1 de outubro de 2011 Duas semanas e quatro dias após minha mulher me deixar, conheci Niamh. Eu havia me acostumado a correr todo dia alguns quilômetros, para ao menos por instantes esquecer que chegara a um ponto em que não sabia mais que rumo tomar. Às vezes, tinha de parar, porque de repente sentia o peito oprimido e respirava com dificuldade, como um homem velho. Passados alguns minutos, lá estava eu sempre tão regenerado que conseguia prosseguir correndo. Niamh estava bem no meio da rua, fumando. Trajava um vestido fechado amarelo-limão, sandálias de borracha com a cor já desbotando e um chapéu de palha. A sacola de compras postada sobre o asfalto, à sua A cada 15 - Hansjörg Schetenleib frente, estava estourando em todas as costuras. Niamh deu um trago profundo em seu cigarro sem filtro e ergueu a mão, como se quisesse parar um infrator de trânsito. À primeira vista, julguei que tivesse no mínimo setenta anos, mas logo eu ficaria sabendo que poucas semanas antes ela havia completado 64 anos de idade. Fiquei parado em frente a Niamh, ofegante, com os olhos bem apertados, já que o reluzente gongo de cobre do sol de maio estava logo atrás dela, sobre os ombros da colina. Ela deu mais uma tragada, apertou os olhos deleitando-se, deixou a fumaça fluir pelas narinas afora e atirou a bituca para trás de nós, na rua. — Então você é o suíço que foi abandonado pela mulher — disse ela em inglês. O que é que se podia responder? Na tira de couro de seu chapéu de palha havia uma pluma desgrenhada. O vestido tinha um pequeno rasgo abaixo do seio direito. — Abandonado? — redargui na mesma língua. Era para minha resposta soar como uma observação desdenhosa, que encerrasse de uma vez por todas aquele assunto, e não como uma pergunta. — She left ya, did she not? Fiz que sim com a cabeça. Teria Niamh por acaso carregado a sacola de compras por todo o caminho da cidadezinha até ali, seis quilômetros de distância? — You’re a happy man! — What? — Ela era a mulher errada para você! A mulher errada! Acredite! Não reparei de imediato, mas lá estava eu fazendo que sim com a cabeça de novo. Niamh tinha um cheiro estranho, não ruim, mas estranho. Era seu desodorante que subia a meu nariz ou seu suor? De uma marca de nascença em seu queixo crescia um longo pelo negro. — Divorciar-se é uma droga — disse ela ainda em inglês. — Aposto que você preferia estar viúvo! Sua gargalhada soou como alguém amassando uma lata de cerveja. O pelo que crescia de sua marca de nascença tinha com certeza quatro centímetros de comprimento. — Love and marriage — cantarolou ela com uma voz espantosamente 1 de outubro de 2011 grave —, love and marriage go together like horse and carriage! Teria sido um prazer arrancar aquele pelo, com um puxão. Agora notava as lascas de cor cinza em seus olhos azuis. Era por isso que seu rosto tinha aquela expressão astuta? Ou isso se devia ao sorriso sarcástico? — My eyes are lovely, are they not? As unhas dos dedos de seu pé esquerdo estavam pintadas de esmalte cor de madrepérola, as do direito, não. No momento em que nos encaramos calados, sem sorrir, eu tive a certeza de que ganhara uma amiga. Ou melhor, uma cúmplice. — De que cor você diria que são meus olhos? — perguntou Niamh abruptamente e mais uma vez em inglês. A ideia de que ela pudesse estar paquerando-me teria sido absurda; sua voz era gentil, mas neutra. A pergunta sobre a cor de seus olhos era um teste. Ela queria saber se eu estava vendo ou apenas olhando. Niamh avaliava minha capacidade de observação. — Azul da flor centáurea — disse-lhe eu. — That would be nice too — animou-se ela e de repente prosseguiu em alemão —, mas meus olhos têm o azul da semente de papoula. O alemão que falava era quase sem sotaque. O suave cantarolar da irlandesa deixava a língua mais melodiosa do que é. — Como é que você fala tão bem alemão? — perguntei-lhe espantado. — É que eu trabalhei lá. — Onde? — Em Colônia. — Eu gosto de Colônia. — Eu também. — Mas sementes de papoula são negras — comentei —, não azuis. — Horse-shite! Você não é poeta? — Escritor — respondi. Ela me encarou minuciosamente, soltou uma sonora gargalhada e levantou ambas as mãos como se estivesse rendendo-se. — Você carrega até minha casa? — perguntou e apontou para a sacola de compras. — Mas eu não tenho a menor ideia de onde a senhora mora? — Mas eu tenho — disse ela, em inglês. — Don’t you worry, I do. A cada 15 - Hansjörg Schetenleib Hansjörg Schertenleib nasceu em Zurique, Suíça, em 1957. Formado na Academia de Artes Aplicadas de Zurique, editou a revista literária “orte᾿ de 1980 a 1984. Entre contos, pecas de teatro, poemas e romances escreveu 18 livros.Seu site: shertov.comPremiado diversas vezes, participou como escritor-residente dos importantes programas Max-Kade, MIT, Boston 2007; The Ledig House, Nova York, 2005; e Brookes University, Oxford, 2002.Morou em diferentes países e, desde 1996, vive entre a Suíça e a Irlanda. Tem livros traduzidos para o búlgaro, dinamarquês, francês, gaélico, holandês, esloveno e inglês. Traduziu para o alemão autores como Sam Shepard e Kenetth Cook.A 30ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo apresentou o media-metragem Temporada de Caça, em que Schertenleib co-assina o roteiro.