cadernos ufs - filosofia O FEDRO NA PERSPECTIVA DIALÓGICO-DRAMÁTICA DA FILOSOFIA DE PLATÃO Raimundo Araújo dos Santos mestre em filosofia pela PUC-SP Resumo: Este texto pretende mostrar como a perspectiva dialógica da filosofia platônica põe um critério peculiar de acesso à verdade. A verdade não é uma posição que se transmite de quem sabe para quem não sabe, mas uma descoberta, uma rememoração que se faz na ação dialógica. O Fedro é o diálogo exemplar, no qual aparecem as qualidades do amante do saber (Sócrates é o paradigma) que opõe a sua prática dialogal de busca da verdade, que supõe acordo e conhecimento da alma do interlocutor, àquela dos retóricos (Lísias é o modelo) que impõem ao ouvinte uma verdade pronta, forjada segundo as regras de fabricação de discursos. Palavras-chave: retórica, discurso, verdade, diálogo, saber. Abstract: This text intends to show how the dialogical perspective of the platonic philosophy puts a peculiar criterion for accessing the truth. The truth is not a position that is transmitted about who knows to who doesn’t know, but a discovery, a remembrance that is done in the dialogal action. The Phaedrus is the exemplary dialogue in which appears the lover of the qualities of knowledge (Socrates is the paradigm) that opposes his dialogical practice of searching the truth that supposes agreement and knowledge of the speaker against that of the rhetorical master (Lysias is the model) that imposes to the listener a ready truth, wrought according to the rules of production of speeches. Key-Word: rhetoric, speech, truth, dialogue, knowledge. 73 cadernos ufs - filosofia 74 Conhecer Platão seja a partir do que dizem as diversas interpretações com as mais diferentes orientações, seja a partir de um mergulho em seu próprio pensamento, por meio da investigação da sua própria obra, não poderá ser uma tarefa com bom êxito se não se tomar como pressuposto de análise a perspectiva dialogal da sua filosofia. Não se trata de querer encontrar novidade sobre um Platão já tão estudado e, por assim dizer, já tão conhecido, mas de seguir o próprio caminho deixado por ele e a partir daí colher as suas intenções. Quando dizemos intenções de Platão, estamos querendo indicar que, num diálogo dramático em que os personagens, as situações e as circunstâncias são reais, não podemos colher senão indiretamente o que quer e o que pensa Platão, que quase nunca aparece nos diálogos dos quais ele mesmo é o autor. Por isso, a nossa ocupação nessas próximas páginas será a busca de algumas das razões que levaram Platão a confiar o seu pensamento à forma de expressão dialogada, e sobre esse pressuposto construiremos as bases de compreensão do Fedro. Não pode ser mero recurso decorativo a perspectiva dramática a que Platão submete os temas que discute. A adesão a essa opção deixa de lado a possibilidade da apresentação teórica que será criticada no Fedro por distanciar o interesse da investigação do ser mesmo das coisas, da verdade, e afastar o homem do conhecimento de si mesmo. Longe da perspectiva teórica, o diálogo platônico situa os problemas discutidos em um cenário vivo no qual é preciso levar em conta o contexto histórico, o conhecimento do lugar e os personagens que o compõem. Tudo tem seu lugar e exerce uma função que com igual força concorre para a compreensão do tema discutido. Toda palavra, todo gesto, cada mínimo detalhe têm significativa importância dentro do contexto em que se dá. O Fedro é o diálogo em que a intenção de Platão aparece de forma mais evidente no sentido de nos mostrar que a forma dialógica é a mais apta a traduzir o que ele apanhou do dinamismo da vida filosófica de Sócrates, figura a partir da qual é construída a quase totalidade dos diálogos. Se Platão confiou a sua filosofia à forma dialogada com um caráter dramático, então, não é despropositado dizer que esse é o único meio de apanharmos com segurança as suas intenções confiadas aos seus escritos. Como todo diálogo platônico, o Fedro é um drama, e dos melhores. Entendido a partir dessa perspectiva, a intenção de Platão na determinação do interesse do diálogo jamais pode ser negligenciada, mas para apanhá-la é preciso trilhar com ele seu caminho dramático. O motivador direto da construção do diálogo Fedro é o discurso de Lísias, mas o que está no fundo sustentando toda a discussão é a Retórica. Portanto, o que o diálogo mostrará como sendo a intenção de Platão dirigida para seu leitor é a questão da arte do discurso e o seu papel na vida do homem. A questão central sobre a qual Platão lança o foco do interesse não poderia deixar de ser a retórica, porque o personagem Fedro, o discurso de Lísias, o próprio Lísias, a direção da abordagem dos outros temas (memória, Eros, cadernos ufs - filosofia alma, dialética), todos os outros personagens secundários, indiretos e o próprio Sócrates no papel que assume aí (como mestre condutor de almas), remetem a ela. Quando tomamos o Górgias para uma breve comparação com o Fedro, podemos perceber o quanto é importante levar em conta a intenção de Platão na determinação do interesse de cada diálogo. O Górgias, como todos admitem, trata da retórica, e o Fedro, embora não haja total acordo sobre isso1, também trata da retórica. Porém, entender por que dois diálogos de Platão tratam do mesmo tema e são diferentes em seu conteúdo é um problema que o caráter dialogal e dramático da sua filosofia nos fornece com suficiente segurança a solução. No Górgias, a discussão se passa na casa de Cálias, um dos ricos magnatas de Atenas e anfitrião de Górgias, o famoso orador e embaixador de Leontini. Górgias está vindo da sua demonstração retórica para os numerosos convidados de Cálias. No desenvolvimento do diálogo, cada uma das três partes da conversação se dá entre Sócrates e Górgias, Sócrates e Pólo, e Sócrates e Cálicles. Apenas essa configuração já é indício da intenção peculiar de Platão ao abordar a retórica. Górgias é considerado um grande pai de larga parte dos discursos retóricos que se reproduzem em Atenas; Pólo e Cálicles são considerados a expressão maior dos efeitos da ação educativa de Górgias. Porém, aí, Platão não está interessado na natureza da retórica em quanto tal e no seu legítimo detentor, mas apenas mostrar porque Górgias não está certo ao dizer que retórica é uma arte (téchne)2. A discussão no Górgias coloca à prova o mestre e os discípulos num elemento muito simples para quem se diz entendedor das coisas, como Górgias: conhecer para além da prática a própria arte. Tanto Górgias quanto seus pupilos não sabiam em que consistia verdadeiramente a arte retórica, pois confundiam-na com uma mera técnica de produção de discursos para controlar e guiar os interesses das pessoas. O caráter crítico do Górgias, portanto, tem um limite bem patente: a intenção de Platão não é mostrar para seu leitor o que se deve entender sobre a Retórica, ou, em outras palavras, fazer a exposição de uma doutrina propriamente platônica sobre a única arte do discurso. Platão quer mostrar que Górgias não sabe em que consiste essa arte e, ao confundi-la com outra coisa, não pode fazer bem para aqueles que com ele aprendem. Tal é o que fica evidente no caráter ou conduta de Pólo e Cálicles3, como Platão faz questão de chamar atenção pelo 1 2 3 Cf. a significativa posição de Reale sobre essa discussão. Não pretendemos fazer uma demonstração minuciosa do conteúdo do Górgias, porque esse não é o nosso objetivo, mas apenas intencionamos apontar, numa visão ampla, que, segundo a perspectiva dramática, cada intenção deve ser colhida do contexto de cada diálogo, o que justificaria o argumento de que a retórica no Górgias e a retórica no Fedro são coisas absolutamente diferentes, visto que Platão tem intenção absolutamente diferente em sua abordagem. Como estamos chamando atenção para o caráter dramático dos diálogos de Platão, é importante mencionar o fato de que Cálicles é um dos dois únicos personagens (o outro é Diotima) a respeito do qual não se sabe da existência histórica. Porém, se nos diálogos, nenhum acontecimento é fortuito, nenhum personagem aparece por acaso, resta saber qual a intenção de Platão com estes personagens desconhecidos. Mas deixemos isto para outro momento. 75 cadernos ufs - filosofia destaque que dá. Pode-se percorrer o Górgias do início ao fim que não se encontrará aí uma posição de Sócrates que não seja crítica da visão que tem Górgias, Pólo e Cálicles da retórica como uma arte, ou como a arte do discurso. Quando Sócrates deveria definir retórica, ele inverte sua posição com Pólo e não diz o que pensa sobre a retórica mesma, mas o que acha da retórica tal como Pólo lhe perguntou. No Fedro, chama-nos a atenção a ausência pessoal de Lísias e o fato de Fedro portar o discurso do seu mestre. Se, no Górgias, a presença de Górgias é indispensável para viabilizar a intenção Platão, no Fedro, isso acontece com a ausência de Lísias. Platão não pretende repetir o que já fez no Górgias: mostrar para seu leitor que Lísias está errado, criticando sua postura sobre a retórica, para o que seria necessária a sua presença, mas mostrar por meio da relação entre Sócrates e Fedro em que consiste a arte do discurso e quem pode ser o seu legítimo detentor. O papel do discurso nesse drama parece ser ainda mais elucidativo quanto à intenção de Platão em colocar a natureza da retórica no centro do debate. Os mestres de retórica, os políticos, confiavam a educação dos seus discípulos e do povo aos seus escritos, por isso mesmo é que o discurso escrito tem lugar de destaque como personagem dramática no diálogo. A intenção de Platão, ao enfatizar o discurso escrito, é mostrar o quanto os mestres de retórica estão distantes do significado e da prática da arte do discurso, a retórica. O Fedro há de expor sobre os elementos constitutivos da retórica, seu objeto e seu fim. A natureza não crítica do diálogo é também indício da intenção de Platão de tratar da natureza da retórica. As poucas referências à retórica como era praticada e entendida pelos retóricos, em geral, acontece devido ao caráter dramático do diálogo que torna isso inevitável. Fedro tem a sua própria opinião e não entende que Sócrates esteja falando da natureza da arte do discurso como uma coisa diferente da retórica com a qual está acostumado: então, Sócrates não pode proceder sem levar em conta a posição em que se encontra seu interlocutor. Mas isso não confere ao diálogo um caráter crítico. No Górgias, no andamento da discussão, o próprio Górgias e seus discípulos são reduzidos ao silêncio, cada um ao seu turno, antes por vergonha que por um erro de raciocínio em conceder a necessidade de abandonar suas premissas4, a saber, que a injustiça é preferível à justiça e que não há vergonha em procurar a vantagem própria à custa dos outros. Estas posições em Pólo e Cálicles revelam que a prática de Górgias não poderia produzir neles outro efeito, visto que o que aprenderam não se trata nem da prática nem do entendimento da arte do discurso enquanto tal. Pólo e Cálicles empenham toda sua prática em agradar a si mesmos contra a justiça, contra o bem, contra os deuses. No Fedro, o mestre é Sócrates que, depois de ter conduzi- 76 4 Cf. Samuel Scolnicov, Como ler um diálogo platônico, in Hipnos 8 , n. 11, 2003, São Paulo, p. 49-59. cadernos ufs - filosofia do Fedro por meio da prática correta do discurso, obtém os seguintes resultados: ao deixar-se conduzir, Fedro não tem vergonha de abandonar a posição que sustentava antes de ouvir Sócrates. E não se trata apenas de mudar de posição. Trata-se de, ao fazer o caminho, ele mesmo, descobrir em que consiste a única arte do discurso: querer a verdade, amar a sabedoria, agradar aos deuses. O caráter dramático dos diálogos de Platão se reveste de uma importância que, talvez, ainda não tenhamos alcançado a profundidade, mas que, com toda certeza, não pode ser deixado de lado como um caminho para conhecermos Platão. O diálogo de Platão é uma peça de teatro que avança passo a passo. A leitura e o entendimento devem ser feitos também de modo seqüenciado, na ordem em que ele se desenrola. Sendo assim, uma exigência se impõe como indeclinável: seguindo esse viés, nenhum matiz pode ser deixado de lado. Mas não é o que estamos acostumados a ver nas leituras sobre Platão. Todos os esforços têm se orientado no sentido de compreender a configuração formal seja das palavras, seja dos textos. Mas em Platão, a caráter dramático dos seus diálogos exige que participemos da cena, que nos situemos no seu desenvolvimento e que acompanhemos as mudanças dos personagens. Só assim poderemos entender porque o sentido de uma frase pronunciada por alguém no começo do diálogo pode ser ou não ser o mesmo para ele (ou para seu interlocutor) após umas quantas páginas de conversação. Uma boa ilustração disso pode ser o começo e o fim do Protágoras onde Sócrates e Protágoras trocam de posição. Chama-nos a atenção os diferentes modos pelos quais cada um deles entende “conhecimento” e “ensino”, à medida que o diálogo avança. Protágoras reconhece que o conhecimento é o que há de mais nobre no homem. Mas bem cedo aparece que o conhecimento a que ele está se referindo é um conhecimento meramente instrumental cuja função é servir às emoções. No Fedro, Sócrates concede que Péricles tenha sido o mais perfeito de todos na arte oratória5. Fora do contexto dramático, isso pode parecer confuso, se estivermos seguindo Sócrates e buscando com ele o amigo da sabedoria. Mas, se Péricles exibe as qualidades do mais perfeito dos oradores, não pode ser aquele que tem todas as qualidades do sábio, como Sócrates observa do início ao fim do diálogo. E nem precisamos recorrer a outros diálogos (Ménon, Górgias) para entender que Péricles não está sendo evocado como o modelo do sábio6. A concessão de tais qualidades a Péricles se dá dentro do contexto da pergunta de Fedro que quer saber quem melhor reúne as qualidades daqueles que se dizem senhores do discurso e pretendem ensinar aos homens. Assim, o caráter dramático do diálogo platônico põe como exigência fundamental nunca examinar proposições em si 5 6 Cf. Platão, Fedro 269e – 270a. Haveremos de desenvolver este assunto na seqüência do trabalho, quando deveremos falar da importância que cada um tem para o bem da cidade mesmo não sendo sábio. 77 cadernos ufs - filosofia mesmas e desligadas de quem as propôs. Sócrates nunca responde antes de entender o sentido que seu interlocutor dá à pergunta que faz. Por exemplo, falando a Fedro, Sócrates não diz aquilo que ele acha que Fedro deve aprender, mas conduz-se com ele pelo caminho do lógos por onde ele é capaz de, por si mesmo, descobrir a verdade. No começo do diálogo, Sócrates cede a Fedro quando este propõe que Sócrates participe do mesmo jogo em que os retóricos estão acostumados a instruir seus seguidores e o povo. A imagem é muito viva. Sócrates cede depois de ter sido ameaçado de perder a possibilidade de ganhar uma alma para a filosofia. Sócrates não pode perder a amizade de uma boa alma como a de Fedro. Subjaz aí outra intenção de Platão: mostrar que o filósofo nunca deve renunciar à sua missão como amante do saber. Sua missão é divina, desprovida de inveja, por isso, sua preocupação é que todas as almas (as que demonstrarem tino filosófico) também amem o saber. Conhecendo a alma de Fedro, Sócrates jamais poderia perder a oportunidade de ganhá-la para a filosofia, mesmo que para isso ele fosse obrigado a jogar o jogo dos retóricos. Felizmente, Sócrates tem aquelas qualidades do sábio que lhe permitem descobrir os erros cometidos e a capacidade de corrigi-los antes que eles causem algum mal. Aqui podemos nos remeter a outros diálogos (Cármides, por exemplo), em que Sócrates, discorrendo sobre a posse de um conhecimento, diz que somente quem conhece e quem sabe é que pode errar. Em contrapartida, somente quem está consciente a respeito da exata causa do seu erro pode adotar o correto meio de repará-lo: condição que estava presente em Estesícoro, mas ausente em Homero7, algo para o que Platão chama atenção. A referência a esses dois representantes da sabedoria é mais uma vez indício da intenção de Platão de nos remeter ao caráter divino da missão do sábio. O sábio não pode confiar de modo exclusivo a garantia do conhecimento à sua humanidade, sob pena de cometer os piores erros, e Sócrates tem aquela voz divina que lhe guia e lhe impede de desviar-se do caminho da verdade. Voltando ao nosso assunto da adequação das palavras aos contextos em que elas devem ser significadas, é importante atentar para aquilo a que Platão sugere que devemos entender: as palavras em si não têm sentido. A isso ele dedica atenção exclusiva no Crátilo e pode ser visto também no contexto do Eutidemo. No Fedro, aparece quando Sócrates critica Lísias por ter tirado o discurso da própria cabeça. O que Platão nos faz entender no seu modo dialogado de filosofar é que são as pessoas que dão sentido às palavras por meio de suas próprias almas. Disso decorre uma outra importante conseqüência para a filosofia platônica: as ressalvas que Platão tem à lógica formal, pois, como ele pensa, ela se baseia sobre a suposição que as proposições podem ser destacadas do seu contexto dinâmico, vivo, conjugadas umas com as outras, comparadas entre si, e assim produzir novas proposições. Mas, no diálogo platônico, que procura reproduzir a vida aproximando-se tan- 78 7 -Cf. Platão, Fedro, 243a. cadernos ufs - filosofia to quanto lhe é possível do seu fluxo dinâmico, as palavras não mantêm seu sentido de um interlocutor a outro, e o mesmo locutor em tempos diversos pode usar a mesma palavra de modo ligeiramente diferente ou mesmo totalmente diverso. É verdade que, idealmente, as palavras devem ser estáveis, unívocas. É o que Sócrates quer atingir ao exigir definições; é ao que Sócrates está referindo ao falar da pesquisa da natureza no Fedro. Mas não é o que acontece enquanto prosseguimos por opiniões confusas e semi-entendidas. E mais ainda: segue-se que palavras por si não podem transmitir sentido. É talvez, segundo esta perspectiva, que podemos entender também a crítica que Sócrates faz à escrita no Fedro. Supondo que Sócrates tivesse encerrado seu encontro com Fedro após o seu primeiro discurso, o que poderia acontecer? Fedro ficaria persuadido pelo discurso de Sócrates, ergueria uma estátua em sua homenagem, como prometido, mas apenas teria participado de mais um lance do jogo, e não se sabe quanto tempo duraria até aparecer outro discurso para substituir o seu entusiasmo pelo discurso de Sócrates. Podemos entrever aqui mais uma intenção de Platão: mostrar que não se aprende memorizando mecanicamente como Fedro queria fazer com o discurso de Lísias (uma das exigências básicas da retórica). O próprio Sócrates deixa entender que, das coisas que ele leu ou de que ouviu falar, não mantém memória significativa, e nos leva a compreender, no desenvolvimento do diálogo, que não se trata de memorizar definições, não se trata de guardar de cor conceitos de conhecimentos, não se trata de juntar informações. Ao propor outro discurso para reparar aquele primeiro, Sócrates está dizendo que não entende a aprendizagem como a entendem e praticam os retóricos: Sócrates está mostrando que ensinar não é dizer o que é a verdade. É também intenção de Platão nos fazer perceber que não se pode ensinar diretamente a verdade, porque a sua aquisição é uma descoberta que resulta do nosso próprio esforço, do trabalho da nossa alma. Isso está diretamente ligado a outro ponto importante que vai entrar na composição da qualidade do sábio, a saber, a verdade tem que ser lembrada, mas não é um lembrar de algum conteúdo que antes não estava na memória e que foi imposto a ela, vindo de fora, como o conteúdo do discurso de Lísias que Fedro estava repetindo. É interessante ver como a metáfora do jardim de Adônis, usada como ilustração da crítica à escrita, na parte final do diálogo, lança seus efeitos também sobre as conversas iniciais. Pois quem acha que ensinar é fazer decorar um discurso é como semear no jardim de Adônis: haverá de ver seu discurso ser esquecido tão logo apareça um concorrente mais forte. No jardim de Adônis, as sementes são preparadas para nascer viçosas, chamar atenção, mas o seu viço dura apenas o curto tempo de uma festa. O entusiasmo de Fedro com o discurso de Lísias durou até Sócrates fazer o seu discurso, porém ao final de tudo a sua alma não precisará ser submetida à violência da guerra dos discursos retóricos que vão criando e matando incessantemente os entusiasmos nos seus ouvintes. O entusiasmo que Fedro adquirirá na relação com Sócrates terá duração permanente. 79 cadernos ufs - filosofia Os discursos retóricos podem até fazer as relações entre as pessoas funcionarem de algum modo, mas não é a verdade acerca de como, verdadeiramente, o conhecimento se dá. Não se pode ensinar a ninguém o que é a verdade, sem que isso resulte em dogmatismo. Porém, a posição platônica não pode ser considerada um subjetivismo, como bem explica Samuel Scolnicov8 quando diz que a verdade para Sócrates não pode vir de fora, mas que ela não é subjetiva. Ela está aí para ser vista, mas não se pode ver por outrem. Ele entende ainda que Sócrates só possa nos livrar dos nossos preconceitos falsos ou confusos, e esperar que, se nada nos impede, cheguemos a ver a sua intenção. E é isso que Platão segue em toda sua obra, mas que expressa de maneira mais direta na Carta Sétima ao referir-se à aquisição da verdade que “Não é uma ciência como qualquer outra, que se possa aprender. Mas após muito tempo passado em comum, uma centelha passa de uma alma a outra, e acende uma flama que daí em diante se alimentará a si mesma”9. O Caráter dramático dos diálogos de Platão tem, portanto, esta mensagem: que aprendamos que o verdadeiro conhecimento é profundamente pessoal (mas que não é subjetivo) e que, por sua vez, as palavras não são significativas por si mesmas e, portanto, sozinhas não transmitem sentido. Sócrates não pode dizer a ninguém o que é a verdade, apenas pode ajudar a pessoa a descobri-la. De outro modo, o conhecimento não seria relembrar, que é um trabalho da alma em que ela se afirma em sua autenticidade. O Fedro é um exemplo do porquê Sócrates não pode comunicar o sentido da verdade diretamente, pois, vinda de fora para dentro, a verdade não tem raízes: sem sustentação, como as plantas do jardim de Adônis, facilmente fenece. Portanto, jamais Sócrates pode falar diretamente para alguém o que ele acha que é a verdade, pois para que ela seja firme e duradoura deve ser uma descoberta da própria pessoa, ainda que para isso ela precise de ajuda. É por meio dessa ajuda, pela qual se dá a aprendizagem filosófica, que Sócrates mostra toda a sua competência e sabedoria, algo que aparece bem delineado ao longo do Fedro. Platão viu no diálogo socrático um grande potencial e, tendo-o adotado, elevou-o à condição de meio de expressão da Filosofia que não inibe a capacidade de quem dele participe para tornar-se também filósofo. Como Sócrates, Platão entendeu que, para não violentar a liberdade de conhecer de cada um, é preciso começar de onde está o seu interlocutor. Fedro está entusiasmado com Lísias e Sócrates não resiste a isso, pois que poderia perdê-lo, mas entusiasma-se com ele, situa-se na sua condição, pois só assim poderá ajudálo a sair de lá. Por causa do conhecimento que Sócrates tem da alma de Fedro, ele consegue ajudá-lo, assim como fez com Glauco, na República e 80 8 9 Cf. Como ler um diálogo platônico, in Hipnos 8, n. 11 2º. Sem. 2003, São Paulo, pp. 49-59. Platão, Carta Sétima, 344b, trad. de Samuel Scolnicov. cadernos ufs - filosofia com Símias, no Fédon. Como é que Sócrates pode conhecer a alma de alguém? É exatamente pelo diálogo. Pelo diálogo, Sócrates pode despertar nas almas a busca pela verdade, como também pode descobrir que algumas almas não têm disposição para a filosofia. O pressuposto socrático é aceitar sempre o ponto de vista do interlocutor, fazendo dele o seu ponto de partida. Ao censurar alguns erros dos dois primeiros discursos, que tanto ele quanto Lísias cometeram, Sócrates começa seu discurso de elogio ao amor com uma pergunta que chama a atenção: “onde está o rapaz a quem dirigi o meu discurso?” “Quero que ele ouça também este discurso, e que por não haver me escutado, não se apresse em ir conceder os seus favores a alguém que não o ama”. E Fedro responde: “Esse rapaz está aqui perto de ti, pertíssimo, sempre que o desejares”10. Chama a atenção porque esse detalhe importante não está no discurso de Lísias, ou seja, Lísias não dirige seu discurso a ninguém especificamente. Esse é um grave problema do discurso escrito que Sócrates irá criticar ao final do Fedro, por isso faz questão de mostrar que seu discurso está sendo dirigido a Fedro. É de suma importância guardar que tudo que decorrer desse discurso deve levar em conta essa peculiaridade. Platão quer nos dizer que o discurso socrático que ele assume como seu meio de filosofar não é um instrumento para ensinar, ou seja, para impor uma doutrina. No discurso socrático, por seu caráter dialogal, só as premissas que são aceitas pelo interlocutor podem ser usadas11, nenhum passo pode ser dado sem acordo com o interlocutor. Mas é verdade também que o conhecimento da alma da pessoa permite ao interlocutor orientar o discurso para os pontos que devam ser aceitos por ele para que se mantenha a consistência na discussão12. Isso evidencia que há uma consciência viva no dialogar, o que possibilita evitar os erros. De outro modo, como Platão quer nos fazer entender, como o interlocutor poderia ajudar a alguém a descobrir a verdade se o caminho fosse feito às cegas? Isso nos remete à questão das qualidades do sábio que Sócrates expõe em pormenor no Fedro. Aprendemos aí que alguém, mesmo inspirado pelas musas, podendo fazer um belo discurso e estabelecendo conhecimentos necessários e importantes, não poderia escapar dos erros se não contasse com um método de correção do que conseguiu estabelecer. Assim, como Sócrates mostrará, a superioridade do seu discurso em relação ao de Lísias está sustentada no método da “divisão” e da “união”. Mas ele tem o cuidado de esclarecer para Fedro que o método só pode ser entendido e explicado dentro de um contexto significativo de uma conversa real. Em outras palavras, o método dialético platônico que Sócrates usou no Fedro não pode ser separado de seu contexto dialógico-dramático. Podemos 10 11 12 Cf. Fedro, 243 e. Cf. o Teeteto como exemplo de diálogo que se baseia exclusivamente nos pontos de vista do interlocutor. No Protágoras, Protágoras não aceita um ponto de vista, mas Sócrates se sente autorizado a continuar a conversação, pois Protágoras não foi capaz de oferecer um outro melhor. Protágoras não aceitou que “Todos os corajosos não têm medo” é conversível em “Todos os que não têm medo são corajosos”, cf. 349d-351b. 81 cadernos ufs - filosofia até dizer que, dentro do contexto do Fedro, o método dialético assume certa expressão cujo significado não pode ser separado daquela circunstância. O método dialético de Platão tira seu sentido de cada contexto em que seu uso é justificado. No contexto do Fedro é o exercício da divisão e da união que se justifica. Mas pode-se dizer que a dialética (platônica) seja o exercício da divisão e da união? Ela o seria se se tratasse de dividir e unificar sempre da mesma maneira13. Mas o texto do Fedro prova exatamente o contrário, pois a natureza da dialética não se revela senão em um exercício cujo contexto justifique a sua aplicação. Do mesmo modo que, na República14, Sócrates não pode oferecer a Glauco senão uma imagem do poder dialético, como a ciência do Bem, no Fedro também é mostrado como o seu poder foi exercido dividindo e unificando. Se temos como propriedade do método dialógico platônico a aceitação do ponto de vista do interlocutor como condição para começar o caminho para se alcançar a verdade, então não temos nos diálogos um porta-voz de Platão, e Sócrates não é uma exceção imediata. Mesmo nos diálogos médios e tardios, a discussão é sempre contextual, e tem de ser lida de tal modo: tudo o que é dito deve ser tomado como pronunciamentos em seus contextos inseparáveis de quem os pronuncia. A mesma perspectiva se aplica também à dialética. Como os diálogos platônicos têm um caráter dramático e o Fedro nos é apresentado diretamente nessa forma, o principal a se levar em conta é que aí Sócrates e Fedro são caracteres dramáticos com suas próprias fraquezas, opiniões e interesses. E, se é Sócrates quem está comandando o desenvolvimento da trama, ele o é como o Sócrates que conhecemos de Platão com sua ironia, com seu demônio e com seu cuidado consigo: alguém que está ocupado em conhecer-se a si mesmo, alguém que não pode ensinar os outros. Platão se serve de Sócrates muitas vezes, deixando-o ser o contador de histórias para poder tirar vantagens de sua posição privilegiada de narrador que controla a história15. No Fedro, Sócrates faz seu discurso como Fedro o obrigou a fazer e, como o próprio Sócrates faz notar, Fedro o aceita prontamente como o melhor de todos os discursos. Com Sócrates, Platão tem a oportunidade de nos falar dos males (paranomias) que afetaram a educação filosófica, além de nos mostrar a importância dos modos de saber fora do âmbito filosófico. Mas aquilo que ele pretende deixar mais claro é a figura do sábio, ou melhor, do amante da sabedoria e as qualidades que ele deve ter para ser considerado autêntico e legítimo condutor de almas. Mas devemos nos fazer a seguinte pergunta16: nesse modo de conceber os diálogos (dramaticamente) tendo Sócrates como narrador, não há nenhuma 13 14 82 15 16 Para um estudo sobre as mudanças do método dialético de Platão, cf. Monique Dixsaut, Métamorphoses de la dialectique dans les dialoque de Platon, Vrin, Paris, 2001. Cf. livro VI da República.. Ver exemplo do Eutidemo. Algumas destas perguntas são feitas também por Scolnicov, in op cit. p. 55 cadernos ufs - filosofia doutrina, nenhum pronunciamento, nenhuma posição que podemos tomar como sendo legitimamente de Platão ou de Sócrates? Não teremos já, em nenhum lugar, um ponto de partida, algo em que possamos nos fiar, que não sejamos forçados, mais tarde, a revisar sob a pressão da ironia de Sócrates? Não haverá, em Platão, nenhuma diferença entre o sério e o jocoso, entre o que é assim e o que não é assim (como Sócrates faz notar no desorientado Ménon: “Não é suficiente que antes nos tenha parecido assim; é necessário que assim nos pareça agora também”). Estas perguntas foram formuladas de modo semelhante por Scolnicov17 que, ao ensaiar uma resposta, diz que a República foi interpretada muitas vezes como um reductio ad absurdum, e o Parmênides como uma brincadeira. Nem mesmo a Apologia foi poupada. Tão somente foi escrita e já foi vista como um desafio propositado de Sócrates a seus juízes, para que o condenassem à morte, de modo que lhe fosse evitada a decrepitude que lhe viria com a velhice. Como haveria de se entender de outro modo a sua proposta que lhe fossem oferecidas pela polis refeições gratuitas, como aos vencedores olímpicos? As perguntas, segundo a formulação de Scolnicov, têm um endereço a que pretendem conduzir: mostrar que dentro dos diálogos não temos um ponto fixo que se ancore em si mesmo. Tal é a essência da ironia socrática. Nem mesmo o princípio não-hipotético será suficiente. Antes de tudo, Platão não diz em que consiste, só que ele deve existir, e que nos vem, se é que vem, só ao final da ascensão dialética. Mas onde deveremos começar para atingi-lo ao fim? E sobre que base poderemos interpretar os pronunciamentos de Sócrates? Sabemos o que não pensar, ou ao menos a ironia de Sócrates nos faz mais cuidadosos ao aceitar o que signifiquem suas palavras, mas não sabemos o que ele pensa. E, mesmo se soubéssemos, ainda não poderíamos tomar Platão como defendendo essas mesmas opiniões. Na visão de Scolnicov, há um ponto fixo do qual todo o resto deriva o seu significado. Platão não pode nos dizer qual é esse ponto básico. Se o fizesse estaria indo contra a sua própria convicção, que a verdade só pode ser atingida por cada um por si só. Mas ele nos pode “mostrá-lo”. Não se trata de uma proposição, mas de um evento: a morte de Sócrates. Sócrates não morreu ironicamente, mas a sério. Sua morte não foi ambígua. Nada mais é univocamente sério do que a morte. O ponto de vista de Scolnicov tem o nosso acordo, no sentido de que Platão tinha Sócrates na mais alta conta e que, por isso, não deixaria de considerar a sua morte como um ponto, o mais significativo quanto a capacidade de provocar-lhe para a reflexão filosófica. Quando cotejamos a Apologia com o Fedro, encontramos uma mesma exigência que marcou a vida inteira de Sócrates: uma vida de auto-exame a que ele se submeteu e convidou os 17 - Cf. op. cit. p. 55-56. 83 cadernos ufs - filosofia outros a fazerem o mesmo, pois, como sustentava, uma vida não examinada não é digna do homem vivê-la18. No Fedro, a declaração de Sócrates é a de que o seu interesse é o de examinar-se a si mesmo19. Sócrates levou isso tão a sério que estava pronto para morrer por isso e não aceitou a oferta que lhe fizeram20. Ele poderia ter escapado da prisão como Críton queria, mas isso significaria abandonar a filosofia e sua vida não seria mais uma vida de autoexaminação. A mesma dedicação irrestrita à filosofia aparece no Fedro: Sócrates poderia ter se recusado a fazer um discurso para combater o de Lísias e, assim, não entrar no jogo dos oradores. Mas isso significaria conceder o ponto àqueles pretensos mestres, além de cometer um erro tão grande do qual nenhuma penitência poderia libertá-lo. Sócrates não pode jamais negligenciar a sua missão filosófica de ganhar almas para a filosofia. Nesse ponto do auto-exame e da grande importância que Sócrates lhe confere, o Fedro é um testemunho que Platão quis evidenciar de modo profundo. O conhecimento da alma de que Sócrates fala com Fedro é também um auto-exame que sugere a intenção de Platão para nós leitores. Do modo como aparece na vida de Sócrates (e sugerido no Fedro), não se trata do exame de proposições científicas (ou abstratas) de mero interesse técnico21, mas da vida e das próprias opiniões de cada um. O caráter dramático do Fedro sugere, com suficiente clareza, que a intenção de Platão é nos falar por meio da vida de Sócrates, a qual se caracterizou pelo compromisso com o autoexame, pela busca do conhecimento da própria alma e da dos outros (pois ele é um missionário da filosofia) e pela denúncia do conhecimento que não resulta de um compromisso com uma conduta moral consistente. Essa questão do auto-exame ou do conhecimento da alma casa perfeitamente com o problema da retórica, como fica evidente no Fedro, porque essa é a intenção de Platão. Os retóricos representados por Lísias estão longe de fazerem resultar a sua prática de um exame reflexivo e com repercussão na conduta moral. Lísias tira seus conhecimentos da própria cabeça22. Sócrates opõe a esse modo de produzir conhecimento aquele que nasce de um contexto significativo, vivo, que é produzido pela alma e fala à alma. É a oposição entre o discurso como puro artifício técnico e o discurso como um organismo vivo que a alma é capaz de apanhar no seu movimento natural. Discutindo em abstrato e não endereçando o seu discurso a ninguém em específico, Lísias pode dizer qualquer coisa que lhe venha à cabeça. Para um retórico é suficiente que seu discurso obedeça a certos critérios formais. Desde que isso seja feito, pode-se falar de qualquer coisa. O interesse teórico 18 19 20 84 21 22 - Cf. Platão, Apologia, 37e – 38a. Cf. Platão, Fedro, 230a. Cf. Platão, Críton. No Timeu, Platão nomeará tal empreendimento como um passa-tempo inocente. Cf. Fedro, 264b. cadernos ufs - filosofia que o saber dos retóricos desperta, distante da vida e do compromisso com a verdade, é o que Platão quer denunciar. Sua intenção nos é sugerida pelo modo de vida de Sócrates e o compromisso que ele demonstra ter com uma forma de conduta que retira sua dignidade somente da vida auto-examinada. Platão quer também nos mostrar que a verdade que Sócrates persegue só pode ser apreendida diretamente. Pois não se lhe pode dar uma demonstração. Ela só pode ser exibida. Por isso, Sócrates aceita entrar no jogo proposto por Fedro, porque entende não poder oferecer razões e derrotar o discurso de Lísias em abstrato; a vitória poderia ser de Sócrates, mas não da Filosofia e da verdade. Uma outra intenção de Platão que podemos apreender no Fedro, revelada pelo caráter dramático do diálogo, é mostrar-nos pela figura de Sócrates a consistência do amante da sabedoria ou do amante do discurso (como Sócrates e Fedro dizem ser). A conduta que Sócrates sustentou em toda a sua vida não pode conter contradição. Ele fará seu discurso para poder reparar seu pecado contra Eros, porque antes é a sua vida quem dá testemunho do que diz. Ele não concordará com o discurso duplo. Até poderia fazê-lo se sua vida não tivesse compromisso com a verdade que ele não pode dizer para outros, mas para si mesmo. Portanto, como Platão sugere, a necessidade de se ter consistência naquilo que se diz sem contradição vem do pressuposto de que a verdade depende de cada um. Ocupar-se em dizer verdades para os outros é uma prática comum dos retóricos, daí não ser problemático para eles pronunciar ou escrever discursos duplos: que podem elogiar e censurar ao mesmo tempo sobre o mesmo assunto. Na figura de Sócrates, como Platão a exibe no Fedro, vem a exigência de se ter consistência naquilo que se diz. Para alcançar consistência é necessário muito mais que conhecer formalmente algo, é antes de tudo preciso uma grande firmeza de caráter, decorrente daquele auto-exame que fundamenta toda a vida de Sócrates. O que podemos colher ainda como intenção de Platão sugerida no Fedro, por meio da necessidade de auto-conhecimento, é que a razão é normativa, ou seja, não é um instrumento neutro, indiferente a valores, a serviço de interesses independentemente estabelecidos. Tal é o que está sendo denunciado na visão retórica. Tal é o que já havia sido feito no exame do ponto de vista protagórico, máximo representante do utilitarismo. A razão instrumental calculativa conjuga meios e metas, mas é indiferente quanto aos fins. A razão, na maneira como Sócrates a exprime e para a qual Platão chama a nossa atenção, é o oposto da perspectiva retórica: tem valor em si mesma. Por isso, a consistência que Sócrates exprime não nasce de uma conveniência qualquer, mas porque sua vantagem advém do valor que ela tem em si, porque, com efeito, só ela tem valor em si. Fora do caráter dialogal em que Platão expõe seu pensamento, ele não poderia nos falar sem perder a coerência com o que sustenta sobre Sócrates, por exemplo, que a razão tira seu sentido de normatividade do entendimento de que as opiniões não são todas equivalentes, como bem ilustra a necessi- 85 cadernos ufs - filosofia 86 dade de se conhecer a alma no Fedro. Algumas opiniões podem ser justificadas, outras não. E ainda mais: não basta que a opinião em questão seja justificada em abstrato – é quem a mantém que deve ser capaz de justificá-la. Os retóricos são incapazes de fazer isso. Lísias foi capaz de produzir em forma de palavras que serviria de razão àquela sua opinião, mas não foi capaz de ver porque uma razão é uma razão, e onde a corrente de razões encontra seu ponto de parada, aquele ponto de onde provém toda consistência e coerência que sustenta a vida de Sócrates. A filosofia dialógica de Platão evidencia de modo muito forte no Fedro que há um movimento da alma para aquele ponto de parada que, no começo, é uma forte intuição despertada em nós pelo impulso erótico, e só no fim será desvelada como fonte de toda verdade. Eis que sob a perspectiva do diálogo com seu caráter dramático, por meio do qual Platão nos sugere que a verdade não pode ser ensinada e o conhecimento (no âmbito filosófico) não pode ser produzido pela associação de proposições abstratas, entendemos que o Fedro é o resultado do esforço platônico para mostrar em que consiste a arte do discurso (que como tal é única) e que nenhum dos que se dizem mestres e condutores de alma podem ser considerados tais, pois seria necessário que exibissem não só uma qualidade, ou duas, mas todas, como as exibe o amante da sabedoria. O Fedro pode ser considerado, a partir do que se pode colher dele, segundo a perspectiva dramática, um monumento a Sócrates como mestre e senhor do discurso, o único que demonstrou capacidade de auto-exame, de conhecer-se a si mesmo; o único que tem aquelas qualidades poéticas que lhe facultam fazer um belo discurso com o auxílio das Musas, mas com plena consciência do que diz, o que o coloca acima dos considerados grandes poetas; tem ainda aquela qualidade que lhe permite penitenciar-se após perceber que cometeu algum erro (qualidade esta verificada somente em Estesícoro de quem Sócrates toma emprestada a palavra para fazer seu segundo discurso); por fim, tem a qualidade que lhe permite orientar-se, em seus discursos, pelo caminho natural do lógos, ao fim do qual necessariamente encontrará a verdade. Quando chegamos ao final da trajetória do Fedro, não podemos ter dúvidas de que a sabedoria tem a expressão daquelas qualidades exibidas por Sócrates, e que Lísias, representando todos os retóricos, e o seu discurso como retrato do que se dizia ser a arte do discurso são uma falsa imagem da sabedoria. Dessa conclusão se vai a outra, a de que não há dois caminhos para se chegar à sabedoria: ou é o de Lísias, que conduz para longe dela porque se limita aos interesses humanos, ou é o de Sócrates, cujo fim último é agradar a deus e, por isso, não pode fazer mal aos homens. Se tudo que pode ser considerado como sabedoria pode ser encontrado num discurso escrito, que pode ser lido para qualquer um, então a vida de Sócrates e a sua morte não têm sentido algum. Não passam de uma afirmação vazia de sua opinião pessoal, que não compromete ninguém. Porém, o testemunho do próprio Platão está aí para nos fazer ver o contrário e denunci- cadernos ufs - filosofia ar que o erro de Lísias está na interpretação que ele dá para a razão (ou para o lógos) como mero instrumento a serviço dos seus próprios interesses e no conceito que geralmente se tem do bem como algo relativo, além da consideração de que a natureza humana é auto-suficiente e independente de um contexto social e ontológico mais amplo. Buscar o entendimento das opiniões e posições socráticas percebendo que a mesma forma de palavras pode significar para Sócrates algo diferente do que ela significa para seus interlocutores é construir o caminho que leva às intenções de Platão. No contexto específico da atribuição ao discurso do significado de arte de conduzir as almas, o Fedro é a palavra de Sócrates sobre a retórica com as intenções que Platão quer que apreendamos. Muito semelhante ao que Sócrates faz no Protágoras23 sobre a virtude, no Fedro ele põe em confronto os sentidos que os retóricos dão à retórica e o seu sentido, ficando sob nossa responsabilidade descobrir os sentidos que eles dão a esta palavra. Mas nós podemos fazê-lo porque sabemos qual o fim da história de Sócrates. Platão nos mostrou qual o sentido que Sócrates deu às suas palavras. No caso da retórica como a arte do discurso cujo fim é a verdade, Sócrates não podia ser mais claro sobre o papel do mestre do discurso na condução da alma do discípulo: ele não pode dizer o que é a verdade, pois ela só pode ser diretamente apreendida. A verdade não é correspondência de uma proposição a um estado de coisas. Ela é uma questão ontológica, moral e prática. Ela está aí para ser apreendida, e até que não o seja, todas as palavras ficam sem sentido. Mas, como podemos facilmente perceber, o ponto de apoio dos diálogos é exterior a eles, pois, como vimos, a posição filosófica de Platão não pode ser formulada e passada a outros. Mesmo que os diálogos de Platão sejam incompletos e que a chave de sua interpretação esteja fora deles, podemos entender, como Scolnicov e Trabattoni o fizeram, que o que permite interpretá-los não é um grupo de princípios ou uma doutrina de tipo qualquer, mas um evento, um poderoso evento que não só deixaria em Platão uma profunda impressão, mas também o convenceria da supremacia absoluta da razão. Essa supremacia era, para ele, não tanto epistemológica como ontológica e especialmente moral. Assim, sua opção por mostrar seu pensamento por meio do diálogo, foi porque, para Platão, Sócrates mostrou, em sua vida e em sua morte, que o bem e o real são o mesmo. Seus diálogos tentam fazer-nos compreender o que essas palavras não são capazes de ensinar-nos por si sós. Essa é a perspectiva de compreensão do diálogo platônico que defendemos como o melhor caminho para chegarmos até Platão e vermos qual a sua intenção, o que ele quer nos fazer ver. 23 Protágoras diz que virtude não é conhecimento, mas é ensinável e Sócrates diz que é conhecimento mas não é ensinável, temos que descobrir por nós mesmos os diferentes sentidos que eles dão a estas palavras. 87 cadernos ufs - filosofia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PLATONE. Tutti gli scritti. a cura di Giovanni Reale. Milano, Rusconi, 1996. PLATÃO. Fedro. trad. Carlos Alberto Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1975. BROWN, N. S. E COULTER, J. The Middle Speech of Plato’s Phaedrus. IN: Journal of the History of Philosophy, 9 p. 405-423. BURGER, R. Plato’ s Phaedrus. A defense of a Philosophic Art of Writing. Univ. of Alabama, 1980. CONNOS, R. J. Greek Rhetoric and the Transmission from Orality. IN: “Philosophy and Rhetoric”, 19 (1986), p. 38-65. COOK, A. Dialectic, Irony and Myth in Plato’s Phaedrus. 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