Justiça e democracia
JUSTIÇA E DEMOCRACIA: UMA RETOMADA DO DEBATE
ACERCA DO CONTROLE DEMOCRÁTICO SOBRE AS
DECISÕES JUDICIAIS
JUSTICE AND DEMOCRACY: A REVISTING OF THE DEBATE OVER THE DEMOCRATIC
CONTROL OVER JUDICIAL DECISIONS
Marcus Firmino Santiago1
Pablo Malheiros da Cunha Frota
Rafael Freitas Machado
Ramiro Freitas de Alencar Barroso
Resumo
A questão chave que orienta a presente pesquisa é: como realizar
democraticamente o controle das decisões judiciais? Para tanto, o grupo trabalhou
as reflexões sobre o sentido de democracia de Gargarella, de Bobbio e de
Habermas, a evidenciar a necessidade de aproximação entre Estado e sociedade,
mormente no que tange à atividade decisória judicial. Nessa medida, o desafio
contemporâneo da teoria e da prática jurídica não mais se vincula a construir
justificativas teóricas ao ativismo judicial ou afirmar a força normativa das
Constituições, mas aproximar o Judiciário da sociedade, sendo essencial permear
esta relação com valores democráticos, cumprindo identificar e construir
mecanismos que permitam um efetivo controle social sobre as decisões,
especialmente dos Tribunais Superiores.
Palavras-chaves: Constitucionalismo. Interpretação. Democracia. Ativismo judicial.
Direitos fundamentais.
Abstract
The key issue that drives this research is: how to perform the control of judicial
decisions democratically? To this end, the group worked the reflections on the
concept of democracy, in Bobbio, Gargarella and Habermas, demonstrating the
need for rapprochement between the State and society, particularly with regard to
judicial decision-making activity. In this way, the contemporary challenge of legal
theory and practice no longer links to construct theoretical justifications to judicial
activism or affirm the normative force of the constitutions, but bring the Judiciary
closer of the society, being essential to permeate this relationship with democratic
1
Professor orientador: Marcus Firmino Santiago, professor universitário, advogado, Doutor em
Direito pela Universidade Gama Filho, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.
Professores Coorientadores: Pablo Malheiros da Cunha Frota, professor universitário, advogado,
Doutorando em Direito na Universidade Federal do Paraná, Mestre em Direito pela Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo. Professor no Curso de Direito no UNICEUB (DF); Rafael
Freitas Machado, professor universitário, advogado, Mestre em Direito em Ciências JurídicoPolíticas pela Universidade de Lisboa – Portugal. Ramiro Freitas De Alencar Barroso, advogado e
Mestrando em Direito na Universidade de Brasília.
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164
Marcus Firmino Santiago e outros
values, identify and build mechanisms for an effective social control over the
decisions, especially of the superior courts.
Keywords: Constitutionalism.
Fundamental rights.
Interpretation.
Democracy.
Judicial
activism.
Sumário: 1. Metodologia utilizada pelo grupo e problematização da pesquisa. 2. Poder
judiciário e democracia. 3. Reconstruindo teorias democráticas: Gargarella,
Bobbio e Habermas. 4. Análise dos elementos comuns às teorias democráticas
contemporâneas e contribuições para abordagem do problema de pesquisa. 5. O
intérprete, o ativismo judicial e o controle democrático. Conclusão. Referências.
1
METODOLOGIA UTILIZADA PELO GRUPO E PROBLEMATIZAÇÃO DA
PESQUISA
Três grandes linhas teórico-metodológicas surgiram como reação ao
tradicionalismo jurídico de inspiração formalista, sendo que a pesquisa em tela se
filia à linha crítico-metodológica, lastreada em uma teoria crítica da realidade que
compreende o Direito como uma “rede complexa de linguagens e de significados”,
como apontado por Miracy Gustin e Maria Dias (2006, p. 20-21). Trazida para o
contexto específico da pesquisa jurídica, pode-se pensar a temática apresentada
para esta pesquisa na ambiência de uma vertente jurídico-teórica, não se
descurando no desenvolvimento de sua repercussão prática, como é inerente a toda
investigação científica no campo das ciências sociais aplicadas. O raciocínio
empreendido será de natureza hermenêutico-dialógica, buscando densificar os
sentidos dos institutos jurídicos a partir dos imperativos da realidade e emanados
das variadas formas de expressão do Direito.
O grupo segue a linha desenvolvida por Edgar Morin (2007) acerca do
sentido de complexidade e de dialogicidade, respectivamente:
(...) coincide com uma parte de incerteza, seja proveniente dos limites de
nosso entendimento, seja inscrita nos fenômenos. Mas a complexidade não
se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de sistemas ricamente
organizados. Ela diz respeito a sistemas semi-aleatórios cuja ordem é
inseparável dos acasos que os concernem. A complexidade está, pois,
ligada a certa mistura de ordem e de desordem, mistura íntima, ao contrário
da ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina no
nível das grandes populações e a desordem (pobre porque pura
indeterminação) reina no nível das unidades elementares. (MORIN, 2007, p.
35)
Unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias
complementares, concorrentes e antagônicas que se alimentam uma da
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Justiça e democracia
outra, se completam, mas também se opõem e combatem. Distingue-se da
dialética hegeliana. Em Hegel, as contradições encontram uma solução,
superam-se e suprimem-se numa unidade superior. Na dialógica, os
antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos
fenômenos complexos. (MORIN, 2007, p. 300-301)
Essa metodologia serve à construção de uma resposta adequada à seguinte
indagação: Como realizar democraticamente o controle das decisões judiciais?
Tal questionamento se põe em um cenário no qual cada vez mais o Poder
Judiciário se apresenta como um ator institucional capaz de suprir incapacidades
crônicas dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento da tarefa de conferir
efetividade aos direitos fundamentais constitucionais. Afigura-se, por conseguinte,
retomar o debate acerca do controle sobre as decisões judiciais. Nesse sentido,
cumpre questionar: qual é o nível de responsabilidade democrática das decisões
judiciais? Como conciliar a autonomia, imprescindível no sistema republicano, com
um elevado grau de responsabilidade pelas manifestações dos órgãos judicantes?
O modelo constitucional que se desenvolve no decorrer da segunda metade
do século XX se pauta em uma lógica diversa daquela predominante nas origens do
constitucionalismo. Se antes a prioridade de um sistema jurídico era o controle do
poder estatal, delimitando suas funções e restringindo os espaços de atuação dos
governantes, agora o foco passa a ser o reconhecimento e a promoção dos direitos
fundamentais.
Resultado de um processo histórico iniciado em meados do século XIX,
como resposta à dura realidade forjada no seio da Revolução Industrial, a transição
dos direitos fundamentais de elementos acessórios ao ponto central do
constitucionalismo tem repercussões claras na maneira como a atividade estatal é
exercida.
O crescente rol dos direitos fundamentais de estatura constitucional cria um
modelo de ampla vinculação do Estado e dos particulares, que se veem, em seu
campo de escolhas políticas, severamente adstritos à tarefa de conferir concretude
àqueles direitos.
Semelhante realidade, presente no cenário contemporâneo ocidental,
permite ao Poder Judiciário assumir um papel de protagonismo face aos demais
poderes estatais, tomando para si tarefas que tradicionalmente lhe seriam estranhas.
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Marcus Firmino Santiago e outros
E o modelo constitucional adotado pelo Brasil, na esteira da transformação
experimentada pelo mundo europeu no pós-guerra, chancela semelhante atuação, à
medida que permite inserir no rol de atribuições do Poder Judiciário o controle das
escolhas políticas, as quais, como dito, são também jurídicas.
O problema que decorre desta realidade reside na ausência de mecanismos
concretos que permitam um efetivo controle sobre o resultado da atividade
jurisdicional. Afinal, se os poderes políticos, bem ou mal, encontram-se submetidos a
um permanente controle social, o Poder Judiciário, por sua estrutura, modo de
funcionamento e de provimento de cargos, fica fora deste modelo. Os eventuais
excessos que, até por força da natureza humana, tendem a acontecer acabam
restando isentos de qualquer controle externo ao próprio Poder Judiciário.
Quando se fala em democratizar o Poder Judiciário, muito se pensa na
forma de acesso aos cargos, especialmente nos Tribunais Superiores, e na questão
do acesso dos jurisdicionados à justiça. Há mais um aspecto, contudo, que deve se
agregar à citada democratização, a fim de completar este quadro: o controle sobre
as decisões judiciais.
Já se discutiu com galhardia, por ocasião dos debates que culminaram com
a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, sobre a instituição de instâncias para
controle externo do Poder Judiciário. O modelo que acabou prevalecendo restringiuse a um órgão interno com funções apenas administrativas, restando a atividade
jurisdicional isenta de apreciação por outro meio, que não o sistema recursal.
Parece relevante, diante de uma realidade na qual o Poder Judiciário
emerge como um ator institucional capaz de suprir as incapacidades crônicas dos
poderes políticos, trazer de volta ao debate a questão do controle sobre as decisões
judiciais. Que modelo poderia ser pensado de modo a não sujeitar o Poder Judiciário
a um controle político ou a sua submissão aos demais poderes? Como conciliar a
autonomia, imprescindível no sistema republicano, com um elevado grau de
responsabilidade por suas manifestações? A tentativa de responder a tais
perguntas, derivadas do problema colocado neste trabalho, se coloca como uma
proposta para um debate a se desenvolver no âmbito desta pesquisa.
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Justiça e democracia
2
PODER JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA
Resultado de um processo histórico iniciado em meados do Século XIX, a
travessia que os direitos fundamentais experimentaram, desde o ponto em que eram
vistos como itens quase acessórios até seu reconhecimento como elementos
centrais das Constituições, provocou significativas mudanças na forma como as
instituições estatais se organizam, funcionam e se relacionam com a sociedade. Se,
na origem do constitucionalismo, a prioridade de um sistema jurídico era o controle
sobre o poder estatal, delimitando suas funções e restringindo os espaços de
atuação dos governantes, em fins do Século XX o foco do sistema normativo se
transfere para o reconhecimento e para a promoção dos direitos fundamentais.
Significativamente ampliados e alçados ao patamar de condição para
existência de regimes democráticos, os direitos fundamentais, com sua base
normativa constitucional, apresentam-se como elementos definidores da atividade
estatal, vinculando as escolhas políticas. Este processo, que no Brasil se consolida
com o advento da Constituição de 1988, tem por consequência o alargamento da
submissão dos espaços políticos ao sistema jurídico. Por força desta característica,
que permeia os regimes constitucionais atuais, a discricionariedade estatal se vê
amplamente circunscrita em uma esfera juridicizada, permitindo aos tribunais alargar
o controle exercido sobre atividades públicas e privadas voltadas a implementar
direitos fundamentais.
O cenário contemporaneamente delineado e o modelo constitucional
adotado pelo Brasil, na esteira da transformação experimentada pelo mundo
europeu no pós-guerra, chancela o protagonismo do Poder Judiciário. Confere-se a
este um rol exemplificativo de atribuições sobre o controle das escolhas políticas, as
quais em grande medida são também jurídicas. (SANTIAGO, 2011, p. 9-10)
Esta visão é complementada por Ran Hirschl, que destaca ainda as
mudanças políticas e sociais marcantes na sociedade na segunda metade do Século
XX:
Judicial empowerment through constitutionalization is therefore commonly
perceived as reflecting progressive social or political change; as derivative of
a general waning of confidence in technocratic government and a
consequent desire to restrict discretionary powers of the state; or simply as
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the result of societies or ‘politicians’ genuine devotion to a pos-Word War II
‘thick’ notion of democracy and universal notion of human rights. (HIRSCHL,
2004, p. 212)
Na visão de Ran Hirschl, a concentração de prerrogativas no Judiciário, em
especial de suas Cortes Supremas, pode ser compreendida como uma reação
conservadora que visa a preservar o status quo ante as pressões sociais,
transferindo a esta instância, tradicionalmente fechada à sociedade, as principais
decisões. Nas suas palavras: “(...) the judicialization of fundamental political
questions offers a convenient refuge for politicians seeking to avoid making difficult
no-win moral and political decisions (…)”. (HIRSCHL, 2004, p. 213)
Segundo o autor, um exame mais cuidadoso da prática judicial indica que a
transferência dos principais debates envolvendo direitos fundamentais da esfera
política para a judicial foi aceita tacitamente, senão ativamente provocada, por atores
políticos que representam as elites hegemônicas. (HIRSCHL, 2004, p. 213) Não
seria mero acaso, portanto, a tradicional inércia dos Poderes Executivo ou
Legislativo, tão criticada nessas terras e sempre lembrada quando o Judiciário é
chamado a suprir lacunas legais, doutrinárias e jurisprudenciais que tanto dificultam
a efetivação de direitos.
O debate sobre o ativismo judicial está na pauta do dia, sendo algo
indissociável dos estudos sobre direitos fundamentais e sua efetividade. Em
verdade, o cenário atual coloca a expansão das atribuições judiciais como uma
realidade quase inevitável, com a qual se deve aprender a conviver. Ora, se ao
menos em um curto prazo não parece possível promover uma ampla revisão sobre
as práticas institucionais, os pensamentos político e jurídico devem se debruçar
sobre a busca de alternativas que permitam aproximar o Judiciário da sociedade,
permitindo um mínimo controle democrático sobre sua atividade.
Antes de se tratar, contudo, de definir um modo de agir voltado a assegurar
semelhante controle, é preciso firmar que tipo de democracia se pretende ver
aplicada. Afinal, a se pretender discutir este que é um dogma nas relações
institucionais – o fechamento das decisões judiciais a qualquer espécie de controle
externo – fundamental compreender adequadamente o que é um modelo
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169
Justiça e democracia
democrático, especialmente diante das diversas variáveis que envolvem a
implementação deste ideal.
Os sentidos de democracia que convivem na teoria atual divergem em
diversos aspectos, mas, de um modo geral, se aproximam ao reconhecer a
necessidade de assegurar máximo grau de participação social, a fim de permitir o
alcance de objetivos capazes de atender aos interesses do maior número de
participantes. Este fim é buscado por trilhas diversas, que vão desde a rejeição
completa da interferência judicial até a sua acomodação em moldes variados,
passando por análises do sistema representativo, das práticas democráticas ou da
forma como os interesses sociais podem ser identificados e defendidos.
O trabalho ora desenvolvido ocupa-se, também, de identificar diferentes
visões acerca da democracia, destacando virtudes e defeitos, além de diferentes
compreensões acerca dos caminhos que podem ser traçados para se concretizar os
ideais democráticos. Busca-se, assim, fornecer alicerces que permitam estruturar
soluções para o problema encontrado: como aproximar o Judiciário da sociedade.
3
RECONSTRUINDO TEORIAS DEMOCRÁTICAS: GARGARELLA, BOBBIO
E HABERMAS
Em seu artigo “Crisis de representación y constituciones contramayoritarias”,
Roberto Gargarella busca explicar o desinteresse pela vida política por grande parte
da sociedade, bem como o distanciamento existente entre representante e
representados. (GARGARELLA, 1995) Neste estudo, o autor se dedica a
compreender um fenômeno que, mesmo não sendo novo, segue atentando contra
um dos alicerces das teorias democráticas: a representação política como
instrumento para manifestação da vontade social.
Gargarella começa sua argumentação explicando que, quando o atual
modelo de democracia representativa foi criado, o conceito de imparcialidade era
diferente do conceito que temos hoje em dia. Acreditava-se que, quando uma
decisão devia ser tomada, para que esta fosse imparcial, o debate precisaria ser
feito com um número reduzido de pessoas, do contrário, esta decisão teria maior
chance de se tornar parcial.
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O modelo constitucional que conhecemos hoje em dia segue esta linha,
inibindo o debate público e favorecendo a tomada de decisão apenas pelo pequeno
círculo de representantes. Com isto, surge a presente crise de representação que
vivenciamos. Cobra-se dos cidadãos uma participação mais ativa na vida pública,
embora as instituições públicas não a favoreçam, tornando difícil a comunicação
entre representante e representado.
O vínculo entre decisão imparcial e democracia foi objeto de análise de
diversos autores, alguns trazidos no texto sob enfoque. Todos constatam que existe
uma ligação entre a participação política, a discussão pública e a ideia de
imparcialidade.
Concentrando seu estudo no modelo norte-americano, Gargarella analisa o
texto O Federalista de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay para estudar
a Constituição norte-americana e, baseando-se nela, explicar a atual crise de
representação. Madison aponta que uma preocupação que a Constituição deve
tratar é a influência de facções na vida política2.
Sua preocupação não era, como se imagina hoje, de proteger os cidadãos
contra a “facção” classe dirigente, mas ao contrário, de proteger a minoria, classe
dirigente, contra a maioria, ou seja, grande parte da sociedade, para evitar “riscos de
impulsos majoritários opressivos”. Gargarella explica que a minoria a que se refere
Madison em seu texto não está ligada a número de representante que esta comporta
ou à sua proporcionalidade na sociedade, mas a uma elite de “ricos e bemnascidos”. (GARGARELLA, 1995, p. 97-98)
Gargarella cita exemplos que caracterizam a Convenção Constituinte como
contramajoritária, dentre os quais se destaca o distanciamento entre poder judiciário
e sociedade, ao fundamento de lhe assegurar imparcialidade, preservando-o de
pressões sociais. (GARGARELLA, 1995, p. 103)
Em conclusão, é possível afirmar que o modelo constitucional que seguimos
hoje sofre influência de uma época em que os objetivos eram diferentes, onde se
2
Madison define essas facções como “(…) un grupo de ciudadanos que, ya sea que correspondan
a una mayoría o a una minoría dentro de la totalidad, se unen y actúan motivados por impulsos o
pasiones comunes, o por intereses, contrarios a los derechos de otro ciudadanos, o a los intereses
agregados y permanentes de la comunidad.” (GARGARELLA, 1995, p. 96)
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procurava proteger uma pequena classe governante, em detrimento da maioria da
sociedade. Como resultado, tem-se instituições que dificultam a comunicação entre
representante e representados, fazendo questionar sobre a validade da atual
democracia. O autor propõe, no final de seu texto, que, para resolver a crise de
representação apresentada, é preciso estabelecer uma forma institucional que
valorize o debate público, permitindo à sociedade participar das questões públicas,
criando um verdadeiro poder do povo. (GARGARELLA, 1995, p. 107-108)
Norberto Bobbio se debruçou sobre o tema da democracia em diversas
ocasiões, analisando-o sob diferentes aspectos e em variados contextos sociais e
políticos. Em sua vasta bibliografia sobre o assunto, é possível perceber que sua
maior preocupação não reside em definir fundamentos conceituais – o que não
descura de fazer, por certo – mas em analisar realidades, buscando compreender
forças e fragilidades dos regimes democráticos.
Segundo Bobbio (2001, p. 36-37):
(...) a democracia não pode mais ser uma formalidade; não pode mais ser
um simples instrumento de governo; deve ser a finalidade da luta política.
Eis, portanto, que pedir hoje à Constituinte instituições democráticas
significa pedir instituições nas quais, a democracia não seja somente uma
formalidade para designar os regentes do Estado, nem apenas uma forma
de governo, mas a essência e a finalidade da nova ordem que deverá ter o
nosso futuro.
Estas assertivas se encontram no livro Entre Duas Repúblicas, em capítulo
escrito em 1945, no qual analisa a realidade da sua Itália no imediato pós-guerra,
com todas as dificuldades que o país enfrentava para consolidar e para estabilizar
suas instituições e elaborar uma nova Constituição.
Interessante objeto de estudo é o texto O Futuro da Democracia.
Originalmente apresentado em 1983, em Madri, aborda de maneira objetiva os
desafios e as transformações experimentadas pelos regimes democráticos. Nesta
obra, Bobbio procede a uma análise sobre a realidade dos regimes democráticos,
estudo que, embora já antigo, resta tremendamente atual, visto que se pauta em
uma comparação entre o modelo ideal de democracia arquitetado (e em larga
margem ainda hoje defendido) e as vicissitudes das práticas sociais e políticas dos
Estados. (BOBBIO, 2000, Apresentação)
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Note-se que Bobbio mais se ocupa em compulsar modelos – o ideal e o real
– e indicar inconsistências em ambos: o que se prometeu e se mostrou irrealizável; o
que se revelou um desvio no rumo inicialmente traçado. Ao fim do estudo é possível
extrair as bases do modelo democrático vislumbrado pelo autor, pautado em um
sistema procedimental que, a partir de regras pré-definidas, autoriza a participação
no processo de tomada de decisões e respeita a liberdade de escolha. (BOBBIO,
2000, p. 31)
A democracia é um sistema dinâmico, sempre em transformação, afinal, é
um modelo político que se propõe a permitir a plena expressão das vontades sociais
que, como a natureza humana, são cambiantes: “Para um regime democrático, o
estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica, o
despotismo é estático e sempre igual a si mesmo.” (BOBBIO, 2000, Introdução).
Capaz, portanto, de se adaptar ao novo, às diferentes reivindicações sem entrar em
crise, sem sofrer rupturas, em que pese todas as dificuldades práticas identificadas e
analisadas pelo autor.
A adaptação, porém, depende de uma adequada compreensão da realidade,
dos seus conflitos e das suas contradições. As insuficiências das práticas
democráticas são enumeradas tendo por ponto de partida uma das principais
promessas do pensamento contratualista: a eliminação dos corpos intermediários,
permitindo a direta participação dos indivíduos, no pleno exercício de seu poder
soberano. Não se nega, contudo, a existência de uma potência individual
(mantendo-se viva a tradição contratualista), que na prática, gerou a capacidade de
articulação de grupos, das organizações e das associações, com a consequente
restrição da autonomia individual:
Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa
sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a
nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta
ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade
ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos
contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do
governo central. (BOBBIO, 2000, p. 35)
Toda manifestação de vontade, portanto, deixa de ser um ato estritamente
individual, dependendo da articulação em torno de uma coletividade com capacidade
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representativa, a qual acaba por usurpar o poder de ação privado, visto, no
nascedouro das teses democráticas contemporâneas, como elemento essencial ao
próprio sistema.
A análise prossegue pela constatação de que as elites permanecem no
controle do Estado. De fato, o desenvolvimento de regimes democráticos não
afastou a hegemonia das elites, quando muito, abriu espaço para que diferentes
grupos passassem a concorrer, disputando apoio popular. O poder oligárquico não
foi derrotado – como se houvera prometido – mas, em larga medida, se vê obrigado
a se sujeitar às regras do jogo democrático para conquistar apoio e se manter no
controle das estruturas de poder político, o que afasta os Estados dos regimes
autocráticos.
Se, por um lado, os regimes democráticos não conseguiram derrotar o poder
oligárquico, por outro, também não se mostraram capazes de oferecer mecanismos
que permitam ocupar todos os espaços nos quais o poder decisório é exercido. Na
limitação do acesso a instâncias decisórias reside mais um problema identificado por
Bobbio.
O desenvolvimento da democracia caminhou, por longo tempo, no sentido
da ampliação do sufrágio, o que, de um modo geral, foi alcançado no período do pós
Segunda Guerra. De outro turno, a abertura de novos espaços de atuação social,
que permitam aos indivíduos e aos grupos participar mais ativamente e
proximamente nas instâncias públicas onde decisões que a todos vinculam são
tomadas, ainda resta insuficiente. Afinal, a democracia moderna nasceu como um
método para legitimar as decisões políticas, o que autoriza concluir ser um desvio
qualquer restrição à participação social no exercício de seu poder de controle.
Tendo em mira este conjunto de promessas não cumpridas pelos regimes
democráticos, Bobbio traz à tona a questão sobre se, de fato, estas e outras
promessas seriam exequíveis.
A diferença gritante entre os modelos ideal e real de democracia reside na
concepção equivocada do que poderia ser construído: “o projeto político democrático
foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa que a de hoje.” (BOBBIO,
2000, p. 46) Não se previu a tecnocracia, naturalmente excludente, à medida que
concentra a capacidade decisória nas mãos daqueles que detenham conhecimentos
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cada vez mais sofisticados, onde se incluem os juízes! A democracia se sustenta
sobre a hipótese de que todos possam decidir sobre tudo. Como compatibilizar esta
premissa com uma realidade na qual o conhecimento técnico impregna as decisões
estatais? Como chamar a sociedade a opinar sobre políticas cambiais, combate à
inflação ou à criação de novos empregos?
A lentidão imposta pelos complexos procedimentos inerentes aos sistemas
democráticos evidencia a dificuldade dos governos em atender às crescentes
reivindicações que lhes chegam a todo instante. A velocidade com que novos
problemas surgem e são encaminhados ao Estado é muito maior que a capacidade
deste se organizar e conceber uma resposta adequada.
Esta defasagem leva, algumas vezes, a que se vislumbrem vantagens em
regimes e em instituições autoritários (aqui se encaixaria o Poder Judiciário?), visto
que nestes, como regra, a capacidade de atividade governamental é muito maior.
Ou, ainda, ao esvaziamento de instâncias decisórias eminentemente políticas –
Executivo e Legislativo – e sua substituição por um Judiciário teoricamente técnico e
isento.
Enfim, apesar das insuficiências evidentes, os regimes democráticos têm
conseguido sobreviver, mostrando suficiente flexibilidade para suportar suas
contradições e suas carências, resistindo a apelos autoritários e buscando se
reinventar a partir de sua crença histórica na participação social como o melhor
instrumento para evitar abusos no exercício dos poderes político e jurídico.
Outro autor estudado, Jürgen Habermas, no texto O Estado Democrático de
Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? analisa duas fontes
concorrentes de legitimação do Estado Democrático de Direito que surgem na
recente filosofia política: a) uma liberal, voltada para a defesa das liberdades
subjetivas, pelo rule of law; b) outra republicana, ou clássica, mais baseada na
compreensão de democracia dos antigos, em que os direitos de participação política
dos cidadãos assumem importância capital. (HABERMAS, 2003)
Essas duas perspectivas, embora concorrentes, não se excluem, sendo cooriginárias, formando uma relação complementar entre autonomia privada e pública.
Para que haja autonomia pública, garantida pelos direitos políticos, é preciso que
essa autonomia seja construída a partir de uma vida privada independente e
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assegurada legalmente de forma simétrica para todos. Da mesma forma, o cidadão
só pode gozar de sua liberdade privada simetricamente quando um bom uso da
autonomia pública se torna possível na sociedade.
Assim, a possibilidade de aproximação entre os destinatários e os autores
do Direito não significa a possibilidade de arbítrio legislativo, pois a necessidade de
se
construir
uma
sociedade
em
que
as
liberdades
estejam
distribuídas
equilibradamente exige que o debate público seja pautado por uma racionalidade da
vontade, condição segundo a qual só serão aceitáveis as leis que são do interesse
simétrico de cada um. A percepção dessa racionalidade, no entanto, tem se perdido
nos projetos políticos modernos, o que intensifica os debates entre democracia e
Estado de Direito, colocando as perspectivas liberal e clássica em conflito 3.
(HABERMAS, 2003, p. 155-157)
Os diferentes enfoques criam certas diferenças importantes:
1. Quanto à cidadania. No modelo liberal, a cidadania se mede conforme
os direitos individuais conferidos ao sujeito em face do Estado e dos demais
concidadãos. É a garantia de sua esfera residual de autonomia privada. O mesmo
vale para os direitos políticos, entendidos como a possibilidade do cidadão
influenciar o Estado na defesa de seus interesses. Para o republicano, o status de
cidadão se mede pelos direitos positivos de participação e de comunicação política.
Há uma responsabilidade pela comunidade, pois só há liberdade individual quando
todos podem gozar dos mesmos espaços de liberdade. A legitimação do Estado não
se limita à defesa de interesses subjetivos, mas pela garantia de um processo
inclusivo de formação da opinião e da vontade.
2. Quanto à natureza do processo político. Para os liberais, a política é a
disputa por posições que permitam dispor do poder administrativo. Há o embate
estratégico entre grupos de interesse para maximização de seus poderes e de suas
influências. Os votos são a legitimação da população a um projeto de exercício do
poder. Na concepção republicana, não há essa coincidência entre os processos de
sucesso do mercado e o processo político. Este último se caracteriza pela
3
Esta tensão entre concepções aparentemente conflitantes também é explorada na obra A Inclusão
do Outro, na qual Habermas explicita as diferenças e proximidades destas teses para embasar
sua própria ideia acerca de democracia. (HABERMAS, 2004).
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176
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construção de uma comunicação pública, na busca de um entendimento mútuo, cujo
“o paradigma não é o mercado, mas, sim, a interlocução.” Assim, o voto significa
mais do que autorização para o exercício do poder, mas uma concessão para o uso
do poder segundo certo entendimento, consenso, ou ideia previamente discutida e
avalizada.
De forma geral, o modelo republicano tem a vantagem de não reduzir o
processo político a uma negociação de poder e à alocação eficiente de interesses
privados. Por outro lado, é muito idealista e se baseia na virtude dos cidadãos para a
construção do bem comum. Há uma redução da política à ética. (HABERMAS, 2004,
p. 283-284)
Há interesses sociais que passam longe da tentativa de formação de um
consenso, interesses que devem ser compensados no processo político, sobre os
quais a exigência de padrões éticos de uma comunidade concreta pode não
funcionar. É necessário que haja uma legitimação racional mais abrangente para
esses acordos de interesses, uma legitimação que não passe necessariamente por
um autoentendimento de caráter ético, mas que seja capaz de equilibrar interesses
divergentes, por meio de um discurso de coerência jurídica e de fundamentação
moral. Habermas procura, portanto, mesclar os tipos políticos liberal e republicano
de Michelmann: “O terceiro modelo de democracia que me permito sugerir baseia-se
nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de
alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de
modo deliberativo.” (HABERMAS, 2004, p. 286) É a política como procedimento.
No caso do processo democrático de construção das vontades, vê-se como
essa perspectiva compõem as duas correntes divergentes quando nega o caráter de
arranjos de interesses baseados em direitos fundamentais, defendido pelos liberais,
mas também se distancia da concepção republicana de autoentendimento ético. A
terceira via proposta por Habermas igualmente foge da despolitização proposta
pelos liberais, para os quais a política se resolve na consolidação da Constituição,
que fixa as garantias individuais e as formas de participação política. A Constituição,
dessa forma, estabelece as condições de comunicação do procedimento
democrático.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
177
Justiça e democracia
A teoria do discurso, por sua vez, acaba por transformar o jogo político num
processo de racionalização das decisões governamentais e administrativas com o
Direito e a lei, em um processo que revela mais do que simples legitimação, sem cair
no problema constante da soberania popular. Não se trata de um sistema que
simplesmente repasse as políticas para o crivo posterior da opinião pública, mas que
permite, de algum modo, a inserção dos meios sociais nas criações das políticas e
em seu planejamento.
Habermas espera que os interesses individuais possam ser expostos e
discutidos em instâncias públicas, por intermédio de canais comunicativos
institucionalizados nas Constituições, de modo que opiniões consensuais possam
ser construídas como resultado do uso público da razão.
Entende que o recurso aos procedimentos funciona como um limite para
paixões e para egoísmos privados, de modo que a formação das vontades políticas
sociais não depende da interferência de homens virtuosos, ao contrário. Os freios
procedimentais, neste turno, devem ser suficientes para permitir que os seres
humanos, mesmo com sua propensão a desvios e aos abusos, consigam construir,
em espaços públicos e por meio da atuação discursiva, consensos: “A teoria do
discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um
conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização
dos procedimentos que lhe digam respeito.” (HABERMAS, 2004, p. 288)
As instâncias procedimentais referidas por Habermas podem residir tanto
nos Parlamentos e no processo eleitoral quanto fora. Há espaços outros nos quais a
formação das opiniões e o debate acerca delas podem acontecer e estes são
encontrados em instâncias estatais, como órgãos administrativos ou no processo
judicial, e extraestatais, como variadas arenas sociais. Assim: “A formação de
opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas
institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via
comunicativa
é
transformado
em
poder
administrativamente
aplicável.”
(HABERMAS, 2004, p. 289)
Sua teoria democrática dá suporte a concepções que identifiquem o Poder
Judiciário como uma potencial instância procedimental, por cujo intermédio seja
possível formar consensos sociais e levar reivindicações ao Estado. Para tanto,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
178
Marcus Firmino Santiago e outros
contudo, é preciso que este Poder se abra à participação social, aproximando-se de
seus destinatários e os reconhecendo como sujeitos ativos e relevantes na definição
de suas prioridades e no direcionamento conferido a suas decisões.
4
ANÁLISE DOS ELEMENTOS COMUNS ÀS TEORIAS DEMOCRÁTICAS
CONTEMPORÂNEAS E CONTRIBUIÇÕES PARA ABORDAGEM DO
PROBLEMA DE PESQUISA
Em síntese, dos elementos até aqui trazidos, tem-se em Gargarella uma
análise do modelo democrático representativo, visto pelo autor como promotor de
um natural distanciamento entre as massas e os processos de tomada de decisões
nas diversas instâncias estatais, inclusive no Judiciário. Esta crítica também está
presente em Habermas, que defende a abertura de espaços alternativos ao modelo
de intermediação representativa, a fim de permitir efetiva proximidade entre
governantes e governados, condição para qualquer regime que se pretenda de fato
aberto à participação social.
Bobbio amplia horizontalmente a análise crítica dos modelos democráticos,
comparando a realidade e o projeto em algum momento idealizado. Busca, assim,
identificar as mazelas das democracias do Século XX, abrindo espaço para delinear
um horizonte mais próximo da realidade. Exalta o sistema procedimental, composto
por regras pré-definidas, que autoriza a participação social no processo decisório e
respeita a liberdade de escolha dos indivíduos, elemento retomado por Habermas e
essencial à proposta deste último.
Já Habermas sistematiza sua análise a partir da comparação entre dois
modelos democráticos que identifica como liberal (com suas crenças nos sistemas
representativos) e republicano (que afirma a possibilidade de consensos sociais
serem formados sem interferências externas). Sustenta que os acordos discursivos
dependem do respeito à autonomia privada e, ao mesmo tempo, do controle sobre o
uso público da razão por meio de procedimentos previamente estabelecidos,
capazes de permitir o maior grau de participação, essencial à construção de
posições consensuais estáveis e publicamente defensáveis.
As diferentes análises trazidas têm um claro ponto comum: a preocupação
em ampliar os espaços de participação social no processo de tomada de decisões.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
179
Justiça e democracia
Todos os autores realçam o drama do distanciamento entre sociedade e instâncias
representativas como um mal típico das práticas democráticas e buscam construir
alternativas que permitam prescindir de instâncias intermediárias.
Esta abordagem se mostra bastante pertinente quando se tem em mira o
problema de início delineado: como estabelecer mecanismos que permitam um
controle democrático sobre decisões judiciais?
Certamente a resposta não deve passar pelo controle feito pelos Poderes
Executivo ou Legislativo. Em verdade, a se crer no acerto das críticas aqui
apresentadas, as opções devem ser buscadas na forma de uma aproximação entre
o Judiciário e a sociedade, por meio da derrubada de barreiras que distanciam o
primeiro de seus jurisdicionados e da construção de canais procedimentais que
permitam aos cidadãos se apropriarem deste Poder, com o que se assumiria
definitivamente a natureza e as consequências políticas de suas decisões.
Gargarella, em estudo atual no qual analisa diversas concepções acerca do
tema em questão, transcreve interessante observação de Larry Kramer (2010, p.
409) quanto ao modo de como deveria se dar a relação entre as Cortes Supremas e
a sociedade:
Los jueces de la Corte Suprema pasarían a verse en relación con la gente,
como hoy se ven los jueces inferiores en relación con la Suprema Corte:
como responsables en la tarea de interpretar la Constitución conforme a su
mejor juicio, pero al mismo tiempo conscientes de que existe allí fuera una
autoridad más alta, con el poder de imponerse sobre sus decisiones.
Nesse texto, Gargarella lista diferentes opiniões sobre a chamada
supremacia judicial e as abordagens que o tema suscita. De um lado, identifica o
constitucionalismo popular, movimento composto por autores que compartilham
severa desconfiança em relação ao papel de ascendência que o Judiciário vem
desempenhando frente aos demais poderes e à apreensão da Constituição pelas
Cortes Supremas. Estes vêm como principal desafio retirar a Constituição das mãos
destas Cortes, devolvendo-a a sociedade. Neste sentido é que o povo deve ter a
última palavra sobre o significado dos enunciados normativos que se transformam
em normas constitucionais, (GARGARELLA, 2010, p. 407-408) sempre existentes
após a interpretação diante das nuances do caso concreto.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
180
Marcus Firmino Santiago e outros
Menos radical é o movimento chamado progressista, que também desconfia
do judicial review, mas não chega a rejeitá-lo. Em verdade, deposita suas crenças na
capacidade da sociedade de interagir com as Cortes, em um modelo deliberativo
bastante próximo ao defendido por Habermas, por meio do qual seja possível
exercer a persuasão, a discussão e o diálogo racional. (GARGARELLA, 2010, p.
416)
Uns e outros compartilham, além da identificação do problema comum a
este estudo, a percepção de que o direito constitucional deve encontrar sua
legitimidade não pela boca dos juízes das Cortes Supremas, mas na cultura
constitucional de atores não judiciais. Como Gargarella (2010, p. 419) resume, os
vários elementos analisados acerca da relação do Judiciário com a Constituição e
com a sociedade reforçam a dificuldade em sustentar que as decisões
constitucionais mais importantes para a vida de uma comunidade “(...) no sean
decididas como debieran serlo, por ella misma y a la luz de sus más mediatas
convicciones.”
O Judiciário segue como um poder altamente refratário a uma aproximação
mais enfática com a sociedade, a uma abertura democrática que lhe escancare as
entranhas e coloque suas decisões à vista de todos, permitindo um efetivo debate
sobre as razões por traz delas e suas consequências sociais. Em uma realidade na
qual cresce o ativismo judicial, este tema assume importância fulcral para o
constitucionalismo e para a democracia, sendo imprescindível que também este
espaço se abra, de alguma forma, à participação e ao controle social.
5
O INTÉRPRETE, O ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE
DEMOCRÁTICO
Alcançar
uma
compreensão
do
texto
constitucional
adequada
às
expectativas dos atores sociais depende de se buscar, pela via do debate, construir
um consenso. Este, por seu turno, não deve ser percebido como um momento de
perfeita harmonia, produto da atividade de homens bons e justos que só querem o
bem de todos e aceitam de bom grado ceder até um denominador comum. Salientese que, a diferença será reconhecida e respeitada efetivamente se pensarmos, como
apontado por Derrida, na ideia de hospitalidade como pressuposto da alteridade,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
181
Justiça e democracia
(DERRIDA, 1996, p. 18)4 que permeia as relações e situações jurídicas, a
demonstrar que o trauma da diferença se torna um encontro ético, como nos legou
Levinas. (PEREIRA, 2011)
Agindo desta maneira, preserva-se o pluralismo, enquanto se busca garantir
um mínimo de harmonia e um máximo de realização dos direitos constitucionais.
Afinal, é ideia central da teoria discursiva da democracia aceitar que os direitos
fundamentais não se prestam a fazer com que as pessoas passem a ser boas e
justas, a se amar incondicionalmente. Em verdade, é tarefa da Constituição garantir
a capacidade de autodeterminação individual, assegurando a existência de uma
esfera privada dentro da qual as pessoas possam formar suas próprias convicções,
sempre abarcando a singularidade dos outros e sem se desconectar ou ignorar o
coletivo. E uma sociedade plural somente se pode construir assim, permitindo a
cada um ser livre na formação de seus projetos de vida.
Ao mesmo tempo – e aqui se encontra requisito basilar para a existência de
uma democracia constitucional – a Constituição busca delinear os liames que
separam as esferas privada e pública, garantindo que, nos espaços coletivos, os
comportamentos individuais se pautem pelo mais profundo respeito ao outro e a
hospitalidade com a diferença, postura que permite conciliar as liberdades públicas e
privadas e o constitucionalismo e democracia.
Destaca-se o sentido atribuído aos dois significantes democracia e
constitucionalismo neste trabalho, seguindo os sentidos apostos por Vera Karam de
Chueiri e por Miguel G. Godoy: “democracia significa o povo decidindo as questões
politicamente
relevantes
da
sua
comunidade,
inclusive
os
conteúdos
da
constituição;5 e o constitucionalismo significa, por sua vez, limites à soberania
popular”. (CHUEIRI, 2010, p. 159)
4
Veja: Bernardo, 2002, p. 421-446.
5
Robert Dahl, cientista político, considera democracia como um “sistema político que tenha, como
uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a
todos os seus cidadãos”. Além disso, a responsabilidade do governo deve dar vazão às
preferências dos cidadãos, politicamente iguais, que devem ter a oportunidade plena de formular
as suas preferências, de expressá-las a todos por ações individuais e coletivas e de tê-las
consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência, cujos
requisitos são: 1 – liberdade de formar e aderir a organizações; 2 – liberdade de expressão; 3 –
direito de voto; 4 – elegibilidade para cargos públicos; 5 – direito de lideres políticos disputarem
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
182
Marcus Firmino Santiago e outros
No instante em que conflitos são apresentados perante o Judiciário, colocase em marcha um processo dialógico por meio do qual indivíduos e grupos podem
formular suas reivindicações, encontrando uma série de procedimentos capazes de
regular o uso público da razão e frear os egoísmos privados. São limites tanto
formais – ínsitos à estrutura do processo judicial – quanto linguísticos – assentados
em fundamentos hermenêuticos – que restringem os riscos de uma posição
excludente vir a prevalecer, com o que se legitima tanto o próprio procedimento
quanto o resultado da atividade em seu seio desenvolvida.
O intérprete, definitivamente, não deve e não pode ignorar a realidade social
que o circunda, porque o texto só o é no contexto histórico-social no qual é
interpretado – perspectiva dialógica (pensamento racional produtor de objetos
culturais) que percebe o Direito como uma totalidade existencial perenemente
transformada pela valoração do fato e da norma (que só existe após a
interpretação)6.
Para grande parte da doutrina, a interpretação teleológica adapta o
enunciado normativo ao momento da sua interpretação, pois visa atender às
necessidades sociais e de justiça vigentes e incidentes no caso concreto, adaptando
a norma ao fim social (objetivos da sociedade, por exemplo, o art. 1º da CF/88) e ao
apoio; 6 – fontes alternativas de informação; 7 – eleições livres e idôneas; 8 – Instituições para
fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de
preferência. (DAHL, 2005, p. 25-27).
6
Veja: Streck, 2011. Coelho, 2009, p. 120-121 e 128-133. O autor aduz: “O direito não é
autopoiético, ele é instrumento da autopoiese. Não é um sistema, mas componente que permeia
todos os sistemas sociais, dando-lhes um certo grau de consistência e favorecendo sua
autopoiese. O direito, como sempre, está a serviço de grupos microssociais hegemônicos, e se
configura como instrumento de reprodução das relações intersubjetivas que devem prevalecer
sobre o conjunto da macrossociedade. (...) Por isso, é preferível falar em interdisciplinariedade
objetiva do ordenamento jurídico, enfatizando que ele está integrado nos demais microssistemas e
é com eles permanentemente articulado. (...) Como existem interesses conflitantes e interesses
prevalecentes em cada grupo, estes se esforçam para impor seu direito aos demais. Daí a
caracterização de uma ordem jurídica horizontal, onde as relações entre as normas não são
lógicas, de subordinação hierárquica, mas sociológicas, de coordenação e conflito. (...) A ordem
jurídica é circular, como horizontal é a sociedade, na convivência dos grupos que manipulam o
direito positivo para a manutenção de seus privilégios e reprodução de sua hegemonia. A
consciência dessa realidade pode conduzir a que o direito finalmente se transforme em
instrumento de libertação das pessoas e povos oprimidos. Mas isso é tarefa para as futuras
gerações”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
183
Justiça e democracia
bem comum7, considerados standards jurídicos “construções jurídicas apoiadas em
generalizações da moral social, que permitem, com mais segurança, a identificação
do sentido de “boa-fé, bons costumes, etc.” 8 Por isso, Maria Helena Diniz afirma que
o bem comum e o fim social são “sínteses éticas da vida em sociedade,
pressupondo uma unidade de objetivos na conduta social do homem”, sendo que o
intérprete sempre se baseará no sentido mais razoável da norma para o caso
concreto na época em que a interpreta. Bem comum e fim social também servem
para preencher lacunas ontológicas e axiológicas. A adaptabilidade do rigor
normativo às nuances sociovalorativas do caso concreto é chamada por Maria
Helena Diniz de equidade, que deverá sempre ser observada pelo juiz. (DINIZ, 2010,
p. 165-166, 182-194)9 As reflexões de Maria Helena Diniz devem ser temperadas,
pois ela não parte do problema para interpretar o Direito, mas do enunciado
normativo, mesmo defendendo uma postura concernente à equidade do magistrado,
o que pode gerar interpretações apriorísticas e insuficientes em cada caso.
Afasta-se, destarte, a dicção posta no art. 127 do Código de Processo Civil,
que determina ao juiz julgar por equidade somente nos casos determinados por lei,
já que a equidade deve ser aplicada em todos os casos analisados, porque ela nada
mais é do que direito justo do caso concreto10. Esse entendimento pode possibilitar
que representações sociais positivadas não incidam em um caso “decidendo” e
gerem uma decisão injusta.
O jurisprudencialismo ou o paradigma judiciativo-decisório de Castanheira
Neves tem como ponto de partida a historicidade radical do Direito como experiência
humana, sendo o Direito a expressão de uma decisão fundamental do humano que
decide viver pautado pelo reconhecimento do outro como pessoa, em sua autonomia
e responsabilidade, (COELHO, 2007, p. 185) sendo a pessoa uma categoria ética –
7
Francisco Amaral atribui sentido bem comum como o “conjunto de condições necessárias ao bem
particular dos membros da comunidade, e é também um valor social que se realiza com a
participação de todos na criação das condições necessárias à existência de paz e estabilidade,
prescindindo o desenvolvimento do direito em geral”. O princípio da solidariedade é o elo para a
consecução do valor bem comum. (AMARAL, 2008, p. 20-21). Percebe-se, por exemplo, o valor
bem comum no direito civil e no do consumidor com a conformação dos princípios individuais dos
contratos pelos princípios sociais.
8
Também chamada de moral de costumes. (MALTEZ, O direito e a moral, 2011)
9
Sobre o Direito como problema veja: MALTEZ, José Adelino. O direito como problema. Disponível
em: <http://maltez.info/>. Acesso em: 15 jan. 2011.
10
Veja sobre o assunto Amaral, 2004, p. 16-23.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
184
Marcus Firmino Santiago e outros
ante a coexistência com as outras – e não uma categoria antropológica ou
ontológica. (CASTANHEIRA NEVES, 2008, v. 3, p. 9-41)
Essa perspectiva do Direito não se ombreia no jusnaturalismo, porque é o
ser humano que decide a si mesmo na coexistência, dispondo sobre o seu próprio
sentido como humano. Também não compraz o positivismo, já que a validade do
Direito repousa na decisão do humano, com o Direito fundamentando-se como
problema num constante indagar sobre a validade. O Direito reafirma-se
continuamente com a autorrecuperação do humano ao coexistir com o outro. Cada
decisão jurídica em um caso concreto recupera a ideia do Direito a partir da
mediação pelo conteúdo da decisão deflagradora das formas de expressão do
Direito – do problema para o problema11 – sem circunscrever o Direito àquele
imposto pelo Estado. O Direito como princípio normativo da pessoa fundante da
juridicidade e refletido em cada problema concreto advindo da coexistência das
pessoas. No jurisprudencialismo, a igualdade ganha foros de existencialidade no
sentido de pessoa – base para a compreensão do Direito como Direito em si.
(COELHO, 2007, p. 185-188) Como salienta Juliano Zaiden, verifica-se a “alteridade
como condição do direito”, com a relação se estabelecendo entre sujeito e co-sujeito
como participantes do discurso, sendo a realidade concreta o espaço para a reflexão
social das pretensões de validade tensão entre facticidade e validade passando-se
da razão pura à razão situada e sensível. (ZAIDEN BENVINDO, 2010, p. 179; 192200)12.
Paulo Ferreira da Cunha defende, com base em Castanheira Neves, ser a
13
justiça
o princípio constitutivo do Direito numa dimensão entitativa (constituinte e
11
Em sentido parecido Perlingieri, 2008, p. 193 (nota 95) - A decisão recairá no decidir normativo
que inspira o caso concreto, a traduzir princípios e regras pertencentes ao complexo sistema no
<<ordenamento do caso concreto>>, “destinado a passar do particular ao particular, reduzindo
tudo à unidade dos valores jurídicos sobre os quais se funda a convivência social que se
substancia na justiça de cada caso”.
12
Nessa linha assevera Maltez, ao trabalhar o Direito como problema: “À maneira de Hegel, talvez
importe começar pelas coisas complexas, considerando que, no princípio, pode estar o fim, que o
princípio é o verbo que caminha em direcção ao fim, superando as circunstâncias para atingir a
ideia do todo. E talvez seja pela dialéctica que pode aceder-se ao todo. Uma dialéctica que, em
primeiro lugar, seja a capacidade do pensamento se reencontrar na alteridade; e que, em segundo
lugar, leve ao reconhecimento como uno, num plano superior, do que, num plano inferior, aparece
como antitético”. (MALTEZ, O direito como problema, 2011).
13
Sobre o tema sugere-se exemplificativamente: COELHO, 2004; CASTANHEIRA NEVES, 1995,
v.1, p. 241-286; LUDWIG, 2006; SEN, 2010; RICOEUR, 1997; CASTAN TOBEÑAS, 1966;
FORST, 2010; GARGARELLA, 2008; SANDEL, 2011.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
185
Justiça e democracia
existencial)
e
numa
dimensão
cogniscitiva
(de
relevância
epistêmica
e
metodológica), sendo a justiça um constante constituir-se e refazer-se, sem remontar
ao jusnaturalismo e ao positivismo jurídico (FERREIRA DA CUNHA, 2010). Maltez
(2011) afirma que o todo do problema do Direito é uma questão prática seja na
decisão de um juiz, seja na interpretação de um particular: questiona-se o que é
justo para cada caso. Certo é que o sentimento do justo e do injusto alicerçam
as ordens sociais14.
Lembra-se das palavras de Helmut Coing (1976): “o Direito, como ciência,
diz-nos o que é justo ou injusto; como técnica, ensina-nos o como; diz-nos como
alcançar o justo e como evitar o injusto; como obter para os indivíduos e para a
colectividade, a máxima ‘utilitas’ compatível com a existência humana”. Assim
deveria ser, embora saibamos que não tem ocorrido dessa forma.
A perspectiva axiológica do Direito entra em confronto com a perspectiva
finalista, que pretende substituir os valores pelos fins, podendo-se desfavorecer o
valor justiça em detrimento de determinados fins,15 como o econômico ou o político.
Isso porque a proteção jurídica coativa é exigência do justo – condição sine qua non
– da norma jurídica intenção regulativa voltada para a realidade. Esta relação de
querer fim dependente de um valor, sem ser a sua causa primeira, por ser o Direito
uma “ordem ao serviço de um valor supremo que é a justiça”. 16 Destaca Michael
Sandel (2011, p. 28) que se sabe quando uma sociedade é justa no momento em
que se pesquisa como ela distribui rendas, riquezas, direitos, deveres, poderes,
oportunidades, cargos, honrarias, conferindo a cada um o que lhe é devido.
António Castanheira Neves (2010), com extrema razão, sugere significados
para a interpretação na contemporaneidade:
14
MALTEZ, José Adelino. O direito como problema. Frisa Maltez citando Larenz: “Larenz, a este
respeito, salienta que o Direito “positivo”, medido pelo ideal de uma justiça perfeita, nunca é
plenamente justo, é também, portanto, em parte, injusto; mas segundo o seu sentido está sob a
exigência da justiça e não pode negar esta exigência sem deixar de ser “direito”. Daí entender que
a ideia do Direito tenha uma função “constitutiva”, fundadora de sentido (é o sentido a priori geral
concreto, logo, cheio de conteúdo, de todo o Direito). MALTEZ, José Adelino. Ubi societas, ubi jus.
Disponível em: <http://maltez.info/>. Acesso em: 15 jan. 2011.
15
Veja MALTEZ, José Adelino. O direito
<http://maltez.info/>, Acesso em: 15 jan. 2011.
16
Idem, ibidem.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
como
realidade
cultural.
Disponível
em:
186
Marcus Firmino Santiago e outros
(...) não há um sentido prévio e determinante da interpretação, e sim os
sentidos que resultem da interpretação –, por outro lado, e decisivamente,
há que superar essa compreensão textual por uma compreensão normativa
– é essa a minha tese e posição – e a dizer, no fundo, que a interpretação
jurídica tem essencialmente um sentido problemático-judicativo concreto e,
nesses termos, os interpretativos sentidos jurídicos de quaisquer
fundamentos ou critérios jurídicos que se mobilizem judicativamente apenas
se obtêm no próprio juízo em que operem como fundamentos ou critérios
(como que numa circularidade de ponderação jurídico-normativa em função
do problema jurídico concreto judicando), assim como toda a interpretação
será, já por isso, normativamente constitutiva em concreto, tal como
normativamente constitutivo será sempre o concreto juízo jurídico. E daí ou
neste continuum normativamente judicativo não há delimitações ou
fronteiras formais entre “interpretação”,“aplicação” e “integração” – a
interpretação é sempre “aplicação”, com ser sempre concretamente
judicativa, e não menos sempre “integração”, mais ou menos ampla, com
ser sempre também normativamente constitutiva. (...) E então, se os textos
nunca se fecham a diversas interpretações possíveis, já a problemáticoconcreta decisão juridicamente judicativa deverá ser concludente
relativamente ao caso decidendo através de uma fundamentação judicativa
que a sustente. Tenho, pois, por errada a comum invocação de sempre
possíveis decisões alternativas, porquanto é isso apenas o correlato do
abandono, justo abandono, dos esquemas lógico-subsuntivos, a que todavia
não seguiu a exigível procura metodológica da fundamentação judicativa. E
através desta o caso admitirá só uma solução correcta. Pelo dever-se-á dar
razão a Dworkin quando defende a mesma conclusão, embora de um modo
já metodologicamente criticável, como julgo ter mostrado. (...) Devendo
ainda distinguir-se aqui dois momentos intencionalmente metodológicos: o
momento do ante decisório, em que as alternativas serão hipoteticamente
possíveis, e o momento do iter e da conclusio judicativos, em que a decisão
judicativa já não admitirá ser outra senão a normativamente fundada e
correcta - em que não haverá, pois, alternativa (cfr, Metodologia jurídica, 32,
ss., e passim) (...) É que o problema da interpretação jurídica não é o de
saber o que textual-significativamente consta e se comunica, p. ex., nos
textos das leis, em termos puramente exegéticos ou especificamente
hermenêuticos e tomados, portanto, esses textos como quaisquer outros
textos linguísticos, literários ou culturais em geral, mas o de saber de que
modo prático-normativamente se deve aceder e assimilar o sentido
normativo-jurídico, a normatividade jurídica, intencionada por esses textos
enquanto expressões de fundamentos e critérios jurídicos vigentes, e para
que possam ser fundamentos e critérios juridicamente adequados,
problemático-juridicamente adequados, de uma “justa” (i.é, com justeza
problemático-normativa) decisão dos problemas jurídicos concretos.
Parece adequada a tese de que a um caso concreto somente é possível
uma “solução correcta e justa ou mais elegante,17 embora se permitam várias visões
sobre o fenômeno”, a partir da efetivação metodológica da fundamentação
judicativa. Filia-se à ideia de jurisprudencialismo ou construção judicativo-decisória
proposta pelo jusfilósofo português Castanheira Neves. A metodologia por ele
17
Veja Aronne, 2006.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
187
Justiça e democracia
elaborada altera a fórmula norma, ordenamento e subsunção 18 por um novel
esquema metodológico: caso, princípios e razão prática, a fim de que o intérprete
encontre a “solução correcta e justa” para cada caso decidendo. (CASTANHEIRA
NEVES, 2003, v. 1) Pensa-se que o referido esquema metodológico poderia ser:
caso – formas de expressão do Direito – razão prática, a fim de ampliar as
possibilidades para o intérprete encontrar a “norma” do caso concreto.
Maltez destaca a importância da fundamentação ou justificação:
Aliás, a fundamentação nos domínios do direito significa constituir face às
circunstâncias concretas, ser guiado por uma luz que nos vem dos
princípios a realizar. Só a fundamentação nos permite criar perante as
circunstâncias concretas e dar sentido a um objecto. Isto é, integrá-lo na
ordem de todos os outros objectos, referindo-os a um mesmo critério de
19
sentido, através de uma global compreensão.
O conflito jurídico é condição de possibilidade de uma decisão, que não o
elimina, mas o soluciona, o finaliza e impede que seja novamente rediscutido (coisa
julgada), (DINIZ, 2010, p. 163) salvo nos casos em que os pedidos da demanda
rescisória são julgados procedentes ou nas hipóteses em que a coisa julgada é
relativizada, delgada ou inconstitucional.
A sobredita metodologia de realização do Direito necessita ainda do amparo
de um modelo interpretativo capaz de estabelecer uma releitura de sentido das
formulações dogmáticas dos institutos jurídicos e inclusiva das hipóteses fáticas não
positivadas, alcançável por meio da utilização de uma linguagem filosófica que
implique o intérprete relativamente ao objeto analisado – relação sujeito inicialsujeito final. (MARRAFON, 2010) A formulação teórica de Robert Brandom (2005),
por ele intitulada inferencialismo, uma vez transportada para as ciências sociais
aplicadas, pode ser adequada ao contexto das ciências jurídicas, refazendo as
matrizes da discursividade racional que permeia a interpretação do Direito,
afastando-se definitivamente daquela de natureza lógico-dedutiva para se ocupar
18
A subsunção se expressa na seguinte fórmula: premissa maior – a norma – premissa menor – o
caso concreto – conclusão – decisão com base nas premissas. Veja Diniz, 2010, p. 163-164.
19
MALTEZ, José Adelino. O direito como ciência de princípios. Disponível em: <http://maltez.info/>.
Acesso em: 15 jan. 2011.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
188
Marcus Firmino Santiago e outros
com as repercussões de sua atuação no meio social, sem que se caia em realismos
jurídicos.
Dessa maneira, o intérprete tem como prius o problema e como ponto de
chegada (posterius) a solução do problema, que passará pela fundamentação
judicativa.
Pode-se entender que o modelo constitucional que norteia as premissas
metodológicas, jurídicas e filosóficas retrocitadas é o Estado Democrático de Direito,
consubstanciado na Lei Fundamental brasileira de 1988. A realização dessas
premissas requer um aparelhamento jurídico-dogmático que resulte na eficácia
direta, imediata e horizontal dos direitos fundamentais às relações jurídicas de
qualquer
espécie,
conforme
determinação
20
reaproximando o Direito dos valores éticos
constitucional
(art.
5º,
§
1º),
que o inspiram.
Para tanto, colhe-se a lição de Luiz Edson Fachin acerca das três dimensões
da constitucionalização do Direito “formal, material e prospectiva”, que, se
observadas, geraram melhores respostas à efetivação dos direitos fundamentais.
Elucida Fachin (2008, p. 9-15; 12-14):
É possível encetar pela dimensão formal, como se explica. A Constituição
Federal brasileira de 1988 ao ser apreendida tão só em tal horizonte se
reduz ao texto positivado, sem embargo do relevo, por certo, do qual se
reveste o discurso jurídico normativo positivado. É degrau primeiro,
elementar regramento proeminente, necessário, mas insuficiente.
Sobreleva ponderar, então, a estatura substancial que se encontra acima
das normas positivadas, bem assim dos princípios expressos que podem,
eventualmente, atuar como regras para além de serem mandados de
otimização. Complementa e suplementa o norte formal anteriormente
referido, indo adiante até a aptidão de inserir no sentido da
constitucionalização os princípios implícitos e aqueles decorrentes de
princípios ou regras constitucionais expressas. São esses dois primeiros
patamares, entre si conjugados, o âmbito compreensivo da percepção
intrassistemática do ordenamento.
Não obstante, o desafio é apreender extrassistematicamente o sentido de
possibilidade da constitucionalização como ação permanente, viabilizada
na força criativa dos fatos sociais que se projetam para o Direito, na
20
Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 107) define valores constitucionais: “Tais valores,
extraídos da cultura, isto é, da consciência social, do ideal ético, da noção de justiça presentes na
sociedade, são, portanto, os valores através dos quais aquela comunidade se organizou e se
organiza. É neste sentido que se deve entender o real e mais profundo significado, marcadamente
axiológico, da chamada constitucionalização do direito civil”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
189
Justiça e democracia
doutrina, na legislação e na jurisprudência, por meio da qual os significados
se constroem e refundam de modo incessante, sem juízos apriorísticos de
exclusão. Nessa toada, emerge o mais relevante desses horizontes que é a
dimensão prospectiva dessa travessia. O compromisso se firma com essa
constante travessia que capta os sentidos histórico-culturais dos códigos e
reescreve, por intermédio da ressignificação dessas balizas linguísticas, os
limites e as possibilidades emancipatórias do próprio Direito.
Nessa linha, a efetivação dos direitos fundamentais em cada situação
concreta pode estar explicitada na tensão democracia versus constitucionalismo,
porque, como aduz Vera Karam de Chueiri (2011, p. 7-12): “interpretar o Direito
(Constitucional) é compreender e interpretar a nós mesmos como comunidade”. Esta
afirmação de Vera Karam de Chueiri serve como elo do que foi dito até agora e o
que se está por dizer: como interpretar a nós mesmos como comunidade sem a
noção do outro (pessoa como categoria ética), sem a noção de justo em cada
interpretação diante de uma situação concreta, efetivando princípios e valores que
compartilhamos (razão sensível e paradigma judicativo decisório) e sem a ideia de
direito como problema?
Como visto, os pressupostos jusfilosóficos sobreditos servem de alicerce
para se estudar a tensão constitucionalismo e democracia, mormente quando se
discute a efetivação (ou não) de direitos fundamentais em um caso concreto,
devendo os princípios fundarem as decisões judiciais. Intimamente ligado ao
pensamento anterior, acerca do papel do intérprete no Direito, constata-se que o
neoconstitucionalismo21
assumiu
envergadura
dogmática
consolidada
no
ordenamento jurídico brasileiro.
A ideia e a mudança ocorrida no direito constitucional de valorização e de
empregabilidade de normatividade às Constituições e aos princípios, o afastamento
da aplicabilicabilidade restrita da lei, em nome da leitura moral do Direito, a
expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática
da interpretação constitucional consolidam a nova ótica do Direito.
21
Atualmente, larga parcela de constitucionalistas tratam a respeito do neoconstitucionalismo. Em
destaque cite-se, dentre outras, a obra “Neoconstitucionalismo” de coordenação de Regina
Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira, Rio de Janeiro,
Editora Forense, 2009.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
190
Marcus Firmino Santiago e outros
Como consequência, assenta-se a fundamentalidade da constitucionalização
do direito, a vinculação à Constituição por parte dos Poderes e particulares e a
concretude normativa dos enunciados normativos constitucionais.
Dessa forma, com a virada da concepção de que a Constituição não mais
poderia ser vista apenas como documento político e sim como diploma com força
normativa, na linha do pensamento de Konrad Hesse, o texto constitucional passou
axiologicamente e finalisticamente a tratar, dentre outros pontos, da organização do
Estado, da separação dos poderes, das competências atribuídas aos entes e as
tarefas previstas aos Poderes e principalmente dos direitos fundamentais.
Dentro de uma perspectiva de estabilidade democrática, de fortalecimento
do constitucionalismo e de “Constituição viva”, as relações jurídicas se consolidam
em meio aos fatos da sociedade e a necessidade de regulação dos fatos pelo
Direito.
O cidadão e a sociedade, de um modo geral, erigem uma nova esperança
de “justiça”, vislumbrada na expectativa de concretização do Direito ou até mesmo o
simples pronunciamento de solução pelas vias judiciárias, ante a descrença
generalizada da sociedade pelos seus representantes e o estado de latência
político-eleitoral.
Nesse
contexto,
salienta
Luís
Roberto
Barroso
(2005)
que
“a
constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade
brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma
intensa judicialização das relações políticas e sociais.”
A judicialização – e porque não o intitulado “ativismo judicial” – surgem na
sociedade como manifestações concretas do fortalecimento do Judiciário, bem como
da necessidade de intervenção estatal (no caso judicial) em questões22 que
normalmente não se tinha análise e solução como campo de atuação o processo
judicial.
22
Apenas a título de exemplo cite-se: os medicamentos e internações reivindicados, a união estável
entre homossexuais, as cotas nas universidades, a denominada “lei de ficha limpa”, o uso das
algemas etc.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
191
Justiça e democracia
Assim, e em certos casos em decorrência da omissão legislativa e da
administrativa, o Judiciário assume para si a árdua tarefa constitucional de proteger
a Constituição, de assegurar direitos e garantias e de preservar o Estado
Democrático de Direito. Para tanto, conforme visto, o intérprete assume papel central
na missão constitucional de elucidar a norma no caso concreto (judicativo-decisório).
Ocorre que, permeado pelos mais variados métodos de interpretação e
hermenêutica existentes no ordenamento jurídico e vinculado aos limites da
publicização e principalmente da fundamentação, o intérprete e sua sociedade
aberta de intérpretes da Constituição (HÄBERLE, 1997), no constitucionalismo
contemporâneo são convocados a democratizar o processo de interpretação.
O processo judicial (afastado da ideia privatísta) é alargado para a
participação de novos e outros atores, além da salutar postura do próprio Estado em
tornar públicas, acessíveis e compreensíveis as decisões judiciais e o dia a dia das
Cortes. A alargada, formal e tradicional distância entre o cidadão e o Judiciário é
reduzida pela sociedade contemporânea que privilegia a informação23.
Retorna-se,
entretanto,
à
célebre
tensão
entre
democracia
e
constitucionalismo, que, ao menos num primeiro momento pode refletir dicotomia,
mas que em verdade, tencionam-se para buscar a estabilidade do Estado
Democrático de Direito.
Dessa forma, o que se tem em cheque é uma nova perspectiva do
constitucionalismo
(neoconstitucionalismo),
fulcrada
na
força
normativa
da
Constituição, na interpretação e na democracia. Na aparente tensão é que devem
ser assentadas as premissas de eticidade do intérprete e do controle e participação
como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade democrática das
decisões.
Nas palavras de Rodolfo Viana Pereira (2008, p. 281), “os vetores
normativos que amarram esse esquema compreensivo são, por um lado, a ideia de
23
Os meios de comunicação (TV Justiça, Twiter, Rádio Justiça e Facebook) representam
importantes iniciativas de acesso e divulgação dos atos judiciais. No âmbito legislativo merece
referência a salutar Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011 que regula o acesso a informações
previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da
Constituição Federal; altera a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei 11.111, de 5 de
maio de 2005, e dispositivos da Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
192
Marcus Firmino Santiago e outros
constitucionalismo moralmente reflexivo e, por outro, a noção de democracia
enquanto sistema complexo.” Não por outro motivo, portanto, é que se entende que
o controle democrático das decisões judiciais finca balizas em três pontos
fundamentais, além dos já tratados (v.g. fundamentação e publicização), quais
sejam: respeito e vinculatividade às instâncias democráticas, controle e participação.
O respeito e a vinculatividade às instâncias democráticas são essenciais
para a estabilidade das instituições e principalmente para a manutenção
proporcional e equilibrada da raiz democrática, como fonte principal de preservação
e de interligação entre os cidadãos e o poder.
Nesse contexto, e conectando o neoconstitucionalismo com o controle
democrático, Daniel Sarmento (2009) afirma que: “Se for visto como uma concepção
que, sem desprezar o papel protagonista das instâncias democráticas na definição
do Direito, reconheça e valorize a irradiação dos valores constitucionais pelo
ordenamento, bem como a atuação firme e construtiva do Judiciário para proteção e
promoção dos direitos fundamentais e dos pressupostos da democracia.”
Por certo o que se busca é o equilíbrio entre a instância democrática e a
necessidade de proteção (e acionamento) do Judiciário, em defesa da ordem
jurídica. Na linha do que restou assentado, o foco do objetivo é a preocupação em
ampliar os espaços de participação social no processo de tomada de decisões.
Repita-se: todos os autores tratados anteriormente realçam o drama do
distanciamento entre sociedade e instâncias representativas como um mal típico das
práticas democráticas e buscam construir alternativas que permitam prescindir de
instâncias intermediárias.
O momento é de resgate e fortalecimento da soberania do povo. Do povo
ativo e protagonista das esferas legislativa, executiva e judicial. Não por outro motivo
é que se entende que o controle judicial passa também e principalmente pela
mudança na concepção da própria democracia, cujo dever de fundamentação das
decisões deve ser real e seguido à risca por todos aqueles que postulam direitos e
deveres e decidem sobre tais fatos jurídicos, como determina o art. 93, IX da
Constituição Federal brasileira.
É fato que a democracia representativa não mais se sustenta, ao menos
isoladamente. Exige-se a democracia participativa como forma legitimadora e
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
193
Justiça e democracia
renovadora de efetivação concreta da vontade do povo, ainda que sejam em esferas
tradicionalmente conservadoras ou “blindadas” pelo controle democrático.
Assim, indica Paulo Bonavides (2008, p. 288-289) que “... busca-se fundar
uma nova legitimidade, que só é possível com a repolitização do seu conceito, de
todo exequível, se inserirmos a democracia participativa na moldura do regime, de
maneira concreta mais ampla, porquanto ao Direito Constitucional ela já pertença.”
A reinvenção proposta atinge a democratização participativa e a participação
no controle, ou seja, o indivíduo e a coletividade como protagonistas da efetivação
de suas vontades, ao mesmo passo que é sujeito do controle, no caso, judicial.
Com isso, certamente, novos canais de comunicação e de interação entre o
poder e o povo estarão fortalecidos e abertos, de modo a tornar as vias possíveis de
participação (e controle) mais legítimas, concretas e eficazes.
Por fim, saliente-se que o controle democrático das decisões judiciais
perpassa obrigatoriamente pela oxigenação ideológica dos bancos acadêmicos, pela
reformulação do dia a dia forense, pela mutação do formato dos concursos para
ingresso nas carreiras jurídicas, pelo aprimoramento e pela fixação da eficiência nos
modelos existentes de freios e contrapesos no que concerne às relações de
ingresso dos magistrados e principalmente pela constante e pluralista participação
social no debate intra e extra processual.
CONCLUSÃO
A pesquisa amparou-se em uma teoria crítica da realidade que compreende
o Direito a partir da complexidade, da linguagem e dos sentidos dos institutos
jurídicos, verticalizados sem olvidar da repercussão prática que qualquer reflexão
jurídica deve proceder, demonstrando a necessária tensão entre democracia e
constitucionalismo. Indicou-se, também, a importância do intérprete e da
interpretação para a construção da decisão justa e correta para cada caso concreto,
sem que com isso falemos em usurpação de poder por parte de quem decide ou em
déficit de legitimação democrática.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
194
Marcus Firmino Santiago e outros
Desse
modo,
a
resposta
erigida
à
indagação
Como
realizar
democraticamente o controle das decisões judiciais? apontou para os seguintes
caminhos:
a) necessidade de os sentidos contemporâneos de democracia –
especialmente no que tange à aproximação entre Estado e sociedade – permearem
a atividade judiciária e judicante, com uma maior participação dos cidadãos da vida
pública, desde que as instituições mudem suas práticas, facilitem e promovam tais
participações, a fim de que se evitem abusos políticos e jurídicos;
b) é correta a identificação do Poder Judiciário, mas não só ele, como
potencial instância procedimental, no qual devem ser formados consensos sociais,
como um dos locais em que se reivindicam do Estado direitos e deveres dos
cidadãos. Para tanto a aproximação do Poder Judiciário com a sociedade é
imprescindível, com tal poder assumindo as consequências políticas, sociais e
econômicas das suas decisões;
c) o Direito deve recuperar a sua autenticidade e autonomia, deixando de ser
um discurso justificador do político e do econômico, como ocorreu, por exemplo, ao
longo do século XX e início do século XXI;
d) a compreensão do texto constitucional a partir do contexto em que ele é
interpretado, sem que haja colonizações de quem é maioria ou minoria, porque o
reconhecimento e o respeito às diferenças emana o sentido de hospitalidade, na
qual se percebe a alteridade e a pessoa como categoria ética;
e) imprescindibilidade de teoria e práticas jurídicas efetivarem as promessas
constitucionais sempre em diálogo com, no mínimo, significativa parcela da
sociedade, com o objetivo de que se diminuam as frustrações decorrentes de
decisões que parecem pouco se importar com os anseios sociais, sem que com isso
existam inclusões exclusivas, nas quais o coletivo se torna mais individual do que o
próprio individual;
f) os direitos fundamentais sejam efetivados diretamente em qualquer
relação jurídica, tomando o problema jurídico como prius e como posterius da
atividade interpretativa, sendo o intérprete a única fonte do Direito, pois por meio
dele é que se encontra, e não se escolhe, a norma do caso concreto, a partir da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
195
Justiça e democracia
densificação das formas de expressão do Direito em cada caso decidendo, já que o
intérprete se implica com o objeto analisado;
g) a justiça é o valor e o princípio constitutivo do Direito numa dimensão
entitativa (constituinte e existencial) e numa dimensão cognoscitiva (de relevância
epistêmica e metodológica), sendo a justiça um constante constituir-se e refazer-se,
devendo cada decisão fundamentar e justificar a motivação da resposta justa e
correta para cada caso analisado, aparecendo aí a efetivação do dever
constitucional de fundamentação dos direitos e dos deveres requeridos pelas partes
e das decisões que os reconhecem (ou não), de acordo com o art. 93, IX da CF/88;
Diante disso, há a legitimidade e o controle democráticos de cada decisão
judicial, mormente dos Tribunais Superiores, sem que falemos em decisionismos.
Concomitante a tudo isso, se torna imprescindível, uma melhor formação jurídica dos
intérpretes conferidas pelas instituições de ensino no país, para que abandonemos,
realmente, o Direito à la carte e possamos diuturnamente construir, desconstruir e
reconstruir um Direito de índole constitucional crítica, emancipatória, e prospectiva
que aponta para o devir, para o porvir e para o por vir jurídico-social.
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