Manifestações espaciais da relação público – privado. A lógica do
condomínio.
Bruno Fabri Mancini (1) Claudio Silveira Amaral (2) Wilson Barbosa Alves (3)
(1) Dep. de Arquitetura, Artes e Comunicação. UNESP Bauru, Brasil. E-mail: [email protected].
(2)Dep. de Arquitetura, Artes e Comunicação. UNESP Bauru, Brasil. E-mail: [email protected].
(3) Dep. de Arquitetura, Artes e Comunicação. UNESP Bauru, Brasil. E-mail:
[email protected].
Resumo: Os condomínios fechados e seus derivados surgiram nas últimas décadas do século XX, sob o
pretexto de proteger seus moradores do caos e dos perigos da vida urbana. Este modelo de habitação
privilegia uma socialização em ambiente privado, protegido e economicamente homogêneo. A partir
desta constatação, pretende-se relacionar a emergência destes espaços com as transformações da esfera
pública descritas por Habermas e as mudanças na sociabilidade anunciadas por Sennett, com raízes no
século XVIII, para então proceder a um exercício de reflexão das condições do espaço público nas
cidades brasileiras. Parte-se de uma delimitação dos diversos significado que o termo público assume em
diferentes fases históricas para em sequência desenvolver uma genealogia das esferas públicas clássica,
medieval e moderna, sendo então possível descrever suas implicações em uma categoria cara aos
arquitetos; o espaço. Entende-se que o espaço público é o espaço do encontro das diferenças e que é nele
que o convívio entre diferentes irá possibilitar o exercício do diálogo, da tolerância e, portanto, da
construção de uma sociedade mais democrática e civilizada. Este trabalho conta com o fomento da
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Palavras-chave: Espaços públicos; Esferas públicas; Sociabilidade; Arquitetura.
Abstract: Gated communities and its derivatives emerged in the last decades of the twentieth century,
under the pretext of protecting its residents from the chaos and dangers of urban life. This housing model
favors socialization in private, protected and economically homogeneous environment. From this finding,
it is intended to relate the emergence of these spaces with the transformation of the public sphere
described by Habermas and changes in sociability announced by Sennett, with roots in the eighteenth
century to then proceed to a discussion exercise of public space conditions in Brazilian cities. The paper
starts with a definition of the different meaning the term public assumes in different historical phases in
sequence to develop a genealogy of classic, medieval and modern public spheres, being then possible to
describe its implications in an expensive category architects; the space. It is understood that the public
space is the space of the meeting of differences and that it is the interaction between the different that will
enable the exercise of dialogue, tolerance and therefore the construction of a more democratic and
civilized society. This work was supported by CAPES.
Key-words: Public spaces; Public spheres; Sociability; Architecture.
1. INTRODUÇÃO
A partir da década de 1980, difundiu-se nas cidades brasileiras um tipo de habitação que até hoje
predomina na cartela de produtos das grandes construtoras atuantes no mercado habitacional. Trata-se do
modelo do condomínio fechado, verticalizado ou não, protegido por muros, cercas, circuitos de vigilância
etc.
Sob o pretexto de proteger seus moradores do caos da vida urbana e dos perigos da cidade, estes
empreendimentos têm se especializado em fornecer uma gama de espaços que emulam ambientes
urbanos: praças, áreas de contemplação, espaços verdes e por vezes uma gama de espaços de serviço e
lazer que são encontrados nos ambientes abertos da cidade. Este modelo de habitação tem por premissa,
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portanto, fornecer os espaços para uma sociabilidade privada, em ambiente intimista, de caráter
homogêneo no que diz respeito ao nível socioeconômico de seus moradores.
É a partir desta constatação que imaginamos ser possível relacionar a emergência destes novos espaços
com as transformações na esfera pública anunciadas por Sennett e que possuem raízes no século XVIII.
Estas transformações tiveram como consequência um declínio da vida pública como era conhecida
anteriormente, em que as interações entre estranhos eram baseadas em códigos bem definidos a partir da
associação entre a vida pública e o desempenhar de papéis. Representando, mantinha-se certa distância
entre os estranhos que era o fundamento de uma sociabilidade intensa. A partir do momento em que os
homens passaram a interagir publicamente sob parâmetros estritamente personalistas, esta sociabilidade
diminuiu.
O exercício de relacionar os elementos da arquitetura do modelo habitacional baseado na seleção e
autosegregação de seu público – os condomínios fechados – e a crise da cultura pública parte das
delimitações distintas que o termo “público” apresenta. A partir daí, reconstitui-se historicamente a
genealogia dos conceitos de esfera pública, desde a cultura clássica até a modernidade.
Em sequência, distingue-se o conceito de esferas e espaço público; distinção necessária para a correta
interpretação destas distintas categorias. Posteriormente, abordamos a relação entre as transformações já
anunciadas na esfera pública e seus efeitos no espaço público. Esta relação é desenvolvida com a
caracterização das transformações ocorridas nos séculos XVIII e XIX e a maneira como estas mudanças
impactaram a conformação de toda a sociedade ocidental.
Por fim, a caracterização das especificidades do espaço urbano brasileiro, caracterizado como
fragmentário e altamente segregado, faz a conexão entre os conceitos abordados ao longo do texto e a
emergência de uma arquitetura que os espacializa. Neste sentido, cabe olhar para as nossas cidades e
questionar que homem é esse que cada vez mais se retira do âmbito público da vida. Âmbito este que,
conforme Arendt lembrou, é o que define a humanidade enquanto tal.
O objetivo manifesto deste trabalho é o de descrever as transformações pelas quais o âmbito público
passou ao longo do tempo relacionando-o ao espaço que lhe acolhe em cada período. Desta forma,
pretende-se contribuir para o aprofundamento do debate acerca do papel do espaço público atualmente,
bem como dos obstáculos que enfrentamos para sua consolidação e valorização. Ao discorrer sobre as
nuances de significado dos termos “esfera pública” e “espaço público”, pretende-se contribuir para o
melhor entendimento dos problemas que envolvem estas categorias.
2. OS SIGNIFICADOS DE “PÚBLICO”
Às primeiras linhas de seu livro “Mudança estrutural da esfera pública”, Habermas dedica a tarefa de
delimitar os vários significados do termo “público” que, como ele demonstra, revela uma gama de
significados distintos provenientes de diferentes fases históricas.
Em linhas gerais, chamamos públicos “aqueles eventos que, em oposição às sociedades fechadas, são
acessíveis a todos” (HABERMAS, 2011, p. 94). Falar em edifícios públicos, no entanto, é falar em
espaços que abrigam instituições do Estado e que por isso são considerados públicos. Dizer que alguém
fez seu nome público ou falar em uma recepção pública também denota significados distintos ao termo.
Outro significado contempla o termo quando se propõe falar em opinião pública, no sentido abordado por
Habermas (2011) como uma esfera pública indignada ou informada. O sujeito dessa esfera pública é o
público como portador de uma opinião; a opinião pública. A publicidade, neste sentido, possui estreita
relação com essa função crítica desse público. No entanto, publicidade também teve seu sentido alterado
no contexto mais recente dos meios de comunicação de massa.
Arendt (2014) também delimita o termo sob duas óticas. Na primeira, o que é público é o que pode ser
visto e ouvido por todos. Essa presença do eu no mundo de outros é o que garante, para Arendt, a
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realidade do mundo e de nós mesmos. Na segunda ótica, o que é público é o próprio mundo “na medida
em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele” (ARENDT, 2014, p.
64).
O domínio público no sentido Arendtiano é o que, paradoxalmente, nos reúne na companhia uns dos
outros mantendo-nos afastados, sem que “caiamos uns sobre os outros” (ARENDT, 2014, p. 65). A
imagem de uma reunião em torno de uma mesa invocada por Arendt dá a correta dimensão da relação que
o domínio público estabelece entre as pessoas. A mesa, metaforicamente associada a esse domínio, é o
algo tangível que faz com que todos se relacionem, mantendo-os, no entanto, a certa distância e que, se
retirada, desfaz essa relação.
Segundo Sennett (2001), o termo “público” em inglês aparece pela primeira vez em torno do ano 1470 e
se identifica com o bem comum na sociedade. Um século depois o termo adquire o sentido do que é
manifesto e aberto à observação geral. No século XVII, a oposição entre os termos “público” e “privado”
ganha contornos próximos aos atuais.
No entanto, embora haja diversas nuances de significados que variaram e variam conforme a época e a
região, as discussões acerca do que é público e do que não é são muito anteriores e segundo Habermas
(2011) remontam a uma categoria clássica grega e que nos foi transmitida a partir de uma influência do
direito romano.
3. OS CONCEITOS DE ESFERA PÚBLICA
3.1. A esfera pública clássica
A ideia clássica de esfera pública, proveniente da experiência grega na pólis, baseava-se numa completa
distinção entre os assuntos comuns aos homens livres e ao que era única e exclusivamente de caráter
individual. A vida pública se desenvolvia na ágora, embora não estivesse necessariamente vinculada a um
local específico, sendo caracterizada em sua essência pelo diálogo (léxis) entre os cidadãos livres e em
sua ação comum (práxis) (HABERMAS, 2011).
Práxis e léxis constituem, dentre todas as atividades humanas, as únicas que podem ser consideradas
políticas – o que Aristóteles chamou de “bios politikos”. A este âmbito da vida – o âmbito da
comunidade (koinon) – o pensamento grego não apenas diferencia, senão opõe o âmbito daquilo que é
próprio ao indivíduo (idion), ou seja, privado. Arendt fala neste contexto em “duas ordens de existência”
nitidamente diferentes (ARENDT, 2014, p. 29)
Para Arendt, a “distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos domínios da família e
da política, que existiram como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da
antiga cidade-estado” (ARENDT, 2014, p. 34). É provável que o domínio público tenha se constituído às
custas do domínio privado; no entanto, ser um proprietário na pólis era um requisito básico para participar
do mundo público e por isso a integridade da esfera privada e dos limites da propriedade era sagrada.
Neste contexto, a esfera privada do lar se distinguia do ambiente público porque na esfera privada “os
homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e carências” (ARENDT, 2014,
p. 36). Habermas (2011) também aponta para essa característica da vida privada na pólis, afirmando que
nela repousa o reino da necessidade e transitoriedade.
Em oposição, a esfera pública era percebida pelos gregos como “o reino da liberdade e permanência”
(HABERMAS, 2011, p. 97). É no domínio público que a atividade política se desenvolve, ou seja, é nesta
esfera em que a humanidade enquanto tal se reconhece. A esfera pública helenística é o reino da
manifestação do que é de todos. Assim, estabeleceu-se o cerne do conceito de democracia, entendido
como o autogoverno político e autodeterminação, baseado na discussão pública (assembleia) ancorada no
uso da razão.
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3.2. A esfera pública representativa
Embora as categorias de público e privado tenham sido transmitidas para a Idade Média através do direito
romano, a oposição entre as esferas pública e privada não se deu aí como se deu no modelo antigo.
Habermas afirma que “não é possível demonstrar, com base em critérios institucionais, que na sociedade
feudal da alta Idade Média existia uma esfera pública como um domínio próprio separado da esfera
privada” (HABERMAS, 2011, p. 101). As relações de dominação, encarnadas principalmente na figura
do rei, são a própria representação do país e não constituem uma esfera de comunicação política.
Para Arendt, a distinção entre público e privado ainda existia de certa forma na Idade Média “embora
houvesse perdido muito de sua importância e mudado inteiramente de localização”. (ARENDT, 2014, p.
41). Após a queda do Império Romano, a Igreja Católica passou a oferecer aos homens “um substituto
para a cidadania antes outorgada exclusivamente pelo governo municipal”. (ARENDT, 2014, p. 41). No
entanto, esta reunião da comunidade sob a tutela da Igreja era completamente diferente das reuniões entre
os homens na pólis, uma vez que tratava essencialmente de assuntos extramundanos.
E Arendt prossegue:
Embora só com alguma dificuldade seja possível equacionar o público com o religioso,
realmente o domínio secular, sob o feudalismo, era inteiramente aquilo que o domínio
privado havia sido na antiguidade. Sua marca distintiva era a absorção de todas as
atividades na esfera do lar – onde tinham significação apenas privada – e,
consequentemente, a própria ausência de um domínio público (ARENDT, 2014, p. 41).
Em Florença, Paris e Londres, assimilada por uma cultura burguesa urbana mais recente e vinculada ao
humanismo, essa esfera pública representativa mostrou toda sua força; “o mundo de formação humanista
foi de imediato integrado à vida cortesã. O homem da corte, formado humanisticamente, começou a se
descolar do cavaleiro cristão” (HABERMAS, 2011, p. 106).
Ainda segundo Habermas:
Em comparação com as festas mundanas da idade média, ou até mesmo do
renascimento, a festa barroca já perdeu algo da publicidade no sentido literal. O torneio,
a dança e o teatro se retiram das praças públicas para os pátios, das ruas para os salões
do castelo. O pátio do castelo – que surgiu apenas na metade do século XVII e,
sobretudo com a arquitetura do século francês, espalhou-se rapidamente por toda a
Europa – possibilitou uma vida cortesã protegida do mundo exterior, assim como o
próprio castelo barroco, construído, por assim dizer, em torno do grande salão de festas.
Contudo, o traço fundamental da esfera pública representativa não apenas é mantido,
como também aparece de forma mais clara. [...] Também aqui o povo não está
completamente excluído, permanece presente nas ruas; a representação está sempre
destinada a um entorno, diante do qual ela se desenrola. Exclusivos eram somente os
banquetes burgueses para os notáveis, a portas fechadas (HABERMAS, 2011, p. 107).
A esfera pública representativa alcançou seu desenvolvimento máximo na corte de Luís XIV. Foi uma
sociedade aristocrática com fundamentos no Renascimento que não possuía mais uma dominação própria
para representar – no sentido feudal – e que, portanto, serve à representação do monarca. A polarização
dos poderes feudais – a Igreja, o principado, a nobreza – vai se reduzindo a elementos públicos ou
privados e assim, “as esferas públicas e privadas se separam em um sentido especificamente moderno”.
(HABERMAS, 2011, p. 109).
3.3. A esfera pública burguesa
Com o advento do capitalismo mercantil e financeiro, surgem os primeiros indícios de uma mudança na
ordem social vigente. É com a complexificação e a mudança de matriz do sistema produtivo que os
fundamentos da velha ordem de dominação e, portanto, da esfera pública representativa passam a ser
reestruturados.
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Estas mudanças ocorrem principalmente a partir do século XVI. Habermas afirma que “as companhias
comerciais passam a se organizar sobre uma base ampla de capital e não se contentam mais com
mercados que permanecem limitados, como os antigos empórios” e, portanto, “para satisfazer a
necessidade crescente de capital e repartir os riscos cada vez maiores, essas companhias logo adquiriram
a forma de sociedades por ações” (HABERMAS, 2011, p. 119). Estes mercados comerciais passam a
necessitar então de maiores garantias políticas e são institucionalizados. É neste processo que se
constituem os Estados nacionais modernos, que nas palavras de Habermas (2011) são em sua essência um
Estado fiscal.
Nestes Estados, a administração das finanças é o cerne da administração pública em geral. Com a
objetivação das relações de dominação, ocorre a gradual redução da esfera pública representativa e a
conformação de uma esfera pública em sentido moderno: a esfera do poder público. A esta autoridade
estatal pública, contrapõe-se a sociedade civil enquanto um conjunto de pessoas privadas.
A dimensão pública destas pessoas privadas, caracterizada pela oposição ao poder público enquanto
agente fiscalizador e regulador faz com que essa zona de contato entre os poderes seja então
problematizada. Segundo Habermas:
Como a sociedade contraposta ao Estado, por um lado, permitia claramente um domínio
privado separado do poder público, e, por outro, a reprodução da vida ultrapassa os
limites do poder privado doméstico, convertendo-se em assunto de interesse público, a
zona de contato administrativo contínuo se torna uma zona ‘crítica’ também no sentido
de que provoca a crítica de um público que discute mediante razões. (HABERMAS,
2011, p. 132).
O instrumento eleito por esse público para discutir criticamente as ações e processos de interesse geral
será o mesmo eleito pelo poder para tornar públicas as suas decisões: a imprensa. Esta complexa teia de
relações entre pessoas privadas que discutem publicamente e se contrapõem ao poder estatal configura a
esfera pública política burguesa.
4. ESPAÇOS DE MANIFESTAÇÃO DA(S) ESFERA(S) PÚBLICA(S)
A esfera pública clássica se reúne na ágora, sem, no entanto, estar necessariamente vinculada a um espaço
específico. Deve-se ponderar, no entanto, que a participação na esfera pública grega era condicionada por
alguns fatores, dentre os quais cabe destacar o imperativo de ser proprietário, homem, livre, não ocupado
de atividades estritamente necessárias à manutenção da vida.
Já a esfera pública representativa medieval tem as praças e ruas como seu local de manifestação,
principalmente em dias festivos, quando aparece diante do povo a figura do rei. A partir do século XVII
essa representação passa a ocorrer em um contexto menos “público”, nos pátios e salões dos castelos.
Ainda assim, neste caso o povo está presente, permanece nas ruas, porém como mero espectador. Como
lembra Habermas, “a representação está sempre destinada a um entorno, diante do qual ela se desenrola”
(HABERMAS, 2011, p. 108).
No período de transição entre a esfera pública representativa e a consolidação de uma esfera pública
burguesa, enquanto ainda permanecem os salões, surgem também nas cidades espaços próprios de
discussão pública, dentre eles os cafés. Outros ambientes de manifestação da esfera pública burguesa
também aparecem. Os teatros, concertos e museus passam a ter na discussão pública leiga seu meio de
apropriação. Com o crescimento urbano no século XVIII, aumentaram os lugares onde era possível que as
pessoas se encontrassem. Segundo Sennett (2001) é neste século que se construíram grandes parques
urbanos e ruas adequadas ao passeio de pedestres e que os cafés e depois bares e estalagens se
configuraram em centros sociais.
Em um período em que as informações passam a ser difundidas a partir da lógica de circulação da
mercadoria, obras filosóficas e literárias, além de artísticas, tornam-se em princípio universalmente
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acessíveis. Desta forma, contribuem para o esgotamento do modelo representativo de esfera pública, uma
vez que estas obras passam a ser interpretadas autonomamente e não mais dependem de intermediação
dos poderes aristocráticos e eclesiásticos para serem assimiladas. Este processo resulta em uma “abertura
fundamental do público” (HABERMAS, 2011, p. 152).
Embora o público que possuísse acesso à informação fosse ainda um público bastante restrito, uma vez
que a população letrada correspondia a uma ínfima parcela da população em geral, a institucionalização
de uma esfera de discussão em que as diferenças socioeconômicas eram momentaneamente suspensas
deve ser destacada. Nas palavras de Habermas:
[...] não que nos cafés, nos salões e nas sociedades essa ideia de público tenha se
realizado a sério, mas com eles ela é certamente institucionalizada como ideia e,
portanto, foi posta na qualidade de pretensão coletiva e, nessa medida, foi operante,
mesmo que não tenha se tornado realidade efetiva (HABERMAS, 2011, p. 150).
4.1 Esferas públicas e espaço público
É fundamental destacar, a esta altura, que há uma clara distinção entre “esferas públicas de vida” e
“espaços públicos”. Embora as manifestações das esferas públicas não dependam exclusivamente dos
espaços públicos para ocorrer, tendo nestes espaços seu local privilegiado de ação, ambos encontram-se
atualmente em crise e há indícios suficientes para imaginar que a decadência de ambos tenha alguma
relação.
Para Sennett, a vida pública hoje se tornou questão de obrigação formal, em que “intercâmbios rituais
com estranhos são considerados, na melhor das hipóteses, como formais e áridos e, na pior, como falsos”.
(SENNETT, 2001, p.16). Como efeito desta obrigação formal, a pessoa estranha é vista como ameaçadora
e são poucos os que conseguem sentir prazer na grande cidade, ambiente mais que propício para o
encontro entre estranhos.
Este declínio da sociabilidade na sociedade moderna e contemporânea tem suas raízes, segundo Sennett
(2001) no século XVIII e por consequência requalifica e refuncionaliza os espaços públicos.
5. TRANSFORMAÇÕES NA SOCIABILIDADE: SÉCULOS XVIII E XIX
O século XVIII conheceu uma sociabilidade intensa que é paradoxal. À crescente complexificação das
relações sociais e econômicas, a sociedade da época respondeu com códigos muito bem definidos
baseados na relação entre a atuação no palco do teatro e a rua. A representação de papeis através de um
sistema de discurso que não se fundamentava em símbolos de significação como estrato social, origens,
gostos, etc. era o instrumento que permitia essa sociabilidade intensa em um mundo cada vez mais
desconhecido e temido.
Estas regras de representação tinham como finalidade que as informações trocadas “fossem as mais
completas possíveis”. (SENNETT, 2001, p. 108). Experimentava-se assim uma sociabilidade (nos cafés,
por exemplo) sem que se revelassem sentimentos próprios, histórias pessoais ou posição social.
Este código, de acordo com Sennett (2001) foi ameaçado por duas frentes em meados do século XVIII: o
clube e o passeio a pé. Nos clubes, a ideia era a de que o discurso seria mais prazeroso quando a plateia
fosse selecionada. Assim, o que passava a interessar não era exatamente o que estava sendo dito, senão
quem o estava dizendo. Isto tornou o fluxo de informações fragmentário.
O passeio a pé no século XVIII, por outro lado, também representou um desafio aos padrões de discurso
proferidos nos cafés, bares e teatros. Andar pela cidade passou a se tratar, mais do que de se ver
panoramas urbanos, em uma questão de ver e ser visto. Em cidades como Londres e Paris, em que as ruas
eram ainda um grande emaranhado de vias pequenas e sujas, uma nova instituição se mostrou necessária a
esta atividade: o parque público. A característica deste novo tipo de encontro era a fugacidade e com isso
germinou a ideia do silêncio quando em público.
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Embora o século XIX aparentemente apresente um crescimento da vida pública, de acordo com Sennett
(2001) o que ocorreu foi justamente o contrário. A cidade, aos poucos, foi deixando de ser uma cultura
pública nos termos anteriormente definidos. Tanto em Londres quanto em Paris, por motivos distintos, o
crescimento da cidade fez com que seus habitantes perdessem o contato funcional que tinham uns com os
outros.
Em Paris, Haussmann propõe um plano que tem por resultado uma esquematização da cidade e uma
tendência a produzir comunidades economicamente mais homogêneas. Londres passa por um processo
semelhante de homogeneização de vizinhanças em decorrência de sua extensão urbana, com áreas
segregadas por meio de grandes distâncias.
Desta forma, comunidades relativamente homogêneas, surgidas de um processo de racionalização nestas
cidades, alteraram significativamente a forma como as pessoas percebiam a cidade e se relacionavam
entre si no ambiente urbano – o estranhamento entre as classes passa a ser a base de suas relações –
modificando completamente a experiência da vida pública.
6. NARCISISMO, COMUNIDADE E SEGREGAÇÃO
Segundo Sennett (2001), os termos cidade e civilidade possuem uma raiz etimológica comum.
“Civilidade é tratar os outros como se fossem estranhos que forjam um laço social sobre essa distância
social. A cidade é esse estabelecimento humano no qual os estranhos devem [...] se encontrar”.
(SENNETT, 2001, p. 323). Falar, portanto, em incivilidade é falar no termo inverso, ou seja, “é
sobrecarregar os outros com o eu de alguém”. Este comportamento é do tipo narcisista.
Outro princípio derivado deste comportamento narcisista é o sentido de comunidade. Neste caso, ele
ocorre pela “crença de que quando as pessoas se abrem umas com as outras, cria-se um tecido que as
mantém unidas”. (SENNETT, 2001, p. 274). É uma maneira de afirmar quem somos “nós”. Esta
identidade comunal é formada “quando um grupo se acha ameaçado em sua própria sobrevivência [...]”.
(SENNETT, 2001, p. 275). A comunidade, como um objetivo social, foi perseguida por diversos
movimentos do urbanismo, desde as cidades-jardim inglesas ao pensamento de Camillo Sitte.
Atualmente, para Sennett (2001), reconhecendo a limitação de sua atuação e sua falta de influência
política, os planejadores também passaram a conceber seu trabalho em um nível comunitário. No entanto,
ao contrário da geração de Sitte que concebia a comunidade dentro da cidade, o urbanista de hoje concebe
a comunidade contra a cidade.
Como a função primordial da comunidade é a de vigilância e proteção, questiona-se: proteção contra
quem? Segundo Sennett (2001), contra o imaginário da multidão. Este imaginário atual é uma extensão da
ideia de isolamento e silêncio em público do século XIX, em que a multidão é o local do “homem-animal
libertado de suas rédeas” onde “as paixões dos homens são o mais espontaneamente exprimidas”.
(SENNETT, 2001, p. 364).
Na medida em que, no século XIX, as pessoas que expressavam seus sentimentos publicamente eram
vistos como subclasses e desajustados sociais, este imaginário da multidão incontrolável adquire um forte
caráter de classe. Este é o elo que une o medo da multidão ao pretenso perigo das classes inferiores e que
irá se refletir na constituição ideológica da comunidade como possibilidade de salvação.
7. IDEOLOGIA E SEGREGAÇÃO NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO
Quem caminha atualmente pelas grandes e médias cidades brasileiras constata na prática os efeitos do
avanço deste sentido de comunidade, que se manifesta no espaço urbano através de diversos níveis de
segregação.
Para Villaça (2001), os processos de segregação, voluntários ou não, são a expressão do caráter de luta de
classes que a ocupação do território urbano possui, afirmando que “a segregação é um processo dialético,
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em que a segregação de uns provoca, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo, a segregação de outros”
(VILLAÇA, 2001, p. 148).
As especificidades dos processos de urbanização brasileiros são conhecidas. Enorme desigualdade social
e consequente desigualdade no acesso ao mercado formal de habitação, predominando a concentração de
recursos em áreas bem estruturadas enquanto outras carecem das assistências mais básicas. Neste sentido,
Maricato (2012) fala em planejamento urbano como um instrumento de dominação ideológica.
Milton Santos define a cidade de São Paulo como “o melhor exemplo de uma modernidade incompleta”
(SANTOS, 1990, p. 14). A cidade disso resultante possui uma paisagem fragmentada. De acordo com
Caldeira (2000), São Paulo conheceu, ao longo do século XX, três padrões de segregação espaço-social: o
primeiro segregava as diferentes classes sociais em uma área urbana pequena por tipos de moradias. O
segundo, a partir da década de 1940, separava as diferentes classes sociais através de grandes distâncias,
com as classes mais altas habitando o centro bem estruturado da cidade. O último padrão se dá a partir da
década de 1980, com os diferentes grupos sociais habitando espaços próximos, mas separados por muros
e tecnologias de segurança, de forma que não circulem ou interajam em áreas comuns. O principal
instrumento deste novo padrão de segregação espaço-social é o que Caldeira chama de “enclave
fortificado”.
Este modelo de empreendimento imobiliário, ao enfatizar o valor do que é privado e restrito, desvaloriza
o que é público e aberto na cidade (CALDEIRA, 2000). O conceito de civilidade, presente em Sennett
(2001) também aparece em Caldeira (2000) como impossibilidade em uma sociedade que trata as
questões públicas em termos personalistas e desencoraja a sociabilidade e o encontro entre estranhos.
8. ESPAÇO PÚBLICO PARA QUÊ?
Ao falar em esfera pública, seja em sua concepção clássica, medieval ou burguesa, falamos
inevitavelmente em uma categoria política. Neste sentido, discutir contemporaneamente as relações entre
o espaço – público ou não – e este domínio da vida é discutir também a sociedade e suas práticas.
Os espaços de manifestação da esfera pública atualmente estão reduzidos. Embora novas mídias virtuais
surjam como possibilidade de espaço da discussão política, observa-se nelas a reprodução da mesma
lógica de segregação manifesta no espaço urbano, através de comunidades homogêneas que pouco
interagem entre si.
Neste sentido, o espaço urbano é didático. Ao reforçar e difundir uma ideologia do privado e da
comunidade desencorajam o encontro e a negociação entre diferentes em um nível impessoal.
Desencorajam, portanto, o exercício da política de forma civilizada e baseada no uso da razão como
fundamento das discussões dos problemas comuns.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As transformações ocorridas a partir do século XVIII na sociedade europeia tiveram alcance universal. As
novas formas de sociabilidade oriundas destas transformações alteraram a relação entre os homens de
forma estrutural e tiveram como consequência o declínio da vida pública enquanto instância de
negociação da sociedade entre si e com o poder público.
Na sociedade brasileira, marcada por desigualdades sociais e educacionais profundas, os efeitos destas
transformações parecem ainda mais agudos. A arquitetura produzida em nossas cidades reflete esta
condição. Valorizam através de seus discursos e de seu desenho aquilo que é privado e desvalorizam o
que é público. A possibilidade de interação entre estranhos é cada vez mais diminuída.
É urgente a necessidade de atuação em sentido inverso, em diversas escalas, para que o convívio entre os
diferentes seja valorizado e incentivado. O espaço público vibrante se faz vital para esse processo.
Entende-se que são nestes espaços, e não em outros, que o convívio entre diferentes irá possibilitar o
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exercício do diálogo, da tolerância e, portanto, da construção de uma sociedade mais democrática e
civilizada.
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos [2000]. Petrópolis: Vozes, 2012.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo:
Editora 34/Edusp, 2000.
HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: Investigações sobre uma categoria da sociedade
burguesa. São Paulo: Editora UNESP, 2014.
SANTOS, Milton. Metrópole corporativa e fragmentada: O caso de São Paulo. São Paulo: Editora Edusp, 1990.
SENNETT, Richard. O declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Estúdio Nobel, 2001.
11. AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo
apoio financeiro essencial para o desenvolvimento deste trabalho.
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