ARQUITETURA RELIGIOSA Cristiane Ribeiro de Mello Araújo1 Resumo: Com uma análise do espaço sagrado da arquitetura luterana, verifica-se a existência de uma linguagem comum, em São Paulo. Em 1832, Vitor Hugo, via a cidade, arquitetura, como um livro de pedra e temia que, o livro de papel, a imprensa, fizesse com que o pensamento humano e sua forma de expressão mudassem. No sentido de coligar uma religião através de sua arquitetura, linguagem, é que pretendemos desenvolver nossa análise. Os exemplares escolhidos fazem parte da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. A mais antiga, possui em sua arquitetura detalhes que não são comumente usados por protestantes históricos no Brasil; as outras não mantêm as mesmas características externas. Através de levantamento dados fotográficos - podemos analisar, de modo amplo os processos visuais e ajudar a desvendar culturas multifacetadas -, analisamos a linguagem arquitetônica entre as Igrejas de Confissão Luterana na cidade de São Paulo. Palavras Chaves: Arquitetura, linguagem, religião, sociologia, espaço simbólico. 1 Mestrando em Ciências da Religião, na Universidade Presbiteriana Mackenzie e bacharel em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade de Guarulhos – UnG. Membro da Associação de Cientista sociais da Religião do Mercosul. Autora do capitulo Arquitetura e Mudança Social no livro Religare: Identidade, Sociedade e Espiritualidade. Membro discente participante da linha de pesquisa: Linguagem e Religião: Estudos da ação social através da Analise do discurso, do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e NUER – Núcleo de Estudos da Reforma. 2 Introdução “Vitor Hugo, o escritor, nos demonstra que a arquitetura é uma linguagem que evidencia o que está acontecendo com a sociedade, no momento da sua construção. Partindo do entendimento de que é uma linguagem, a arquitetura deve transmitir uma mensagem impressa no espaço e não algo que não faça parte do discurso da comunidade que a utiliza. Kevin Lynch2, no livro O urbanismo, diz que a imagem da cidade, assim como uma folha impressa, se for legível, poderá ser abrangente como um conjunto bem unido de símbolos reconhecíveis, facilmente identificáveis e facilmente integráveis dentro de um esquema (pattern) global.” (Araujo, 2005:23) As igrejas são facilmente identificáveis dentro do esquema global da cidade, de São Paulo, hoje? O espaço sagrado protestantes pode ser lido com facilidade? O que se tem transmitido ao individuo que passa pelas ruas de São Paulo, a igreja protestante tem transmitido um convite a entrar ou tem sua arquitetura “camuflada”? Coelho Netto, no livro “A construção do sentido na arquitetura” indaga quais os elementos da linguagem arquitetural e articula duas grandes unidades sintagmáticas em que inicialmente se decompõe a linguagem da arquitetura e da urbanística: o discurso primeiro do espaço em si mesmo e o discurso estético do espaço. E Peter Berger fala sobre o problema de se transmitir algo através de gerações. “Toda sociedade que continua no tempo enfrenta o problema de transmitir os seus sentidos objetivados de uma geração para a seguinte. Esse problema é atacado por meio dos processos de socialização, isto é, os processos pelos quais se ensina uma nova geração a viver de acordo com os programas institucionais da sociedade.” (Berger, 1985:28) A arquitetura é um macro linguagem3 cunhada para uso, e apreciação, de varias gerações. Uma pequena leitura através da arquitetura “[...] a linguagem é um produto humano. Toda linguagem é resultado de uma longa história da inventividade, da imaginação e até do capricho do homem.” (Berger, 1985:25) O aprendizado do produto da linguagem é essencial porque principia da percepção e da memória em direção ao que ainda não é, segundo o autor italiano Vittorio Gregotti no livro 2 Estudou arquitetura, psicologia e antropologia. 3 visto que suas proporções, em geral, são maiores do que aqueles que interpretam 3 Território da arquitetura, este exercício não é acidental ou gratuita violação do já estabelecido, mas sim busca contínua de uma ordem nova e instituição de uma nova possibilidade, de uma nova experiência do mundo. Conforme Coelho Netto (2002, p.11), a arquitetura é uma arte, específica que necessita não de uma linguagem mais ou menos intuitiva com a qual o sujeito da criação artística lida e propõe sua obra, mas sim, de uma linguagem predefinida e que esteja ao alcance simultâneo do criador e do receptor. Como podemos observar no decorrer da história. Desde a antiguidade, a arquitetura é usada como uma macro linguagem, fácil de distinguir quando andamos por ela, ou simplesmente a olhamos. Segundo Luiz Jorge Werneck Viana, em A Religião no Egito e na Babilônia: “As dimensões gigantescas e a imponência das pirâmides e zigurath atestam a capacidade dessas civilizações em congregar fantásticos recursos e esforços humanos, valendo-se de surpreendente tecnologia, a fim de obter os resultados desejados pelos que detinham o poder.” (Viana, 1973:2) Ambas têm funções distintas: as pirâmides, egípcias, são túmulos e representam inconformidade com a morte e o desejo pela imortalidade; os zigurath, babilônicos, são templos que simbolizam a morada dos deuses. Representavam um meio de comunicação entre os mortais, terra, e o sobrenatural, céu. Conforme Berger (1985, p.25), a objetividade da sociedade se estende à todos os seus elementos constitutivos. As instituições, os papéis e identidades existem como fenômenos objetivamente reais do mundo social. Pode conservar uma consciência de si mesmo como distinto do papel, que se refere ao que ele apreende como a sua “verdadeira identidade pessoal". Esses povos cada um a sua maneira, desejavam demonstrar aos outros povos que seus “deuses” eram poderosos, e os tornavam poderosos. Construindo assim a identidade que queriam demonstrar aos seus dominados ou pretensos dominadores. Nessas culturas, a sociedade é sacralizada, e o soberano, uma divindade. A ordem social corre paralela à divina. Viana (1973, p.2) também cita que: “A aspiração manifestada pela monumental arquitetura egípcia e babilônica corresponde à sabedoria do pensamento religioso da Antiguidade. A inquietação humana levou à edificação dessas obras arquitetônicas, e o significado de natureza religiosa que encerram persiste ainda em traços da cultura contemporânea. Zigurath e pirâmides indicam também, de modo simbólico, tanto o poder político como a formula intelectual capaz de explicar a ordem universal e justificar as diferentes atribuições individuais, de acordo com as classes em que se dividia a sociedade.” 4 A arquitetura dos templos babilônicos e egípcios conseguia atingir o sentido da linguagem que é conseguir um “entendimento” entre, ao menos, dois sujeitos, que agem entre si, sobre algo. Voltemos bem no tempo, ao período em que a humanidade se dividia entre camponeses sedentários, habitantes das cavernas, e nômades guerreiros. O sedentário era o conservador da sua época, mostrando-se mais brutal e de massa corpórea mais pesada que o nômade, aventureiro, protótipo do democrata, armado, com suas esposas. O habitante da caverna se retirou para as colinas e começou a construir cidades, queria se fixar; já o nômade era mais ágil e móvel, construiu uma morada adaptável, dobrável, a tenda. Os habitantes da cidade criavam os filhos à sombra das muralhas, e os aventureiros criavam os seus sob as estrelas. “Dizer que a sociedade é um empreendimento de construção do mundo equivale a dizer que é uma atividade ordenadora, ou nomizante.“ (Berger, 1985:32) Segundo, o arquiteto americano, Frank Lloyd Wright (1979, p.235) (1869-1959), é dessa forma que se inicia a história das cidades pela simples necessidade de proteção, proteção esta que depois veio a gerar, nos filhos criados às sombras das muralhas, o instinto da obediência e do trabalho. E que bem posteriormente, quando se sentiram seguros, gerara no plano cultural, infinita busca pela liberdade. A habitação na cidade surgiu por conta de uma mudança social: comunicando as necessidades de proteção dos homens que deixavam a atividade de nômades e se fixavam no solo, e posteriormente ali exerciam uma atividade econômica. Eliade(1992, p.36) afirma que se instalar num território equivale a consagrá-lo. No caso dos sedentários, implica uma decisão vital que compromete a existência de toda a comunidade. “’Situar-se’ num lugar, organiza-lo, habita-lo – são ações que pressupõe uma escolha do Universo que se está pronto a assumir ao ‘cria-lo’. Ora, esse ‘Universo’ é réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses participa, portanto, da santidade da obra dos deuses.” Conforme Choay (1979, p.273), o biólogo escocês, Patrick Geddes (1854-1932) estudou as transformações das comunidades humanas sempre de um ponto de vista evolucionista e influenciado pela sociologia de Le Play. O conjunto de materiais das pesquisas produziu uma exposição “polística4” ou cívica. Isso gerou um consenso de que, para se gerar um projeto urbanístico, é necessário escrutar5 a vida da cidade e de seus habitantes, os laços que os unem, 4 É o ramo da sociologia que trata das cidades. Do ponto de vista pratico, uma arte suscetível de melhorar a vida da cidade e de contribuir para sua evolução. 5 Cf. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa Folha/Aurélio, Editora Nova Fronteira S/A: Rio de Janeiro, 1995, p 264: investigar, sondar, pesquisar. 5 só assim podemos enfrentar problemas de patologia social e criar esperança de verdadeiras cidades novas. Um projeto deve refletir e atender as mudanças sofridas por aquela sociedade, e assim refletir a alma das nossas cidades. “E uma linguagem está presente nessas obras, uma linguagem urbanística onde o fechado e o aberto se completam, e o previsível com o inesperado, o protegido e o exposto, o privado e o comum, o geométrico e o orgânico, em suma: a unidade e a variedade. Essa é uma linguagem completa, onde o indivíduo faz parte da cidade e a cidade, parte fundamental do indivíduo. O homem vive na cidade e da cidade, e a cidade não deixa de viver do homem.” (Coelho Netto, 2002, p.9) Eliade (1992, p16) ao falar sobre espaço sagrado, afirma que o sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades ‘naturais’. “[...] a linguagem apenas pode sugerir tudo que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural”. A ruptura, que há no espaço sagrado, é simbolizada por uma “abertura”, pela qual se tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra. A comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo número de imagens referentes todas elas ao Axi Mundi: pilar, escada, montanha, arvore, cipó etc. Em torno desse eixo cósmico entende-se o “Mundo”, logo, o eixo encontra-se “ao meio”, no “umbigo da terra”, é o Centro do Mundo. Dentre as colocações acima uma me chama a atenção, é o simbolismo de “umbigo da terra” como se o espaço sagrado tivesse a função de comunicação e de alimentação, como numa gestação, é um ponto vital de dependência na gestação de um ser igual – no caso sagrado. Também me remete a um exemplo usado em sala de aula para ilustra o paradoxo, que dizia que na “gestação é uma situação onde dois corpos distintos ocupam o mesmo espaço”. O que observamos com relação ao espaço sagrado é que: A = espaço sagrado, B = espaço profano ⇒ A ≠ B ∴A ⇔ B. Ou seja, A não é B, mas A só existe com B, portanto o espaço sagrado só existe em contraposição com espaço profano. Retomando a nossa leitura arquitetural, observa-se através do escritor Victor Hugo (1802-1885) obcecado pelo tema da cidade, que desde a origem do mundo “a arquitetura é o grande livro da humanidade, a expressão principal do homem em seus diversos estados de desenvolvimento, seja como força, seja como inteligência” (Choay,1979, p.324). A história de Israel, começa com os patriarcas e profetas, durante o século XX a.C. ( Pierucci, 1973, p.19). No período de Davi, com a unificação por ele realizada, esperava-se que fosse construído um templo que servisse como santuário nacional; mas ele não ousou contrariar a palavra de Deus que diz: “[...] não habitei casa alguma, mas, qual viandante, tenho me alojado sob tenda e sob um tabernáculo improvisado” (2 Samuel 7,6). O Templo só foi cons- 6 truído no reinado de Salomão, 971 a 932 a.C. Segundo Antonio Flávio O. Pierucci (1973, p.27) : “Salomão parece ter tido em mente objetivos não apenas religiosos mas também políticos, fazendo brilhar aos olhos das nações vizinhas a potencia e a riqueza do Estado israelita. Construído no estilo das “capelas reais”, o Templo revelava, mesmo na disposição exterior, influencias Cananéia e egípcias. Com a ornamentação exuberante de flores e animais, com seu mobiliário e seus objetos carregados de simbologia, deve ter chocado os israelitas, apegados às tradições de simplicidade do culto de Javé.” Apesar da majestosa construção, continuaram a existir os santuários locais até o séc. VII a.C., quando Josias proclamou o Templo de Jerusalém o único santuário legítimo de Javé e centro da religião nacional. Nessa época, o templo já estava em ruínas e passou a exercer seu verdadeiro papel como lembrança. O rei Acaz (735-716 a.C.), submetendo-se aos assírios e para agradar o rei assírio, mandou construir um altar em estilo assírio no Templo de Jerusalém, o que refletia a dependência de Judá com relação à Assíria. “[...] esses homens tinham formulado, ou formulavam, um estoque preciso de conceitos e de signos do qual retiravam os elementos para propor uma arquitetura onde cada elemento se define por si só e, ao mesmo tempo, em relação aos demais, num discurso que responde a determinadas necessidades do homem da época e que este compreende” (Coelho Netto, 2002, p.8) Para compreender o papel do espaço sagrado na vida das sociedades tradicionais6, deparamos em todo lugar com o simbolismo do Centro do Mundo, e é ele que nos permite entender o comportamento religioso em relação ao “espaço em que se vive”. O simbolismo do Centro explica outras séries de imagens cosmológicas e crenças religiosas: As cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; os templos são replicas de montanhas cósmicas; os alicerces dos templos mergulham profundamente nas regiões inferiores. Os simbolismos aplicados: ao templo de Jerusalém – o rochedo sobre o qual se erguia o templo era o “umbigo da terra”, cita Eliade (1992, p.40). Com a secularização (separação entre ordem pública e religiosa), torna-se um principio através do Código de Hamurábi (séc. XVIII a.C.), o homem moderno dessacralizou seu mundo e assumiu uma existência profana, por essa razão, sente dificuldade cada vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas. 6 Qualquer que seja o aspecto particular sob o qual se apresente esse espaço: lugar santo, casa cultural, cidade, “Mundo” 7 Sabe-se que há dois modos de ser no mundo7. Para a consciência moderna, um ato fisiológico não é mais do que um fenômeno orgânico, mesmo que ainda esteja “cheio” de tabus. Mas para o “primitivo” tal ato nunca é simplesmente fisiológico; é, ou pode se tornar um “sacramento”, ou seja, uma comunhão com o sagrado. Nas civilizações orientais o templo recebeu uma nova e importante valorização: não é somente uma imago mundi, mas também a reprodução terrestre do modelo transcendente. O judaísmo herdou essa concepção paleoriental do Templo como a cópia de um arquétipo celeste. “[...] se o Templo constitui uma imago mundi, é porque o Mundo como obra dos deuses, é sagrado. Mas a estrutura cosmológica do Templo permite uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica continuamente o Mundo, uma vez que o representa e o contem ao mesmo tempo.” (Eliade, 1992, p 56). Os Templos, como modelos transcendentes, gozam de uma existência espiritual, incorruptível, celeste. Geralmente os projetos são revelados por sonhos. Os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, do povo de Israel, foram criados por Deus desde a eternidade e Deus foi quem os revelou aos seus eleitos. Séculos após, a civilização ocidental se viu profundamente marcada pela visão cristã do mundo, que influenciou as artes, as formas de organização política, os sistemas filosóficos, as concepções de direito. Desde o ano 200 d.C., vários decretos imperiais se sucederam, visando a enfraquecer a nova religião. E a perseguição generalizada e sistemática procurou eliminar o Cristianismo: à medida que ele se expandia, tornava-se mais temido e a repressão se aguçava. Isso gerou um culto aos mártires, gerando uma importante vida cultural nas catacumbas. Elas foram utilizadas por um curto período, principalmente em Roma e seus arredores. E, conforme João Silvério Trevisan, se tornaram, para os cristãos, um eloqüente símbolo de seu testemunho, significando a realização das palavras do evangelho: “Pela vossa constância alcançareis a salvação”. (Lc. 21,19) Em 313, com edito de Milão, Constantino garantiu aos cristãos o direito de praticar livremente sua religião. Sua atitude pró-cristão tinha caráter eminentemente político. Conforme Trevisan, “incentivou a construção de inúmeras igrejas que, só em Roma, somavam mais de quarenta.” (Trevisan, 1973, p.145) 7 Eliade em “O Sagrado e o Profano” escreve um capitulo intitulado: Dois modos de ser no mundo. 8 Segundo Viana (1973, p.356), quando este fala das igrejas ortodoxas, “[...] a igreja, com sua arquitetura e afrescos, representa no espaço o que a palavra litúrgica representa no tempo: o reflexo, a antecipação do Reino de Deus.” No Catolicismo Medieval, conforme Sérgio Lobo de Moura, tem como um dos sub títulos “nas cidades, um novo tipo de vida” – o que demonstra uma ocorrência concomitante de mudanças sociais, arquitetônicas e urbanas. Nos centros urbanos, à luz de diferentes modalidades de organização social e poder político, florescem novas formas de expressão artística e religiosa. Muitas aspiravam explicar o renascimento urbano iniciado no século XI. Conforme Choay (1979, p. 205), em O Urbanismo, O arquiteto Camillo Sitte (18431903), era conhecedor da arqueologia medieval e renascentista, e idealizador de uma teoria e de um modelo de cidade que influenciaram os arquitetos germânicos e anglo-saxão a construírem as cidades-jardins. Já na Antigüidade Aristóteles dizia: “Uma cidade deve ser construída de modo a proporcionar a seus habitantes segurança e felicidade.” (Sitte, 1979, p.206). Vemos que havia uma necessidade que gerou uma determinada conformação do espaço, arquitetura e urbanística. Segundo Sitte, foi na Idade Média e na Renascença que as Belas-Artes tiveram lugar de honra. Ele mostra as relações entre os edifícios, os monumentos e as praças na Idade Média e demonstra que tal arquitetura foi feita com um propósito de separação e que esse foi atingido através de uma densidade estética: A cidade é um ser sempre vivo, segundo Marcel Poète8 (1979, p. 281), o que significa que, aos dados geográficos, é preciso acrescer os dados históricos, geológicos e econômicos. A fisionomia de uma cidade expressa seu caráter. Os traços econômicos do caráter servem para explicar os traços sociais, assim como a estes estão ligados os traços políticos ou administrativos. “A vida de uma cidade é, como a do homem, um combate perpétuo.” (Choay, 1979, p.284) A vida nas cidades gerava a necessidade de grande número de serviços profissionais, concorrendo assim com os feudos e atraindo um grande número de imigrantes, num movimento inverso ao que acontecera seis séculos antes. A rede de cidades expandiu-se. As sedes episcopais, principalmente as metropolitanas, sempre mantiveram resquícios de vida urbana, mesmo durante os séculos XI e XII, período de mais intensa feudalidade, que veio a se fortalecer e reavivar. No decorrer do século XIII, os habitantes das cidades sentiram necessidade de defender os interesses, através de organização, particulares a cada grupo profissional (“ofí- 8 Historiador de Paris (1866-1950). 9 cios”) e comum a todos os habitantes. Tanto as “Guidas”9, como a organização comunal10, eram regidas por estatuto próprio que regulamentava toda a vida profissional e social, desde a admissão de novos elementos até o preço. “Os processos que interiorizam o mundo socialmente objetivado são os mesmos processos que interiorizam as identidades socialmente conferidas. O indivíduo é socializado para uma determina pessoa e habitar um determinado, mundo. A identidade subjetiva e a realidade subjetiva são produzidas na mesma dialética (aqui, no sentido etimológico literal) entre o indivíduo e aqueles outros significativos que estão encarregados de sua socialização11”. (Berger, 1985, p.29) O meio urbano revelou-se mais capaz que o feudal, devido a duas características: espírito corporativo e maior liberdade diante da tradição. Whight (1979, p.238), ao falar sobre a vida urbana e a democracia, afirma que a centralização é o velho princípio social que tornou necessárias as autoridades e, atualmente, é a força econômica que “superconstrói” todas as nossas cidades. A democracia, nosso ideal, foi originalmente concebida como: a humanidade toda livre para funcionar em uníssono, dentro de uma unidade espiritual e inimiga de qualquer fanatismo e de qualquer institucionalização, que, para Whight, era sinônimo de morte. A religiosidade popular do século XIII nasceu a partir do meio urbano em fase de maturação. Assim também a arte das catedrais e a cultura das universidades, mesclando formas tradicionais e formas novas. Multiplicavam-se as imagens dos santos nas fachadas das catedrais, pois cada uma das corporações tinha um ou mais patronos. “As catedrais que puderam ser chamadas ‘Bíblias de pedras’, por sua decoração bíblico-didática, tendem a preferir o Novo ao Velho Testamento”. (Moura, 1973, p.405) “A expressão máxima da arte no século XIII foi a catedral Gótica. [...] estilo gótico forma original de linguagem artística que dominou os séculos XIII a XV do Ocidente Cristão” (Moura, 1973, p 416) Iniciado na França, o estilo gótico, em sua primeira fase, só se exprimiu em escultura e vidraçaria. As paredes maciças da igreja românica foram trocadas por outras, mais leves e recortadas por nervuras de numerosos arcos. Não havia mais espaços para pintura mural. As linhas verticais, góticas, conduzem o olhar para o alto. A iluminação é seriamente estudada, gerando uma atmosfera sacra. A forma exterior também demonstra uma significa- 9 corporações de ofícios 10 11 estrutura política e administrativa autônoma – característica de cidades medievais A expressão "outros significativos" também deriva de Mead. Ela teve aceitação geral na psicologia social americana. 10 ção religiosa: a cruz, planta12, formada pela nave e pelo transepto, é multiplicada no interior pelo cruzamento dos arcos e ogivas. Optam por formas assimétricas, ressaltadas na decoração e no formato irregular da fachada. Esse estilo arquitetônico traduz uma natureza de aversão pelas formas geométricas puras, que caracterizam o estilo românico. Seu equilíbrio e sua harmonia são dinâmicos. Tem como distinção a volta à natureza expressa na escultura. “Mais do que religiosa, a arte do século XIII é uma arte a serviço da religião e da Igreja. Assim, o templo não deve ser apenas um local de culto, mas deve servir à edificação e instrução religiosa dos fieis. Tem uma finalidade pastoral e didática que a Igreja medieval procurou manter sob seu controle e orientação.” (Moura, 1973, p.416) Nesse período, a catedral dedicava-se a centralizar a vida de uma cidade, divulgando sua cultura, grandeza e riqueza. A população orgulhava-se dela. Nessa época, tudo acontecia no templo: exprimiam-se as artes plásticas; realizavam-se atos públicos mais solenes; refugiavam-se em caso de invasão; terminavam as festividades coletivas; encenava-se o teatro; os cultos educavam-se e moldavam-se às formas ainda precárias de música e canto popular. “[...] em suma, os grandes monumentos da história da arquitetura, os grandes nomes, estes têm uma linguagem específica, estes dominam um discurso: mas em volta de cada Notre-Dame de Paris, de cada palácio dos Doges há uma centena de habitações menos ou mais pobres que o cronista não registrou e de cuja linguagem não se fala porque simplesmente não existe. E neste caso se poderia dizer que também nos tempos modernos os arquitetos "falam", pois Mendelsohn tem uma linguagem, Loos tem uma linguagem, etc.” (Coelho Netto, 2002, p.8) “Uma linguagem arquitetural não é portanto privilégio das grandes obras ou dos grandes nomes: na verdade mesmo, ela é ainda mais rica quando se manifesta nas obras que passam despercebidas, naquelas para as quais os guias turísticos não apontam porque estão se servindo delas e nem pensam nisso: na malha viária, no jogo dos espaços, das cores. E tampouco essa linguagem é privilégio dos "tempos passados".”(Coelho Netto, 2002 p.10) A data considerada por muitos historiadores como o fim da Idade Média é 29 de maio de 1453, quando os mulçumanos tomaram Constantinopla, colocando em crise a cristandade, promovendo mudanças na esfera secular: aparecimento de Estados secularizados no norte da Itália; deslocamento do comércio, como resultado de novas passagens abertas sobre o mar; novas descobertas geográficas; derrocada do mito imperial; aparecimento de uma economia monetária em lugar da agrária; descrédito do feudalismo; sede de saber e redescoberta da Antiguidade clássica. 12 Cf. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa Folha/Aurélio, Editora Nova Fronteira S/A: Rio de Janeiro, 1995, p 510: “4. Arquit. Representação gráfica da projeção horizontal de edifício, de cidade, etc.” 11 “O fato da linguagem, embora tomado em si mesmo, pode logo ser visto como a imposição da ordem sobre a experiência. A linguagem nomiza impondo diferenciação e estrutura no fluxo ininterrupto da experiência”. (Berger, 1985, p.33) “É impossível usar a linguagem sem participar de sua ordem. Pode-se dizer que toda linguagem empírica constitui um nomos em formação, ou com igual validade, uma conseqüência histórica da atividade nomizante de gerações de homens. O ato nomizante original é dizer que um item é isto e, portanto, não aquilo.” (Berger, 1985, p.33) As mudanças que se acentuaram com o aparecimento da economia monetária geraram um novo nomos. As novas elites, os novos ricos, lêem, viajam e, em contato com outras mentalidades, podem formar um critério pessoal de conduta; por isso a simplificação espiritual proposta pelos humanistas. Após o Grande Cisma do Ocidente, Nicolau V fez de Roma a capital das letras e das artes e a biblioteca do Vaticano tornou-se uma das mais ricas. Ele encomendou traduções dos clássicos pagãos aos grandes humanistas13, embelezou seu palácio, construiu e reformou inúmeras igrejas. O século XV já forjava armas para o século XVI: multiplicavam-se os livros impressos; criavam-se universidades e escolas leigas; ofereciam-se oportunidades educacionais a camadas sociais inferiores; valorizava-se a interpretação direta das Sagradas Escrituras; o clero deixava de ter monopólio da cultura e até da teologia. Maraschin (1973, p.449) afirma que o esplendor do século XIII era visível em suas monumentais igrejas e na harmonia síntese entre a vida civil e a religiosa. As igrejas desse período estão igualmente repletas de esculturas, baixos-relevos, tapeçarias, vitrais e pinturas representando o Juízo Final, isso em diversas partes da Europa. “Em primeiro lugar, nenhuma obra de arquitetura possui um só significado: aliás, é uma característica do produto artístico comportar-se como uma fonte de significados diversos não só no plano da transformação de sua fruição no tempo, como também na disponibilidade orientada segundo um sentido a estratos de significados inclusive contraditórios, co-presentes naquilo que Freud denomina "as supradeterminações e condensações das formas expressivas". Podemos fazer com que o significado de uma arquitetura consista em sua maleabilidade, em seu "ser para" mas não em algo diverso daquilo que ela mesma indica ou significa.” (Gregotti, 2002, p26) Conforme Coelho Netto (2002, p119), “são os dois modos iniciais de semantização do espaço, e por certo dependem de uma ideologia e/ou produzem uma ideologia: sua significa- 13 Brunellesco, Donatello, Boticelli, Michelangelo e Leonardo da Vinci – pintor, arquiteto, engenheiro, escultor e sábio 12 ção dependerá das relações sociais nele examinadas14 (das quais se pode secretar uma ideologia) [...]” . A Reforma “rompe” com tudo isso, quando ensina que a salvação vem da fé. Na nova ordem de culto, publicada em 1523, Lutero acentuava a pregação como ponto central. O púlpito tornava-se lugar da comunicação da Palavra de Deus. Mas continuava-se a usar extemplos católicos. Lutero nunca determinou que se tirasse a iconoclastia, pois não havia nele a intenção de rompimento, mas de correção de algumas interpretações. Paul Tillich (In: Oliveira, 2000) escreve: “[...] porque os líderes da igreja protestante não perceberam que havia expressivo poder num estilo artístico e porque eles não sentiram o impacto do passado católico romano no contraste entre o simbolismo do edifício e o simbolismo representado durante o trabalho protestante.” Conforme Maraschi (1973, p.772) quando fala do Protestantismo na América Latina, o Luteranismo configurou-se como movimento religioso de grupos de imigrantes. “A Igreja alemã é conhecida no Brasil como Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e passou por demorado processo de aculturação. Só a partir de 1946 decidiu-se formar pastores no país [....]” Os protestantes na América Latina foram freqüentemente perseguidos, humilhados e estigmatizados. “Proibidos por lei de erguerem templos, construíam ‘casas de oração’: muitas delas foram apedrejadas ou queimadas. O protestante sentia-se discriminado e isolado em sociedades que se definiam como católicas. Não faltou aos protestantes, agressividade e ódio contra os católicos. Consideravam o Catolicismo como símbolo de idolatria, de superstição, de ignorância, resíduo do mundo medieval já morto.” (Alves, 1973, p 979) No texto “Religião e Mudança Social: uma primeira interpretação” vê-se que “A Igreja é um tipo de organização que tem pretensões universais. Ela intenta atingir a humanidade inteira e toda a vida dos indivíduos.”. Por meio da arquitetura (macro linguagem) podese, rapidamente, demonstrar a igreja a um grande número de pessoas. Berger (1985, p.30) afirma que “O indivíduo se apropria da realidade das instituições juntamente com os seus papéis e sua identidade.” Se para Weber a religião exerce a função de conservação da ordem social, a arquitetura a lembrará à sociedade. 14 Um espaço não só pode como deve ser analisado a partir das relações sociais que nele se desenvolvem, assim como estas podem ser apreendidas através de suas projeções sobre o espaço. 13 Em “Mudança Social: as teorias cíclicas e as perspectivas marxiana, weberiana e durkheimiana ou funcionalista”, o texto demonstra as teorias cíclicas e as perspectivas de três grandes teóricos da sociologia: Marx, Weber e Durkheim. A Teoria Cíclica visa explicar os processos sociais, mas também históricos, e suas mudanças. Vilfredo Pareto, economista francês, refere-se à circulação ou substituição das elites, e Georg Simmel, filósofo e sociólogo alemão tentou realizar, dentro de um espírito kantiano, um estudo analítico dos modos de interação social. Entre os conteúdos-tipo de atividades como a política, a economia e a estética, procurou identificar “regularidades recorrentes” das formas gerais e universais. Um de seus maiores estudos é sobre “As grandes Cidades e a vida do espírito”15, no qual ele fala a respeito do símbolo do relógio – ele afirma que as condições de exigência das grandes cidades constituem ao mesmo tempo a causa e a conseqüência do fenômeno; sendo assim, a arquitetura quando reflete uma mudança social, a conseqüência, passa imediatamente a gerar, causar, algo novo em quem a observa e a vive . “O indivíduo não só aprende os sentidos objetivados como se identifica com eles e é modelado por eles. [...]. Torna-se não só alguém que possui esses sentidos, mas alguém que os representa e exprime.” (Berger, 1985:28). Apesar de apenas refletir as mudanças sociais, essa teoria parece-nos aplicável à arquitetura também no aspecto histórico-estilístico, pois a arquitetura renascentista é uma retomada da Antigüidade Clássica, e temos, ainda, a neo-gótica e outras. E entre os fatores que geraram essas mudanças de estilo, como demonstrou Rubem A. Alves (1973, p.979), está o protestantismo do século XIX, que parece repetir o que foi o catolicismo para o Século XV. Já a perspectiva weberiana, assim como a história da arquitetura, apesar de estar voltada para vastas unidades territoriais e longos períodos de tempo, bem como para macro mudanças, históricas e sociais, está centrada nos indivíduos, suas idéias e ações. Já no início de “Economia e Sociedade”, Weber define a sociologia como “uma ciência que pretende entender, interpretando-a, a ação social para dessa maneira explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeito”. (Weber, 1992, p.5), assim também é possível percebermos a arquitetura. Ainda no século XVIII, aparece o pensamento de Martin Heidegger, filósofo alemão, que procede por questionamento da linguagem tal como ela aparece em suas manifestações correntes (1979, p.345-350). Este questionamento leva implícita uma dupla tarefa de desmistificação e de fundamento ontológico: um momento destrutivo elimina a abordagem artificial da linguagem e da história; segue um momento construtivo, baseado na investigação etnológica, e que acaba por revelar a riqueza do habitar. 15 dentro da obra A Filosofia do dinheiro (1900). 14 “Para que o nomos de uma sociedade possa ser transmitido de uma geração para outra, de tal modo que a nova geração venha também a "habitar' o mesmo mundo social, deverá haver formulas legitimadoras para responder as perguntas que surgiram inevitavelmente nas mentes as nova geração.” (Berger, 1985, p.43) A arquitetura demonstra a evolução de uma sociedade, visto que ela é uma linguagem que não gera mudança social, mas reflete a evolução da sociedade. E a cidade necessita muito de uma verdadeira linguagem que substitua o amontoado de frases e signos arquitetônicos sem sentido, porque muitas vezes quem os recebe e utiliza não sabe o que significam, mas sente seus efeitos. “[...] as "grandes obras" e os "grandes Arquitetos" e que não deixam de apresentarse como exemplos de domínio perfeito de uma linguagem precisa, dará e conveniente de arquitetura e urbanismo. Pense-se no discurso produzido por um hábil jogo entre ruas e praças que marca a maioria das cidades [...] Onde se encontra, hoje, essa linguagem que não é essencialmente vista e apontada como "grande obra da arquitetura ou da urbanística" mas que é sentida fisicamente, emocionalmente, por aqueles que ainda não se deixaram entorpecer totalmente pelo vazio significativo das "cidades" modernas? [...] Somente naquelas cidades o homem ainda dialoga com o espaço que o circunda [...] identifica-se o todo como um conjunto unitário que o indivíduo nunca conhece inteiramente mas que ele não deixa de reconhecer. E não um conjunto (na verdade, um aglomerado) como os de hoje onde o espaço é inteiramente hostil ao indivíduo (que não pertence a ele), não lhe dando nenhuma informação além do mínimo exigido pelo utilitarismo [...] que o homem sempre estranha porque a cidade, a intervalos cada vez menores, é constante e literalmente destruída para abrigar o novo e todo-poderoso hóspede [...] (Coelho Netto, 2002, p.910) M. Victor Hugo, poeta, demonstrou em suas obras literárias a sua paixão pela arquitetura, intensamente perceptível em “Notre Dame Paris”, em que chegou a ponto de desenvolver uma filosofia da arquitetura16. Foi juntamente com Viollet-le-Duc e Merimèe, promotor de uma política de defesa dos monumentos antigos, particularmente das cidades medievais. Ele compara a arquitetura a uma linguagem; a cidade, ao livro. Choay entende que, quando Victor Hugo escreve “Isto matará aquilo”, o livro matará o edifício, trata-se de um pensamento clerical. “Era o temor do sacerdote diante de um agente novo, a imprensa.” (Choay, 1979, p 324). No intuito de demonstrar o seu entendimento da arquitetura como linguagem, escreveu: “Os primeiros monumentos foram simples blocos de rocha em que o ferro não tinha tocado, disse Moisés. A arquitetura começou como qualquer escrito. Em primeiro lugar, foi alfabeto. Colocava-se uma pedra17, e isso era uma letra, e um hieróglifo, e 16 17 No capitulo intitulado “Ceci tuera Cela” que aparece na 8ª edição de “Paris à vol d’oiseau”. Cf. Ex.20.25 “Se me ergueres um altar de pedra, não o construas em pedra talhada, pois, ao levantar seu cinzel sobre a pedra, torná-la-ias profana” (Nota de V. Hugo) 15 sobre cada hieróglifo repousava um grupo de idéias, como o capitel sobre a coluna18.Assim fizeram as primeiras raças, por toda parte, ao mesmo tempo, no mundo inteiro. Encontramos o menir dos celtas da Sibéria da Ásia, nos pampas da América. Mais tarde, fizeram-se palavras. Puseram pedra sobre pedra, juntaram essas silabas de granito, o verbo tentou algumas combinações. O dólmen e o cromlech celtas, o túmulo etrusco e o galgal hebreu são palavras. [...]. Finalmente fizeram-se livros. As tradições tinham dado à luz símbolos, sob os quais desapareceram, como o tronco da arvore sob a folhagem; todos esses símbolos, nos quais a humanidade tinha fé, iam crescendo, multiplicando-se, cruzando-se, complicando-se cada vez mais; [...]. O símbolo tinha necessidade de manifestar-se no edifício. A arquitetura então se desenvolveu com o pensamento humano; tornou-se um gigante de mil cabeças e mil braços e fixou se forma eterna, visível, palpável, todo aquele simbolismo flutuante.” (cf. Choay,1979, p324 e325). A legibilidade do espaço sagrado paulistano. Como essa linguagem vem sendo usada hoje? Os signos que a compõem nem sempre são facilmente decodificados, quando lemos o tecido urbano. Em São Paulo, por exemplo, muitas vezes se passa diante de uma igreja, protestante, e dependendo da velocidade que se está, não se diferencia o espaço sagrado do profano. Na maioria das vezes isso ocorre porque a instituição utiliza-se de um espaço que não foi originariamente construído para tal fim, o que em arquitetura vemos como não-espaço, como garagens, lojas, galpões, cinemas, indústrias e outros. Isso foi imputado na nossa cultura, através de múltiplos aspectos: • pelas primeiras leis que não permitiam a construção de templos; • porque o livro “sagrado”, bíblia, diz que nós somos o templo de espírito de Deus19 e onde houverem dois ou três reunidos20 Deus estará ali, tal possa se concluir que não há a necessidade de um espaço sacro21; • porque o Brasil é um país de “colonização Católica” e a esta ao se instalar no país já veio com uma política de instalação urbana contra-reformadora e barroca, e as igrejas protestantes quiseram diferir da arquitetura Católico-romana; • porque as condições econômicas, do povo, não permitiam a compra de terrenos e fazer grandes construções; • porque as condições urbanísticas desta metrópole direcionavam, principalmente as igrejas instaladas depois do meado do século XX, ao reaproveitamento dos espaços vazios. 18 Cf. também Gn., 31.45: “Jacó pegou uma pedra e ergueu-a em monumento.” (Nota de V.Hugo) 19 Bíblia – Rm 8:9, I Co 3:16 20 Bíblia – Mt 18:20 21 Bíblia – At.4:48 e 17:24 16 Essas e outras condições levaram a tornar o não-espaço, um espaço sagrado, identificado muitas vezes somente através do marketing (faixas, placas, folheto, ...). No final do século XX e inicio do XXI, muitas igrejas já faziam uso da mídia televisiva, fazendo com que o culto que era objeto exclusivo do espaço sagrado invadisse as casas. Esse ato poderia gerar uma mudança nos hábitos sociais dos indivíduos atingidos por essa invasão, poderia simplesmente fazer com que o individuo não fosse mais ao espaço sagrado, gerando assim um esvaziamento dos templos, um espaço morto, por falta de dialogo. Mas não foi bem isso que ocorreu. Quando a igreja, em suas diversas denominações, entrou na casa de milhões de indivíduos através da televisão, foi como se além da praticidade de ver e ouvir o culto em sua casa, tivesse se gerado um cardápio de opções que possibilitasse a escolha: do estilo de igreja que “me” agrada; do tipo de pensamento, ideologia, expresso que “eu” quero viver; e que tipo de sociedade a “minha” personalidade vai se adequar ou “eu” quero conviver. Provavelmente essas e outras idéias fizeram com que não houvesse uma reclusão aos lares. Fazendo com que as pessoas fossem a essa ou aquela igreja por esse ou aquele motivo. Entre as igrejas “midiática”, a Igreja Universal do Reino de Deus, sob o discurso de melhor acomodar um numero grande de “irmãos”, construiu a sua catedral, na Avenida João Dias – bairro de Santo Amaro. É um grande templo onde podemos começar a ver alguns signos distintos da “igreja no salão alugado”, como carpete vermelho e vitrais22 coloridos. Começase a demonstrar uma mudança na identidade desse grupo social. A Igreja Evangélica Deus é Amor, tinha a sua sede em uma construção industrial, no bairro do Cambucí. Ela põe a edificação abaixo e constrói um templo de proporções faraônicas23 no mesmo lugar. Sua arquitetura é simples no traçado, mas muito grande. Possui dois espaços reservados para culto, um menor e outro que podem chamar de principal, possui vitrais, estacionamento, um prédio administrativo, heliporto, e tem a área interna do espaço em estilo de teatro arena. Interessante é notar que as proporções dessa igreja são enormes, mas ela não mudou a identidade do seu grupo, ela é simples como a anterior, e como o grupo que a freqüenta, porém muito grande. 22 “Diante dos vitrais [...] somos impelidos empreender essa viagem para dentro e para o alto, buscando os antigos elos que nos remetem a Deus. O edifício interage com o individuo e o envolve, integrando vivências, esperanças e significados recônditos, numa experiência pessoal, única e irrepetível.” (Requena C., 2000:12) “[...] vitrais, pois, pela sua beleza e luz, tocam a alma e atraem o olhar de qualquer pessoa, estudada ou não.” (Requena C., 2000:21) 23 somente para ilustração essa igreja é tão grande e comporta um numero tal de pessoas que ela possui mais de 40 banheiros (proporções de um grande shopping center). 17 Pouco tempo depois, próximo a essa igreja, foi construída mais uma “mega-igreja”. Outra “Universal” na Avenida Celso Garcia – bairro Brás, que se não é maior, que a catedral, chama muito a atenção e demonstra o que alguns chamam de “ostentação”. Esta ocupa um terço do quarteirão é repleta de vitrais decorados e coloridos, como a outra possui tapete vermelho, tem uma luminária enorme em formato de cruz e imitando vital, tem torres laterais coroadas com cúpulas douradas, seu nome escrito na fachada em letras douradas, e também possui heliporto. Dentre as mudanças ocorridas nesse grupo o que me chamou muito a atenção, ao visitá-la, foi quando perguntei se podia fotografar e pediram para que falasse com o pastor lá na frente e referindo-se a ele disse: “aquele todo de branco”. Nessa avenida no sentido do bairro, a “Universal” localiza-se do lado esquerdo, no lado direito, quase em frente, na esquina seguinte a Igreja Assembléia de Deus do Belém esta terminando de construir outra igreja de proporções muito grande. Ela ocupa aproximadamente um quarto do quarteirão, mas tem como limite além da avenida, já citada, duas outras ruas de grande circulação. E fica num cruzamento, da Avenida Celso Garcia, que tem logo na seqüência, ao lado, há uma igreja católica que ocupa uma praça. O exterior da edificação, nada mais é do que um caixote de estilo moderno em granito e vidro, com um detalhe no canto superior, o da avenida, que parece uma chama estilizada. Sua proporção parece que quase suprime a igreja católica ao lado, a ponto de podermos chamar a igreja católica de igrejinha. É marcante que tem ocorrido grandes mudanças sociais na metrópole de São Paulo, pois, se no geral “ela” é “recheada” de igrejas protestantes, em sua maioria ilegível, temos esse novo fenômeno das mega-igrejas que tem mudado a paisagem urbana desta cidade. Conclusão Sobre o alicerce da linguagem, e por meio dela, é construído o edifício cognitivo e normativo que passa por “reconhecimento” numa sociedade. “Só uma parte relativamente e pequena desse edifício é construída de teorias desta ou daquela espécie, embora o "conhecimento" teórico seja particularmente importante porque contém usualmente o corpo das interpretações "oficiais" de realidade.” (Berger, 1985, p.33). A pressuposição antropológica disso é uma exigência humana. A sociedade humana é uma ação de construção do mundo, é um edifício levantado frente às poderosas e estranhas forças do caos. A existência humana só é possível graças à comunicação permanente com o 18 Céu, isto é com o sagrado, via religião. Sabe-se24, que não se pode viver sem uma “abertura” para o transcendente, ou seja, não se pode viver no “caos”. É neste ponto que a religião entra significantemente em nossa discussão. O sagrado é apreendido como algo que "salta para fora" das rotinas nomos, do “dia a dia”. “Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e todavia relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência25. Essa qualidade pode ser atribuída a objetos naturais e artificiais, a animais, ou a homens, ou às objetivações da cultura humana.” (Berger, 1985, p.38) A relação entre a religião humana e a construção humana do mundo depende do tênue fio da conversação, tanto a identidade como o mundo, permanece real pare ele enquanto ele continua a conversação. Uma das conclusões a que Eliade(1992, p.59) chega é que; “o Mundo deixa-se perceber como Mundo, como cosmos, à medida que se revela como mundo sagrado”, rompendo-se assim um dialogo e iniciando outro. As representações da sociedade são imensamente mais resistentes. É a materialidade da linguagem em que se move a arquitetura, dotada de significado pelo fato de ser fisicamente aquela figura em que as formas se organizaram segundo um sentido. Vitor Hugo (1979, p.324) demonstra-nos claramente que a arquitetura é uma linguagem que explana o que está acontecendo com a sociedade no momento da sua construção. “Estes dois aspectos da fruição arquitetônica podem também ser formulados da seguinte maneira: o signo arquitetônico (que Barthes denomina em seus Elementi di Semiologia função signo) é decifrável, no que se refere a sua dimensão de significado, como um uso semantizado, e não existem usos coletivos não semantizados ainda que seja em níveis diferentes. Se consideramos a questão do ponto de vista da lingüística, é interessante ressaltar como uma das definições mais convincentes da dimensão semântica do. tipo seja precisamente a do significado como uso de Wittgenstein26. Esta definição parece ser capaz de recuperar toda a complexidade do fenômeno (e certamente é a que melhor nos serve para a linguagem arquitetônica) propondo, ao nível da unidade semântica mínima, o significado como ‘encontro entre a série de usos da forma considerada na frase e a série de usos que, no âmbito da comunidade, se faz da. própria forma’"27.' (Gregotti, 2001, p. 179-180) 24 Eliade em “O Sagrado e o Profano” escreve um capitulo intitulado: Consagração de um lugar: repetição da cosmogonia 25 Para uma clarificação do conceito do sagrado, cf. Rudolf Qtto, Das Heilige (Munique, Beck, 1963); Geradus van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (Londres, George Allen & Unwin, 1938); Mircea Eliade, Das Heilige und das Profane (Hamburgo, Rowohlt, 1957). A dicotomia do sagrado e do profano é usada por Durkheim em seu The Elementary Forms of the Religions Life) (Nova York, Collier Books, 1961). 26 WITTGENSTEIN, Ludwig. Phi/osophische Untersuchungen. (Tradução inglesa Oxford, Blackwell, 1958). 27 DE MAVJl.O, Tullio. lntrodu:rione alia semantica. Bari, Laterza, 1966, p. 195. 19 A arquitetura reflete a evolução de uma sociedade, embora não gere mudança social, num primeiro momento. Ou em como diria Coelho Netto (2002, p.122) : “[...] se o processo de semantização e de suprassemantização de um espaço parece indeterminado e amplo, sendo sempre possível acrescentar um novo significado a um certo espaço de tal modo que não se pode legitimamente prever seu ponto culminante, o processo de dessemantização tem um ponto máximo possível além do qual não pode prosseguir e que é o ponto onde esse espaço perde todo significado, sentido ou significação, propondo-se como um espaço vazio, não-significante.” Assim observando a linguagem na arquitetura, percebemos que ela é uma medição, pela qual nos exprimimos, através de sinais, na busca de um entendimento intersubjetivo com respeito a algo real. A arquitetura existe como linguagem porque juntamente com os outros, continuamos a empregá-la e a nos identificarmos com ela e através dela. Dialogamos constantemente com o meio, “urbis”, e usamos os signos da arquitetura para transmitir as gerações, algo idealizado como a relação de poder, de segurança, de riqueza, etc. 20 Referências Bibliográficas ALVES, Rubem A.. Protestantismo Contemporâneo in: As Grandes Religiões vol 5, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 977-992 ARAUJO, Cristiane Ribeiro de Mello. Arquitetura e Mudança Social in: Religare: Identidade, Sociedade e Espiritualidade. [orgs. Gloecir Bianco e Marcos Nicoline], São Paulo:All Print, 2005 BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. I Peter L. Berger; [org. Luiz Roberto Benedetti; tradução José Carlos Barcellos]. São Paulo:Paulus, 1985. COELHO NETTO, José Teixeira. A construção do sentido na Arquitetura, São Paulo:Editora Perspectiva, 2002. CHOAY, Françoise. 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