I CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE PSICANÁLISE NA
UNIVERSIDADE
AUTOR: Jessika Karine Moreira Sousa
CO-AUTOR: Danielle Pires Mora Meireles
MODALIDADE: Trabalho Individual
SUB-TEMA: Que lugar para a criança e o adolescente no século XXI?
A Cultura do Consumo e a Infância
A sociedade moderna, totalmente “capturada” pela publicidade e pelas suas
estratégias coercitivas, tem na figura da criança o principal objeto-alvo dessa cultura do
consumo. Em meio à lógica do capitalismo, as crianças vêm, cada vez mais, tornando-se
consumidoras ativas e fazendo valer seu lugar na economia. A equação que sustenta
esse sistema traduz-se em: quanto mais cedo é despertado na criança o desejo pelo
consumo, mais precocemente têm-se consumidores de bens e serviços. Portanto, não é
novidade alguma afirmar, que o alvo do interesse da mídia, da propaganda e do
marketingé a criança.
No Brasil, por volta das décadas de 70 e 80, a publicidade assumiu uma nova
postura, passando a contemplar ações diretas e indiretas, a fim de seduzir a criança e
torná-la uma verdadeira prisioneira do consumo. Por meio de programas de
entretenimento, fundamentados em um sistema publicitáriopor demais eficiente,foram
sendoveiculadas as tantas marcas do consumo. Aos poucos a criança foi deixando de ser
interesse exclusivo dos pais, passando, então, a ser o foco da propaganda. O objetivo da
publicidade é concentrar, em torno da criança, suas estratégias, utilizando sempre uma
linguagem infantil e meios para atingir direta ou indiretamente esse público. Isso ocorre
porque, como se sabe, hoje cerca de 80 por cento da influência de compra em um lar
vem da criança (Fonte: Pesquisa Intersciente – out 2003).
A sociedade pós-moderna incorporou a cultura do consumo, entendida como a
ênfase ao mundo das mercadorias e aos seus princípios de estruturação
(FEATHERSTONE, 1995). Segundo Baudrillard, estudioso da área, a expansão dessa
cultura de consumo e sua manutenção são garantidas pela mídia, principalmente na
publicidade: o mais notável meio de comunicação de massa de nossa época.
(BAUDRILLARD, 2007). Com sua linguagem imperativa, diretamente voltada para as
crianças, a publicidade age covardemente, a fim de promover o consumo desenfreado de
produtos e serviços. Impõe mensagens apelativas, que acabam estimulando a
competição entre as crianças, sempre associadas ao luxo, ao erotismo, à beleza e à
fantasia.
A publicidade promete mais do que a alegria da posse, mas a inscrição na
sociedade, o direito à existência. A criança, por sua vez, adere incondicionalmente a
esse sistema, quase que infalível, devido a fatores diversos, tais como os explicados pela
psicanalista Maria Rita Kehl, baseada nas idéias de Michel Foucault e de S. Freud,
posteriormente aprimoradas por Lacan. A autora traz que existimos não por meio da
atividade do pensamento, que apenas nos diferencia dos outros animais, mas sim a partir
da percepção do outro. A certeza subjetiva que nos garante, muito precocemente, que
“eu sou”, não provém da nossa capacidade de pensar, mas da nossa identificação a uma
imagem. Essa assertiva eu sou não nos esclarece quem sou nem o que sou, mas nos faz
perceber que existimos e a partir disso as outras certezas vão se construindo ao longo da
vida, formando identificações e uma unidade coerente. O que garante o ser, para o
sujeito, é a sua visibilidade para outro sujeito, o que outrora já supunha Freud, com a
importância do olhar materno para a constituição do corpo narcísico do sujeito,
unificando o corpo auto-erótico da criança pequena. O estágio do espelho, trazido por
Lacan em seus seminários, sugere também que o Outro em psicanálise é testemunha da
visibilidade do sujeito, portanto de sua existência. Existir é, antes de mais nada,
apresentar a própria imagem para o Outro (KEHL, 2004), sendo esse Outro o
espaço público, portanto é nesse que o sujeito atesta que sua existência faz alguma
diferença.Consumindo você será aceito como consumidor e, assim sendo, como aqueles
que têm, garantindo seu lugar. Esse apelo para a criança é muito mais intenso, porque
ocorre na infância o primeiro momento em que o indivíduo está se definindo como um
ser existente e importante para o seu meio. Para a criança é muito importante o convívio
social e a popularidade, portanto ela “embarca” facilmente nesse universo das seduções,
proporcionado pela publicidade.
Assim como nos traz Baudrillard, a mensagem publicitária baseia-se no apelo à
emoção, na ideia de solicitude, de amparo e proteção para com os consumidores. Por
meio de uma manipulação latente, o discurso publicitário dissuade, ao mesmo tempo em
que persuade. A propaganda carrega consigo uma mensagem latente que irá, por meio
de sua solicitude, sensibilizar o consumidor a se sentir acolhido por ela, fazendo uma
sociedade inteira render-se às suas estratégias. De forma sutil, o que de fato a
publicidade tenta é passar a ideia de que irá suprir totalmente as necessidades dos
compradores, sendo ela, por si só, imagem e discurso, tornando-se o próprio objeto, em
vez de apenas o discurso sobre ele. Há um sistema simbólico que remete a criança a um
mundo irreal.
Nesse momento é possível ser feito um paralelo com a sociedade de controle
descrita por Deleuze, quando ele vem nos falar acerca dos sutis mecanismos de controle
utilizados na contemporaneidade, tendo no “marketing” um instrumento de manipulação
social. Na sociedade de controle, somos submetidos a sistemas que nos prendem sem
que possamos perceber, ou melhor, sem que consigamos reagir, já que o controle não é
feito por meio de enclausuramentos ou opressões diretas. Assim como nos diz Deleuze,
somos presos pelos “anéis de uma serpente” e esses acabam sendo mais perigosos do
que os buracos explícitos de uma topeira – referência à sociedade de disciplina
apresentada por Michel Foucault (DELEUZE, 1991).
Retomando o raciocínio da publicidade voltada às crianças, para essas o
conteúdo não chega racionalmente, mas pela emoção. É importante que a criança tenha
desejos, mas a questão central é que ela não percebe o quão esse desejo lhe foi
implantado pela mídia e pela propaganda. Os valores impostos pela publicidade, muitas
vezes, diferem radicalmente daqueles familiares ou até mesmo dos do contexto social,
no qual a criança está inserida, ocasionando assim um sofrimento psíquico. Com isso, a
criança acaba buscando no “objeto de marca” algo que ele verdadeiramente não pode
lhe oferecer e que só as relações de afeto com a família ou de amizade poderiam lhe
proporcionar, e não o consumo. Acerca desse discurso, Baudrillard (1970) também nos
faz contribuições, quando fala sobre a lógica constitutiva dos objetos. Segundo esse
autor, o objeto puro é um “mito” e, somente através das relações que promove, adquire
o estatuto de utensílio e de mercadoria, de símbolo ou de signo. Quanto à lógica do
valor simbólico, esse é baseado em um sistema de símbolos representativos das relações
interpessoais e/ou de vínculos culturais, em contrapartida ao valor signo – sistema
distintivo de imagens de marca, representando valores ditados pela moda, a fim de
provocar atitudes de identificação e adesão.
Com o consumo e a mídia exacerbados, a criança torna-se alienada de sua
realidade, alheia a conhecimentos gerais, práticos e relevantes, que deveriam estar sendo
passados para ela, quer seja pela escola, pela família ou por meios diversos. Elas
atentam-se única e basicamente às marcas, como são e a como elas se mostram.
No mundo infantil, bem como no do adulto, objetos como o celular são
diferenciadores entre as pessoas. A publicidade gera a padronização das pessoas, em seu
processo de crescimento, e isso é apresentado paradoxalmente como a “diferença” no
discurso publicitário. Hoje, no mundo infantil, a condição de pertencimento a um grupo
social é determinada não pelas atribuições da criança, de saber relacionar-se, de querer
brincar, mas sim pelo fato de ela poder ou não possuir algum objeto. As crianças vão
perdendo a liberdade de ser criança, de brincar, porque estão presas à estética, à
valorização de marcas e ao extremo consumismo. O consumo, para a criança, existe
como forma de sustentar o luxo; ela não quer algo para brincar, para usar, mas pelo
simples fato de possuir aquilo, transferindo o prazer do objeto em si para o ato de
comprá-lo.
Sobre o tema, Baudrillard (1997) também traz contribuições, quando nos diz que
a publicidade é antes consumida do que destinada a dirigir o consumo. Para o autor, os
cidadãos modernos seriam psicologicamente inexistentes se os objetos e os
produtos não lhes fossem oferecidos na sua dupla dimensão da escolha e da
publicidade (BAUDRILLARD, 1991). O autor prossegue afirmando que a publicidade
instiga a angustia, mas também a acalma, instaurando o reino de uma liberdade do
desejo, o que é bem evidenciado na figura infantil, com seu desejo insaciável de sempre
querer mais. Ainda segundo esse autor, a propaganda faz questão de manter uma relação
intrínseca com aquilo que o consumidor infantil mais deseja, fazendo com que esse
acredite que está sendo amado, cuidado. Por meio da publicidade, acabamos por
entender que o objeto nos ama e por esse motivo estamos “salvos”, tal qual apresenta
Baudrillard. Essa ideia de gratificação é colocada pelo autor como o “calor” adicionado
pela publicidade aos objetos, vinculados estes aos indivíduos em uma relação de
solicitude e de “proteção”, como o autor afirma:
É o calor ou a frieza, de igual modo os objetos são quentes ou frios, isto é,
indiferentes, hostis, espontâneos, sinceros, comunicativos: “personalizados” (...)
entregam-se, desdobram-se, procuram você, provam-lhe que existem graças à
profusão de seus aspectos, por sua expansividade. Você é visado, amado pelo
objeto. E porque é amado, você se sente existir. (BAUDRILLARD, 1997, p. 180)
A criança se apega à mercadoria que foi humanizada pela propaganda e, nesse processo
de humanização, recebeu o nome de marca.
O excesso de ofertas, apresentado pela mídia, desperta na criança um desejo
constante por novos produtos, embora o desejo anterior tenha sido há pouco suprido.
Essa questão da descartabilidade dos produtos também pode ser elucidada pelo fato de o
consumo está ligado à emoção, mas não propriamente dito a uma necessidade real,
prática, tendendo a deixar uma sensação de insatisfação, um vazio sentimental.
Em relação à aceitação e à credibilidade da publicidade, em contato com o
público infantil, tudo provém da ordem do imaginário. A criança pode até não crer de
fato no que lhe está sendo imposto pela propaganda, todavia mostra-se adepta a isso, a
fim de ser constantemente agradada, atendida e “cuidada” pela publicidade.
No outro extremo dessa questão, estão os pais, tentando impor certo limite, em
constante embate com a indústria bilionária da publicidade. A figura dos pais para as
crianças acaba sendo de vilões, que estão ali para lhes negar o que a publicidade tenta
lhes oferecer. Vários fatores têm contribuído para esse aumento da adesão da criança ao
consumo, como, por exemplo, a ausência paterna, devido ao cumprimento de
obrigações sociais. A fim de “remediar” as carências ou suprir os desejos das crianças, é
permitido o uso indiscriminado do computador, da televisão, do vídeo-game, todos
esses dados pelos pais na tentativa de compensar sua ausência. Contudo a intenção não
é responsabilizar as famílias pelo consumo exacerbado de seus filhos, mas sim tentar, de
alguma forma, explicar o porquê dessa prática consumista na infância.
Após todos esses fatores, é possível concluir que a publicidade, sendo por si um
objeto do consumo, e não apenas tentando promover um bem ou um serviço, limita
odesenvolvimento da subjetividadeinfantil.Em meio a todas as formas midiáticas, a
televisão acaba sendo o principal veículo do bombardeio imagético imposto pela mídia
às crianças, tornando-se um instrumento que não possibilita a construção de algo novo,
no psiquismo infantil, mas apenas a repetição de algo anteriormente elaborado para
imposição.
A publicidade não é, de forma alguma, sensata e responsável em relação aos
seus apelos. A mídia aproveita-se da vulnerabilidade psíquica da criança, visando
exclusivamente à venda de seus produtos. Não é uma preocupação da publicidade se o
desejo implantado na criança é legítimo ou se irá interferir em seu processo de
desenvolvimento. Caso o oposto estivesse em cena, ou seja, abrir mão dos apelos
covardes direcionados ao público infantil, seria o mesmo que deixar de lado a principal
fonte de manutenção e lucro publicitários: a criança. A ética na publicidade deveria
fundamentar-se na ideia de que uma criança precisa ter condições que lhe possibilitem
agir como tal, e o consumo exacerbado não faz parte disso.
Referências Bibliográficas
Baudrillard, Jean (1997). O sistema dos Objetos. São Paulo: Editora Perspectiva.
Deleuze, G (1991). Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Bucci, E; Kehl, M.R. (2005). Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo:
Boitempo.
Baudrillard, Jean (2007). A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70.
Featherstone, Mike (1995). Cultura de Consumo e Pós-Organizacional. São Paulo:
Studio Nobel.
Dos Santos, Andréia (2009). Criança e Propaganda: Tendência a uma Infância
Comprada. Laboratórios de Estudos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Polêmica,
Revista Eletrônica.
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