UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES.
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA.
Álvaro Fonseca Duarte
O Jesus Corâmico.
Uma análise da figura de Jesus na gênese do Islamismo
Curitiba 2006.
II
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.
SETOR DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES.
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA.
Álvaro Fonseca Duarte
O Jesus Corâmico.
Uma análise da figura de Jesus na gênese do Islamismo
Projeto de pesquisa de caráter monográfico
apresentado à disciplina de Estágio Supervisionado
em Pesquisa Histórica sob a orientação
do Prof° Dr° Renan Frighetto, como pré-requisito
para a conclusão do curso de História nesta
Universidade.
CURITIBA 2006.
III
Dedicatória
A todos os povos islâmicos do Oriente Médio.
Epigrafe
“Não vemos as coisas como elas são; nós as vemos como somos.”
Talmude
IV
Resumo
Neste trabalho pretendo trabalhar a figura de Jesus Cristo presente no Alcorão,
e sua influência e relação na gênese do Islamismo. Assim procurei demonstrar como
Maomé se apropria de figuras do Judaísmo e do Cristianismo para fundar sua religião
e para se colocar dentro de uma linha de profetas, que vem de Abraão, passa por Jesus
e termina com a “plenitude da revelação”, isto é, com ele e o Alcorão. Desta maneira
Jesus assume um papel de relevância neste processo, pois age como a ligação entre
Maomé e os profetas do Antigo Testamento, além de ser um elemento de aceitação
para a nova religião. Para a realização deste trabalho utilizei o Alcorão como fonte
principal, e a Bíblia como fonte secundária. Procuro trabalhar com um recorte
temporal englobando o surgimento da nova religião por volta de 600 d.C. a 660 d.C. ,
até quando o Islamismo já se impõe como religião predominante no Oriente Médio e
inicia o período Omíada, marcado pela consolidação e expansão da nova religião.
Palavras-chaves: islamismo; relações cristianismo-islamismo; Jesus no Alcorão; Maomé e
o Islã; Jesus histórico.
V
Índice
Dedicatória ..........................................................................................................................III
Epigrafe ...............................................................................................................................III
Resumo ................................................................................................................................IV
Introdução .............................................................................................................................1
Capítulo I – Uma nova religião; um novo governo.
1.1 Os Povos pré-islâmicos ....................................................................................................6
1.2 A Vinda do profeta ...........................................................................................................8
1.3 As primeiras expansões mulçumanas e os primeiros califas .........................................15
1.4 Organização do governo Mulçumano. ...........................................................................19
1.5 Califado de Otman .........................................................................................................21
1.6 Califado de Ali ...............................................................................................................23
Capítulo II – O Jesus Histórico
2.1 A Palestina no tempo de Jesus....................................................................................... 26
2.2 A Organização sócio-religiosa da Palestina ...................................................................30
2.3 A Vinda do Messias .......................................................................................................32
2.4 A figura do Cristo ...........................................................................................................34
2.5 As querelas cristológicas ................................................................................................35
Capítulo III – O Jesus Corâmico
3.1 O Alcorão .......................................................................................................................41
3.2 Jesus no Alcorão ............................................................................................................44
3.3 O nascimento e infância de Jesus ...................................................................................45
3.4 Os milagres de Jesus ......................................................................................................47
3.5 A relação entre Jesus e Deus ..........................................................................................48
3.6 Jesus e os israelitas .........................................................................................................49
3.7 A “morte” de Jesus. ........................................................................................................50
3.8 A natureza Crística no Alcorão ......................................................................................51
3.9 Jesus e o Islamismo Nascente ........................................................................................52
Conclusão ............................................................................................................................54
Fontes ..................................................................................................................................58
Referências Bibliográficas .................................................................................................58
Anexos
A.1 Tipologia dos Profetas corâmicos .................................................................................60
Mapas ...................................................................................................................................63
1
Introdução
Podemos observar no Alcorão1 um destaque da figura de Jesus, o “filho de Maria” –
expressão usada pelo Livro para referir-se a Ele – dentro de uma tipologia dos profetas
corâmicos..E Ele aparece no Alcorão como um profeta polêmico. O único que o Livro
Sagrado deliberadamente faz distanciar-se das doutrinas ensinadas pelas comunidades
ligadas a Ele. Assim, pode-se afirmar que enquanto um judeu devoto não acharia nada
teologicamente censurável na maneira como Moisés, José e Davi são apresentados no
Alcorão, o mesmo não podemos afirmar quanto um cristão devoto sobre o tratamento dado
a Jesus. Entender o papel que Ele exerce na história dessa religião, dentro do período da sua
criação e expansão de 600 a 660 d. C., é o que pretendo desenvolver neste trabalho. Assim,
na busca de analisar isto, temos que nos deter em alguns aspectos importantes; seguindo os
passos de outros historiadores que, se não estudaram as relações entre o Islã e a figura de
Cristo, nos mostram as trilhas que devemos seguir para compreender e estudá-la.
Claude Cohen, notável historiador do Islã, é o primeiro que nos alerta que o
historiador do islamismo deve prevenir seu leitor da sua incapacidade de dar uma visão
exata da história mulçumana como da história da Europa, por exemplo2. Isto se deve ao
fato de que de um lado, salvo raras exceções, não dispomos, para o Oriente Próximo, da
quantidade de documentos arquivados e catalogados como se tem para a Idade Média
européia, e sem uma literatura abrangente para suprir esta falta. De outro lado, quando se
trata de “orientalistas”, mais por força lingüística que historiadores propriamente ditos, suas
preocupações incidem mais sobre as condições políticas ou a curiosidade intelectual
“ocidental” do que a atenção necessária para um estudo “completo” do Oriente3.
Desta maneira, como nos diz também Edward Said, os “orientalistas” começaram,
tardiamente, a perceber as exigências de uma investigação histórica concebida com espírito
moderno também para o Oriente4. Podemos dizer que o que foi feito por ambas as causas,
1
Uma vez que al em árabe corresponde ao artigo “o” em português, alguns etimólogos sustentam a tradução
como: O Corão. Isto também deve-se ao fato de que, em geral, temos traduções do inglês ou do espanhol, que
não costumam incorporar o al nas palavras que derivam do árabe. Preferi, no entanto, seguir a tradição e
escolhi Alcorão, já que a maioria das palavras árabes são traduzidas para o português com o artigo al já
incorporado, como açúcar, alfândega, alquimia.
2
CAHEN, C. El Islam. Siglo Veintiuno. México 1985 p 2
3
Ibid,
4
SAID, E. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 pp
25-6
2
os trabalhos historiográficos sobre o Oriente atrasam-se um século com respeito aos que se
referem ao Ocidente5. Precisamos acabar com a distância que separa os postigos de uma
história onde não deveria caber a distinção entre “orientalistas” e “ocidentalistas”.6 Embora
isto não ocorra, devemos simplesmente advertir o leitor, como nos ensina Cohen, que a
imagem do Islã que vamos proporcionar, e eu o faço agora, continua sendo incompleta e,
sobretudo, provisória. 7
Outro alerta que Cohen nos dá é sobre a necessidade de se conhecer a sociedade em
que surgiu Maomé é o Islã, isto é, a península arábica do final do século VI e inícios do
século VII. O autor nos diz que o historiador do islamismo tem a necessidade de conhecer a
esta sociedade e sua organização com bases tribais, não somente porque o Islã nasceu na
Arábia, mas porque o conhecimento da sociedade pré-islâmica condiciona o entendimento
da sociedade islâmica em um grau maior que em outras civilizações.8
Este conhecimento sobre a Arábia pré-islâmica também nos ajuda a analisar as
relações entre a gênese do Islamismo e a influência do Cristianismo. Como nos diz Tarif
Khalidi : “hoje se reconhece comumente que o Islã nasceu num tempo e lugar onde a figura
de Jesus era bastante conhecida”9. De inscrições, de fontes de origem siríacas, etíopes e
bizantinas, das analises modernas da poesia pré-islâmica árabe, dos recém-descobertas
materiais dos primórdios do islamismo, surge-nos um retrato de uma Arábia pré-islâmica
onde as diversas comunidades cristãs, na própria Arábia ou nas vizinhanças imediatas,
ofereciam imagens ricas e diversas de Jesus. Khalidi também nos adverte que é bom
lembrar que quando o Islã chegou a cena histórica, a Igreja dos Grandes Concílios ainda
impusera seus dogmas no Oriente Médio. Em outras palavras, o Islã nasceu entre um
grande número de comunidades cristãs, por vezes heréticas e mutuamente hostis, e não no
seio de uma Igreja Universal10.
Neste sentido também Eliade nos afirma que “não há dúvida de que o profeta
[Maomé] conhecia, direta ou indiretamente, certas concepções e práticas religiosas dos
5
Ibid
Ibid
7
CAHEN, C. Op. cit. p 2
8
Ibid p 3
9
KHALIDI, T. O Jesus Mulçumano. Rio de Janeiro: Imago, 2001 p 16
10
Ibid p 16
6
3
judeus e dos cristãos”.11 Eliade alega que os informantes de Maomé conheciam
provavelmente a Igreja monofisista da Abissínia, onde a Virgem Maria era venerada de
maneira excessiva12. Por outro lado, vislumbram-se certas influências do nestorianismo,
como, por exemplo, a sua crença de que a morte torna a alma completamente inconsciente,
e de que os mártires da fé são logo transportados para o Paraíso13.
E por fim um último aspecto a ser considerado nesta introdução sobre o Jesus
islâmico é o que Khalidi chama de “tipologia dos profetas corâmicos”14. Nessa tipologia
nós temos um modelo de profecia reconhecível pela maneira como um determinado profeta
inicia sua missão de advertir uma comunidade pretensiosa, ignorante e hostil muitas vezes,
de sua mensagem e a confirmação final de Deus em forma de castigo. Assim, ao
estudarmos Jesus dentro da ótica islâmica não podemos deixar de considerar este aspecto,
pois Ele não se afasta desta tipologia, mas enquadra-se nela de uma maneira diferente da
dos outros profetas.
Assim este trabalho pretende (e quão pretensioso ele é) continuar nestas linhas de
pesquisas sobre o Islã, atento a recomendações de método de Cahen, Khalidi e Eliade, entre
outros. Por isto ele está dividido em três partes, ou capítulos, a saber: um sobre o contexto
do mundo árabe quando do surgimento do Islã; um outro sobre o “Jesus histórico” e as
questões cristológicas; e por fim um estudo da fonte, o Alcorão, e a analise da figura de
Cristo dentro desta.
O primeiro capítulo é muito ligado a idéia de Cahen, já exposta, de que para se
entender o mundo islâmico, seja ele atual ou em qualquer época, é imperativo conhecer a
sociedade em que ele surge e como ele se desenvolve, pois isto afeta muito o nosso objeto
de trabalho de uma maneira mais profunda do que por vezes percebemos; e mais do que em
outras sociedades15. Assim nesta primeira parte eu passo desde a Arábia tribal pré-islâmica,
cercada pelos impérios Sassânida e Bizantino; o surgimento de Maomé como o Profeta
deste povo e a consolidação do Islã como religião predominante da Península Arábica; e a
11
ELIADE, M. História das Crenças e das idéias religiosas. De Maomé à Idade das Reformas. Tomo III
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984 p98
12
Ibid p 99
13
Ibid p 99
14
KHALIDI, T. op. cit. p 20
15
CAHEN, C. op. cit. p 2
4
expansão do islamismo sobre todo o Oriente Médio e parte do Norte da África, com o
surgimento do califado e os primeiros quatro califas.
Na segunda parte procuro trabalhar um pouco com a figura de um Jesus histórico,
isto é, um pouco sobre a história dEle e a sociedade onde surge o cristianismo. Assim, no
segundo capítulo, eu trabalho com a Palestina no tempo de Jesus, e o faço pelos mesmos
motivos que me fizeram apresentar a Arábia pré-islâmica, num contexto sócio-políticoreligioso. Depois trabalho um pouco com a pessoa de Jesus dentro deste contexto palestino
do século I, uma idéia próxima de um “Jesus Histórico”. Por fim discorro sobre as querelas
cristólogicas, isto é, as discussões sobre a natureza de Cristo que se desenvolve nos séculos
subseqüentes do surgimento do cristianismo e que vão afetar nosso trabalho diretamente,
pois é só a partir delas que podemos entender o Jesus corâmico.
No terceiro capítulo eu procuro analisar a minha fonte principal, o Alcorão, e a
figura de Jesus dentro dele. Para tal eu começo com uma discussão sobre o Livro, como ele
se formou e de que maneira isto se deu. Depois, eu analiso a figura de Jesus no Alcorão
seguindo um esquema, proposto por Khalidi16, que é dividindo as passagens referentes a
Ele em: o nascimento e a infância de Jesus; os milagres Dele; a relação entre Jesus e Deus;
a relação entre ele e os israelitas; a “morte” de Jesus; uma analise da natureza cristíca no
Alcorão; e, por fim, uma analise de Jesus e a comunidade islâmica nascente. Apesar dos
trechos referentes a Jesus não aparecerem desta maneira, nem nesta ordem no Alcorão, uma
vez que tais referências estão espalhadas pelo Livro, entendo que este esquema é bastante
interessante, pois segue um pouco a idéia dos Evangelhos de nascimento, pregações e
milagres, morte e, no caso, ressurreição.
Por fim mais algumas questões à guisa de introdução. A primeira é sobre as fontes.
A fonte principal é o Alcorão, mas com o desenvolver do trabalho eu busquei muitas
referências na Bíblia também, sendo esta uma fonte secundária. Porém quando me refiro a
“o Livro”, ou “Livro Sagrado”, em maiúsculas, refiro-me ao Alcorão e não a Bíblia, como
acontecesse comumente na nossa sociedade de base cristã. Da mesma maneira, quando
trato de Maomé e dirijo-me a ele como “o Profeta”, em maiúsculo, o faço em deferência a
tradição mulçumana. Com relação a ele também, preferi utilizar Maomé seguindo uma
16
KHALIDI, T. op. cit. p 22
5
historiografia mais antiga e ocidental do que seu nome em árabe, Muhammed, ligado muito
mais a uma historiografia islâmica, ou a algumas linhas ocidentais mais recentes. E por
último, quando trato de Jesus procuro-me utilizar os pronomes referentes a Ele em
maiúsculo alinhando-me com a gramática corrente em nossa língua.
6
Capítulo I – Uma nova religião; um novo governo.
1.1 Os Povos Pré-islâmicos.
Para começar é preciso tratar dos povos pré-islâmicos e sua influência sobre o
Islamismo. A maior parte da península Arábica era estepe ou deserto, com oásis isolados
contendo água suficiente para o cultivo regular. Os habitantes desta região falavam vários
dialetos de origem semita e seguiam diferentes estilos de vida. Ao Sul, em geral, ficavam os
nômades criadores de camelos, carneiros ou cabras, dependendo dos escassos recursos de
água, os conhecidos “beduínos”. Ao Norte ficavam os povos sedentários. Estes eram
agricultores estabelecidos, ou então comerciantes e artesões que viviam em pequenos
vilarejos, onde sediavam suas feiras. Alguns, ainda, juntavam estes dois modos de vida.Os
povos nômades, mesmo sendo minoria da população, dominavam as aldeias, os lavradores,
comerciantes e artesãos. Os preceitos destes eram: a coragem; a hospitalidade, o mais
respeitado de todos até hoje; lealdade à família e orgulho dos ancestrais, e era isto que
“guiava” suas vidas. Não eram controlados por um poder de coerção estável, mas liderado
por chefes que pertenciam a famílias em torno das quais reuniam grupos de seguidores
relativamente constantes e que manifestavam sua coesão e lealdade no idioma ancestral
comum: tais grupos são chamados tribos17.
Estas eram governadas por chefes a partir do oásis. Era neste local que mantinham
relação estreita com os mercadores e era onde organizavam o comércio através do território
controlado pela tribo18. No oásis, porém, outras famílias podiam estabelecer um tipo
diferente de poder, pela força da religião. A religião dos pastores e agricultores não era
muito clara. Acreditava-se que deuses locais, identificados com objetos no céu,
incorporavam-se em pedras, árvores e outras coisas naturais; acreditava-se, também, que
bons e maus espíritos corriam pelo mundo em forma de animais; e adivinhos afirmavam
poder comunicar-se com o sobrenatural. Os seus locais de adoração eram sagrados e
constituíam terras de asilo, de refúgio, e cuja guarda eram encarregadas determinadas
famílias ou clãs, sem que, por isto, desempenhassem funções de sacerdotes.19
17
HOURANI, A. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Cia das Letras, 2001. pp 26-27.
Ibid
19
MANTRAM, R. Expansão Mulçumana. (Séculos VII-XI). São Paulo, Livraria Pioneira editora, 1977. p52
18
7
Havia na Arábia um templo chamado Caaba, fundado, segundo a tradição árabe, por
Abraão, e que era venerado por todos os povos da península e, freqüentemente, estes povos
iam visitá-lo em romaria. A Caaba era um verdadeiro Panteão dos deuses da região, e
quando Maomé surgiu continha estátuas de uma infinidade de divindades, entre as quais
figuravam Jesus e a Virgem Maria. Todos os povos da Arábia resumiam sua glória em
adornar este templo. A custódia da Caaba estava confiada aos árabes da tribo coraixitas,
que por esta razão desfrutavam de grande autoridade religiosa e política, reconhecida por
toda a região; e que viriam a ser uns dos principais opositores do islamismo.20
Pouco sabe-se sobre estas populações, e, em geral o que sabemos sobre elas vêm de
escritos dos hebreus, assírios, gregos e romanos. A Bíblia relata a origem desta população
como descendente de Ismael, filho de Abraão e Agar, a escrava egípcia, e alude
freqüentemente as relações de comércio com estes povos. Os gregos conheceram mais de
quatro séculos antes de Cristo as riquezas dos árabes, motivo que levou Alexandre, o
Grande, a tentar conquistar a Arábia. Este acabou por conquistar o que hoje é o Irã,
aproximando, assim, os povos nômades do deserto com os povos mediterrâneos21. Os
romanos também tentaram conquistar esta região, mas conseguiram apenas uma pequena
faixa da península. Os povos que viviam ao sul, nunca, antes de Maomé, chegaram a ser
conquistado por povos de fora, visto que possuíam o deserto como o grande aliado nas
guerras contra os invasores. Com o surgimento do Império Bizantino, a sede do poder
transferiu-se para mais perto destas tribos, e este império grego e cristão acabou por
influenciá-las, e muito.
Neste mesmo tempo da ascensão de Constantinopla, havia, do outro lado do
Eufrates, um grande Império: o dos sassânidas. O domínio destes estendia-se sobre o que é
hoje o Irã e o Iraque, e entrava pela Ásia Central adentro. Esta região continha vários
centros de cultura, cidades habitadas por diferentes grupos étnicos, separadas umas das
outras por estepes ou desertos, sem grandes rios para facilitar a comunicação entre elas. De
tempos em tempos, tinham sido unidas por dinastias fortes e estáveis. A última fora a dos
sassânidas, que governou por intermédio de uma hierarquia de funcionários, tentando, desta
maneira, construir uma base sólida de unidade e lealdade, e que reviveu a antiga religião,
20
21
LE BOM, G. A civilização Árabe. Curitiba, 1966. p 96.
Ibid pp 86-87.
8
ligada ao zoroastrismo. Para esta religião o universo era um campo de batalha, abaixo do
deus supremo, entre bons e maus espíritos; o bem venceria, mas as pessoas virtuosas e
puras podiam apressar a vitória. Este pensamento, com certeza, virá a influenciar na criação
da noção de jihad (guerra, ou esforço pela causa do Islã) dos mulçumanos. Além do
zoroastrismo, existiam na região: judeus, cristãos, filósofos e cientistas pagãos, além de
seguidores de Mani, que tentara incorporar todos os profetas e mestres num único sistema
religioso, o que Maomé irá fazer mais posteriormente ao incorporar figuras do judaísmo,
como Moisés e Abrão, e do cristianismo, como Jesus e Maria, idéias do zoroastrismo e
elementos das religiões tribais. O poder e influência dos impérios afetaram partes da
península Arábica, fazendo muitas populações migraram para a região conhecida por
Crescente Fértil, trazendo consigo os seus preceitos e forma de organização social. Alguns
chefes tribais exerciam a liderança com base em aldeias nos oásis, e eram usados pelos
poderes imperiais para manter os nômades longe e para cobrar impostos das aldeias mais
distantes. Podemos dizer então que a região era uma verdadeira miscelânea de povos e
culturas, de todas as raças e religiões e é neste contexto que irá surgir Maomé e sua
doutrina.22
1.2 A Vinda do Profeta.
No início do século VII d.C., ocorre uma nova reestruturação da ordem política, que
inclui toda a península Arábica, todas as terras sassânidas, e as províncias sírias e egípcias
do Império Bizantino; apagaram-se velhas fronteiras e criaram-se novas. Nesta nova ordem,
o grupo dominante foi formado por árabes da região ocidental, sobretudo de Meca, e não
pelos povos do império. Antes do final deste século, estes grupos de governantes árabes
identificavam sua nova ordem com uma revelação dada por Deus ao seu Profeta e passaram
a viver em função disto. Mas antes é preciso conhecer um pouco sobre a vida de Maomé.
Em comparação com a maioria dos fundadores de religiões, podemos dizer que
Maomé se nos apresenta como uma personalidade de sólida historicidade23. Mas isto não
significa que se possamos estabelecer uma biografia bem fundamentada de sua pessoa. O
Alcorão nos elucida sobre sua mensagem, mas é vão interrogá-lo acerca de sua vida e de
22
23
HOURANI, op. cit. pp 25-27.
ELIADE, op. cit p 82
9
seu papel como chefe de estado. Toda nossa informação repousa na hadith que opõem
numerosos obstáculos ao historiador: a crítica, aliás de prática bastante difícil, não tem
condições de transformar esse amontoado de historietas e fábulas em uma fonte
verdadeiramente clara. Podemos apoiar os estudo das fontes sobre a vida de Maomé nas
hadith reunidas na Sira de Ibn Ishaq (meados do século VIII), revista por Ibn Hisham
(início do século IX), que são, em geral, as bases para todas as outras biografias do
Profeta24.
Existem várias biografias, de épocas posteriores ao do Profeta, referentes a sua vida.
As fontes escritas em outras línguas, diferente do árabe, atestam plenamente a formação de
um Império, mas o que dizem sobre a missão de Maomé difere do que diz a tradição
árabe25. E para nós é importante dispor, para pelo menos um dos fundadores de religiões
universais, de uma riquíssima documentação histórica, pois isso torna ainda mais
compreensível o poder de um gênio religioso. Em outras palavras, percebemos até que
ponto um gênio religioso pode utilizar-se das circunstâncias históricas para fazer triunfar a
sua mensagem26. Em geral, muito do que está nestas biografias e histórias tradicionais,
provavelmente, não foram inventadas. Sem dúvida, estes textos refletem uma tentativa
posterior de encaixar Maomé no modelo próximo oriental de homem santo, e no modelo
árabe de descendência nobre; também refletem as controvérsias doutrinárias da época e
lugar que foram compostos: a Arábia do século VIII d.C.. Apesar disto, contêm fatos da
vida do Profeta, sua família e amigos, que dificilmente poderiam ser inventados. O melhor
é seguir, com cautela, a narrativa tradicional das origens do Islã, pois assim pode-se
compreender a visão deles da história do que deve ser a vida humana27.
O Profeta Maomé nasce por volta de 570 d.C., na cidade de Meca. Seus pais
morreram quando ele ainda era criança, sendo que este teve que ser criado pelos tios
maternos, em meio a comerciantes. Sua família pertencia à tribo dos coraixitas, embora não
à parte mais poderosa. Pouco se sabe da infância e adolescência do Profeta e com o passar
do tempo as lendas se multiplicaram, construindo dele uma imagem edificante. A tradição
24
COHEN, op. cit p 7
HOURANI op. cit p. 32
26
ELIADE op. cit 82
27
KHALID op. cit p 17
25
10
coloca que durante o período de sua juventude, Maomé, teria viajado com seu tio Abu Talib
à Síria. Alguns historiadores opinavam que foi numa dessas viagens a Síria que Maomé
teria feito seus primeiros contatos com o cristianismo28. No entanto, parece bem estranho
que desses contatos não haja guardado mais lembranças e que suas alusões ao cristianismo
estejam tão afastadas do que poderia ter visto ou entendido dessa religião. Isto até leva a
supor bastante duvidosa a hipótese das viagens à Síria29.
Aos vinte anos de idade Maomé foi escolhido por Khadija, uma comerciante rica e
viúva, como homem de confiança para acompanhar as caravanas até a Síria. Em seguida
esta propôs-lhe casamento. Ele que aceitou e passou a cuidar dos negócios dela. A tradição
nos traz uma imagem lisonjeira de Khadija: ela foi uma esposa dedicada e sobretudo a
primeira adepta do Profeta ao qual deu sete filhos – três rapazes (todos morreram muito
jovens) e quatro meninas. Khadija também é contada entre as quatro mulheres perfeitas da
humanidade, ao lado de Maria, mãe de Jesus, da esposa do Faraó, que cuidou de Moisés, e
da irmã deste. Enquanto ela viveu Maomé não teve outra esposa.
Com o passar do tempo Maomé transformou-se num errante solitário entre os
rochedos, e então um dia, quando tinha cerca de quarenta anos, aconteceu-lhe a revelação.
Numa versão, o anjo Gabriel, em forma de homem, convocou-o a tornar-se mensageiro de
Deus; em outra, ele ouviu a voz de um anjo convidando-o a recitar uma passagem do Livro
Sagrado. A doutrina muçulmana supõe que ele teria recebido a influência divina sob duas
formas: a revelação propriamente dita, tanzil, que é a escritura, o Alcorão, trazida pelo anjo,
e uma inspiração, nahyi, ilman, depositada diretamente por Deus no coração de seus
profetas30. Esta lhe ensina a dirigir sua conduta e a de seus fiéis.
A priori, poucos acreditaram em sua pregação, apenas sua esposa e alguns parentes
e amigos próximos. Os primeiros muçulmanos foram recrutados entre os jovens das
famílias e dos clãs de maior influência em Meca. Em seguida, entre os membros dos clãs de
menor importância, muitas vezes jovens; depois entre indivíduos não pertencentes aos clãs
coraixitas, mas a eles filiados como confederados. Finalmente, entre escravos. Podemos
28
ELIADE op. cit p 83
MANTRAM op. cit p 58
30
Ibid p 59
29
11
dizer que os convertidos em geral eram jovens, com menos de quarenta anos, que o foram
mais pelo conteúdo religioso do que político31.
A partir desta época, Maomé começou a comunicar uma sucessão de mensagens que
acreditava serem reveladas por Deus através do anjo. O nome dado a Deus era “Allah”, já
em uso para um dos deuses locais, e que seria adotado por cristãos e judeus de língua árabe
como o nome de Deus. Atacavam-se as estátuas dos deuses e as cerimônias a elas
relacionadas; ordenavam novas formas de culto e adoração. Maomé adotou explicitamente
a linha dos profetas judaico-cristãos.32 A medida que seus ensinamentos difundiam-se,
tornava-se mais clara as diferenças com as crenças aceitas pelo povo de Meca. Ao
considerar as divindades desta cidade inferiores a Allah, o Profeta critica, ao mesmo tempo,
a religião tradicional e compromete as peregrinações religiosas e as receitas que destas
advinham. Além disso, é quase certo que os mais influentes do coraixitas não se
conformaram com o fato de o privilégio de anunciar a revelação ter sido concedido não a
um deles, mas a um homem que não pertencia às famílias dominantes33.
Esta sua posição tornou praticamente insuportável, levando-lhe, em 622 d.C., a fugir
de Meca para Yathrib. Esta partida do Profeta ficou conhecida por Hégira, não só no
sentido de fuga, mas também no sentido de busca de proteção, de estabelecimento em um
lugar que não é seu próprio34. A partir deste fato que se começa a contar o calendário
islâmico. Em Yathrib, Maomé começou acumular um poder que se irradiou pelo oásis e
deserto em volta. Isto levou-o a realizar pactos com as tribos existentes nesta cidade, em
especial com as de origem árabe contra as judaicas. Assim o número de fiéis aumentava
dentro das tribos já existentes nessa cidade, conversões esta regulamentas por pactos de
lutar pelo Profeta, acolhendo-o em Yathrib. Na Arábia antiga, o pacto de garantia era uma
prática reconhecida, porém a este se acrescentou o fato de que surgia uma nova
comunidade unida à de Meca pela religião, portanto para além das reuniões de tribos35.
Tendo estabelecido-se, Maomé mandou vir de Meca cerca de sessenta muçulmanos,
iniciando uma fase decisiva em sua vida. A cidade de Yathrib, que doravante seria chamada
31
Ibid p 61
CLEARY, T. O Essencial do Alcorão. São Paulo, s.d. pp 11-12
33
Alcorão 113, 30
34
HOURANI op. cit p 34
35
MANTRAN op. cit p 63
32
12
de Madinat al-nadi (Medina, a cidade do Profeta), tornou-se sede ativa de uma comunidade
da qual Maomé era o chefe espiritual e temporal. Sua primeira tarefa foi reforçar sua
posição em Medina e promover a integração dos diversos grupos de homens que ali viviam
em um todo ordenado. As bases dessa organização da comunidade estavam registradas no
Pacto, cujo texto, provavelmente autêntico, a tradição nos conservou. Nele está
especificado que:
“os Crentes da tribo qoraysh e os de Yatrib, bem como os que a ele se uniram e
lutaram a seu lado, constituem uma comunidade (umma) única, distinta dos demais
homens; são solidários uns dos outros. Os judeus formam uma única comunidade com os
Crentes. Aqueles dos judeus que nos seguirem têm o direito à nossa ajuda e ao nosso
apoio, enquanto não agirem incorretamente contra nós ou não prestarem auxilio a nossos
inimigos contra nós”.36
Este pacto regula, pois, as relações entre os crentes, bem como entre os diversos grupos.
Sua finalidade era prática, mas, ao mesmo tempo, esboçavam-se as primeiras linhas da
constituição teocrática que, aos poucos, tornou o Islã uma religião e um poderoso governo.
Com o passar do tempo as conversões em Medina aumentaram entre os árabes,
assim como as hostilidades com os judeus, que sentiam que Maomé estava se afastando das
concepções de seus Livros Sagrados. As tribos judaicas esperavam levá-lo ao judaísmo, da
mesma maneira Maomé esperava convertê-los. A ruptura ocorreu em 624, quando o Profeta
proclamou que a verdadeira fé era a de Abraão, construtor da Caaba, e que, doravante, para
a oração, os fiéis deveriam voltar-se para Meca e não mais para Jerusalém. O profeta
também estabeleceu definitivamente sua independência religiosa com relação aos povos da
escritura, não admitindo outra interpretação da Palavra de Deus além da do Alcorão.
Além dos problemas religiosos surgiram problemas de ordem material. Entre os
emigrados, apenas uns poucos haviam conseguido carregar as suas posses e a grande
maioria vivia na miséria. Para vencer estas dificuldades o meio encontrado foi o saque. Os
analistas árabes interpretaram o fato apenas como uma guerra santa contra os inimigos de
Allah. Tais práticas engrandeceram o prestígio de Maomé e da umma (comunidade) entre
os árabes, e obrigaram certas tribos a fazerem acordos com ele. Sobretudo permitiram
sustentar contra Meca a atividade dos fiéis proporcionando-lhes o produto do saque. Além
36
MANTRAN op. cit p 65
13
disso, Medina estava em posição geográfica privilegiada, na rota das caravanas de Meca
para a Síria.
Logo Maomé viu-se obrigado a entrar numa luta armada com os coraixitas para
conseguir o domínio das rotas comerciais. Eles passaram a acreditar que tinham que lutar
pelo que é certo: “Quando os coraixitas tornaram-se insolentes para com Deus e rejeitam
Seu gracioso propósito [...] Ele deu permissão a Seu Profeta para lutar e proteger-se”.37
Adquiriram a convicção de que Deus e os anjos lutariam sempre ao seu lado, aceitando as
calamidades como provações de Deus para com os fiéis. O primeiro grande ataque da
comunidade muçulmana combate foi travado no poço de Badr em março de 624, em que os
coraixitas tiveram mortos e prisioneiros, que foram libertados mediante um resgate e alguns
deles se converteram. O produto do saque foi dividido na base de um quinto para o Profeta
e o resto entre os combatentes de Medina.
A vitória de Badr teve conseqüências imediatas para os judeus de Medina, que
possuíam relações secretas com os coraixitas. Uma rixa serviu de pretexto para Maomé
atacar uma das três tribos judaicas da cidade, que teve que abandona-la deixando tudo para
trás. O espólio que lhes foi tomado proporcionou uma situação melhor para os emigrados.
Em relação aos cristãos, Maomé manteve durante certo tempo sua atitude de solidariedade
e até usou-os de exemplo para os judeus. Após uma derrota para os coraixitas em 625, as
hostilidades contra os judeus aumentaram, a fim de deixar claro que Maomé era o único
interprete da verdadeira religião e também para acalmar os ânimos dos seus combatentes
recém derrotados.
Em 627, o povo de Meca marchou contra Maomé em Medina. Este cavou um fosso
em volta da cidade, o que salvou a população e fez aumentar o seu prestígio. Assim após
um breve cerco, as tropas dos coraixitas debandaram, deixando a vitória ao profeta. Este
decidiu eliminar a última tribo judaica de Medina, que havia ajudado os atacantes e foram
condenados ao extermínio. A batalha do fosso foi a última das ações qualificadas de
“defensivas” para os muçulmanos e doravante, até a morte do Profeta em 632, desenrola-se
a fase ofensiva.
37
HOURANI, op. cit. p 34.
14
Após uma série de vitórias no Norte, que permitiram a Maomé o controle da rota
das caravanas da Síria e estabelecer relações mais estreitas com as tribos instaladas nas
imediações dessa rota, este resolveu fazer uma peregrinação a Meca. Chegando ao limite da
cidade, ele e seus fiéis não puderam continuar, pois os coraixitas haviam mobilizado suas
tropas. Para evitar derramamento de sangue, emissários dos dois lados se reuniram e
lograram um acordo. Este foi o tratado de al-Hodaybiyya38, de março de 628, que dizia que
se Maomé desistisse da peregrinação naquele ano poderia voltar no ano seguinte e lá ficar
por três dias, sendo esta trégua válida por dez anos. O acordo constituiu um sucesso para
Maomé, que foi tratado como um igual pelos coraixitas, que o consideraram um legítimo
chefe de povo. Ademais o acordo valeu-lhe numerosas conversões entre as tribos beduínas;
e adesões importantes como as de Amr ibn al-Aç, futuro conquistador do Egito, e de Khalid
ibn Walid, o mais experimentado chefe militar dos coraixitas. Em 629, a peregrinação
ocorreu conforme o convencionado e a cidade foi temporariamente abandonada pelos
coraixitas.
Com a quase completa conversão das tribos do Hedjaz, em inícios de 630, os
coraixitas ficaram isolados e o comércio em Meca periclitava. Alguns deles estavam
dispostos a uma aproximação com os muçulmanos no intuito de salvar o que ainda
pudessem, em especial, o papel de Meca como santuário dos árabes. Em janeiro de 630,
com o pretexto do assassínio de um muçulmano, Maomé reuniu um grande exército e
marchou contra Meca, rompendo, assim, a trégua de Hodaybiyya. Abu Sofyan, homem de
maior influência na cidade e recém convertido ao islamismo, fez com que o povo de Meca
aceitasse as condições do Profeta: entrada livre em Meca para os muçulmanos e, como
contrapartida, salvaguarda da vida e dos bens de todos os que não oferecessem resistência.
Assim Maomé e seu exército penetraram na cidade. Ele dirigiu-se a Caaba, em torno da
qual deu sete voltas, tocou a Pedra Negra com seu bastão, mandou derrubar os ídolos lá
erguidos e apagar os afrescos que representavam os profetas bíblicos, poupando apenas as
imagens de Abraão, de Jesus e da Virgem. Declarou sagrado o recinto do santuário, cuja a
38
MANTRAN op. cit p 69.
15
guarda confiou a Otman ibn Tallha. Por fim realizou-se a cerimônia de juramento (baya),
pela qual o povo de Meca jurou fidelidade e obediência ao Profeta39.
O nono ano da hégira (630 d.C.) marcou a união de numerosas tribos beduínas a
causa de Maomé, sem que, todas se convertessem ao islamismo. Na Arábia do Sul, os
chefes religiosos e civis da cidade cristã de Nájira firmaram um tratado com Maomé, que
colocava os habitantes da cidade sob a égide dos muçulmanos e pagavam-lhes um tributo
em espécie e mantinham sua religião. No Centro e Nordeste da Arábia, outras tribos menos
cristianizadas aderiram ao islamismo. Ao Norte, o Profeta encontrou apoio entre as tribos
cristãs da fronteira bizantina, sem, no entanto, implantar o islamismo. O ano de 631 foi
marcado pelo hadjdj, a grande peregrinação dos árabes do Hedjaz a Meca. Maomé não
participou dela, mas enviou Ali como seu representante para ler, em seu lugar, uma
revelação referente ao paganismo. Em 632 o Profeta fez a peregrinação do adeus. Nesta ele
estabeleceu o mês da peregrinação, exortando os árabes a permanecerem unidos depois
dele, proclamando direitos e deveres recíprocos dos esposos, a interdição de qualquer lucro
proveniente da usura, a abolição da “vendetta”, fixou o ano em doze meses lunares e
estabeleceu Meca como território sagrado. Voltou a Medina e morreu pouco depois.
1.3 As primeiras expansões muçulmanas e os primeiros califas.
Com a morte do profeta a comunidade por ele criada estava ameaçada de
dissolução. Vários grupos disputavam o poder, com algumas tentativas de secessão. Por
fim, conseguiu-se um acordo em torno do nome de Abu Bekr (ou Bakr), homem prudente,
e um dos primeiros companheiros de Maomé, e também seu sogro, designado substituto
(khalifa, que deu “califa”)40 do Enviado de Allah. Esta designação, apoiada por Omar e
Abu Obayda, foi feita em detrimento dos membros da família de Maomé: Ali, seu primo e
genro, Abbas, seu tio, e alguns outros, que tinham poucos partidários em Medina. Assim,
salvo algumas exceções, tanto o povo de Medina como o de Meca e mais as tribos
sedentárias em geral reconheceram Abu Bekr como o novo chefe da comunidade. Porém
39
40
Ibid p 75.
HOURANI op. cit p 39
16
algumas tribos optaram pela secessão, movimento conhecido na tradição árabe com o nome
de ridda (apostasia)41.
Importava, neste momento, refazer rapidamente a unidade da Arábia e afirmar a
supremacia do Islã. Para tal, Abu Bekr não tardou em usar mão de ferro. Esta tarefa, ao
mesmo tempo guerra de conquista e missão religiosa, foi confiada ao mais brilhante dos
chefes militares dos primórdios do Islã, Khalid ibn al-Walid. Com o tempo, Abu Bekr
conseguiu eliminar os focos de resistência locais e, de maneira ainda mais expressiva que o
próprio Maomé, impôs o islamismo à quase totalidade da Arábia, logrando a unificação da
península. Assim ele quis mostrar aos olhos de todos, mulçumanos ou não, que ele era o
chefe da comunidade, e reforçar o triunfo do Islã, em sua qualidade de sucessor legítimo do
Profeta. Neste sentido também, Abu Bekr ordenou a partida de uma expedição militar para
as fronteiras da Síria, expedição que o próprio Profeta havia decidido.
As conquistas empreendidas por Abu Bekr e, em seguida, por Omar, sempre foram
coroadas de êxitos inesperados, apesar de implicarem em problemas. Apesar disso é
inegável a força de expansão desta nova religião, seja em termos religiosos, seja em
militares. Duas teses são comumente usadas para explicar tal fenômeno: uma de fundo
religioso que realçava o entusiasmo da fé, o que deu aos árabes a vontade de levar o Islã
para a terra dos infiéis e afirmar a superioridade da nova religião; a outra considerava que
foi por necessidade econômica que os árabes, ocasional e superficialmente unidos pelo Islã,
se lançaram à conquista de territórios, a fim de garantir os meios de sua subsistência,
encontrados na Arábia em escala gradativamente menor.
Apesar de serem muito
significativas, não podemos dizer que elas são suficientes para explicar a rapidez da
expansão do Islã (seja militar, seja espiritualmente)42.
Uma teoria mais aceita para entender este fenômeno é a de que Abu Bekr e Omar
proporcionaram aos beduínos pacificados na Arábia uma oportunidade para usar seus
instintos guerreiros. A promessa de um rico espólio levou as tribos a alistar-se sob a
bandeira dos califas. Seus combates no Oriente Próximo revelaram que estes beduínos
possuíam também qualidades de disciplina e união. Podemos dizer que os beduínos
estavam mais ou menos conscientes da guerra santa que tratavam. Este sentimento religioso
41
42
MANTRAN op. cit p 77
Ibid p 78
17
conferiu ao exército árabe uma coesão suplementar, que lhe permitiu triunfar sobre os
adversários que, ao contrário, revelavam fraqueza e desunião. Além disso, beneficiaram-se
de chefes militares brilhantes, como Khalid ibn al-Walid, Moawiya, futuro califa, e Amr
ibn al-Aç. Os beduínos aceitaram a autoridade destes experimentados chefes, que acabaram
tendo uma enorme influência pessoal. Os primeiros combates foram bem sucedidos,
porque, cumpre deixar bem claro, nem os bizantinos nem os sassânidas, que estavam
enfraquecidos devido aos golpes que infligiram-se mutuamente, acreditaram numa ameaça
árabe e não deram a devida importância a estas expedições que tomaram por incursões
habituais43. Assim começaram as grandes conquistas muçulmanas na Mesopotâmia, Síria,
Palestina e Egito.
Na Pérsia dos sassânidas, após as derrotas sofridas diante dos bizantinos, a nobreza
havia tomado o poder, fazendo e desfazendo soberanos: entre 629 e 632 foram oito. O
flanco do lado da Arábia estava desprotegido e a tribo árabe dos bekr de Bárem fazia
incursões sucessivas em território sassânida. Além disso, o povo da Mesopotâmia que
estava financeira e materialmente sendo explorado por seus dirigentes manifestava
oposição cada vez maior. A conquista da Pérsia pelos árabes foi iniciativa do chefe dos
bekr, Muthanna ibn al-Harith, que, para levar mais adiante as suas incursões, solicitou
ajuda aos muçulmanos. Abu Bekr colocou Khalid ibn al-Walid com suas tropas no
comando desta missão. Foi assim que, em 633, com as vitórias em Hira e Kharizma os
muçulmanos adentraram na Mesopotâmia chegando as margens do Eufrates. Com a
ascensão de Omar ao califado a conquista prosseguiu do outro lado do Eufrates. A grande
batalha de Qadisiyya foi o golpe fatal dos árabes contra os persas. Ali os muçulmanos
instalaram duas praças fortes, Baçra e Kufa, apoderando-se em seguida de Ctesifonte. Em
642, os árabes, apesar de alguns revezes, eram senhores da Mesopotâmia, que passou a se
chamar Iraque.
Como as conquistas do Iraque e da Pérsia, as das Palestina e da Síria foram
realizadas através de campanhas longas pelos muçulmanas. Também ajudou nesta
conquista o fato de a região ter sido debilitada pelo Império Bizantino e estar dividida por
querelas religiosas. Por causa das perseguições aos monofosistas pelos bizantinos, os sírios
43
Ibid p 79
18
recusaram-lhes ajuda na luta contra os muçulmanos. Além disso os árabes e sírios já
mantinham relações comerciais, o que resultou numa boa acolhida aos seguidores do Islã.
Para a conquista da Palestina e da Síria mais uma vez foi destacado Khalid ibn alWalid. Após chegar as margens do Eufrates, ele foi com suas tropas em direção a Palestina.
Depois de uma série de pequenas, mas valorosas, vitórias sobre o governador da província,
em 634, Khalid enfrentou um forte e bem equipado exército bizantino, formado apesar dos
problemas financeiros do imperador Heráclito de Bizâncio, e obteve uma vitória
espetacular, o que lhe permitiu ocupar a Palestina, com exceção de Jerusalém e Cesáreia.
Em fins de 636, Damasco rendeu-se pela segunda vez aos muçulmanos, mas sob condições
mais duras: apenas 15 igrejas ficaram em poder dos cristãos e os árabes ocuparam vários
bairros da cidade. Jerusalém caiu em 638 e o califa Omar dirigiu-se para lá em
peregrinação44. Mediante ao pagamento de um tributo, o califa permitiu que os cristãos
permanecessem na cidade e prestassem seu culto, mas os judeus foram de lá expulsos.
Entre a Síria e a baixa Mesopotâmia faltava conquistar a Mesopotâmia propriamente
dita. Porém nesta região os mulçumanos não encontraram grandes problemas. A população,
aramaica e monofisista, era perseguida pelos gregos e recebeu os conquistadores sem
hostilidades. Penetraram também na Armênia, cuja capital Erivan, caiu em 642. Nesta
época, todo o Oriente próximo estava ocupado pelos muçulmanos, que também
conquistaram o Egito. Porém não lograram atravessar as montanhas Tauro para conquistar
a Ásia Menor.
A conquista do Egito foi a mais tranqüila para os muçulmanos. Em 628, os gregos
retomaram dos sassânidas o comando da região e Heráclito colocou-a sob o comando de
Ciro, patriarca de Alexandria. Por conta disso, surgiram várias dissensões religiosas no
Egito, pois os coptas não aceitavam a imposição do patriarca, que pretendia colocá-los
como parte da Igreja ortodoxa. Além disso, os agentes do governo acumulavam pesados
impostos e retiravam o trigo destinado ao abastecimento de Constantinopla. Assim, como
na Síria, a chegada dos muçulmanos teve uma acolhida favorável. Em finais de 639, Amr
ibn al-Aç passou ao baixo Egito e apoderou-se de Pelusa e, a seguir, Heliópolis e continuou
avançando. O império bizantino estava envolvido com lutas intestinas após a morte de
44
HOURANI op. cit p 41
19
Heráclito e não pode enviar tropas para defender o Egito. O patriarca Ciro conseguiu, em
troca da rendição de Alexandria e do pagamento de um tributo, que Amr permitisse que os
cristãos continuassem praticar livremente sua religião e administrar, eles próprios, os
negócios da comunidade. Os árabes, impelidos pelos gregos, conquistaram inclusive o Alto
Egito e penetraram na Cirenaica. Amr fundou mais uma praça forte, a de Fostat, que é a
parte velha do Cairo atual.
Com a conquista do Egito encerra-se a primeira fase da expansão muçulmana. Da
Arábia, o Islã estendeu-se a todos os países vizinhos, sendo detido apenas por obstáculos
naturais: montanhas do Tauro, do Irã oriental, da Abissínia; e o deserto da Cirenaica45. Os
anos seguintes serviram para organizar a administração dos países conquistados, tarefa que
coube principalmente ao califa Omar.
1.4 Organização do governo Muçulmano
A historiografia muçulmana atribuiu ao califa Omar a organização das terras
conquistadas. Organização esta que levou bastante tempo para tomar sua forma definitiva.
Para tal, os primeiros califas teriam recorrido, em larga escala, às instituições locais dos
territórios conquistados, adaptando-as à nova legislação islâmica. Também não podemos
negar a Omar e seu sucessor, Otman, o privilégio de terem criado algumas novas
instituições e estabelecido normas a serem observadas pelos súditos do jovem Estado
muçulmano.
Uma dessas inovações foi a criação do mecanismo em que os dhimmiI (protegidos)
eram obrigados a pagar uma taxa de proteção, que se tornou uma taxa de capitação, à qual
foi dado o nome de djizya e cujo montante era fixado conforme a fortuna e receita do
protegido46. Muito mais importante foi a organização do regime das terras conquistadas.
Dentro deste havia uma diferença em função dos termos de rendição dos vencidos, com ou
sem condições, ou de sua derrota pelas armas. Assim, foram confiscadas todas as
propriedades que haviam pertencido ao Estado bizantino, ao basileu, seus familiares, ou
proprietários fugitivos ou mortos em combate. Estes bens tornaram-se fay (espólio),
patrimônio do Estado muçulmano, que se encarregou de geri-los. A partilha dos espólios
45
46
Ibid p 44
MANTRAN op. cit p 84ss
20
mobiliários era feita conforme ensinava o Alcorão47: uma quinta parte revertia em beneficio
de Alá e seu Envidado (ou sucessor), como era prática na época de Maomé; e o restante era
distribuído pelos combatentes, recebendo os cavaleiros e os que se distinguiram uma parte
suplementar.
A administração financeira do novo Estado era uma novidade. Provavelmente foi
Omar o autor desta organização primitiva, deduzindo-se isto do fato de que “todo o império
estava colocado sob a administração da comunidade muçulmana, tendo como único
mandatário o califa”48. Para cada província ele nomeou um amir (emir), governador militar
e político, assistido por um amil, funcionário encarregado dos serviços financeiros da
província. Estes serviços foram então assegurados por funcionários da antiga administração
bizantina, ou sassânida, havendo diferenças de província para província, pois estes
funcionários conservaram suas tradições administrativas, às quais veio juntar-se a utilização
das moedas locais. Tal política fez com que os habitantes dos locais conquistados
gostassem da tolerância dos conquistadores em matéria de religião e finanças.
Para conquistar grandes territórios e mantê-los, além de aniquilar as rebeliões, os
califas utilizaram-se de duas medidas: a implantação de novas cidades, com população
árabe, que foram os centros político-militares das províncias; e a distribuição de terra aos
muçulmanos, fora da Arábia. Também foram estabelecidas bases militares (amçar), como
Kufa, Baçra e Fostat. Foi a partir dessas amçar que se expandiu à influência árabe, pois
tiveram um desenvolvimento rápido. Recorreram a estas cidadelas toda uma população de
artesões e comerciantes, que passou a viver ali. Bem situadas nas rotas de tráfego entre a
Arábia e as províncias, estas amçar tornaram-se postos comerciais intermediários, centros
de expansão religiosa e, por conseguinte, lingüística49.
Desta maneira organizou-se o nascente Estado muçulmano, com base nos princípios
enunciados por Maomé e apoiado nas instituições e tradições locais. O Estado muçulmano
era a comunidade dos crentes unida pela autoridade e pelo prestígio dos sucessores do
Profeta. Abu Bekr, que refez a unidade islâmica, após a morte de Maomé, e Omar que
empreendeu grandes conquistas e lançou os alicerces do Estado, por sua ação enérgica são
47
Alcorão 7, 1.42
MANTRAN op. cit p 85
49
Ibid p 87
48
21
considerados os dignos herdeiros do Profeta e ocupam, na tradição mulçumana, lugares de
grande destaques. Porém devemos constatar que Omar, que é considerado o maior dos
primeiros quatro califas, teve seu prestígio em muito aumentado pelos abássidas, que
pretendiam diminuir as conquistas de Otman, amigo aberto dos omíadas. Entretanto foi
Omar o criador do “modelo dos califas” e, mesmo sendo a autoridade máxima, sempre
ouviu o conselho dos mais antigos companheiros do Profeta. Não tinha oposição alguma ao
seu califado, e se tinha não eram abertas e de secessão, e foi assassinado, não por inimigos
políticos ou religiosos, mas por um escravo descontente ao ver sua queixa rejeitada pelo
califa.
1.5 Califado de Otman.
A tradição nos conta, e disso não podemos ter certeza, que Omar escolheu seu
sucessor no leito de morte. Ela também diz que ele teria confiado a missão de designar o
novo califa a um conselho (shura) de seis membros, escolhidos entre os companheiros mais
chegados ao Profeta. Os dois genros de Maomé, Ali e Otman ibn Affan, estavam entre os
candidatos prováveis; e a escolha recaiu sobre o segundo. A nomeação de Otman era
significativa, não só pelo fato de que ele sempre fora uma figura de pouco destaque nos
primórdios do Islã e a quem o Profeta nunca confiou uma missão importante, mas,
sobretudo, pela reabilitação e vitória da aristocracia coraixita de Meca e, com ela, a do clã
dos banu omeyya (os omíadas)50.
Otman usou sua parte das terras e entregou ao clã Omeyya à qual pertencia, e entre
os aliados destes. Essa distribuição de terras do patrimônio do estado e realizada em regime
de arrendamento (qatia), com isenção do imposto territorial, criou não apenas uma nova
classe de proprietários fundiários, como também um vasto clã político fiel aos omíadas, já
no passado muito poderoso em Meca e, com exceção de Otman, tardiamente convertidos.
Esta medida suscitou a oposição de todos os descontentes: Ali (afastado do califado por
Otman), ambiciosos não recompensados como Talha e Zubayr, muçulmanos de primeira
hora que se viram suplantados por crentes tardiamente convertidos.
50
Ibid p 90
22
Também os habitantes de Medina se viram preteridos pelos de Meca. Aysha, viúva
do Profeta, queria desempenhar um papel político, bem como por parte dos elementos
religiosos e chegou a censurar o califa pela ampliação do recinto sagrado de Meca. Mais
grave foi à questão do estabelecimento do texto corâmico. Homem sinceramente piedoso,
Otman preocupou-se com as variantes surgidas na recitação do Alcorão, a despeito do
estabelecimento de um texto por Zaid ibn Thabit no califado de Omar, tendo sido,
entretanto, pouco divulgado. O novo texto, estabelecido sob a direção de Zaid, suscitou
críticas, principalmente em Kufa, onde um antigo companheiro de Maomé, Abdallah ibn
Maçûd, acusou Otman de haver estabelecido um texto adulterado e incompleto, no qual
todas as revelações desfavoráveis aos omíadas teriam sido suprimidas. Nem por isto o texto
de Otman deixou de tornar-se a “vulgata” corâmica51.
Foi no califado de Otman que ocorreram as primeiras expedições marítimas. Estas
foram conduzidas notadamente por Moawiya, governador da Síria, e Aballah ibn Sarh. Em
649, a ilha de Chipre foi invadida e conquistada. Pouco depois, houve uma incursão nas
costas da Sicília e, por fim, em 655, a frota árabe derrotou a frota bizantina perto do litoral
da Lícia (batalha de Mastros). É surpreendente ver árabes, beduínos, para quem o mar era
uma incógnita, a ele se lançarem com sucesso: é preciso admitir que foram auxiliados por
sírios. Mas desaparecia a hegemonia bizantina no Mediterrâneo, e a vitória abria aos
muçulmanos novos horizontes. Sem ela, não teria havido uma abertura tão rápida a oeste,
nem os árabes teriam dominado a navegação no Mediterrâneo.
Neste ínterim a oposição a Otman aumentava. Tendo como centro a cidade de
Medina, onde atuavam Aysha, Ali (a despeito da hostilidade a esta) e, sobretudo os antigos
companheiros de Maomé, Talha e Zubayr. A eles aderiu Amr, conquistador do Egito,
destituído do posto de governador em benefício de um preferido de Otman. Foi esta adesão
que provocou a ação das tropas do Egito que, descontentes com seu novo chefe, marcharam
contra Medina. Durante três meses, de abril a junho de 656, a situação foi bastante crítica.
Otman conseguiu, com promessas, enganar e acalmar os insurretos, e, enquanto isso, os
principais conspiradores evitavam aparecer e intervir contra o califa. No entanto, a
descoberta de um apelo do califa ao governo do Egito contra os rebeldes, e o assassínio de
51
Ibid p 91
23
um egípcio provocaram a reação violenta que culminou no assassinato do califa, enquanto
este lia o Alcorão.
1.6 Califado de Ali
No mesmo dia do assassinato de Otman, Ali ibn Abi Talib foi proclamado califa em
Medina. O aceso ao poder, com o qual sonhava desde a morte do profeta, realizava-se em
condições difíceis. O clã dos omíadas, chefiado por Moaeiya ibn Abi Sofyan, exigiu a
punição dos culpados, o que Ali não pode ou não quis conceder. Contra ele declararam-se
também os coraixitas, que tinham muito a perder com a morte de Otman e, mudando de
opinião, o piedoso povo de Medina considerou o assassinato de Otman um sacrilégio,
responsabilizando Ali, visto ser este o único beneficiário. A seu favor tomaram posição os
velhos crentes, fiéis à família do profeta. O mesmo fizeram os inimigos de Aysha. Mas,
principalmente, Ali teve o apoio das três grandes praças fortes muçulmanas, Baçra, Kufa e
Fostat, cujas tropas se libertaram ou foram desligadas da tutela dos governadores nomeados
por Otman.
A primeira manifestação de oposição realmente ativa, de forma militar, foi obra de
Aysha, Talha e Zubayr. Estes dirigiram-se a Baçra para tentar conquistar a cidadela a sua
causa. Mas auxiliado pelo povo de Kufa, Ali travou uma batalha vitoriosa contra seus
adversários, chamada “batalha do camelo”: foi esta a primeira guerra civil entre
muçulmanos (outubro de 656); e que foi responsável pela morte dos dois revoltosos e
condenou Aysha ao ostracismo até a sua morte.
Porém Ali só podia contar com o apoio do Iraque. A Arábia e o Egito ficaram
neutros e a Síria com Moawiya, opunha-lhe resistência. Este governava a província desde o
califa de Omar e aí se fortalecera, dispondo de um exercito fiel e bem treinado. Durante o
conflito entre Ali e seus adversários de Baçra, Moawiya permaneceu neutro e, após a
eliminação destes, de novo reclamou justiça pelo assassínio de Otman. Quando o califa
designou um novo governador para a Síria, Moawiya recusou-se a ceder-lhe o posto. Ali
pretendeu chamá-lo à razão e, à frente de suas tropas, marchou contra os sírios. Na
primavera de 657, os dois exércitos defrontaram-se em Siffin, às margens do Eufrates.
Após várias semanas de desafios, combates singulares, torneios guerreiros e oratórios, e
24
também de negociações infrutíferas, o choque definitivo aconteceu em 26 de julho de 657.
Quando Ali estava vencendo, Amr ibn Al-Aç, partidário de Moawiya, mandou colocar
folhas do Alcorão nas pontas das lanças dos seus soldados, mostrando assim que era
necessário recorrer a Deus e não às armas. Os muçulmanos “alidas” pressionaram o califa a
aceitar uma trégua e, em seguida, a submeter-se a uma arbitragem. Porém, enquanto Ali
designava árbitro Abu Muça, neutro no conflito, achando que somente um neutro poderia
fazer um julgamento limpo, Moawiya, de seu lado, nomeou Amr, personagem hábil e
astuto, partidário dedicado do governador do Síria52.
Ao aceitar a arbitragem, Ali enfraqueceu-se e renunciou as prerrogativas de califa.
Além disso alguns de seus partidários não aceitaram esta solução, sustentando que só a
palavra de Deus, ou seja, o Alcorão, poderia dar a solução. Estes revoltaram-se contra Ali,
que teve que combatê-los. Por fim os revoltosos se retiraram e abandonaram o califa: foram
chamados de kharidjitas (“os que saíram”) dando início ao primeiro cisma do Islã53. As
tradições concernentes a esta arbitragem são tão variadas e contraditórias, que não se pode
ter a noção exata do seu desenvolvimento e do seu teor. Um fato é certo: os árbitros
concluíram pela responsabilidade de Ali nos acontecimentos desde 656, tendo-o talvez
mesmo declarado destituído do califado. Moawiya, em todo o caso, também não foi
designado califa, mas isto não o impediu de agir como se o fosse.
Enquanto Ali se voltava contra os kharidjitas, que ele exterminou de forma
sangrenta em Nahrawan, à beira do Tigre, Moawiya vencia o governador do Egito nomeado
por Ali e confiava a província a Amr, além de atacar o Iraque controlando o Hedjaz. Em
maio de 660, era solenemente proclamado califa por seus fiéis em Jerusalém. Ali, vendo
seu domínio diminuir gradativamente, preparava-se talvez para lançar um ataque
desesperado à Síria, quando, em janeiro de 661, foi assassinado em Kufa por um jovem
kharadjita, que vingava de uma só vez a morte de Otman e o massacre de Nahrawan.
Podemos dizer que o califado de Ali foi um desastre completo. Mas, após a sua
morte, seus fiéis constituíram um partido (shia, de onde deriva o nome xiismo, dado ao
mesmo), no qual se mesclavam uma fé mística no Profeta e em Ali, quase deificado, e um
52
53
HOURANI op. cit p 44
MANTRAN op. cit p 93
25
espírito de luta contra os usurpadores omíadas e, depois deles, abássidas. Assim Ali está na
origem de dois dos principais movimentos de cisão do Islã: o kharidjismo e o xiismo.
26
Capítulo 2 – O Jesus Histórico
2.1 A Palestina no Tempo de Jesus.
Desde os primórdios dos tempos bíblicos a Palestina era palco de guerras, invasões
e disputas. Nesta região é que surgiu o povo judeu, que sempre lutou para estabelecer-se aí.
No segundo século antes de Cristo,após longos períodos de dominações estrangeiras, um
reino judaico mais ou menos unificado foi estabelecido, ao comando de Judas Macabeu54.
Por volta de 63 a.C., contudo, a região estava novamente em turbulência, e a Palestina caiu
sob o exército de Pompeu, e a lei romana foi imposta. Mas a República Romana, na época,
muito extensa e muito preocupada com seus próprios problemas, não estava em condições
de ali instalar o aparelho administrativo necessário para um governo direto. Assim, os
romanos criaram uma linha de reis, a dos herodianos, para governar sob seu controle. Não
eram judeus, mas árabes. Herodes Antipater (63 a 37 a.C.); Herodes, o grande (37 a 4 a.C);
Herodes Antipas (4 a.C. a 39d.C.).
Foi durante o governo de Herodes, o Grande, que Jesus nasceu55. Nesta época seu
governo aproximava-se do fim de maneira muito conturbada. Os últimos anos de seu
reinado foram repletos de conspiração; e os membros de sua família disputavam o poder.
Poucos antes do nascimento de Jesus, Herodes havia executado os dois filhos que tivera
com Mariana56. Outro filho, Antípatro, conspirou contra Herodes e foi executado apenas
cinco dias antes da morte do pai, no ano 4 a.C.. Para os romanos Herodes foi um rei vassalo
digno de confiança e capaz, mas para os judeus ele foi apenas mais um tirano egoísta.
Sucederam-no seus filhos. Arquelau (4aC - 6 dC) que governou na Judéia e era o menos
estimado dos filhos de Herodes. As queixas dos Judeus contra ele finalmente o levaram ao
exílio. Herodes Antipas (4 aC - 39 dC) foi nomeado tetrarca da Galiléia e da Peréia. Este
orgulhoso e hábil governante foi menos brutal que Arquelau. Favorecido pelo imperador
romano Tibério, foi exilado no ano 39 d.C., por ordem de Calígula. Filipe (4 aC - 34 dC),
terceiro filho de Herodes, foi tetrarca das regiões da Ituréia e Traconites57 . A capital dos
54
1Mc 3.
Mt 2,1ss.
56
MIEN, A. Jesus Mestre de Nazaré. A História que desafiou dois mil anos. Vargem Grande Paulista:
Cidade Nova editora, 1998 p 48
57
Lc 3,1
55
27
territórios de Filipe era Cesaréia, e as moedas que ele cunhou foram as primeiras moedas
judaicas a trazer a efígie humana (a de Augusto ou de Tibério). Morreu no ano 34 d.C e seu
território foi afinal acrescentado ao de Herodes Agripa I.
Após o exílio de Arquelau, a região foi dividida em duas províncias, Judéia e
Galiléia. Heródes Antipas tornou-se o rei da Galiléia e sua tetrarquia (Judéia, Samaria e
Iduméia) foi governada por procuradores romanos (6 - 41 dC). Assim a Judéia, onde estava
Jerusalém – a capital espiritual e temporal da província – ficou sujeita a administração
romana direta, que tinha um procurador romano baseado em Cesaréia. Ao assumir o
controle direto da Judéia, os romanos crucificaram mais de dois mil rebeldes. Quirino,
governador da Síria58, chegou à Judéia no ano 6 d.C a fim de alistar o povo para efeitos de
tributação. Este ato provocou os “patriotas” da Judéia, mas as autoridades judaicas os
acalmaram por algum tempo. Contudo, Judas, o galileu, liderou o povo na revolta contra os
romanos e contra Herodes. Logo foi morto59 é possível que seus seguidores constituíssem o
partido dos Zelotes60.
Os procuradores da Judéia eram diretamente responsáveis perante Roma. Morando
em Cesaréia, eles iam a Jerusalém em ocasiões especiais, como as festas anuais. Augusto
dava aos seus procuradores prazos curtos, mas Tibério os deixava no cargo por mais tempo,
para que o povo não fosse explorado com tanta freqüência pelos recém-chegados. Pôncio
Pilatos61 foi o quinto procurador e também o mais conhecido por causa da crucificação de
Jesus. Governante inflexível e severo, ele foi brutal para os judeus. Seu massacre sem
justificativa dos adoradores samaritanos e outras execuções causaram-lhe a queda em 36
dC.
Herodes Agripa I alcançou a proeminência em 37dC e despojou os procuradores de
seus poderes. Como herdeiro da família dos macabeus, ou asmoneus62, e em virtude de sua
observância da Lei, ele era estimado entre os fariseus63. Esta estima ou popularidade era por
sua hostilidade aos cristãos. Morreu repentinamente no ano de 44 dC, e seu reino voltou a
58
Lc 2,2
At 5.37
60
Lc 6.15; At 1.13
61
Pilatos foi procurador da Judéia (da Iduméia e da Samaria) de 26 a 36d.C. Lc 3, 1; 1Tm 6,13.
62
Família dos descendentes de Judas Macabeu e que governaram a região por quase um século. 1 Mc 3.
63
Fariseus: significa “separados” no sentido de escolhidos por Deus. Surgiram no reinado dos Asmoneus
como oposição a esta dinastia. 1Mc 2, 42.
59
28
ser governado pelos procuradores. As condições pioraram sob os procuradores o que
culminou na rebelião judaica contra o governo romano em 66-70 dC.
Fadus (44-46 dC) cometeu o engano de reclamar a custódia das vestes dos sumos
sacerdotes, o que resultou num breve levante. As vestes estiveram nas mãos dos romanos
desde 6-36 dC, mas haviam estado nas mãos dos judeus desde 36 dC até o tempo de Fadus.
Alexandre (46-48 dC) Crucificou os dois filhos de Judas, o galileu, Tiago e Simão, por se
haverem rebelado. Cumanus (48-52 dC) governou uma época até mais tumultuosa.
Havendo um soldado romano feito um gesto indecente durante a Páscoa, irromperam
levantes e diversas pessoas foram mortas. Noutra ocasião, um soldado fez em pedaços um
rolo da Lei e Cumanus foi obrigado a executá-lo depois que uma multidão de judeus
chegou a Cesaréia para protestar. Tais incidentes levaram-no, afinal ao exílio.
Félix (52-60 dC) era francamente hostil aos judeus, e suas ações finalmente
desembocaram em guerra. Suas drásticas providências para frear os zelotes, um grupo de
patriotas judeus favoráveis à guerra contra os romanos, não fizeram outra coisa senão
aumentar a popularidade do grupo entre o povo. Foi dentre eles que surgiram os sicários,
ou assassinos. Esses judeus fanáticos assassinaram muita gente, incluindo o sumo sacerdote
Jônatas. O Método de Félix de governar pelo terror e assassínio uniu os fanáticos com as
massas e isto fez com que fosse chamado de volta a Roma.
Festo (60-62 dC) herdou uma situação descontrolada. Ele tentou pacificar o interior,
a zona rural, mas o fervor dos fanáticos religiosos e políticos crescia. Festo morreu durante
seu mandato, e em Jerusalém a anarquia predominou por completo. Levantaram-se sumos
sacerdotes rivais, competindo pela autoridade e seus adeptos travaram batalhas campais nas
ruas. Quando Albino (62-64 dC) chegou a Jerusalém, deliberadamente agravou o problema,
ao tentar promover-se em vez de tentar restaurar a ordem. Prendeu muitos, mas pôs em
liberdade os que lhe dessem suborno bastante grande.
Floro ( 64-66 dC), o sucessor de Albino, era tão mau e violento que fazia Albino
parecer um benfeitor público. Nesta época os judeus achavam que já tinham sofrido
bastante. Reagindo a um sacrifício pagão que tivera, deliberadamente, lugar defronte a uma
sinagoga em Cesaréia, uma delegação de judeus protestou junto a Floro. Este mandou
prendê-los e atiçou ainda mais as chamas da rebelião ao tirar dinheiro do tesouro do
29
templo64. Mandou depois soldados romanos saquearem mercados de Jerusalém, o que
resultou na chacina de três mil homens, mulheres e crianças judias. Os judeus da Judéia,
conduzidos em parte pelos zelotes, pegaram em armas contra os romanos numa revolta
generalizada65.
O rei Herodes Agripa II, governador da Galiléia e amigo de Roma, enviou dois mil
cavaleiros para auxiliar os chefes e sacerdotes, também amigos dos romanos, que
ocupavam a cidade alta contra os rebeldes. Apesar disso os insurretos alcançaram uma série
de surpreendentes vitórias. Expulsaram a cavalaria da cidade alta e atiçaram fogo aos
arquivos, onde estavam anotadas as dívidas a fim de angariar o apoio das camadas mais
pobres. Captaram ainda e incendiaram a Fortaleza Antônia, ao lado do templo. No final do
verão os revoltosos tinham tomado toda Jerusalém. Derrotaram também Céstio Galo, que
havia mandado toda uma Legião. Confiantes com suas vitórias os judeus mandaram cunhar
uma moeda própria.
De Roma, Nero, quando soube da derrota, mandou o seu comandante supremo, o
general Tito Flávio Vespasiano, para sufocar a revolta. No comando de três legiões
Vespasiano avançou sobre a Galiléia e retomou território por território até que em 68 d. C.
ele conseguiu sitiar Jerusalém. O suicídio de Nero neste mesmo ano fez com que houvesse
uma trégua temporária. Após três imperadores entrarem e saírem do poder o próprio
Vespasiano foi nomeado imperador. Navegou em 70 para Roma e deixou o seu filho Tito
no comando de 80 mil homens e pronto para o cerco final de Jerusalém. A cidade, mesmo
não sendo inexpugnável, era intensamente fortificada. Por três lados vales íngremes
constituíam fortalezas naturais, sobrando apenas o norte para as tropas atacarem. Nesta face
ainda encontravam três muralhas de barreira. Por quase um mês Tito derrubou muralha por
muralha e entrou em Jerusalém para uma guerra de guerrilha. Agora era a vez dele isolar a
cidade. Após pouco tempo a doença e a fome causarem milhares de baixas entre os
revoltosos. Mais um mês e os soldados romanos chegaram ao templo. Os judeus, para não
deixar o templo na mão dos romanos atearam-no fogo. Os romanos adentraram ao santuário
64
65
DEPOIS de Jesus. O triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Reader´s Digest, 1999. p 70
Ibid, p 73
30
para pilhar, assassinar e atacar fogo neste último bastião dos rebeldes, que nunca mais foi
reconstruído66.
Com a derrota e a queda do templo o movimento da Diáspora (do grego
"dispersão") agravou-se. este termo é usado para o coletivo das comunidades judaicas fora
de Israel. O processo começou com as expulsões assírias e babilônias em 721 a.C. e 597
a.C., continuou com migrações voluntárias e acelerou-se com a destruição do templo de
Jerusalém. No século 1o a.C., havia comunidades judaicas desde o Levante até a Itália,
notavelmente na Babilônia e no Egito. A situação piorou após 132 d.C., quando, depois de
uma revolta malsucedida, os judeus ficaram proibidos de entrar em Jerusalém sob pena de
morte. Os judeus da diáspora do mundo greco-romano falavam em sua maioria grego, mas
permaneceram leais à sua fé, visitavam Jerusalém e viam Israel como sua terra natal. Após
212, os romanos concederam cidadania aos judeus, que a partir daí se espalharam por
vários pontos do Império Romano.
2.2 A organização sócio-religiosa da Palestina.
Os judeus da Terra Santa, podiam ser divididos em várias seitas e subseitas, e que,
em geral, eram hostis umas as outras. Quando, seguindo-se à conquista de Alexandre, o
helenismo mudou a mentalidade do Oriente Médio, alguns judeus se apegaram ainda mais
tenazmente à fé de seus pais, ao passo que outros se dispuseram a adaptar seu pensamento
às novas idéias que emanavam da Grécia. Por fim, o choque entre o helenismo e o judaísmo
deu origem a diversas seitas judaicas.
A mais conhecida, por causa dos Evangelhos, era a seita dos fariseus. Estes eram os
descendentes espirituais dos judeus piedosos que haviam lutado contra os helenistas no
tempo dos Macabeus67. O nome fariseu, “separados”, foi provavelmente dado a eles por
seus inimigos, para indicar que eram não-conformistas. Pode, todavia, ter sido usado com
escárnio porque sua severidade os separava de seus compatriotas judeus, tanto quanto de
seus vizinhos pagãos. A lealdade à verdade às vezes produz orgulho e até mesmo
66
67
Ibid p 74
1Mc 2, 42.
31
hipocrisia, e foram essas perversões do antigo ideal farisaico que Jesus denunciou68. Paulo
se considerava um membro deste grupo ortodoxo do judaísmo de sua época69.
Outro partido era o dos saduceus, provavelmente denominado assim por causa de
Zadoque, o sumo sacerdote escolhido por Salomão, negava autoridade à tradição e olhava
com suspeita para qualquer revelação posterior à Lei de Moisés. Eles negavam a doutrina
da ressurreição, e não criam na existência de anjos ou espíritos. Eram, em sua maioria,
gente de posses e posição, e cooperavam de bom grado com os helenistas e com os
romanos. Ao tempo do Novo Testamento controlavam o sacerdócio e o ritual do templo. A
sinagoga, por outro lado, era a cidadela dos fariseus.
Já
essenismo foi uma reação ascética ao externalismo dos fariseus e ao
mundanismo dos sauduceus. Os essênios se retiravam da sociedade e viviam em ascetismo
e celibato. Davam atenção à leitura e estudo das Escrituras, à oração e às lavagens
cerimoniais. Suas posses eram comuns e eram conhecidos por sua laboriosidade e piedade.
O mosteiro em Qumran, próximo às cavernas em que os Manuscritos do Mar Morto foram
encontrados é considerado por muitos estudiosos como um centro essênio de estudo no
deserto da Judéia. Os rolos indicam que os membros da comunidade haviam abandonado as
influências corruptas das cidades judaicas para prepararem, no deserto, “o caminho do
Senhor”. Tinham fé no Messias que viria e consideravam-se o verdadeiro Israel para quem
Ele viria. Alguns estudiosos acreditam que João Batista e até Jesus eram membros deste
grupos
Em 6 d.C. , quando Roma assumiu o controle direto da Judéia, um fariseu rabino
conhecido como Judas da Galiléia tinha criado um grupo “revolucionário” altamente
militante, conhecido como Zelote e composto, basicamente, de fasiseus e essênios. Os
zelotes não eram propriamente uma seita. Eram um movimento com afiliados de várias
seitas. Esperavam a vinda do Messias para livra-los do julgo romano, e sobreviveram quase
um século depois da queda do templo de Jerusalém.
Os escribas70, por sua vez, não eram, estritamente falando, uma seita, mas sim,
membros de uma profissão. Eram, em primeiro lugar, copistas da Lei. Eram considerados
68
Mt 15, 7; 22, 18; 23, 13-15.
At 22, 3 –5.
70
Mt 2,4.
69
32
autoridades quanto às Escrituras, e por isso exerciam uma função de ensino. Sua linha de
pensamento era semelhante à dos fariseus, com os quais aparecem freqüentemente
associados no Novo Testamento71. E, por fim, os herodianos criam que os melhores
interesses do judaísmo estavam na cooperação com os romanos. Seu nome foi tirado de
Herodes, o Grande, que procurou romanizar a Palestina em sua época. Os herodianos eram
mais um partido político que uma seita religiosa.
A opressão política romana, simbolizada por Herodes, e as reações religiosas
expressas nas reações sectárias dentro do judaísmo pré-cristão forneceram o referencial
histórico no qual Jesus veio ao mundo. Frustrações e conflitos prepararam Israel para o
advento do Messias de Deus.
2.3 A Vinda do Messias.
A pessoa de Jesus sempre foi um mistério insondável para o cristianismo e a
humanidade. Sobre sua pessoa foram ditas as mais variadas idéias e concepções ao longo
da história. Quase tudo foi afirmado sobre ele e por ele justificado. Guerras, assassinatos,
resignações foram legitimados em seu nome. Isso se deve à flexibilidade de interpretação
dada pelo texto bíblico, e também a circunstâncias históricas alheias ao cristianismo
original. Há muitas incertezas históricas a respeito de sua pessoa, por isso a idéia que se
tem de Jesus é muito plural. Alguns autores chegaram a afirmar que ele casou com Maria
Madalena, outros dizem que ele foi celibatário, alguns autores dizem que ele foi ao Egito,
outros não. Enfim, apesar dessa enorme possibilidade de interpretações, o cristianismo
traçou ao longo da história um perfil detalhado sobre Jesus.
Para os contemporâneos de Jesus, nenhum Messias seria jamais considerado divino.
Na realidade a própria idéia de um Messias seria extravagante. A palavra grega para
Messias é Christ ou Christos72. O termo - em hebreu ou grego - significa "ungido" e se
refere geralmente a um rei. Quando Davi foi abençoado rei no Velho Testamento, ele se
tornou um Messias ou um Christo73. E todos os reis judeus subsequentes, da casa de Davi,
eram conhecidos pelo mesmo nome. Mesmo durante a ocupação romana da Judéia, o alto
71
Mt 23, 13ss.
Ex 30, 22.
73
2Sm 2, 1.
72
33
sacerdote nomeado por Roma era conhecido como sacerdote, Messias ou rei-sacerdote74.
Todavia, para os Zelotes e para outros oponentes de Roma, este sacerdote marionete era,
necessariamente, um falso Messias. Para eles, o verdadeiro Messias significava algo muito
diferente - o legítimo rei perdido, o descendente desconhecido da casa de Davi , que
libertaria seu povo da tirania romana75.
Durante a vida de Jesus essa espera era enorme e continuou após sua morte.
Realmente, a revolta de Masada em 66 d.C. foi instigada pela propaganda feita pelos
Zelotes em nome de um Messias , cujo advento seria iminente. O termo Messias significava
"um rei abençoado" e, na mentalidade popular, veio a significar também libertador. Em um
termo de conotação política, algo bem diferente da idéia cristã posterior de um "filho de
Deus". Esse termo, essencialmente mundano, foi usado para Jesus, chamado "O Messias"
ou - traduzido para o grego - "Jesus , o Cristo" e mais tarde "Jesus Cristo" que se distorceu
para o nome próprio.
Jesus foi identificado com o Messias por seus seguidores76. No tempo de Jesus, a
expectativa em relação à volta do Messias tornou-se extraordinariamente intensa. Era a
resposta do imaginário popular frente a um contexto de aguda opressão econômica, social e
política e profunda crise dos valores tradicionais77. Como enviado de Deus, o Messias
deveria liderar uma “revolução” capaz de expulsar os dominadores romanos e derrubar a
corrupta dinastia herodiana, restaurando uma realeza legítima em Israel. Isso era o que o
povo esperava de Jesus. Na condição de Messias, ele foi recebido em triunfo em Jerusalém,
no início de sua última semana de vida. Mas a rápida evolução dos acontecimentos frustrou
essa expectativa guerreira, “nacionalista” e monárquica. E a frustração popular foi
habilmente explorada pelos inimigos de Jesus, especialmente os saduceus, que o
condenaram à morte.
Leonardo Boff ajuda-nos a entender esta contradição entre a atuação do mestre e as
ilusões messiânicas de seu tempo. A prática de Jesus, diz Boff, contesta as estruturas da
sociedade e da religião da época. Ele "não se apresenta como um reformista ascético à
74
MIEN op. cit p24
Ibid p 25
76
Mt 16, 16.
77
DEPOIS op. cit p 7
75
34
maneira dos essênios, nem como observante da tradição como os fariseus, mas como um
libertador profético"78. No entanto, prossegue o teólogo, "Jesus não se organizou para a
tomada do poder político". Pois "sempre considerou o poder político como tentação
diabólica, porque implicava uma regionalização do Reino, que é universal"79.
A “revolução” messiânica que muitos aguardavam tinha um caráter imediatista e
limitado. Bastava libertar A Palestina e a Judéia da dominação estrangeira, restabelecer a
legitimidade política e tudo estaria resolvido. A revolução proposta por Jesus era um
processo de longo prazo, pretensiosamente mais amplo e profundo. Ela deveria ocorrer no
interior das consciências, exteriorizando-se como transformação radical de toda a
existência. Sua meta: realizar o "Reino de Deus" na Terra. "Eu vim para que tenham vida e
a tenham em abundância", afirma Jesus, no evangelho de João80.
2.4 A figura do Cristo.
Apesar disto um pequeno grupo acreditou que Jesus era o Messias esperado e
passaram a ensinar esta verdade. Ao invés de falar do Messias-Rei, os cristãos
proclamavam que um filho de carpinteiro de aldeia crucificado pelo governador romano era
o Cristo. Falar de Messias e crucificação parecia uma contradição. É difícil para nós, após
séculos de exaltação da cruz, termos uma noção exata do aviltamento que significava
morrer crucificado. Os primeiros cristãos enfrentavam estas objeções afirmando que Deus
mostrara que Jesus era o Messias ao ressuscita-lo dos mortos81. Na verdade, a idéia de um
Messias crucificado era uma realidade tão espantosa que derrubou muitas doutrinas
religiosas e muitas expectativas que estas sustentavam. Somente muitos séculos depois os
cristãos sentiriam-se a vontade para representar Cristo crucificado. Nos primórdios,
preferiam representações mais positivas dele, como a do Bom Pastor com um cordeiro nos
ombros.
Jesus não deixou uma única palavra escrita pelo seu punho: apenas ficou conhecido
pelas tradições baseadas nas recordações dos discípulos. Assim a imagem de Jesus passa
78
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977. p 89
Ibid, p 90
80
Jo 4
81
DEPOIS op. cit. p 6
79
35
por transformações diversas à medida que seguimos a evolução do pensamento cristão
através dos tempos. Controvérsias, cismas e confrontos violentos têm sido levantados sobre
a natureza de Cristo. Gerações após gerações de crentes olharam para a Sua figura, vendo-a
através das lentes daquilo que, em cada época, mais as preocupava especificamente. Na
geração seguinte a dos apóstolos, muitos procuraram integrar as imagens diversas de Jesus.
Cada um dos quatro evangelhos é uma apresentação das tradições que existiam, e oferecem
uma imagem própria dEle. Apesar dos Evangelhos Sinóticos, Mateus, Marcos e Lucas,
terem a mesma origem e passagens idênticas, foram escritos segundo as necessidades da
sua própria comunidade e nos mostram imagens diferentes de Cristo.
Além dos Evangelhos canônicos, temos outras fontes que nos apresentam cristo: os
evangelhos apócrifos. Estes eram basicamente respostas à necessidade das comunidades
que queriam saber mais sobre Cristo e os apóstolos. Por isto a maioria deles se prendem a
fatos e feitos maravilhosos de Jesus e não tanto aos ensinamentos. Também por terem sido
escritos muito tempo após a morte de Cristo e em meio a seitas por vezes heréticas, os
evangelhos apócrifos sempre foram relegados a segundo plano nas pesquisas históricas
sobre Jesus. Outras fontes são as “novelas” da época82. Eram histórias piedosas de santos,
de animais, e de personagens fictícios e que ajudavam, não só a propagar a fé, mas para
mostrar como deveriam viver os cristãos. Temos entre estes “A história de Perpétua e
Felicidade”, que chegou a ser lido na liturgia de pascal em várias comunidades e o “Pastor
de Hermas”, um manual de ética cristão baseado na vida de um devoto.
2.5 As querelas Cristológicas.
Desde o principio do cristianismo muitas seitas surgiram por discordarem da figura
“oficial” de Cristo. Estas querelas obtiveram grande força na Igreja do Oriente. Muito
provável que a heterogeneidade étnica da população do Império Bizantino, englobando
árabes, gregos, eslavos, entre outros, formava um terreno fértil não só para o surgimento,
mas também para a proliferação e manutenção de pensamentos divergentes aos dogmas
cristãos defendidos em Nicéia. Mesmo porque, essa diversidade de etnias se refletia
também no campo religioso, pela presença das três grandes religiões monoteístas em seu
82
Ibid, p 136
36
território: o judaísmo, o cristianismo e, posteriormente, o islamismo. Assim a diferença que
existe entre as definições oficiais por parte da Igreja cristã no primeiro milênio e a praxes, a
forma como o cristão vivia sua religião é um tema muito rico para se analisar.
Em plena controvérsia ariana, que dizia que Cristo havia sido criado, o Bispo
Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se fervoroso defensor do Credo Niceno
contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana carecia de alma humana.
Ele tomava ao pé da letra as palavras de João: “O Verbo se fez carne”83, entendendo carne
no sentido estrito, com exclusão de alma. O Logos, ou Verbo de Deus faria às vezes de
alma humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana
assumida pelo Lógos. Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas
completas (Divindade e humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as
tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois “eu” - o que seria, no mínimo, estranho. Além disto,
Apolinário dizia que onde há um homem completo, há também o pecado. Considerando
que o pecado tem origem na vontade, por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana
nem a alma espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário expôs suas idéias no livro “Encarnação do Verbo de Deus”, que ele
apresentou ao Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. Estas idéias foram
condenadas num sínodo de Alexandria em 362, e, depois, pelo Papa Dâmaso em 377 e 382,
especialmente, pelo Concílio de Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe
faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se a negar a presença de mente (nous) humana em
Jesus. S. Gregório de Nissa e outros autores lhe responderam mediante belo princípio: “O
que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido” - o que quer dizer: Deus quer santificar
e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou pela união da
Divindade com a humanidade; se pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não foi
inteiramente salva84. Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo à frente
o Bispo Vital. Por volta de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os
seus membros abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.
83
84
Jo 1,14
DANIEL-ROPS. A Igreja dos tempos Bárbaros. São Paulo: Editora Quadrante, 1991 p 152
37
Outra doutrina era o nestorianismo85. Afirmada a existência da natureza humana
completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais detidamente o modo como
humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo. Antes, porém, de entrar em
particulares, devemos mencionar as duas principais escolas teológicas da antigüidade: a
alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da Cristologia. A escola
alexandrina era herdeira de forte tendência mística e procurava exaltar o divino e o
transcendental nos artigos da fé. Interpretava as Escritura em sentido alegórico, tentando
desvendar os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos cristológicos,
portanto, era inclinada a realçar o divino, com detrimento do humano. Ao contrário, a
escola antioquena, que era mais dada à filosofia e à razão: voltava-se mais para o humano,
sem negar o divino. Interpretava as Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus
os predicados humanos mais do que os atributos divinos. Era mais racional, ao passo que a
de Alexandria era mais mística86.
Com base nisto podemos entender outra página da história do dogma cristológico. A
primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de
Constantinopla em 428. Afirmava que o Lógos habitava na humanidade de Jesus como um
homem se acha num templo ou numa veste. Haveria duas pessoas, em Jesus - uma divina e
outra humana - unidas entre si por um vinculo afetivo ou moral. Por conseguinte, Maria não
seria a Mãe de Deus (Theotókos), como diziam os antigos, mas apenas Mãe de Cristo
(Christokós). Ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa da
Santíssima Trindade com a sua Divindade.
Nestório propunha suas idéias em pregações ao povo, nas quais substituía o título
“Mãe de Deus” por “Mãe de Cristo”. As suas concepções suscitaram reação não só em
Constantinopla, mas em outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde Cirilo
era Bispo ardoroso. Este escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a
doutrina de Nestório. As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a
doutrina de Nestório num sínodo de 430. Deu ordem a Cirilo para que intimasse Nestório a
retirar suas teorias no prazo de dez dias, sob pena de exílio. Cirilo enviou ao Patriarca de
Constantinopla uma lista de doze anatematismos que condenavam o nestorianismo.
85
86
Baseada na doutrina do Bispo Nestório de Constantinopla.
DEPOIS op. cit. p 253
38
Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que podia contar com o apoio do Imperador; e
tinha muitos seguidores na escola antioquena, entre os quais o próprio Bispo João de
Antioquia87.
Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o
terceiro Concílio Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. Cirilo, como
representante do Papa Celestino I, abriu a assembléia diante de 153 Bispos. Logo na
primeira sessão, foram apresentados os argumentos da literatura antiga favoráveis ao título
Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado. Daí se seguia que em Jesus havia
uma só pessoa, a Divina, e Maria se tornara Mãe de Deus pelo fato de que Deus quisera
assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, chegou a Éfeso o
Patriarca de Antioquia, com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a Nestório; não
quiseram unir-se ao Concílio presidido por Cirilo, representante do Papa; por isto formaram
um conciliábulo, qual depôs Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se
indeciso. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor
da reta doutrina. Nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do
Imperador. Este finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os
antioquenos não se renderam de imediato e acusavam Cirilo de arianismo e apolinarismo.
Após dois anos de litígio, em 433, puseram-se de acordo sobre uma fórmula de fé que
professava um só Cristo e Maria como Theotókos. O Nestorianismo, porém, não se
extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino, foram procurar refúgio na
Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana88.
A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas,
deu ocasião ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofisitismo (“em Jesus
há uma só natureza e uma só pessoa: a divina”). O primeiro arauto desta tese foi Eutiques,
arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que Jesus constava originariamente da
natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina absorveu a humana,
divinizando-a. Após a Encarnação, só se poderia falar de uma natureza em Jesus: a divina.
Esta doutrina tornou-se a heresia mais popular e mais poderosa da Antigüidade Tardia,
pois, para os orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve
87
88
DANIEL-ROPS. op. cit p 154
Ibid, p 155
39
acontecer com cada cristão. Eutiques foi condenado como herege no Sínodo de
Constantinopla em 448, sob o Patriarca Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra
uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar
os favores da corte. Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio II
Imperador convocou em 449 novo Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência
do mesmo a Dióscoro, que era partidário de Eutiques. Dióscoro, tendo aberto o Concílio
negou a presidência aos legados papais; não permitiu que fosse lida a Carta do Papa Leão
Magno, que propunha a reta doutrina: as duas naturezas em Cristo não se misturam nem
confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a outra. Assim
Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pôde ressuscitar mortos como
Deus89.
Esse Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques e depôs Flaviano,
Patriarca de Constantinopla, e outros Bispos contrários à tese monofisita. Todavia os seus
decretos foram de curta duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como
ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa São Leão Magno, como “latrocínio de Éfeso”;
pediam novo Concílio que de fato foi convocado após a morte de Teodósio II pela
Imperatriz Pulquéria e pelo general Marciano, que em 450 foi feito Imperador e se casou
com Pulquéria. O novo Concílio, desta vez legítimo, reuniu-se em Caledônia, diante de
Constantinopla, em 451; foi o mais concorrido da Antigüidade Tardia, pois dele
participaram mais de 600 membros, entre os quais três legados papais. A assembléia
rejeitou o “latrocínio de Éfeso”, depôs Dióscoro e aclamou solenemente a Epístola
Dogmática do Papa São Leão a Flaviano. Esta serviu de base a uma confissão de fé, que
rejeitava os extremos do Nestorianismo e do Monofisismo, propondo em Cristo uma só
pessoa e duas naturezas.
Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há duas
naturezas e duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora
de Cristo, mas também não há uma só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como
verdadeiro homem, sujeito à dor e à morte para transfigurar estas nossas realidades. Havia,
pois, uma só pessoa divina, que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade,
89
Ibid, p 157
40
assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como
Deus, ora como homem, mas sempre e somente com o seu eu divino.
O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do
monofisismo. Além da atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis, especialmente os
monges, propondo-lhes a humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos
explicam essa persistência da heresia. Com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam
no Monofisismo a expressão de suas tendências reginalistas, opostas ao helenismo e à
dominação bizantina. Por isto os monofisitas continuaram a lutar contra o Imperador, que
havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de punição os adeptos destes: ocuparam
sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém. No século VII a situação se agravou, pois os
muçulmanos ocuparam a Palestina, a Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol
da ortodoxia nessas regiões. Em conseqüência, os monofisitas foram constituindo Igrejas
nacionais: a armena, a síria, a mesopotâmica, a egípcia e a etíope.
Assim as imagens de Cristo que chegam até Maomé e os primeiros mulçumanos não
são imagens formadas nos grandes Concílios, mas estão ligadas as heresias Nestorianas e
Monofisitas, que não tento onde se abrigar, instalaram-se na região onde surge o Islã. É
também, com este cristianismo que Maomé dialoga para formar sua doutrina, não
exclusivamente, mas não podemos negar que ele foi muito mais influenciado por estas
querelas do que por uma visão oficial de Jesus.
41
Capítulo III – O Jesus Corâmico.
3.1 O Alcorão
Hoje reconhece-se entre os historiadores e teólogos que o Islamismo nasceu num
tempo e lugar onde a figura de Jesus era bastante conhecida. Podemos observar por várias
fontes que a Arábia pré-islâmica possuía uma grande diversidade de comunidades cristãs, e
também nas regiões vizinhas podemos observar esta presença, que ofereciam imagens ricas
e variadas de Jesus. Importante lembrar que na época do surgimento do Islamismo, século
VII a.D., a Igreja dos Grandes Concílios ainda não impusera seus dogmas no Oriente
Médio90. Em outras palavras, o Islã nasceu entre um grande número de comunidades cristãs
que eram, muitas vezes, hostis entre si e não no seio da Igreja universal.
Assim quando o Alcorão é compilado não podemos negar a influência de um certo
cristianismo neste processo. O Alcorão é um livro que descreve em linguagem de grande
força e beleza a incursão de um Deus transcendente, origem de todo poder e bondade, no
mundo humano por Ele criado. Os mulçumanos ortodoxos sempre acreditaram que o
Alcorão é a palavra de Deus, revelada em língua árabe por um anjo, Gabriel, a Maomé, em
várias épocas e nas formas adequadas às necessidades da comunidade. Poucos nãomulçumanos aceitariam inteiramente essa crença. No máximo, alguns deles achariam
possível que, num certo sentido, Maomé recebeu inspiração de fora do mundo humano, mas
afirmariam que ele passou pela mediação de sua personalidade e de suas palavras91. Não há
meio puramente racional de resolver essa diferença de crenças, mas os que estão divididos
por ela talvez concordem com certas questões que se poderia legitimamente suscitar sobre o
Alcorão. Revelação, ou não, é inegável admitir a influência e a mediação do Profeta em sua
criação.
Primeiro, temos a questão de quando e como o Livro tomou sua forma definitiva.
Maomé comunicou as revelações a seus seguidores em várias épocas, e eles as registraram
por escrito ou as guardaram na memória. Grande parte dos estudiosos concordaria que o
processo pelo qual se coligiram diferentes versões e se estabeleceram um texto e uma forma
geralmente aceitos só se concluiu após a morte de Maomé. Segundo a versão tradicional,
90
91
KHALIDI, T. op. cit 1. pp 16-17
HOURANI, op. cit. p 36
42
isso aconteceu na época do terceiro sucessor do Profeta, Otman (644-56), mas datas
posteriores foram sugeridas, e algumas “seitas” mulçumanas acusaram outras de inserirem
no texto material que não havia sido transmitido por Maomé92. O Livro é dividido em 114
suras, ou capítulos, que, por sua vez, são divididos em versículos. A forma como foi escrito
em árabe é extremamente poética e rítmica, pois simboliza a Palavra de Deus que destrói e
confunde a língua dos mortais. Isto, por vezes torna a leitura do Alcorão um tanto quanto
complicada para os ocidentais93
Uma questão mais importante que devemos observar é a da originalidade do
Alcorão. Os estudiosos tentaram situá-lo no contexto de idéias correntes em seu tempo e
lugar. Sem dúvida há ecos nele dos ensinamentos de religiões anteriores: idéias judaicas nas
doutrinas; alguns reflexos de religiosidade monástica cristã oriental nas meditações sobre
os terrores do julgamento e nas descrições de Céu e Inferno; histórias bíblicas em formas
diferentes das do Primeiro Testamento e Segundo Testamento; um eco da idéia maniqueísta
da sucessão de revelações feitas a diferentes povos. Podemos observar que Maomé evoca a
tríade cristã: Deus-Jesus-Maria. Com isto podemos imaginar que seus informantes
conheciam, provavelmente, a Igreja monofisista da Abissínia, onde a Virgem era venerada
de maneira excessiva. Por outro lado, vislumbram-se certas influências do nestorianismo,
como, por exemplo, a sua crença de que a morte torna a alma completamente inconsciente,
e de que os mártires da fé são logo transportados para o Paraíso94.
Há também vestígios e uma tradição tribal árabe: as idéias morais em certos
aspectos continuam as predominantes na Arábia, embora em outros rompam com elas. Nas
primeiras revelações, o tom é de um adivinho árabe, tartamudeando seu senso de encontro
com o sobrenatural. Tais ecos dos ensinamentos das religiões anteriores, é um dos seus
objetivos: o Livro sagrado veio para encerrar e abranger a mensagem de Deus revelada
anteriormente pela Torá e pelo Evangelho. É por isto que ele é conhecido também como ”O
Critério”, pois sintetiza e aperfeiçoa as antigas revelações, com o intuito de separar o falso
do verdadeiro95.
92
Ibid, p 38
CLEARY, op. cit. pp.13,18.
94
ELIADE op. cit p 99
95
CLEARY op. cit p 10.
93
43
Tais vestígios do passado não têm por que causar ansiedade ao mulçumano, que
pode encará-los como sinais de que Maomé foi o último de uma linhagem de profetas que
ensinaram, todos, a mesma verdade. Para ser eficaz, a revelação final poderia usar palavras
e imagens já conhecidas e entendidas, como as da Torá e dos Evangelhos, e se as idéias ou
histórias assumiram uma forma diferente no Alcorão, isso talvez fosse porque seguidores
de profetas anteriores haviam distorcido a mensagem recebida destes. Alguns estudiosos
não mulçumanos, além disso, chegaram a uma conclusão diferente: o Alcorão contém
pouco mais que empréstimos do que Maomé já dispunha naquela época e lugar96. Dizer
isso, porém, revela uma incompreensão do que é ser original: seja o que for que se tenha
tornado cultura religiosa, o material foi dado de tal modo rearranjado e transmutado que,
para os que aceitaram a mensagem, o mundo conhecido foi refeito.
Também podemos perceber no Alcorão que as inter-relações entre os profetas são
visíveis tanto no nível do estilo da narrativa quanto no da experiência concreta do ser
profeta. Tal característica é mais ressaltada pelo fato de que as histórias de vários deles não
se encontram juntas, mas dispersas ao longo do texto corâmico. A narrativa profética se
reforça de vários modos. As palavras reveladas por Deus a um profeta, ou as por ele
proclamadas tendem a encontrar ecos, ás vezes repetições literais em outros profetas.
Podemos dizer o mesmo sobre os atos realizados ou as experiências vividas. Assim
conseguimos identificar uma tipologia dos profetas corâmicos, com um modelo de profecia
reconhecível pelo modo como um determinado profeta inicia sua missão de advertir uma
comunidade orgulhosa, ou sarcástica, ou ignorante, a rejeição, muitas vezes violenta, de sua
mensagem e a confirmação final por Deus em forma de castigo97. Essa tipologia é reforçada
pelo próprio Alcorão, que proclama que não se faz, ou não se deve fazer, nenhuma
distinção entre os profetas, e que um bom mulçumano, um verdadeiro crente, deve crer em
todos os profetas98. É dentro deste esquema tipológico de profecia geral que devemos
colocar o Jesus corâmico.
96
HOURANI, op. cit. p 38
KHALIDI, op. cit p 20
98
Alcorão 4, 150.
97
44
3.2 Jesus no Alcorão.
Dentro desta lógica podemos observar no Alcorão e na Hadith uma forte presença
de figuras cristãs como Jesus, Maria e alguns apóstolos. Na Hadith, ou Tradição, também
encontramos uma forte presença de alguns santos da Igreja primitiva, como é o caso de são
Jorge, pois os mulçumanos também crêem que algumas pessoas podem ter uma relação
mais íntima com Deus mesmo estando na terra.
Já dentro do Alcorão são duas as figuras de destaque. A primeira é Jesus, que aqui é
apresentado como filho de Maria, e é considerado de uma maneira completamente oposta a
qual Ele aparece nos Evangelhos. Jesus é considerado como um profeta e não como Filho
de Deus. Ele aparece no Alcorão como um profeta polêmico. O único que o Livro Sagrado
deliberadamente faz distanciar-se das doutrinas ensinadas pelas comunidades ligadas a
Ele99. Assim, pode-se afirmar que enquanto um judeu devoto não acharia nada
teologicamente censurável na maneira como Moisés, José e Davi são apresentados no
Alcorão, o mesmo não podemos afirmar quanto um cristão devoto sobre o tratamento de
Jesus. Mas o tom corâmico não é chega a ser uniformemente hostil. Na verdade, Jesus e as
comunidades cristãs são abordados dentro de uma gama de tonalidades: hora conciliatórios;
por vezes tranqüilizantes e diplomáticos; assim como ameaçadores. Os portões da
misericórdia divina estão sempre abertos para eles. Cada denuncia da incredulidade dos
cristãos, faz-se uma exceção e “os poucos” verdadeiros crentes, que são os mais sábios e
doutos cristãos100.
Além disso, o Alcorão convida repetidas vezes os cristãos a examinarem suas
escrituras em busca de sinais da vinda de Maomé, e dá-se então a Jesus a distinção de
anunciar explicitamente essa vinda, estabelecendo uma afinidade especial entre os dois
profetas101. O Alcorão declara que os cristãos são a comunidade religiosa mais próxima dos
mulçumanos, pois entre eles há padres e monges que se dedicam humildemente a Deus, os
olhos trasbordando de lágrimas quando escutam o Alcorão, e chegam, supõe-se, a
reconhecer sua verdade102.
99
Alcorão 3,16.
Alcorão 4,162
101
Alcorão 61, 6.
102
Alcorão 5: 82-85
100
45
Podemos dividir as referências a Jesus no Alcorão, conforme sua forma, em quatro
grupos: nascimento e histórias da infância; milagres; conversas entre Jesus e Deus, ou entre
Jesus e os israelitas; e pronunciamentos divinos sobre sua humanidade, servidão e lugar na
linha profética. Os dois primeiros grupos têm uma íntima afinidade com alguns evangelhos
apócrifos e canônicos e com a literatura siríaca, copta e etíope. Os demais encaixam-se na
tradição dos profetas islâmicos, que veio para “confirmar a Torá” e como “Mensageiro” do
que haveria de vir (Maomé)103.
3.3 O nascimento e a infância de Jesus.
O nascimento de Jesus no Alcorão é envolto na mesma áurea mística presente nos
Evangelhos, mas temos duas tradições referentes a este fato. Ambas as tradições começam
com a história de Zacarias, pai de João Batista, e “responsável” por Maria no templo.
Assim como no Evangelho de Lucas104, Zacarias é um ancião, sacerdote do templo e que
não possui filhos. Durante uma oração um anjo vem lhe revelar a vinda de um filho, que
preparará o advento de um outro profeta105, e que o menino deve se chamar João, nome que
não existe ainda na sua família106. A diferença entre a versão do Evangelho e do Alcorão é
que neste Zacarias é nomeado por Deus como “guarda” de Maria e acaba sendo testemunha
da concepção e santidade desta:
Seu Senhor a aceitou benevolentemente e a educou esmeradamente, confiando-a
a Zacarias. Cada vez que Zacarias a visitava, no oratório, encontrava-a provida de
alimentos, e lhe perguntava: Ó Maria, de onde te vem isso? Ela respondia: De Deus!,
porque Deus agracia imensuravelmente quem Lhe apraz..107
O Alcorão traz também o nascimento de Maria. Para judeus, cristãos e mulçumanos
todas as crianças nascem tocadas pelo pecado, o conhecido “pecado original”, mas para
cristãos e mulçumanos, Deus resguardou Maria e Jesus deste. Assim Maria nasce
imaculada, isto é sem pecados, por causa de sua missão: “Eis que a chamo Maria; ponho-a,
bem como à sua descendência, sob a Tua proteção, contra o maldito Satanás”108. Esta
103
Alcorão 3, 50
Lc 1, 5-23; 57-80.
105
Alcorão 3, 34-36; 19, 1-14
106
Alcorão 19, 8. Lc1, 59-63.
107
Alcorão 3, 32
108
Alcorão 3, 31.
104
46
questão da Imaculada Conceição só se resolverá para a Igreja Católica no século XIX,
quando o papa Pio IX o declara dogma da Igreja em 1854109. Outra diferença é que aparece
no Alcorão a figura de Ana, mãe de Maria, que coloca a filha a serviço do templo. Esta
história só é conhecida pelos cristãos através da Tradição, pois não aparece em nenhum dos
Evangelhos.
A narrativa do nascimento de Jesus tem duas “versões” no Alcorão. Não podemos
dizer que são “versões”, mas aparecem duas vezes e de maneira relativamente diferente,
porém mantendo a mesma estrutura. Estas duas vezes aparecem em suras relacionadas a
Maria, que são as suras III, de nome “A família de Omran”, tido por pai dela110, e a XIX,
que leva o seu nome. O esquema básico das duas versões é: a história de Zacarias; a
anunciação pelo anjo; o questionamento de Maria; o anuncio da missão de Jesus; e por fim
Jesus anunciando. O que muda é o contexto e a forma que cada uma dessas partes se
apresenta. Podemos perceber que este é o mesmo esquema que Lucas usa no seu
Evangelho.
Assim temos na primeira “versão” um anjo que anuncia a Maria a vinda de um
menino, que será considerado “um dos familiares de Deus” e “falará aos homens logo no
berço” 111. Ela responde, como em Lucas112, “Ó Senhor meu, como poderei ter um filho, se
mortal algum jamais me tocou?”113. O anjo responde que para Deus nada é impossível e
revela a missão de Jesus:
Ele lhe ensinará o Livro, a sabedoria, a Tora e o Evangelho.
E ele será um Mensageiro para os israelitas, (e lhes dirá): Apresento-vos um sinal do
vosso Senhor: plasmarei de barro a figura de um pássaro, à qual darei vida, e a figura será
um pássaro, com beneplácito de Deus, curarei o cego de nascença e o leproso;
ressuscitarei os mortos, com a anuência de Deus, e vos revelarei o que consumis o que
entesourais em vossas casas. Nisso há um sinal para vós, se sois fiéis.
(Eu vim) para confirmar-vos a Tora, que vos chegou antes de mim, e para liberar-vos
algo que vos está vedado. Eu vim com um sinal do vosso Senhor. Temei a Deus, pois, e
obedecei-me.
Sabei que Deus é meu Senhor e vosso. Adorai-O, pois. Essa é a senda reta.114
109
KELLER, E.D. A Igreja: das origens ao Vaticano II. Petrópolis, 2002 p 39
Alcorão 3, 35; 19, 28.
111
Alcorão 3, 45-46
112
Lc 1, 34.
113
Alcorão 3, 47.
114
Alcorão 3, 48-51
110
47
Na segunda “versão”, no capítulo dedicado a Maria, além da anunciação, aparece
também o nascimento de Jesus. Neste capítulo, Maria estava em um lugar afastado, quando
as dores do parto começam, debaixo de uma tamareira. Ela amaldiçoa este dia, mas Deus
vem em seu socorro. Assim ela come os frutos da tamareira e bebe a água de um regato que
Deus cria para consolá-la115. Depois Ele manda-a para o meio do povo. Lá as pessoas
passam a condená-la e, por causa de um voto que fez a Deus ela não se defende, mas aponta
para o menino que começa a pregar116. Este nascimento de Jesus remete ao de Ismael,
tradicionalmente colocado como o “pai” dos povos árabes e que era filho de Abraão e Agar.
Na bíblia Agar tem seu filho no meio do deserto, mas Deus vem socorrê-la117. Esta
passagem não aparece no Alcorão, mas Ismael é aqui apresentado, junto com seu pai
Abraão, como um dos construtores da Caaba e um dos profetas.
Assim, diferentemente dos Evangelhos Canônicos, o Alcorão volta-se mais para o
nascimento de Jesus do que para a Sua Paixão. Por isto Ele é freqüentemente chamado de
“Filho de Maria” e os dois quase sempre aparecem juntos. Desta maneira estas narrativas
sobre o seu nascimento são a base da sua presença no Alcorão, pois o colocam no seu lugar
como mensageiro e profeta de Deus, confirmando a Torá e anunciando a plenitude da
revelação.
3.4 Os milagres de Jesus.
No Alcorão Jesus, assim como os demais profetas, realizam milagres, sempre para
exaltar a grandeza de Deus e confirmar que sua mensagem vem dEle. Jesus realiza no
Alcorão o mesmo tipo de milagre dos evangelhos: curas; ressuscita os mortos; faz
“aparecer” comida. Mas os israelitas, assim como nos evangelhos, não acreditam na sua
mensagem, apesar dos sinais:
Então, Deus dirá: Ó Jesus, filho de Maria, recordar-te de Minhas Mercês para contigo e
para com tua mãe; de quando te fortaleci com o Espírito da Santidade; de quando falavas
aos homens, tanto na infância, como na maturidade; de quando te ensinei o Livro, a
sabedoria, a Tora e o Evangelho; de quando, com o Meu beneplácito, plasmaste de barro
algo semelhante a um pássaro e, alentando-o, eis que se transformou, com o Meu
beneplácito, em um pássaro vivente; de quando, com o Meu beneplácito, curaste o cego
115
Alcorão 19, 22-24
Alcorão 19, 16-30.
117
Gn 16, 1-15.
116
48
de nascença e o leproso; de quando, com o Meu beneplácito, ressuscitaste os mortos; de
quando contive os israelitas, pois quando lhes apresentaste as evidências, os incrédulos,
dentre eles, disseram: Isto não é mais do que pura magia!118
Noutra vez, o povo pede que Jesus faça descer do céu uma mesa com comida e
assim eles crerão na mensagem por ele anunciada. Assim Jesus faz uma oração:
Jesus, filho de Maria, disse: Ó Deus, Senhor nosso, envia-nos do céu uma mesa servida!
Que seja um banquete para o primeiro e último de nós, constituindo-se num sinal Teu;
agracia-nos, porque Tu és o melhor dos agraciadores.
E disse Deus: Fá-la-ei descer; porém, quem de vós, depois disso, continuar descrendo,
saiba que o castigarei tão severamente como jamais castiguei ninguém da humanidade119.
Podemos concluir disso que os milagres feitos por Deus através de Jesus não são
para ostentação, mas para confirmar a mensagem; confirmar que Jesus é um dos profetas.
Diferente dos evangelhos os sinais apresentados por Jesus não são para “garantir” sua
natureza divina, mas para ressaltar sua ligação com Deus. É o sinal não de uma divindade,
mas de alguém subordinado a Deus.
3.5 A relação entre Jesus e Deus.
A relação entre Jesus e Deus, no Alcorão, pode ser dividida em duas: a primeira é
Deus que manda Jesus anunciar aos israelitas, confirmar a Torá e ensinar o evangelho; e
uma outra é Deus advertindo-o sobre sua missão, questionando se foi Jesus que se
autoproclamou Deus.
“E recordar-te de quando Deus disse: Ó Jesus, filho de Maria! Foste tu quem
disseste aos homens: Tomai a mim e a minha mãe por duas divindades, em vez de Deus?
Respondeu: Glorificado sejas! É inconcebível que eu tenha dito o que por direito não me
corresponde. Se tivesse dito, tê-lo-ias sabido, porque Tu conheces a natureza da minha
mente, ao passo que ignoro o que encerra a Tua. Somente Tu és Conhecedor do
incognoscível.”120
Este trecho é apenas o mais contundente. Podemos analisar que Jesus atribui aos seus
seguidores este equívoco de acharem que Ele é Deus. Essa característica de colocar a culpa
sobre os seguidores de Jesus é muito válida, uma vez que, sendo Ele um grande profeta, na
visão mulçumana, não poderia estar em desacordo com todo o resto da doutrina islâmica.
Não é nenhum exagero dizer que o espectro do politeísmo é uma obsessão dentro do
118
Alcorão 5, 110.
Alcorão 5, 113-115
120
Alcorão 5:116.
119
49
Alcorão. Só Allah pode ser Deus e dar-lhe um Filho, ou consorte torna-se um grande
sacrilégio.
Para os mulçumanos Jesus será “purificado” da crença dos seus seguidores:
“E quando Deus disse: ‘Ó Jesus, matar-te-ei e elevar-te-ei até Mim, e purificar-teei dos que descrêem, e colocarei teus seguidores acima dos descrentes até o dia da
Ressurreição’. Depois, a Mim voltareis e decidirei entre vós no que tiverdes divergido. ”
121
Interessante notar que o próprio Jesus tem um papel ativo neste processo de “purificação”.
Assim Deus isenta-se, e isenta Jesus, de qualquer responsabilidade com relação às
mudanças doutrinárias que os cristãos teriam feito. Entre estas mudanças, ditas e feitas
pelos seguidores de Jesus, está a criação da idéia de triteísmo, ou seja, a crença na Trindade
seria considerada uma forma de politeísmo. Para os mulçumanos é inconcebível que Deus
possa ser três ao mesmo tempo. Negando a Trindade, os islâmicos estão também negando a
divindade de Jesus. O trecho mais dramático é onde Deus nega a Trindade de modo
veemente:
Ó adeptos do Livro, não exagereis em vossa religião e não digais de Deus senão a
verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Deus e Seu
Verbo, com o qual Ele agraciou Maria por intermédio do Seu Espírito. Crede, pois, em
Deus e em Seus mensageiros e digais: Trindade! Abstende-vos disso, que será melhor
para vós; sabei que Deus é Uno. Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um
filho. A Ele pertence tudo quanto há nos céus e na terra, e Deus é mais do que suficiente
Guardião.122
Assim a relação entre os dois é sempre marcada por um Deus, que tenta esclarecer
que Jesus não tem natureza divina, mas é apenas um profeta como os outros. Apesar disso,
podemos observar que Allah é bondoso com os cristãos e garante-lhes um bom lugar no
paraíso até o Dia do Julgamento:
E quando Deus disse: Ó Jesus, por certo que porei termo à tua estada na terra;
ascender-te-ei até Mim e salvar-te-ei dos incrédulos, fazendo prevalecer sobre eles os
teus prosélitos, até ao Dia da Ressurreição. Então, a Mim será o vosso retorno e julgarei
as questões pelas quais divergis123.
3.6 Jesus e os israelitas
Como nos evangelhos, Jesus está sempre em conflito com os israelitas no Alcorão.
Ele quer trazer uma “Boa Nova” para eles, mas estes não querem aceitar e conspiram contra
121
Alcorão. 3, 55.
Alcorão 4, 171.
123
Alcorão 3, 55.
122
50
sua vida. Porém Deus resguarda Jesus: Porém, (os judeus) conspiraram (contra Jesus); e
Deus, por Sua parte, planejou, porque é o melhor dos planejadores.124
Jesus é apresentado como um exemplo, de quem o povo escarnece, mas que Deus
confirma125. Interessante observar que Maomé passa por estas mesmas coisas quando do
início da sua pregação. Ele também enfrenta uma comunidade descrente que escarnece
dele. Deus confirmou Jesus no seu tempo e irá confirmar Maomé também na época da
revelação do Alcorão. Então, ao mesmo tempo que estas mensagens falam do profeta Jesus,
elas também exortam aos mulçumanos a se manterem fiéis até o final, pois Deus
prevalecerá por eles.
3.7 A “morte” de Jesus.
Por fim temos a “morte” de Jesus. Está entre aspas porque ele não morre no
Alcorão, mas é simplesmente elevado aos céus por Deus, que o preserva da morte: E
quando Deus disse: “Ó Jesus, por certo que porei termo à tua estada na terra; ascender-teei até Mim e salvar-te-ei dos incrédulos”126.
Assim Jesus não morreu, nem foi crucificado. Para os mulçumanos Judas foi
crucificado no lugar de Jesus127. Mas como isto se deu? Para resolver a questão o Alcorão
usa a formula docética128, pois Deus fez parecer que Jesus tivesse sido crucificado. Assim
diz o Alcorão:
“E por dizerem: Matamos o Messias, Jesus, filho de Maria, o Mensageiro de Deus,
embora não sendo, na realidade, certo que o mataram, nem o crucificaram, mas assim
fizeram parecer-lhe. E aqueles que discordam, quanto a isso, estão na dúvida, porque não
possuem conhecimento algum, abstraindo-se tão-somente em conjecturas; porém, o fato é
que não o mataram.”129
Vale lembrar que o docetismo é uma das querelas cristológicas presentes naquela região e
era debatido a muito tempo, pois várias seitas cristãs não aceitavam que o “Filho de Deus”
tivesse sido morto na cruz, bem a exemplo do que Paulo diz: “com efeito, a linguagem da
124
Alcorão 3, 54.
Alcorão 43, 57.
126
Alcorão 3, 55
127
KHALIDI, T. op. cit. p 22
128
Do latim doceo ,“parecer”.
129
Alcorão. 4, 157.
125
51
Cruz é loucura para os que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder
de Deus130”
Ao negar a crucificação, o Alcorão de fato nega que os judeus o mataram, e o eleva
a Deus como parte de sua confirmação como profeta, que voltará vivo no Dia do Juízo,
reconciliando-o assim com a tipologia geral da profecia corâmica131.
3.8 A natureza Crística no Alcorão.
O Messias, com o artigo “o”, aparece onze vezes no Alcorão, sempre considerado
nome próprio, reservado unicamente a Jesus. Para compreender o que isto significa, temos
que apelar para a forma arábica, que é al-masihu, do radical masaha, e significa “limpar,
esfregar para limpar; tocar; escovar”; donde vem masihu, termo que designa especialmente
Jesus Cristo, pelo que sana-masihiia é “ano cristão”. Isto quer dizer que aquele radical
aproxima-se do grego chrio “tocar ligeiramente; esfregar, untar, ungir”, donde christos,
“untado, ungido”, mais tarde, “que recebeu a santa unção”, como substantivo, “o ungido do
Senhor, Jesus Cristo”. Paralelamente com o referido radical arábico funciona o hebraico mx-h, donde mexiha, sinônimo de masihu132.
Interessante notar que mesmo nos evangelhos, canônicos, no caso, são poucas as
vezes em que Jesus se apresenta com “o” Messias diretamente; e quando o faz é sempre
dentro do seu grupo de apóstolos133. Este noção vai se unindo a imagem de Jesus, que antes
é cognominado Nazareu, e, com o tempo, este termo passa a ser parte do seu nome, a saber,
o “Cristo”. Quando Maomé recebe a revelação, a idéia de Jesus como o Messias já está
bastante difundida e é bem aceita pelas comunidades cristãs, mesmo as entre os heréticos.
Talvez por isto ele costume aparecer com esta determinação; como o “ungido” e
“escolhido” de Deus.
Outra questão que é interessante notar é a comparação entre Jesus e Adão, que
estava presente deste o nascimento da Igreja Primitiva. Paulo faz a comparação em duas de
suas cartas134dizendo que por um entrou o pecado (Adão) e por outro o mundo foi libertado
130
1Cor 1, 18.
KHALIDI, op. cit. p 22.
132
MACHADOo, JP. Alcorão. Notas e tradução. Lisboa, 1979. p 91
133
Mt 1,16; 17,17. Jô 1,41; 4, 25.
134
Rm 5, 12; 1 Cor 15, 22.
131
52
(Jesus). No Alcorão não temos esta amplitude do pensamento; para os mulçumanos Adão é
um profeta tão importante quanto os outros e sua identificação com Jesus se dá da seguinte
maneira: O exemplo de Jesus, ante Deus, é idêntico ao de Adão, que Ele criou do pó, então
lhe disse: Seja! e foi135. Mas não deixa de ser interessante notar que Maomé se aproxima de
mais um “conceito” cristão para depois dele se afastar deliberadamente.
3.9 Jesus e o Islamismo nascente.
A partir de todas essas imagens, por vezes contrastantes, é difícil chegarmos a uma
única idéia sobre Jesus no Alcorão. Podemos observar algumas continuidades atmosféricas
gerais entre o Alcorão, por um lado, e alguns livros do Velho e Novo Testamentos,
canônicos e apócrifos, por outro. Uma leitura mas apurada do Alcorão com atenção
especial à sua estrutura e narrativa, daria-nos a impressão de um texto revelado num
ambiente de argumento e contra-argumento, que se esforça por estabelecer sua autoridade
em meio a zombaria e ao sarcasmo dos incrédulos ou o murmúrio da comunidade
religiosas.
Assim Jesus é o “Verbo de Deus”136, pois anuncia e vive as perseguições que
Maomé e o islamismo nascente sofrerão. Ele prepara a vinda de um profeta que trará a
Revelação final. Podemos comparar a missão de Jesus no Alcorão com a missão de Elias e
João Batista na Bíblia. Os dois são os precursores do Messias; os que preparam o caminho
do que virá. Jesus assume este papel e faz às vezes a Maomé.
Outra posição que ele assume dentro do Livro é a de aproximar o Profeta Maomé
das comunidades cristãs presentes em Medina e em toda aquela região. Quando o bispo da
cidade aceitou pagar tributo a Maomé para poder exercer livremente sua religião, alguns
cristãos não aceitaram tal condição. O profeta então reuniu um grupo com seus familiares,
entre eles Fátima e Ali, e foram negociar com estes divergentes. A tradição mulçumana
conta que os cristãos ao verem Maomé ajoelhado e orando com tamanho fervor aceitaram
pagar tributo no mesmo instante137. Maomé então revelou este versículo: vamos reunir
nossos filhos e vossos filhos, nossas mulheres e vossas mulheres, nós mesmos e vós mesmos
135
Alcorão 3, 59.
Alcorão 3, 45.
137
MACHADO, JP. op. cit p 92
136
53
e implorar a deus e proferir uma maldição contra os impostores.138; numa clara alusão aos
judeus, os “impostores” a quem sempre Maomé combatia.
Desta maneira é fácil perceber que Maomé utilizou-se de Jesus para conseguir o
apoio dos cristãos e também para assumir sua “identidade” como profeta, sendo buscando
se definir não só por si, mas também pela presença do “outro”. Podemos pensar que
funcionou, pois as tribos cristãs e os mulçumanos viveram um grande período de paz,
diferente do que acontecia entre estes e os judeus, e muitos cristãos assumiram cargos no
governo islâmico nascente.
Além disso devemos considerar que a religião islâmica inicial viu-se diante do
espetáculo de profundas e rápidas transformações políticas e sociais, e com uma ampla
variedade de opções morais à guisa de resposta a suas necessidades mais imediatas. Assim,
como vimos, a religião nascente lançou mão de uma grande rede para complementar os
ensinamentos éticos do Alcorão. Havia motivos históricos muito fortes para essa abertura,
ligados ao curso da própria história islâmica, inteiramente a parte as continuidades
espirituais com o judaísmo e o cristianismo139. Então foi preciso enquadrar Maomé numa
linha de profetas e o Islã como a plenitude de uma revelação iniciada com os judeus, que
teve uma continuidade com os cristãos.
.
138
139
Alcorão 3, 61.
KHALIDI, op. cit. p 31
54
Conclusão
É inegável a influência do cristianismo sobre a religião islâmica. Os próprios
mulçumanos admitem e refletem sobre essa relação140. Na sua religião nascente, Maomé
incorporou elementos de várias religiões e seitas presentes na região em que ele vivia. O
Profeta acreditava que a religião era uma linha reta que vinha desde a Torá dos judeus,
passando pelos Evangelhos e aperfeiçoados pelo Alcorão. Assim podemos observar a
grande influência e inter-relação que existe entre as três maiores religiões monoteístas do
planeta. Dentro desta lógica podemos observar no Alcorão e na Hadith uma forte presença
de figuras como Jesus, Maria e alguns apóstolos. Na Hadith, ou Tradição, também
encontramos uma forte presença de alguns santos da Igreja primitiva, como é o caso de são
Jorge, pois os mulçumanos também crêem que algumas pessoas podem ter uma relação
mais íntima com Deus mesmo estando na terra.
Este trabalho procurou realizar uma analise da figura de Jesus presente no Alcorão a
fim de identificar a importância dEle na criação da nova religião. Assim podemos perceber
ao longo deste texto que Maomé procura encaixar-se numa tradição de profetas que vem de
Adão, passando pelos Patriarcas e profetas judeus, chegando a Jesus e enfim nele. Desta
maneira Cristo apresenta-se no Alcorão como o anunciador da vinda de um novo profeta,
Maomé, e também como o responsável de alertar os israelitas que estavam se afastando do
“monoteísmo puro”141.
A relação entre a gênese do islamismo e a influência do cristianismo neste processo
é objeto de estudo de alguns trabalhos importantes no campo da história das religiões. Hoje
reconhece-se entre os historiadores e teólogos que o Islamismo nasceu num tempo e lugar
onde a figura de Jesus era bastante conhecida142. Podemos observar por várias fontes que a
Arábia pré-islâmica possuía uma grande diversidade de comunidades cristãs, e também nas
regiões vizinhas podemos observar esta presença, que ofereciam imagens ricas e variadas
de Jesus. Vale lembrar que quando surge o Islamismo, no século VII a.D não havia uma
Igreja “universal” para o Oriente, mas sim várias seitas e comunidades cristãs, a maioria de
tendência herética; é entre estas comunidades que o Islã nasceu.
140
Ibid p 22.
Alcorão 3, 49
142
ELIADE op. cit p 99
141
55
Conseguimos observar esta forte influência das seitas heréticas em vários trechos do
Alcorão. Um exemplo interessante é a maneira como Jesus é tratado pelo Livro, sempre
como “o filho de Maria”. Podemos afirmar que este epíteto é uma herança do
nestorianismo. Esta doutrina herética ensinava, entre outras coisas, que Maria era a
Christókos, isto é, a “Mãe de Cristo”, e não Theotókos, a “Mãe de Deus” como ensinava e
ensina a Igreja. Isto significa que Jesus era em sua natureza apenas homem, e que o Verbo
só veio habitar Nele depois de Sua concepção. Assim Maomé se apropria dessa idéia de
“Mãe de Cristo”, pois ele não podia aceitar Jesus como sendo o “Filho de Deus”, o que se
oporia radicalmente a sua idéia de monoteísmo. Por isto então o forte destaque que temos
no Alcorão do nascimento de Jesus, fato que aparece sob duas “versões”, para ligá-lo a
mais a Maria, que é igualmente “cheia de graça” no islamismo e no cristianismo.
Outra questão é o docetismo, isto é, a idéia de que não foi Cristo que foi crucificado,
pois Deus não permitiria Seu Filho assim ser morto. Maomé usa isto para dizer que Jesus
não foi crucificado e, por conseguinte não ressuscitou, uma vez que Deus O poupou da
morte143 arrebatando-O aos céus numa clara alusão a Elias144, profeta do Antigo
Testamento, e afastando-O deliberadamente da idéia do cristianismo de redenção. Isto se dá
porque no Alcorão o Julgamento caberá a Deus no “Dia do Juízo”, apesar de Cristo estar lá
também para ajuda-Lo nisto, e não tem a remissão dos pecados para salvar. Porém temos
que considerar que esta idéia de “Juízo Final” foi totalmente assumida no islamismo com
base no cristianismo e ambas as religiões crêem que a segunda vinda de Jesus será o sinal
final deste acontecimento.145
Então Alcorão apresenta Jesus dentro de uma tipologia de profetas corâmicos, com
um modelo de profecia reconhecível pela maneira como um determinado profeta inicia sua
missão de advertir uma comunidade “rebelde” de sua mensagem e a confirmação final de
Deus em forma de castigo146. Jesus também sofre com a incompreensão dos israelitas do
seu tempo e região, mas ele está fortemente preocupado em anunciar a “plenitude da
revelação” exortar os judeus a seguirem retamente a Torá.
143
Alcorão 4, 157
2 Rs 2,11
145
Mt 24; Alcorão 43, 61.
146
KHALIDI, op. cit p 20.
144
56
Também não podemos imaginar que a figura de Jesus no Alcorão é de modo algum
somente de cunho espiritual. Para além disso, Maomé pretendia fortalecer seu poder
buscando ao mesmo tempo o apoio dos cristãos presentes na região da Arábia, sobretudo
em Medina, e contrapor-se, junto a esses, aos judeus, que mataram Jesus e não ouviram sua
mensagem.147 Por isto temos sempre que procurar entender o papel de Jesus no Alcorão
dentro do contexto de expansão vivido pelos mulçumanos no segundo quarto do século VII
d.C., que estavam em lutas de conquista por toda a região da Oriente Médio e parte do norte
da África e precisavam do apoio das comunidades e tribos cristãs presentes na região.
Assim aproximar-se de uma figura bastante conhecida e aceita como a de Jesus era uma
forma bastante eficaz de legitimar o poder da religião e do governo nascente.
Podemos perceber que Maomé, quando parte para Medina em 622 d. C. (Ano I da
Hégira), está sempre disputando espaço com as três principais tribos judaicas da cidade e
procura apoio junto aos cristãos da região. Este apoio era importante também para legitimar
suas atitudes de perseguições aos judeus, que em geral eram realizadas quando os
mulçumanos perdiam alguma batalha contra os coraixitas e ele precisava dar algum esbulho
para os seus soldados. Desta forma ele assume-se como o continuador da doutrina cristã e
elege os judeus como inimigos comuns de ambos, buscando claramente estabelecer uma
forma de identidade para a sua religião nascente.
Outra questão de cunho temporal é a figura de Jesus no auxilio de propagar a nova
fé, em especial junto a algumas tribos da região do Hedjaz notadamente cristãs. Quando
Maomé chegava para pregar, ou conquistar algum local, fatos que ocorriam
concomitantemente, era mais fácil ser aceito se ele mostrasse que fazia parte de uma
tradição de profetas e que sua mensagem não era nova, mas a continuação de algo que
vinha sendo ensinado a muito tempo. Assim, não só entre os cristãos, mas também entre as
tribos nômades pagãs, alguns judeus, zoroastristas, Maomé tinha uma aceitação maior, pois
eles já conheciam os códigos e preceitos ensinados pelo novo Profeta. Então não é de se
estranhar que o islamismo em menos de um século do início das revelações espalhou-se por
todo o Oriente Médio, o norte da África inteiro e chegou até a península Ibérica. Podem
alegar que foi pela espada que isto se deu, mas a aceitação da nova doutrina abriu muitos
147
Alcorão 3, 54.
57
caminhos e facilitou aos povos conquistados conviverem com os “dominadores” que
sempre se mostraram muito abertos para acolher as diferentes crenças, mediante ao
pagamento de um tributo.
Com base nisto e a partir de todas essas imagens corâmicas de Jesus podemos
chegar a conclusão de que ele está mais para um mosaico de várias idéias do que um
personagem de caráter único. Analisando mais demoradamente o Alcorão percebemos
algumas continuidades atmosféricas gerais entre este e alguns livros do Velho e Novo
Testamentos, canônicos e apócrifos. Uma leitura mais apurada do Livro Sagrado, com
especial atenção à sua estrutura e narrativa, passa-nos a impressão de um texto revelado
num ambiente hostil, de argumento e contra-argumento, que se esforça para estabelecer sua
autoridade em meio a zombaria e ao sarcasmo dos incrédulos ou o murmúrio da
comunidade religiosas.
Em suma, podemos concluir, que a idéia de um Jesus corâmico não está apenas
ligada a uma busca de criação de uma identidade religiosa, mas também está fortemente
atrelada a um ideal de expansão e fortalecimento político de Maomé. Destarte o Profeta
assume-se como o portador da última e mais aperfeiçoada revelação de Deus aos Homens,
dentro da tradição das religiões monoteístas; e Jesus é o personagem que estabelece as
ligações entre a Torá, que Ele é encarregado de confirmar, os Evangelhos, que são os Seus
ensinamentos, e o Alcorão, ou Maomé, que Ele anuncia como a Revelação final do porvir.
Assim, para o Alcorão, Jesus é o eixo agregador que une as três grandes crenças
monoteístas numa mesma tradição religiosa.
58
Fontes:
O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, s.d
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: editora Paulus, 2000.
Referências Bibliográficas:
ASAD, Talal. Genealogies of Religion. Discipline na Reasons of Power in Christianity and
Islam. London: The Johns Hopkins University Press, 1993
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977.
CAHEN, Claude. El Islam. Siglo Veintiuno. México 1985.
CLEARY, Thomas. O Essencial do Alcorão. São Paulo: Editora Best Seller, s.d.
DANIEL-ROPS. A Igreja dos tempos Bárbaros. São Paulo: Editora Quadrante, 1991.
DEPOIS de Jesus. O triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Reader´s Digest, 1999.
ELIADE, Mirceas. História das Crenças e das idéias religiosas. De Maomé à Idade das
Reformas. Tomo III Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984
GARAUDY, Roger. El Islam en Occidente. Córdoba, Capital do pensamento Unitário.
Madrid: ed. Breogán, 1987.
GLUBB, John Bagot. The Life and Times of Muhammad. London: Hodder and
Stoughton, 1970.
HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
ISAAC, Jules. Jesus e Israel.São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
KELLER, Eugenio D. A Igreja: das origens ao Vaticano II. Petrópolis, 2002.
KHALIDI, Tarif (org). O Jesus Mulçumano. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
KHALIL, Muhammad e NASSER FILHO, Osmar. Um diálogo sobre o Islamismo.
Curitiba: Criar edições 2003.
LE BOM, Gustave. A Civilização Árabe. Curitiba: Paraná Cultural, 1966
MACHADO, José P. Alcorão. Notas e tradução. Lisboa, 1979.
59
MIEN, Aleksandr. Jesus Mestre de Nazaré. A História que desafiou dois mil anos.
Vargem Grande Paulista: Cidade Nova editora, 1998.
MONTEIL, Vicent. Os Árabes. São Paulo: Difusão Européia, 1959.
SAID, Edward W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
60
ANEXOS
A.1 Tipologia dos profetas corâmicos
Quando do início das revelações Maomé não pensava em criar uma nova religião e
também não era assim que ele entendia o islamismo. Para ele o islamismo é uma religião
que existe desde a criação do mundo por Allah e, por isto, por muitas vezes, para além do
anacronismo, o Alcorão cita os antigos profetas, do judaísmo e cristianismo, como
mulçumanos. Desta forma ser mulçumano é a forma mais perfeita, e a única correta, de
seguir a Deus; e era o que faziam os antigos “enviados”. Como vemos nestes versículos:
Dize: Cremos em Deus, no que nos foi revelado, no que foi revelado a Abraão, a
Ismael, a Isaac, a Jacó e às tribos, e no que, de seu Senhor, foi concedido a Moisés, a
Jesus e aos profetas; não fazemos distinção alguma entre eles, porque somos, para Ele,
muçulmanos148.
E combatei com denodo pela causa de Deus; Ele vos elegeu. E não vos impôs
dificuldade alguma na religião, porque é o credo de vosso pai, Abraão. Ele vos
denominou muçulmanos, antes deste e neste (Alcorão), para que o Mensageiro seja
testemunha vossa, e para que sejais testemunhas dos humanos. Observai, pois, a oração,
pagai o zakat e apegai-vos a Deus, Que é vosso Protetor. E que excelente Protetor! E que
excelente Socorredor!149
Além do fato, acima citado, de considerar os profetas anteriores como mulçumanos, temos
que observar como Maomé encaixa-os na sua religião. Assim, para a compreensão do
islamismo, temos, também, que entender a Hadith, ou Tradição, e os cinco pilares do Islã.
A Hadith consiste na tradição oral das tribos que habitavam a Arábia mais os ensinamentos
de Maomé que não foram para o Livro, mas que foram se formando através dos anos. Esta
tradição é que conta a história do Profeta, dos santos e dos outros profetas menores, entre
estes Jesus, Abraão e Moisés. Assim podemos falar de uma tipologia dos profetas
corâmicos, um modelo de profecia reconhecível pela maneira como um determinado
profeta inicia sua missão de advertir uma comunidade orgulhosa, ou sarcástica, ou
ignorante, a rejeição (muitas vezes violenta) de sua mensagem e a confirmação final de
Deus em forma de castigo150.
148
Alcorão 3, 84.
Alcorão 22, 78
150
KHALIDI, O Jesus islâmico. p 20.
149
61
Além dessas características a mais importante, segundo o Alcorão, é a escolha de
Deus sobre estes homens. O Livro Sagrado dos mulçumanos nos conta que Allah escolhe
os profetas e o povo sempre os rejeita. Esta era uma forma de consolo a comunidade
nascente, que via Maomé sendo ridicularizado e perseguido sempre. Como vemos neste
trecho:
Seu povo o [Maomé] refutou, e ele disse (às pessoas): Pretendeis refutar-me acerca
de Deus, se é Ele que me tem iluminado? Sabei que não temerei os parceiros que Lhe
atribuís, salvo se meu Senhor quiser que algo me suceda, porque a onisciência do meu
Senhor abrange tudo. Não meditais?
E como hei de temer o que idolatrais, uma vez que vós não temeis atribuir parceiros a
Deus, sem que Ele vos tenha concedido autoridade para isso? Qual dos dois partidos é
mais digno de confiança? Dizei-o, se o sabeis.
Os fiéis que não obscurecerem a sua fé com injustiças obterão a segurança e serão
iluminados.
Tal foi o Nosso argumento, que proporcionamos a Abraão (para usarmos) contra seu
povo, porque Nós elevamos a dignidade de quem Nos apraz. Teu Senhor (ó Mohammad)
é Prudente, Sapientíssimo.
Agraciamo-los com Isaac e Jacó, que iluminamos, como havíamos iluminado
anteriormente Noé e sua descendência, Davi e Salomão, Jó e José, Moisés e Aarão.
Assim, recompensamos os benfeitores.
E Zacarias Yáhia (João), Jesus e Elias, pois todos se contavam entre os virtuosos.
E Ismael, Eliseu, Jonas e Lot, cada um dos quais preferimos sobre os seu
contemporâneos.
E a alguns de seus pais, progenitores e irmãos, elegemo-los e os encaminhamos pela
senda reta.
Tal é a orientação de Deus, pela qual orienta quem Lhe apraz, dentre os Seus servos.
Porém, se tivessem atribuído parceiros a Ele, tornar-se-ia sem efeito tudo o que tivessem
feito.
São aqueles a quem concedemos o Livro, a sabedoria e a profecia. Mas se estes (seus
descendentes) os rejeitassem, mesmo assim, confiá-los-íamos a outro povo que não fosse
incrédulo.151
Desta forma Maomé enfrentava os que lhe atacavam, colocando Allah e os profetas como
seus parceiros nas perseguições, que eram um fator “determinante” do ser profeta.
Podemos perceber também que Maomé encaixa-se como o último de uma linhagem
de profetas que ensinaram, todos, a mesma verdade; para ser eficaz, a revelação final
poderia usar palavras e imagens já conhecidas e entendidas, e se as idéias ou histórias
assumiram uma forma diferente no Alcorão, isso talvez fosse porque seguidores de profetas
anteriores haviam distorcido a mensagem recebida destes. Assim os crentes deviam ouvir a
Palavra de Deus e praticá-la de forma mais aperfeiçoada que os anteriores, pois Allah
151
Alcorão 6, 80-89
62
julgaria os judeus e os cristãos de uma maneira “mais branda” que aos mulçumanos que se
desviassem.
Dize: Ó adeptos do Livro, em nada vos fundamentareis, enquanto não observardes
os ensinamentos da Tora, do Evangelho e do que foi revelado por vosso Senhor! Porém, o
que te foi revelado por teu Senhor, exacerbará a transgressão e a incredulidade de muitos
deles. Que não te penalizem os incrédulos.
Os fiéis, os judeus, os sabeus e os cristãos, que crêem em Deus, no Dia do Juízo Final e
praticam o bem, não serão presas do temor, nem se atribularão.152
Em suma, podemos dizer que a ligação entre Maomé e os antigos profetas é uma
forma encontrada de encorajar e doutrinar os mulçumanos. Deus enviou os profetas para
ensinar, mas eles foram mortos, perseguidos e humilhados. Os crentes não poderiam agir
assim. Ao se colocar nesta linhagem, Maomé empresta a si uma autoridade de milênios.
Jesus também usa deste subterfúgio de dizer que “não veio abolir a Lei e os profetas, mas
dar-lhes pleno cumprimento”153, para dar autoridade e força a sua pregação. Assim, Maomé
assume o papel de falar aos árabes, para que estes conheçam a revelação; e ela se dá através
do Profeta, que aperfeiçoa o que veio antes e para quem é revelada a perfeita e plena
mensagem.
152
153
Alcorão 5, 68-69.
Mateus 5,17.
63
64
Download

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. SETOR DE CIÊNCIAS