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MONSTROS DO SERTÃO: LITERATURA E PRECONCEITO EM "BUCÓLICA" E
"VELHA PRAGA", DE MONTEIRO LOBATO
Fabianna Simão Bellizzi Carneiro1
RESUMO
O alvorecer do século vinte marca a trajetória de autores brasileiros criadores de personagens
peculiares que simbolizavam o sertão – não o sertão romantizado ou apresentado como o que
o Brasil possuía de melhor, mas sim o interior do Brasil cujas narrativas focavam na dura
realidade e na aspereza de pessoas que se viam oprimidas entre o progresso e as relações de
trabalho no campo – relações que historicamente sempre foram confusas e ilegais. Com base
nesse e outros elementos econômicos, políticos e sociais, serão levantadas análises dos
contos: “Velha Praga” e “Bucólica”, publicados em 1914 e 1915, respectivamente, e ambos
de Monteiro Lobato, que traçam o percurso de personagens humilhadas, marginalizadas e
esquecidas nos ermos de um Brasil que não mais condizia com o avanço e progresso das
cidades: o sertão. Não se trata de um trabalho conclusivo, mas sim, analítico. A metodologia
se sustenta em pesquisa bibliográfica que será referenciada ao longo do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão. Literatura Brasileira. Monstros. Preconceito. Relações
trabalhistas no campo.
Introdução
Umberto Eco em História da feiura (2007) levanta uma instigante pesquisa da história
do feio através dos tempos. O leitor mais incauto pode adiantar que a modulação do que seria
o feio depende de cada cultura, país, nação. Isto é um fato. Porém, o que se pode destacar
nesta importante obra de Eco é a vinculação do feio às questões políticas e econômicas que
norteiam as sociedades. Se o feio, o monstruoso ou o asqueroso do período romano possuíam
uma leitura pagã, dos não-filhos de Deus, como são lidos os monstros da atualidade? Qual a
ideologia que sustenta os monstros contemporâneos?
Não seria especificamente o propósito deste trabalho, delinear uma história do monstro
ao longo dos anos, ou vislumbrar um tratado a respeito de sua inserção na literatura brasileira
ao longo dos séculos. O que se pretende, com este artigo, é levantar discussões e
problematizar a respeito da presença de personagens tidas como horrendas e marginalizadas
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Autora deste artigo e Doutoranda em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este artigo faz parte do projeto de Tese: “Um ser tão
assombrado: manifestações do Gótico no regionalismo brasileiro do Romantismo ao Modernismo”, sob
orientação do Profº Drº Flavio Garcìa e coorientação do Prof Drº Alexander Meireles da Silva. E-mail:
[email protected].
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aos olhos das elites, nos contos “Velha Praga” (1914) e “Bucólica” (1915) do escritor paulista
Monteiro Lobato. Ao final pretende-se demonstrar que tais personagens vinculam-se ao atraso
de um sistema que não mais sustentava o Brasil - à época da publicação dos contos, o Brasil
passava por mudanças no campo. O modelo econômico agrário, que durante longo tempo
subsidiou a economia brasileira, sede lugar à industrialização das cidades, consequentemente
é o campo que mais sofre por conta das exclusões não apenas econômicas, mas também
sociais e políticas.
Interessante perceber que os monstros atuais em muito se comparam aos monstros do
primeiro milênio: ambos devem ser colocados longe da limpeza e da ordem que mantêm as
cidades. Pretende-se, portanto, analisar como as artes, especificamente a literatura, captam
tais ocorrências e as transformam em textos que desacomodam e fazem o leitor questionar
algumas instâncias que compuseram a sociedade brasileira no último século.
Trata-se de um trabalho analítico que não esgota outras possibilidades de
entendimento e questionamento. Utilizaremos, como metodologia, pesquisa bibliográfica de
autores não apenas das teorias literária e artística, mas autores de áreas como Ciências
Sociais, Ciências Políticas e Econômicas, o que nos possibilita uma imersão mais segura nas
análises de contexto de dominação política e econômica do incipiente Brasil industrial.
Pressupostos teóricos e analíticos
“Tanta chuva ontem!...O cedrão do posto fendido pelo raio – e hoje, que manhã!”
(LOBATO, 2009, p.101). Assim se inicia o conto “Bucólica”, fornecendo indícios de que
após o temporal um novo dia não tardaria a raiar. Os parágrafos que se seguem dão conta de
esmiuçar cada detalhe da relva ainda orvalhada pelos primeiros raios de sol. A exuberância da
natureza, a calmaria da paisagem e a beleza da flora interiorana (quase que um inventário
botânico) descritas em seus pormenores, convidam o leitor a imaginar aquele espaço como
algo próximo do harém:
A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri
como em êxtase. Há em cada vergôntea folhinhas de esmeralda tenra brotadas
durante a noite. A mão de quem passa não resiste: colhe-as de alcance, porque é um
gosto mordiscar-lhes a polpa macia. (LOBATO, 2009, p.101)
O narrador prossegue detalhando o rico cenário, citando o nome das flores e
comparando-as a “[...] milhões de diamantezinhos que a luz da manhã irrisa. Malmequeres
por toda parte – amarelos, brancos. E tanta flor sem nome...Flor à toa – diz a gente roceira.
São, coitadinhas, a plebe humílima” (LOBATO, 2009, p.101). A partir deste excerto o
narrador compara as flores à nobreza, afirmando que as mais belas se encontram nos nobres
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jardins, enquanto que as menores e sem nome estão longe das dálias e crisântemos. Porém, é
nas menores flores que o narrador consegue ver beleza: “Não obstante, vejo nestas mais alma.
Leio mil coisas na sua modéstia. Lutaram sem tréguas contra o solo tramado de raízes
concorrentes, contra as lagartas, contra os bichos que pastam. Que tenacidade [...]”
(LOBATO, 2009, p.102), fazendo assim uma metáfora entre as flores menores e a humildade
e miséria das personagens que compunham aquele espaço.
Importante destacar que à época da primeira edição de Urupês (1918) – coletânea de
contos que inclui, dentre outro, “Bucólica” e “Velha Praga”, as artes brasileiras e a literatura
em particular ainda tonalizavam suas obras com o verde-bandeira carregado de um ufanismo
muito propagado pelos românticos. Lobato, ao contrário, demonstra em vários contos de
Urupês empenho em “[...] desconstruir essa visão idílica do campo, sublinhando aspectos bem
chãos, seja do ponto de vista da caracterização dos tipos humanos, seja da natureza”
(CECCANTINI, 2014, p.49).
No conto “Bucólica”, a detalhada descrição do cenário ressalta o espaço rural:
casebres de palha, mulheres lavando roupas à beira do rio, mulheres carregando lenha,
“caboclas” (LOBATO, 2009, p.102) e uma linguagem própria da região: “Sinh´Ana, bom dia!
Que é de Luís? No eito, coitado.” (LOBATO, 2009, p.102). Aliás, exatamente este
contraponto está presente em várias passagens da narrativa: a condição miserável e pobre das
personagens que compõem o cenário e a exuberância e opulência da Natureza, rica e farta em
sua flora.
No seu percurso entre flores, árvores, rica vegetação, o narrador avista o sítio de
Maria Veva: “Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali, dizem. O marido – coitado –
um bobo que anda pelo cabresto – Pedro Suã. Ganhou este apelido desde o célebre dia em que
a mulher o surrou com um suã de porco.” (LOBATO, 2009, p.104). Mais adiante o narrador
prossegue sua descrição de Maria Veva: “É horrenda, beiço rachado, olhar mau – e aquele
papo!” (LOBATO, 2009, p.104)
Ainda mais horrenda torna-se a figura de Maria Veva quando o narrador toma
conhecimento que Anica, filha de Veva, havia falecido naquela manhã e que a mãe não se
sensibilizara com o fato. A explicação da morte da menina viera da empregada da casa,
Inácia, “[...] a preta agregada aos Suãs.” (LOBATO, 2009, p.104). De acordo com Inácia,
Anica havia morrido de sede. Com febre há alguns dias, a menina implorara por um copo de
água em sua derradeira madrugada, mas a mãe mandara a menina se calar e dormir. Aliás,
raros eram os cuidados dispensados à menina por parte da sua mãe, Maria Veva: “A menina
era entrevada e a mãe, má como a irara. Dizia sempre: “Pestinha, por que não morre? Boca à
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toa, a comer, a comer. Estica o cambito, diabo!”. Isto dizia a mãe – mãe, hein?” (LOBATO,
2009, p.105).
Aos olhos da mãe, Anica era inútil por apresentar uma deficiência motora. O
tratamento cruel dispensado à filha evidencia, também, o atraso e a ignorância em que todos
viviam: para aquelas pessoas, um membro a menos na família significava economia
alimentar. Lobato abre-nos um espaço rural composto por infinitas belezas e sensações
visuais, porém seu interior é composto pelo atraso, pela fome, abandono e descaso:
Na representação que dá Lobato ao espaço rural, faz-se presente uma natureza hostil,
sovina e caprichosa; os habitantes do campo são em geral humildes, acanhados,
debilitados física e psicologicamente, por vezes ignorantes e atormentados por
vícios e as mais variadas limitações; o espaço descrito é pobre, decadente, com suas
casas de pau a pique prestes a ruir, com um solo desgastado e mesmo estéril. O
escritor busca uma representação verista da vida rural brasileira e empenha-se em
denunciar as mazelas do país (CECCANTINI, 2014, p.49).
O final do século XIX e início do XX trazem profundas mudanças para o setor agrário
brasileiro. O fim da Monarquia em 1889 e os avanços do processo de industrialização, além
da conturbada relação entre a nascente burguesia e a remanescente sociedade colonial, fazem
com que o homem do campo sinta os impactos negativos em seu modo de produção e de vida:
O liberalismo econômico prevalecia nas relações econômicas externas, nas quais
sobressaía a Inglaterra. Nas relações internas, entre setores dominantes e
assalariados, predominava o patrimonialismo. Um patrimonialismo que
compreendia tanto o patriarcalismo da casa-grande e do sobrado como a mais brutal
violência contra os movimentos populares no campo e na cidade. (IANNI, 1992,
p.22)
Octávio Ianni em A ideia de Brasil Moderno (1992, p.97) revela que nesse período as
elites pretendiam erradicar as marcas deixadas pelo passado colonial, daí que enxergavam o
homem do campo como responsável pela sua miséria, pobreza e ignorância, como se a vítima
fosse culpada. As ideias do darwinismo social e do evolucionismo ganhariam adesão no
Brasil, fazendo com que o alheamento social das camadas mais pobres fosse explicado pelo
fato de à elas ter faltado empenho próprio.
Ao tentar encontrar respostas para o atraso econômico e cultural do país em relação à
Europa, a postura da elite dominante do Brasil, ao refletir uma mentalidade neocolonial ou
imperialista ao longo de toda República Velha, evidenciava a presença de um “Darwinismo
social”. Este conceito deturpado das teorias de Darwin, exemplificado na ideia da
“sobrevivência do mais capaz”, tentava justificar os atos de uma classe social sobre a outra
através de uma pretensa superioridade (SILVA, 2008, p.43-95). Buscando um paralelo com a
literatura, notamos, no conto “Bucólica” traços deste discurso.
Ainda mais pungente torna-se a situação ao percebermos que a lei do darwinismo
também imperava no seio de uma família, como se nota no conto “Bucólica”. Além de ser
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expurgada por conta das condições miseráveis e representar um custo financeiro a mais,
Anica sofre preconceitos em casa devido à sua deficiência, sendo frequentemente chamada
pela mãe de aleijada e inútil – um tipo de preconceito que encontra raízes em épocas bem
remotas, quando pessoas que nasciam com alguma deficiência eram associadas aos monstros.
Mary Del Priore na obra Esquecidos por Deus (2000, p.18) observa que durante a
Idade Média, quando a Europa ainda vivia sob os preceitos cristãos e enquanto a razão não
fora alçada à condição suprema, as pessoas acreditavam que nos confins da Terra existiam
seres fabulosos.
A historiadora ainda ressalta que as representações monstruosas absorveram muito do
espírito da época, mas ficariam inalteradas até o século XVI. Nessa época, a importância dada
aos monstros advém do católico Santo Agostinho (século V), que os via como seres que
interferiam na harmonia da Criação e que carregavam, de acordo com a etimologia da palavra,
aquilo que Deus queria mostrar aos homens o que poderia lhes acontecer: “Ao discutir a
existência de raças monstruosas, a preocupação agostiniana é manter a unidade da espécie
humana e, por meio dela, garantir a salvação para todos os filhos de Deus.” (PRIORE, 2000,
p.23).
É com Santo Agostinho, aliás, que se começa a discutir a dismorfia dos corpos
humanos, uma vez que além das criaturas monstruosas, habitantes de terras distantes, também
havia homens monstros ou bestas humanas. (PRIORE, 2000, p.26). Na verdade, a
monstruosidade era atribuída aos homens por causa de alguma deformidade em seus corpos.
Mais tarde, por volta do século XIII, passou-se a interpretar os monstros como
prodígios morais, atribuindo-se à dismorfia humana uma alegoria moralizante – época na qual
a Europa começa a interpretar o mundo a partir de um sistema de pensamento: “[...] os
pigmeus simbolizavam a humildade; os gigantes o orgulho; os cinocéfalos, a discórdia; os
homens com beiços pendurados, a mentira.” (PRIORE, 2000, p.29).
O cenário muda radicalmente a partir do século XIV. Eventos como a Peste Negra, o
Grande Cisma, a Guerra dos Cem Anos, as intempéries climáticas, epidemias, revoltas
urbanas e rurais, a crença no retorno do Anticristo, contribuíram decisivamente na crença
demoníaca,
à qual o incipiente Renascimento dará uma coerência, um relevo e uma difusão
nunca dantes vistos. [...] Nesse quadro, agudizam-se as noções formais de bem e
mal, passando-se a atribuir as origens monstruosas à influência positiva ou nefasta
de Deus ou do diabo. Um delírio místico apoderou-se, assim, das interpretações
sobre a origem genética dos monstros. (PRIORE, 2000, p.34)
Portanto, desta época advém a crença nas criaturas monstruosas enquanto seres
castigados por Deus e que a Ele não poderiam oferecer serviços, somente ao Diabo. Os surdos
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eram insensíveis à palavra de Deus, mas sensíveis à palavra demoníaca, os cegos tiveram seus
olhos queimados pelo calor do inferno, o corcunda trazia o peso dos males em suas costa e o
aleijado “[...] deveria seu desequilíbrio àquele de sua alma.” (PRIORE, 2000, p.35).
No conto de Lobato é Anica quem carrega a deficiência, porém a essência do monstro
cabe à sua mãe. Ao contrário da figura feminina que ama, protege e dá segurança a seus
filhos, Maria Veva espanca, tortura e mata: “Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali,
dizem.” (LOBATO, p.104).
Cabe à Anica o peso da rejeição por conta, também, das condições econômicas,
evidenciando a situação miserável do roceiro no início do século XX. Victor Nunes Leal na
obra Coronelismo, enxada e voto (2012, p.46, grifos do autor), sobre as condições econômicas
e alimentares do roceiro das primeiras décadas do século XX pontua que
A massa humana que tira a subsistência das suas terras vive no mais lamentável
estado de pobreza, ignorância, atraso e abandono. Diante dela o “coronel” é rico. [...]
o roceiro sempre vê no ‘coronel’ um homem rico, ainda que não o seja; rico em
comparação com sua pobreza sem remédio.
Já em relação ao segundo conto:“Velha Praga”, a figura asquerosa e rechaçada cabe ao
trabalhador rural, tido como uma praga por representar uma classe que não condizia com o
progresso preconizado à época. Publicado em 1914, o conto também faz parte da coletânea
Urupês. Nos primeiros parágrafos nota-se a importância dada aos ideais europeus – ideais
desejados e imitados pela elite burguesa brasileira: “Andam todos em nossa terra por tal
forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram
olhos para enxergar males caseiros.” (LOBATO, 2009, p.159, grifos do autor). Reitera-se,
aqui, a escrita dinâmica e inovadora de Lobato, que com um tom irônico e perverso consegue
imprimir forte crítica social aos preceitos europeus tão valorizados e disseminados pela elite
brasileira nas primeiras décadas do século XX:
Na visada crítica e corrosiva do escritor, confrontavam-se dois mundos: um urbano,
que aspirava ao cosmopolitismo europeu; e um rural, esmagado por sua implacável
condição de atraso, explorando a pletora de tensões e contradições que desse
contexto emergiam. (CECCANTINI, 2014, p.48)
Os males caseiros principiam com o fogo que devasta a região da Mantiqueira. Se em
“Bucólica” a composição do cenário ressaltava as belezas naturais do local, em “Velha Praga”
nota-se uma região assolada pelo fogo que perdurara por vários dias: “A Serra da Mantiqueira
ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá
de manchas de verdura [...]” (LOBATO, 2009, p. 159).
Prossegue o narrador somando os prejuízos causados pelo fogo e as negativas
consequências causadas à flora e à fauna, além dos prejuízos financeiros causados aos
criadores de gado. Mais espantado ainda mostra-se o narrador ao perceber que aquela
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queimada, que costuma acometer os meses de agosto e setembro, fora além do normal
naquele ano de 1914: “Qual a causa da renitente calamidade? É mister um rodeio para chegar
lá” (LOBATO, 2009, p.160). Este rodeio descreve o “parasita” que está a vitimar a região da
Mantiqueira, causando as queimadas e destruindo o solo:
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio,
seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das
zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o
italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com o
seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se
fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado a uma rotina de pedra, recua para não
adaptar-se. (LOBATO, 2009, p. 161, grifos do autor)
Utilizando-se de uma linguagem forte e permeada por adjetivos afrontosos, o narrador
descreve a chegada do “caboclo” na roça e como ele se fixa com a “sarcopta fêmea”
(LOBATO, 2009, p.161) e seus filhos, adjetivados pejorativamente de “sapezeiros”
(LOBATO, 2009, p.161):
Acampam.
Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam de casa, brota da terra como
um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó
que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas
palhoças com a terra local, que dariam ideia de coisa nascida do chão por obra
espontânea da natureza – se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias
(LOBATO, 2009, p.162).
Retomamos as notas introdutórias deste trabalho quando fora citado Eco na obra
História da feiura (2007). Nosso questionamento arrolava pontos de contato entre os
monstros atuais e questões de cunho político e econômico. O conto “Velha Praga” consegue
amalgamar estas questões ao relacionar o homem do campo à adjetivos como: caboclo,
parasita, sarcopto, quando de fato o que o narrador quer ressaltar é que a existência desse tipo
de trabalhador rural empobrece e enfeia a paisagem, ou, nas entrelinhas, ele seria um entrave
ao progresso da nação. Tal pensamento encontra bases no pensamento nacionalista e elitizado
do início do século XX, que considerava mestiços, negros, índios e caboclos inclinados a um
“parasitismo medíocre” (Viana apud FAUSTO, 2001, p.44) como força repulsiva e
perturbadora, sendo que à eles caberia a teoria racista e infame do branqueamento, de forma a
alcançar superioridade racial.
Vale lembrar que também nessa época se inicia a prática sanitarista no Brasil, liderada
por Osvaldo Cruz. Tais práticas acabam por fornecer novas diretrizes ao discurso eugênico
propagado pela elite: “A indolência, vista antes como característica de uma raça mestiça
degenerada, passa a ser analisada como sintomática das endemias que flagelavam a
população, sobretudo, a rural” (SILVA, 2014, p.64-5).
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Um dos contos mais famosos da coletânea Urupês, “Velha Praga” causara grande
celeuma quando fora concebido. Solidário aos fazendeiros paulistas que foram castigados pela
seca e pelas queimadas da época, Lobato “[...] não parece solidário com o drama do caboclo
nômade, doente e sem qualquer instrução nem adjutório que lhe permita superar sua precária
situação” (SILVA, 2014, p.64).
Destarte, o personagem do caboclo causara tanta polêmica, que até mesmo a ufânica
elite brasileira volta-se contra Lobato, acusando-o de anti-nacionalista e na contramão dos
preceitos da Belle Époque brasileira: “Quem o dirá que o Sr. Monteiro Lobato não foi pago
para nos denegrir? Jeca, é a reclame de nosso crédito. Se a moda pega será esplêndido para o
estrangeiro [...]” (Cavalheiro apud CECCANTINI, 2014, p.50). Posteriormente o próprio
Lobato admite sua visão distorcida do caipira, até por conta de sua atuação na fazenda de seu
avô, arruinada após o apogeu do café:
Aliando-se ao discurso dos sanitaristas, a quem considerava os verdadeiros patriotas,
Lobato, que antes usara de sua pena para vingar-se dos caboclos que lhe
incendiavam as matas, direciona seu talento para propor e endossar medidas que
pudessem aliviar o sofrimento do Jeca (SILVA, 2014, p.66).
Ressalta-se, também, a visão nem um pouco romantizada do homem rural, que
sucumbe, na escrita lobatiana, às tentativas de recuperar o caboclismo e a pieguice
preconizadas pela elite brasileira, que queria apagar seu triste e vergonhoso passado rural ao
tentar ressaltar a beleza e a brasilidade do homem do campo. Quanto à isso Lobato em nada
economiza na escrita dura e cruel, revelando a realidade do meio rural paulista e fazendo do
conto “Velha Praga”
[...] um apelo à nação para que despertasse para a própria realidade, para as
condições sociais econômicas, tecnológicas e políticas terrivelmente primitivas de
grande parte de seu território, realidade que a oligarquia sempre preferira ignorar e
negligenciar (CECCANTINI, 2014, p.48)
Retomando o conto, após seu assentamento, o caboclo parte em busca de alimento e
um roçado de subsistência, uma vez que muitos viviam de forma miserável, “[...] à sombra
dos sitiantes prósperos, quando não inteiramente na sua dependência, sem despender esforço
produtivo, definindo o tipo clássico do mumbava” (CANDIDO, 2001, p.269, grifos do autor).
Em seus pormenores, o narrador descreve o modo como o caboclo busca seu alimento, não se
importando com as espécies raras que compõem a vegetação da região da Mantiqueira. Cabe
destacar que nesse momento põe-se em relevo as práticas de queimada executada pelos
roceiros:
Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas
aqui o “sarcoptes” se faz raposa. Como não ignora que a lei impõem aos roçados um
aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei,
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cocando destarte a insigne preguiça e a velha malignidade. (LOBATO, 2009, p.162,
grifos do autor).
Após descrever o estrago causado na mata por conta das queimadas causadas pelo
caboclo, o narrador salienta que na falta de um recurso legal contra o “urumbeva qualquer”
(LOBATO, 2009, p.163), resta-lhe a expulsão: “A única pena possível, barata, fácil e já
estabelecida como praxe é ‘tocá-lo’. [...] Toca-se, como se toca um cachorro inoportuno, ou
uma galinha que vareja pela sala.” (LOBATO, 2009, p.163). E o conto termina com o
narrador explicando que de tanto plantar para extrair o mínimo de alimento para sustentar sua
prole, a terra fica exaurida, e daí o agregado muda de sítio:
No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada
ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da
choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem
por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jeca Tatu ou outros sons
ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha (LOBATO, 2009,
p.164).
A título de considerações finais, em 1951 Lobato defende sua posição em relação ao
trabalhador rural, afirmando que ele não era culpado pela sua indolência, porém vitimado por
doenças endêmicas advindas da falta de medidas higiênicas e pelo abandono político. Tal
posicionamento põe um fim nas discussões racistas que apontavam o caboclo em posição
inferior, levando Lobato a afirmar que o homem do campo brasileiro possuía excelentes
qualidades assim como o trabalhador rural europeu (SILVA, 2014, p.70).
Neste ano de 2014 a obra Urupês comemora seu centenário. Infelizmente as condições
no campo brasileiro ainda se assemelham às condições vivenciadas pelo Jeca Tatu ou pelo
Chico Marimbondo. Em várias regiões do Brasil o campo ainda é composto por trabalhadores
analfabetos, doentes, sem direitos trabalhistas e expostos a degradantes jornadas de trabalho.
Ainda há trabalhadores no meio rural que vivem sob condição de extrema miséria. Alguns
mudaram-se para a cidade, compondo os quadros de subemprego, reforçando a mobilidade
como fuga à sujeição econômica (CANDIDO, 2001, p.278).
Criticado e polemizado recentemente por membros do Ministério da Educação, à
Monteiro Lobato devem-se os créditos por ter aberto a senda que se tentara manter fechada
por alguns intelectuais e políticos brasileiros que temiam a exposição das Anicas, Marias
Vevas, Pedros Suãs, Jecas Tatus e toda uma galeria de “personagens-monstros”, que
denunciavam as mazelas e brutalidade em que viviam nos ermos e rincões do Brasil –
monstros que deveriam ficar escondidos por trazerem a impureza que o Brasil da época não
queria exibir: “O monstro é aquela criatura que se encontra na ou além da fronteira, mas está
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sempre e paradoxalmente próximo e distante do humano, que tem por função delimitar e
legitimar.” (BELLEI, 2000, p. 11).
Ao expor os monstros do sertão, Lobato engaja-se em um projeto ideológico
verdadeiramente preocupado com os problemas de sua época, fazendo ressaltar um intelectual
“[...] disposto a empregar seu talento em benefício de seu país (SILVA, 2014, p.76).
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Referências bibliográficas
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2001.
CECCANTINI, João Luís. “Cinquenta tons de verde: Urupês, o primeiro best-seller
nacional”. In: LAJOLO, Marisa (Org). Monteiro Lobato, livro a livro. São Paulo: Editora
Unesp, 2014.
ECO, Humberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário. 1920-1940. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
IANNI, Octavio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
LOBATO, Monteiro. “Bucólica”. In: _____. Urupês. São Paulo: Globo, 2009.
LOBATO, Monteiro. “Velha Praga”. In: _____. Urupês. São Paulo: Globo, 2009.
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: Monstros no mundo europeu e ibero-americano.
(Séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SILVA, Alexander Meireles da Silva. “A literatura a serviço do preconceito racial – O Presidente
Negro, de Monteiro Lobato”. Revista Científica UNIABEU. Belford Roxo – RJ nº 2, jul-dez 2008,
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SILVA, Raquel Afonso da. “Problema vital: a restauração do Brasil sob a ótica da medicina
higienista”. In: LAJOLO, Marisa (Org). Monteiro Lobato, livro a livro. São Paulo: Editora
Unesp, 2014.
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