Personagens
Uma história de amor no “Jardim das Fadas”
A essência do que
viveram os dois
mackenzistas sinta no
fim desta história
der e Beatriz se conheceram
no Mackenzie, em 24 de maio
de 1930, quando tinham 19 e
18 anos, respectivamente — ele
nasceu em 9 de novembro de 1910,
em Taquaritinga, SP; ela, em 16 de
agosto de 1911, em Poços de Caldas,
MG. Hoje com 91 e 90 anos, respectivamente, moram em Sertãozinho, SP,
onde a revista Mackenzie foi entrevistá-los.
Alegre, conversador e seguro nas
opiniões que externa, Éder conta que
seu pai tinha plena consciência da
importância de alfabetizar Alceu, o filho mais velho, em uma instituição de
qualidade. Foi assim que, logo depois
da Primeira Guerra Mundial, em 1919,
o primogênito chegou ao Mackenzie,
antes dos cinco irmãos. A escolha se
deu porque seu pai não fazia por
menos, quanto a escola: “Procurava
uma onde o padre não mandasse” e,
por isso, tinha recebido várias indicações do Mackenzie. Na época, em
sua maioria, os colégios eram dirigidos por padres ou
freiras.
Quando Alceu
terminou o curso,
em 1922, voltou
para casa. Um ano
Afonso Accorsi
depois, era a vez
dos outros dois irmãos, Ugo e Nemer,
serem encaminhados ao Mackenzie.
Lamentavelmente, Ugo faleceu, em
1924. Naquele ano, Éder Accorsi se
Na cerimônia nupcial, dirigida pelo
reverendo Miguel Rizzo Júnior, pastor
presbiteriano de renome (à direita),
a troca das alianças.
família. Meu pai era agnóstico, mas
não lutava contra quem fosse religioso
— cada filho tomava seu próprio
rumo”, conta.
Beatriz revela que ter ido para o
Mackenzie foi a melhor decisão, visto
que a religião no colégio era a mesma
que ela seguia. Esclarece, porém, que
o Mackenzie tinha uma prática de
religião firme, porém discreta. E que,
talvez por isso, os outros mackenzistas
não se sentiam constrangidos. Éder
concorda, e acrescenta que ambos
absorveram uma idéia liberal de religião, de respeito aos outros. Além
disso, o Mackenzie era destaque na
sociedade por ser a primeira escola
com classes mistas.“Havia uma ressalva”, conta.“Durante o intervalo, moças
e rapazes deviam ficar separados”.
Segundo Éder, isso não impedia a
aproximação de casais. No espaço
que até hoje existe, dentro do campus
São Paulo, na esquina entre as ruas
É
“
juntou ao irmão Nemer e, em São
Paulo, foi morar com a avó, enquanto
fazia o preparatório do Segundo Grau,
que ainda era denominado Curso
Geral. Em 1931, Nemer se formou em
Engenharia Civil.
Dois anos mais
tarde, Éder tornouse engenheiro, em
Mecânica e Eletricidade. Ambos no
Mackenzie.
A mãe de Beatriz, Maria Olívia
Junqueira, foi diretora do internato feminino do Instituto Mackenzie. Beatriz
fez o curso em 1930, depois de estudar durante sete anos na Escola Ame-
São Paulo e o
Mackenzie estão
”
no coração deles.
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Mackenzie
ricana.Antes de vir para São Paulo, fora
aluna de colégio de freiras, em Poços
de Caldas. Conta que, como não se
confessava e nem comungava, a diretora reclamou que ela estava influenciando outras alunas a se rebelarem
contra o ensino religioso. Chamada,
dona Olívia, sua mãe, defendeu a posição de Beatriz e garantiu que ela não
iria mudar. Diante disso, a escola sugeriu sua transferência. O pai, indignado, enviou-a para o Mackenzie. E
Beatriz foi morar na Rua Maranhão, na
casa de uma tia.
No Mackenzie, ingressou no
mesmo curso preparatório de Éder,
com duração de quatro anos.“Ela freqüentou as aulas entre 1928 e 1930,
mas concluiu sem o exame final,
porque o Curso Geral foi extinto. O
presidente Getúlio Vargas mandou
que todos fossem aprovados por
decreto público”, conta Éder. “Beatriz
já era protestante quando eu a conheci. Eu não. Mas havia o hábito de
alguns companheiros do internato freqüentarem a Igreja Presbiteriana Unida, na Rua Helvetia, e, eventualmente,
eu os acompanhava. O meu primeiro
contato com a religião foi por meio de
um professor de Hidráulica, que também dava aulas para as moças da igreja. Quando fui até lá, claro que fiz
parte da classe dele. Então, aumentou
meu contato com o evangelho. Antes
disso eu não tinha religião, nem minha
Itambé e Maria Antônia – hoje está lá
a herma dos heróis de 1932 – ficava o
“Jardim das Fadas”, onde nenhum
garoto podia entrar durante o dia.
“Nos feriados e domingos a gente entrava. Muita gente ficou se conhecendo e começou a namorar ali”, revela.
“Foi nesse jardim que conheci Beatriz,
com quem me casei em 1934.” Éder
continua: “Meu irmão casou-se com
uma amiga de Beatriz que conheceu
também no ‘Jardim das Fadas’. Do
Mackenzie saíram muitos casamentos”, sorri.
A Bolsa influi nos bolsos
Um ano depois de conhecer Beatriz, Éder testemunhou como a queda
da Bolsa de Nova York afetou o Mackenzie. “Os alunos, em sua maioria,
eram filhos de fazendeiros de café,
inclusive eu. O preço da saca caiu a zero, empacou e as sacas de café ficaram
todas lá, no porto de Santos. Ninguém
conseguia pagar”, conta. Segundo ele, o
Mackenzie não interrompeu a freqüência às aulas de nenhum estudante. Ele e
seu irmão ainda eram alunos quando
Agora no calor de Sertãozinho, interior de São Paulo,
o sorriso de dona Beatriz (90 anos) e a firmeza de Éder (91).
Mackenzie
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houve a crise.“O diretor da época dizia
que mais tarde, quando o aluno pudesse, pagaria. Garantiu que ninguém ia
deixar de estudar por não ter dinheiro”,
revela. Accorsi diz que só conseguiu
pagar depois de se formar. Havia se
casado com Beatriz e estava morando
no Rio de Janeiro.Veio a São Paulo especialmente para procurar o doutor Peter,
presidente do Mackenzie na ocasião, e
resolver a pendência. “Ele me perguntou de que dívida eu estava falando.
Contei que, depois de me formar, tinha
ficado devendo dois ou três anos.” O
diretor explicou que há muito tempo a
dívida tinha sido absorvida pela instituição. Ele
me disse que eu não devia mais nada, mas, se
quisesse, poderia fazer
uma doação. Fiz o que
sugeriu e com parte desse dinheiro foram compradas as cadeiras e as
poltronas do auditório”,
revela.
O casal Accorsi morou em Niterói por
mais de duas décadas,
sempre com a intenção de voltar para
São Paulo. Logo após o casamento tinham se estabelecido em Poços de
Caldas. Éder trabalhou na Companhia
de Eletricidade de Araraquara e, anos
depois, o casal voltou para Niterói,
onde nasceriam os três filhos mais novos (os outros dois nasceram em
Poços de Caldas).
Segundo o filho Afonso, 70 anos, os
pais são paulistanos mackenzistas, porque tanto o Mackenzie quanto São
Paulo estão no sangue deles.“Para meus
pais significam a fase áurea, do conhecimento,da formação.Niterói representa a constituição da família. Acho que
sempre desejaram voltar para São Paulo
porque lá está o emocional deles. Meu
pai brincava comigo dizendo gostar
muito de Niterói, mas que jamais se
acostumaria com o barulho do mar. Minha mãe, além de reclamar do barulho
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Mackenzie
do mar á noite, dizia que aquilo a incomodava porque, antes de tudo, era uma
paulistana mackenzista”, conta Afonso.
Éder e Beatriz tiveram cinco filhos. Letícia, a primogênita, fez o Conservatório de Música; Afonso é arquiteto;
Cecília formou-se em Pedagogia;Marília
é professora de inglês em Niterói; e o
caçula Éder, fotógrafo.
O casal hoje reside em Sertãozinho. A cidade foi adotada porque o
reverendo Edson de Oliveira Lima,
casado com Cecília, está a serviço da
igreja presbiteriana na cidade. De comum acordo, decidiram que deveriam
A família reunida: o filho Afonso,
ao lado da mãe; a filha Cecília, entre o pai
e o marido, reverendo Edson de Oliveira,
pastor da igreja presbiteriana local.
morar com algum filho para não estarem sozinhos. Entre eles, escolheram Cecília que tem maior grau de afinidade com os pais e é a que mais se
identifica com a idéia de morar no interior. Foi ela quem sugeriu a mudança do bairro paulistano de Higienópolis, para Sertãozinho, próximo de
Ribeirão Preto.
Na Revolução de 1932
“Havia o bar do Bernardino, um
português muito amigo dos estudantes,
onde, de vez em quando, os internos faziam suas refeições.Alguns amigos e eu
estávamos lá quando um automóvel buzinando muito passou pela avenida e
nele, o Armando, que tinha sido colega
no Mackenzie.Entusiasmado,convidounos para nos alistarmos na Revolução
contra o Getúlio.Tudo isso entre gritos,
buzinaços, a maior algazarra! O entusiasmo nos contagiou, principalmente
porque o Ibraim Nobre fazia muita propaganda contra o presidente pelo rádio. Por isso, já estávamos mais ou menos contagiados pela idéia de que era
preciso derrubar o Getúlio e fazer a
Revolução de 32”,conta Éder.“Não pensei duas vezes. Fomos até a sede de alistamento fazer a inscrição e já estávamos saindo para voltar para casa quando um oficial nos informou que a farda e o armamento seriam entregues no dia seguinte.
Saímos taticamente como o Batalhão 14 de
Julho e fomos para
Itararé.”
“O comando ordenou uma posição de
defesa contra o Paraná,
que não aderiu. Fomos
para o alto de uma colina que nem era a divisa.
A realidade é que não estávamos armados.Tínhamos só colher e garfo, e muito medo, ao sabermos que podíamos
ser alcançados pelos tiros. Começamos
a ‘cavocar’ trincheiras. Até que uma
ordem de retirada fez com que recuássemos para Faxina, hoje Itapeva. Fomos
recebidos com glória! Afinal, ninguém
sabia que estávamos recuando.” Éder ri
da situação incomum de que acabou
participando juntamente com o grupo
de jovens idealistas.
A carreira no Mackenzie
Em 1975, Accorsi entrou para o
Mackenzie, onde ficou, durante sete
anos, cuidando da área administrativa. A convite do doutor Cyro Aguiar,
atual diretor-presidente do Instituto
Presbiteriano Mackenzie, voltou em
1988.“Na época, éramos diretores, ele
financeiro, eu, administrativo”, conta.
“Fui também chefe de gabinete dele e
juntos trabalhamos muito bem, graças
a Deus. Nasceu daí nossa grande amizade”, afirma. Éder permaneceu no
Instituto até 1992, com plena autonomia para trabalhar.“Posso dizer com a
consciência limpa, que fiz tudo o que
pude em benefício do Mackenzie”,
afirma.
Éder teve também participação na
compra do Tamboré, no final da década de 1970, quando o presidente do
Instituto Mackenzie era o reverendo
Boanerges Ribeiro. “Embora o Mackenzie tivesse os recursos necessários para ampliar o espaço físico, só
dispunha do campus Itambé para
todas as suas atividades. Na época,
cerca de 20 mil alunos transitavam no
pedaço de chão entre a Maria Antonia, a Piauí e a Consolação. Era preciso ampliar o espaço para criar mais
salas de aula. Naquele tempo, estava
surgindo Alphaville, no município de
Barueri. Sugeri, então, a compra de
um terreno, onde seria possível aumentar consideravelmente a nossa
instituição. O mackenzista, proprietário das terras do Tamboré, fazia
preço especial. Os membros do Conselho Deliberativo perceberam que
estava ali a oportunidade de ampliar a
área do Mackenzie e aprovaram a
compra de 750 mil metros quadrados
de terra, ao lado da Rodovia Castelo
Branco. Foi assim que o Tamboré foi
adquirido”, revela.
Sobre o futuro da instituição onde
estudou e trabalhou Éder Accorsi tem
opinião formada: “O Mackenzie deve
ser transformado em fundação”. É o
que ele pensa.
Saída compulsória
“Norma que existia no Mackenzie
no meu tempo não permitia que, depois dos 70 anos, os diretores exercessem a função. Diante disso, tive de
ir para casa...”, conta melancólico.
“Mas se o doutor Cyro ainda precisar
de mim...”
Um simples olhar...
Beatriz compôs mais de 80 poesias. Eis uma delas:
De um pequenino olhar
e então cresceu,
cresceu até nos incendiar,
tudo se transformou em uma beleza tal,
que nesse mundo não havia nada igual,
nele eu sempre a pensar,
ele a pensar em mim,
castelos mil formar,
com esse amor sem fim,
buscando o seu olhar
e ele buscando o meu, em ...
singular nos transportando ao céu,
e o dia então chegou da doce solução
que nos impôs gostosamente o coração
e o amor que assim nasceu
de um pequenino olhar, cresceu,
cresceu e nos levou ao pé do altar.”
Mackenzie
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