U.P. Licenciatura em Filosofia (Fundamental) FFB-UCP; Licenciatura em Filosofia, Ramo Educacional, FFB/UCP. Seminário de Tese de Licenciatura Totalité et Infini, em Emmanuel Levinas, FFB/UCP Mestre em Filosofia, com a Classificação de Muito Bom. Doutorando - cerca de 6 anos especialidade: Filosofia na FCSH-UNL, em Filosofia – Contemporânea, Antropologia Filosófica/Comunicação . 22 Heidegger, Martin, Ensaios e Conferências, Vozes Petrópolis, 2002, pp. 48-49. 54 e Ética Actividade Docente Foi Professor e membro do Quadro de Professores da Escola Superior de Jornalismo [desde 1994], Porto; Colabora em Institutos Superiores do Porto e Lisboa. Alguns trabalhos -----, Revista Gil Vicente A concepção da metafísica e da acção em Miranda Barbosa, 2003, 16 pp. Entregue.-----, Escritas da Diferença, ECB, Guimarães, 2003, aprox.80 pp ( No Prelo).-----, Metodologia Científica: fontes e normas, em Colaboração com Teresa Oliveira, Estratégias Criativas, Porto, 2003, (no Prelo).-----, Prefácio ao Livro Em demanda da Identidade: A Duplicidade em Esaú e Jacó de Machado de Assis de Carla Mourão-Neves, ECB, Guimarães, 2003.-----, Artigo em Revista Politécnica Intitulado A Linguagem e a revalorização das Subjectividades, nº 6, Ispgaya, 2002/2003- 1º Semestre.-----, Emmanuel Levinas: Uma Vida entre Parêntesis, Estratégias Criativas, Porto, 2003, 97pp.-----, Publicação na Revista FORUMMEDIA, nº 4 ( Dir. Dr. Luís Barros Cardoso), Valores e Educação num mundo em Mutação, ISPV, Viseu, 2001, pp. 36-46.[pub. Em 2002]-----, Publicação na Revista Aprendizagem e Desenvolvimento (no Prelo) da comunicação efectuada dia 23 de Abril de 2002, no III Colóquio Internacional de Epistemologia e Filosofia no Instituto Piaget em Viseu, intitulado: A Utopia do Saber e a da Moral em Edgar Morin e Emmanuel Levinas, 24 pp.-----, Separata na Revista Gil Vicente de texto sobre Modelos humanistas em ética da comunicação, Edição Anual, Guimarães, 2002, 21 pp.----, Reencontro com Nietzsche no 1º Centenário da sua morte (1900-2000) Granito Editores e Livreiros, Porto, 2001, pp. 63-84.-----, A Escada de Jacob: Messianismo e Linguagem em Álvaro Ribeiro, 1850-1950: Autores Portuenses Contemporâneos, com o Patrocínio da Sociedade-Porto 2001 INCM/ UCP, 2002.-----, Traduziu nas Estratégias Criativas, V.N.Gaia, Da Evasão, um ensaio 23 Ibidem, pp. 49-50. 55 de Emmanuel Levinas, com Introdução e notas de Jacques Rolland.101 pp.-----, A intriga ética, Ensaio sobre a antropologia e a ética levinasianas. ECB, Guimarães, 2001. (184 pp.); com Prefácio de Fernando Echevarría.-----, A intersubjectividade com Deus como Forma Histórica, Intramundana, Verbo/ UCP, Lisboa, 2001, pp. 407-426. — Colóquio Internacional: Santo Agostinho – 1600 anos das Confissões.-----, Ensaio em A Dor e o Sofrimento ( Coord. Doutora Mª José Cantista )– Banalidade do Mal: Morte e Esperança – estudo em torno de Emmanuel Levinas e Hannah Arendt (Campo: Filosofia e Sofrimento), Editora Campo das Letras, Porto, 2001, pp. 387-413.-----, Notas para uma Filosofia Messiânica II, Teoremas de Filosofia, 4, ( Dir. Joaquim Domingues), 47-54, Semestre de Inverno, 2001-----, Dor e Sofrimento – uma perspectiva multidisciplinar Contribuição: Sofrimento e shoah, Campo das Letras, Porto, Co-edição da FLUP, 2000, pp. 125-148.-----, Notas para uma filosofia Messiânica I, Teoremas de Filosofia, 3, ( Dir. Dr. Joaquim Domingues), Semestre de Verão, pp. 49-57.----, Barroso da Fonte um transmontano de Barroso, Revista Unearta, Chaves, NN, pp. 3-6 (perfil).-----, Publicação na Revista Gil Vicente de texto: Das Utopias Quiliásticas à crítica da Tradição e da Modernidade, Edição Anual, Guimarães, 2000.-----, Raul Brandão: uma ontofania da Palavra, uma Escrita da Carne, enquadrada no texto Ao Encontro de Raul Brandão, (Coordenação de Prof. Doutora Maria João Reynaud ) Lello Editores/ UCP, Porto, 1999.-----, Publicação filosófica de um tomo em torno de Questões Éticas e Literárias - Unidade da Razão e sem-sentido na Poética Junqueiriana - Revista Gil Vicente,( Dir. Dr. João Barroso da Fonte ), Guimarães, Gabinete de Imprensa, 1997. 56