A relação entre verdade e política em Foucault Felipe Luiz1 PIBIC/CNPq Resumo: O Foucault genealogista (1970-1980) pensava o saber como uma relação de poder. A partir de uma interpretação e da metodologia nietzscheana, Foucault ligou, portanto, o campo do conhecimento ao campo político. Com isso, o filósofo deslocou-se tanto em relação a sua obra passada, arqueológica, como da maior parte da tradição filosófica ocidental. Nosso objetivo neste pequeno texto é detalhar o modo pelo qual o saber passa a integrar e a ser reconhecido, na obra de Foucault, como primordialmente político, e quais as relações que o poder político e o saber mantém entre si de um ponto de vista filosófico. Portanto, pensar a epistemologia política na obra de Foucault, ou as relações entre saber, poder e verdade. Palavras-chave: Foucault. Política da verdade. Poder-saber. Genealogia. De acordo com Foucault, para Nietzsche o conhecimento não tem uma origem, isto é, um fundamento originário (Ursprung) metafísico, mas foi inventado (Erfindung), fabricado, é um engenho humano, fruto da indústria de animais inteligentes. Sendo invenção, ele não é natural ao homem, não é um instinto; mais exatamente, o conhecimento seria fruto da batalha entre os instintos, como que resultado parcial da guerra entre os instintos, momento de trégua, estabilização temporária da luta entre as três paixões: rir, deplorar e odiar. Para compreendermos o conhecimento devemos parar de tê-lo como beatificado, como nobre, como solene, puro; é através dos políticos, da compreensão das relações de força, do jogo de interesses, de poder, de dominação que poderemos compreender o conhecimento. Portanto o que constitui o conhecimento é a luta entre três más relações, três relações que não respeitam, não aproximam, mas riem do objeto; que não o acolhem, mas deploram, lamentam-no; que não o amam, mas odeiam, buscam destruí-lo. O conhecimento seria uma relação de luta, uma violência contra a natureza, pois não seria natural à natureza ser conhecida; não é um direito, um privilégio do conhecimento conhecer: este força, luta contra, viola o objeto; não há afinidade entre o conhecimento e o objeto; não é um instinto, mas efeito da luta entre os instintos. Mais exatamente, o 1 Graduando em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. [email protected]. Orientador: Profº. Dr. Ricardo Monteagudo. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 194 conhecimento seria contra-instintivo e contra-natural; entre conhecimento e natureza ou instinto há violência, duelo, queda de braço, luta de força. É ao mesmo tempo o que há de mais generalizante - pois solapa as diferenças - e o que há de mais particular - pois desenvolve-se como duelo, visto que é relação de força, maldade contra as coisas. Não há essência do conhecimento ou unidade do conhecimento ou condições universais do conhecimento. Fruto de relações precárias, resultado parcial da luta que se desenvolve de maneira externa a si, o conhecimento seria, forçosamente, mutável; não há garantias de que o conhecimento não venha a se desfazer algum dia, pois é efeito de superfície, acontecimento, rearranjo temporário. Não há um sujeito soberano e uno, pois não existe continuidade entre conhecimento e instintos (como quer Aristóteles por exemplo), mas luta: ou não há sujeito ou há sujeitos. Não há conhecimento livre, independente, desinteressado: o conhecimento é sempre subserviente, dependente, expressão de interesses; e interesses que não o seus, já que, efeito da luta de outrem, é aos instintos e aos seus mandos, interesses, vontades que ele se subordina. Para que se dê enquanto conhecimento da verdade, deve haver uma falsificação anterior que institui o verdadeiro e o falso, ou seja, a verdade é efeito de uma oposição criada pelo conhecimento e que pode ser datada historicamente no Ocidente: a filosofia platônica. O saber se manifesta por meio do discurso, isto é, do documento, seja escrito, seja falado. Na Ordem do discurso, eis a hipótese que consta: [...] em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. (FOUCAULT, 2005a, p. 9). Ou seja, o discurso, como o saber, não é neutro, não é desinteressado, mas está vinculado ao poder e ao desejo. O discurso não apenas manifesta ou esconde desejo, é objeto desejo; não apenas descreve ou traduz as lutas e as dominações: é objeto de luta, luta-se para dominar o discurso. A ordem do discurso é um regime ligado ao desejo e ao poder, que seleciona “quais discursos”, que controla a produção, circulação e aplicação do discurso. Dentre a diversidade de procedimentos por meio dos quais o discurso é coagido, há uma que nos interessa particularmente, a vontade de verdade. Nossa vontade de saber é regida e coagida por uma vontade de verdade que data do século VI a.C. Olhado por Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 195 dentro, um discurso verdadeiro ou falso não guarda semelhança com os demais procedimentos de exclusão: não é arbitrário, tampouco tem aporte institucional; mas vista de fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de exclusão: histórico, arbitrário e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado, pois, há os sistemas de livros, de edição, as bibliotecas, laboratórios, universidades, etc. Entretanto, o que reconduz a vontade de verdade é, sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de valorização ou não, formas de distribuição de repartição, de atribuição. Desta forma é que vontade de verdade mostra-se como sistema de coerção: exerce, sobre os demais discursos, pressão e poder de coerção: os discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. Há séculos que os dois outros procedimentos de exclusão – interdição, sujeição e rejeição – se orientam no sentido da vontade de verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se fortalece e se torna, mais e mais, incontornável. Histórico, porque remete ao surgimento da filosofia platônica, à separação entre poder e saber no Ocidente, ao fim do sofista e ao surgimento da distinção verdadeiro / falso, que dará “a forma geral de nossa vontade de saber”. Na segunda conferência de “A verdade e as formas jurídicas”, Foucault analisa essa questão por meio de uma leitura de uma famosa peça de teatro: o Édipo-rei. Dentre diversas, uma interpretação dessa tragédia marca o Ocidente: a de Freud. Para o fundador da psicanálise, Édipo seria representativo da estrutura universal do desejo. A criança, no desenvolvimento de sua sexualidade, desejaria a mãe e buscaria matar o pai, que a impede de realizar seu desejo. Essa estrutura mãe-pai-filho constituiria o complexo de Édipo, verdade atemporal, verdade universal. Édipo seria aquele que não sabe diferenciar mãe e esposa, pai e inimigo, que esquece seus atos: o homem do inconsciente. Em 1972 Deleuze e Guatari publicam O anti-Édipo, onde fazem uma releitura do Édipo e do complexo de Édipo. Este, não seria o que a psicanálise quer, verdade apodítica do desejo, mas sim uma coação, limitação do desejo, preso a família e a estrutura familiar burguesa. Foucault: “Édipo é um instrumento de poder, é uma maneira de poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e o inconsciente” (FOUCAULT, 2005b, p. 30). Foucault, na esteira de Deleuze e Guatari, lerá Édipo-rei como uma história de poder. Não é de desejo ou de intrigas familiar que trata a tragédia, é de poder; o título da peça não é “Édipo-incestuoso” ou “Édipoparricida”, mas rei. Édipo quer salvar a cidade para manter-se rei, quer prender o Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 196 assassino de Laio, pois, o mesmo destino pode estar sendo-lhe reservado. É também uma história de pesquisa da verdade, e de como a verdade se voltará contra soberano. O título da peça em grego é Oidípous Basileus; compõe o nome de Édipo a palavra “oidí “ter visto e saber”; “basileus é “aquele que exerce poder”. Para Freud, Édipo seria o homem do inconsciente, que não sabia; pelo contrário, Édipo sabia demais e exercia o poder; é por isso que ele cairá. A peça foi escrita no século V a.C. Nessa época, na Grécia, quem exercia o poder era o tirano. O peculiar ao tirano era, primeiro, a dissimetria da vida; Édipo passara de bebê condenado a filho do rei de Corinto, para então tornar-se viajante e rei: vida assimétrica, desequilibrada. Segundo, o tirano tinha a capacidade de reerguer as cidades; Édipo chega a uma Tebas atormentada pela Divina Cantora, vence-a, e reergue Tebas; Péricles fez o mesmo com Atenas, etc. Terceiro, o tirano é aquele que junta poder e saber; mais propriamente, ele exerce o poder por ser sábio; ora, Édipo torna-se rei após vencer o duelo de charadas com a Esfinge. Édipo se diz “aquele que encontrou”, ao se referir ao que fez resolvendo a charada da Esfinge; quanto aos novos problemas de Tebas, ele diz que precisa “encontrar de novo”. “Encontrar”, ele diz é algo que se faz sozinho: saber solitário, autocrático, saber do tirano; ver é, também, uma forma de “encontrar”: Édipo, “ter visto e saber”; qual a punição de Édipo? Não é, como a de Jocasta, a morte; Édipo fura os olhos, é expulso de Tebas, deixa de “ver”, de “encontrar”, de saber; deixa de ser basileus; rei; deixa de poder. Édipo, que exercia um poder-saber, deixa de fazê-lo; é essa punição do tirano, deixar de poder e deixar de saber. É assim que se separa saber e poder, e se cria o mito do poder obscuro, ignorante, em contrapartida ao adivinho, e aos filósofos sábios, o mito da “antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político” (FOUCAULT, 2005b, p. 51). Há algo mais. Até o século VI, o discurso verdadeiro, na Grécia, era como que um direito, pronunciado em um ritual: discurso que profetizava, discurso que dizia o justo; a verdade residia na própria enunciação, e não no conteúdo do enunciado. Já no século V, há uma mudança, da enunciação, de quem diz e quando diz, para o próprio enunciado, “para seu sentido, forma, seu objetivo sua relação à sua referência” (FOUCAULT, 2005a, p. 15). A verdade passou de um direito de quem exerce o poder para um conteúdo discursivo. Separação entre saber (e verdade) e poder. Mudança que as práticas judiciárias de pesquisa da verdade refletem. Na Ilíada, Menelau e Antíloco Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 197 pretendem disputar uma corrida até um marco e de volta ao ponto de partida; no marco há uma testemunha. Após o fim, Menelau acusa Antíloco de trapaça, que o outro nega; Menelau então desafia Antíloco a jurar por Zeus; diante disto, Antíloco confessa a trapaça. A testemunha não é invocada, embora ela tivesse visto tudo; o juramento vale como prova de verdade. O juramento é uma forma comum também no Direito Germânico e no Direito Feudal. É encarado como disputa, jogo de provas que tem valor de verdade. No Édipo-rei há o juramento como forma de pesquisa da verdade: Édipo jura encontrar o assassino de Laio, Creonte jura que não conspira contra Édipo. Mas a forma principal de pesquisa judiciária da verdade é a testemunha: dos escravos do Citerão (que viu Laio entregar-lhe o bebê Édipo, que viu Édipo matar Laio) e de Corinto (que viu o escravo do Citerão entregar-lhe Édipo e que o entregou a Políbio). Portanto, deslocamento da enunciação da verdade do nível do juramento pelos deuses (nível profético-divino) para o nível empírico cotidiano da gente comum, de quem vê, dos escravos. “Esta é a grande conquista da democracia grega ao longo do século V. Este direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma série de grandes formas culturais características da sociedade grega” (FOUCAULT, 2005b, p. 54); desenvolvimento de formas racionais de exposição, prova e demonstração da verdade (filosofia, sistemas científicos), desenvolvimento da retórica como forma de expor e convencer à e para a verdade; emergência de novas formas de conhecimento: testemunho, lembrança, inquérito. Portanto, aparição das condições de possibilidade do pensamento de Aristóteles: saber naturalista, que inquire a natureza, que extrai a verdade das coisas. Há ainda mais uma coisa: a elisão da realidade do discurso. Desde o ‘enxotamento’ do sofista, o Ocidente fez o discurso diminuir de tamanho, elidiu sua realidade material de discurso, achatou-o: [...] parece que tomou cuidado para que o discurso aparecesse apenas como um certo aporte entre pensar e falar; seria um pensamento revestido de seus signos e tornado visível pelas palavras, ou, inversamente, seriam as estruturas mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito de sentido. (FOUCAULT, 2005a, p. 46). Esse achatamento do discurso, com o correr dos anos, tomou formas diversas entre nós em temas diversos: o sujeito fundante, a experiência originária, a mediação universal; Descartes, fenomenologia, Hegel. Anulação do discurso, reduzido a signos, Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 198 ao campo do significante: escritura, leitura ou troca. Portanto, tripla separação: poder e saber, desejo e discurso, verdadeiro e falso. A primeira concernente ao mundo político-cultural, à emergência da Grécia Clássica. A segunda decorrente do pensamento platônico. A terceira decorrente da emergência do povo que nos orgulhamos de, sócio-culturalmente, descender. É a partir da separação entre saber e poder e da distinção - instituída pela filosofia platônica e pelo saber das testemunhas - entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber tomará a forma que tem até hoje; forma geral, que funcionou historicamente como procedimento de exclusão do discurso. Passou por diversas mudanças durante os séculos que nos separam de Platão, de Aristóteles, etc, mas não deixou, nunca, de funcionar como sistema de exclusão, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela. Mas, por que se fala tão pouco dessa vontade de verdade? Como vimos, desde os gregos, o discurso verdadeiro não corresponde, não pode corresponder ao desejo e ao poder; se a verdade não está em jogo, somente o desejo e o poder estão. A verdade não pode reconhecer que uma vontade a guia, portanto, mascara-a, e o faz de tal maneira, que a verdade aparece a nós como rica, fecunda, doce, universal. Por isso não a vemos como sistema de exclusão. Este conceituar dará à Foucault o subsídio teórico para definir a verdade como “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder [...] conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2007b, p. 13-14). Ademais, Foucault nos diz de um ‘regime de verdade’, presente em todas as sociedades: discursos que funcionam como verdade, regras de enunciação da verdade, técnicas de obtenção da verdade, definição de um estatuto próprio daqueles que geram e definem a verdade; portanto ligação circular entre verdade e poder: poder que produz verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder: é impossível desvincular verdade e poder. Foucault também nos fala de uma “economia política da verdade”; este termo indica as maneiras, os procedimentos de troca, de mudança, de atribuição, de produção, de incitação, de cessão, de constituição da verdade. Cinco características dessa economia em nossas sociedades: o discurso científico e as instituições que o produzem centralizam a verdade; esta é incitada constantemente pelos campos político e Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 199 econômico; há um grande consumo e uma grande difusão da verdade; há grandes aparelhos de produção e difusão da verdade: universidades, exército, escritura, mídia; por último, ela é objeto de debates políticos e confrontos sociais. Portanto, “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2005b, p. 51). O discurso deve ser analisado em termos de estratégia, em termos de guerra, de política, de interesse, como objetivo e meio de luta, mesmo porque, na constituição mesma do conhecimento e, por conseguinte, do discurso, está numa relação de força. Da mesma forma a verdade não existe fora das relações de poder, pois ela mesma é uma relação de poder, fruto de relações de poder, exercendo efeitos de poder. A verdade não só faz integra as relações de poder como, ela mesma, é uma relação de poder. Nem saber nem discurso nem verdade são livres, desinteressadas: o interesse as funda. Tampouco se contrapõe ou são isentas de poder: o poder as constitui, as atravessa, e é isso que garante seus efeitos. Foucault, simplificando, dirá em Vigiar e punir que toda relação de poder constitui um campo correlato de saber e que toda relação de saber constitui um campo correlato de poder. Afirmações duras para a maior parte do pensamento filosófico ocidental e que vão na contramão do Iluminismo – movimento que, lembremos, é o fundador da modernidade. A razão, longe de libertar os homens, os submete a intrincadas relações de dominação; o saber, longe de ser o anteparo para os abusos políticos e o obscurantismo, é, ele mesmo, uma relação de poder e de sujeição. Da concepção foucaultiana de saber extraímos todas as conseqüências, exceto uma: a do sujeito. Desde Aristóteles, o sujeito é uma unidade: dos instintos ao saber mais alto, o sujeito se complementa, se fecha. O sujeito cartesiano, por exemplo; Descartes, após definir o cogito, pergunta-se: o que é uma coisa que pensa (res cogitans)? “É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1999, p. 262); unidade, complementação, que vai dos atos volitivos à imaginação, do conhecimento aos sentimentos, aos instintos. Mas, se o conhecimento é fruto da batalha entre os instintos, e se instintos e conhecimento lutam entre si, a unidade é desfeita, o sujeito se desfaz: há sujeitos ou não há. Foucault dissolve o sujeito. Essa concepção refletirá nas análises do poder: grandes estratégias de dominação e de produção de efeitos que são sem sujeito. Além disso, no correr da pesquisa Foucault dirá que o próprio sujeito, que o próprio Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 200 indivíduo é fruto de relações de dominação, efeito do poder. Se nosso objetivo é esclarecer a epistemologia política em Foucault e como já dissemos de sua epistemologia, resta-nos adentrar em sua parte propriamente política: nas relações de poder que se imiscuem, fundam e são fundadas pelo saber e pela verdade. Roberto Machado, na introdução da Microfísica do poder, diz que inexiste uma teoria do poder em Foucault. A concepção de poder deste filósofo é parcial, pois, deriva de pesquisas específicas: a constituição da prisão, as relações entre sexo e verdade, o aparato psiquiátrico. Deve-se somar a isso o fato de que não há uma coisa, com estatuto ontológico próprio, que se chama poder em Foucault: não existe, diz Machado, [...] o poder como uma realidade que ele [Foucault] procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. (FOUCAULT, 2007b, p. X). O poder só existe em ato, só existe enquanto relação exercida ou que se exerce já. Além disso, a própria concepção de saber de Foucault impediria uma teoria do poder: o saber que é sempre parcial, sempre a se fazer, resultado temporário da batalha. Também o objetivo de Foucault não é constituir uma teoria ou ciência do poder; a genealogia busca, sobretudo, as relações entre poder e saber em campos específicos e a análise da ação e constituição de relações de poder nesses campos. As análises de Foucault são sempre fragmentárias, sempre a se fazer. Mas Foucault trabalhou com uma concepção de poder que se repetiu ao longo da pesquisa genealógica. E isto não deriva de uma teoria “unitária e global” do poder, mas de uma concepção metológica, de um modelo de análise, que Foucault chama, em alguns momentos, de “esquema guerrarepressão”, em outros, e mais constantemente, de “modelo de Nietzsche”, ou de “modelo da guerra” ou da “batalha” ou de “estratégico”, ou, ainda, “da luta”. O que vale notar é que a partir dos postulados desse modelo podemos dizer que há sim uma teoria de poder em Foucault: definição de métodos de ação do poder em locais heterogêneos (escola, prisão, oficina, clínica, asilo, campo discursivo, etc.), pesquisas de “dinastia do poder político” (como se constituiu as relações de poder nesses locais, a que interesses respondiam, sua maneira de ação), os saberes que se constituíram a partir de ou constituíram esse poder, a ação conjunta de saber-poder, etc. E procedendo desse modo, Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 201 Foucault não deixa de observar o que Machado define. Portanto, podemos dizer que há uma teoria do poder em Foucault, se com isso compreendermos que os modelos analíticos e a genealogia impuseram, enquanto resultado prático, efetivo das pesquisas, uma concepção do poder que é constante nas obras do segundo Foucault. Dito isto, cabe agora levantar o que é esse modelo de Nietzsche (e a quais modelos ele se opõe) e, mais detalhadamente, indicar como se o poder pode gerar saber. No curso “É preciso defender a sociedade”, Foucault exporá o seu modelo de análise das relações de poder. Como aqui nos importa levantar o conceito de poder em Foucault, não entraremos nos meandros da questão, indo direto ao que nos interessa: o modelo da guerra. O esquema da guerra-repressão consta, neste curso, como a tentativa de Foucault constituir análises do poder fora do liberalismo e do marxismo. Estas concepções há séculos fundamentam as análises do poder no Ocidente e, por isso mesmo, além dele há pouca coisa a ser dita; primeiro, negar o poder enquanto formamercadoria (que se vende, troca, aliena), pois só existe em ato; segundo, que seu objetivo fundamental não é reconduzir relações econômicas, mas, sim, estabelecer relações de força. Assim, Foucault fórmula a hipótese de Nietzsche: se o poder é relação de força, o melhor modelo de análise não é outro que o da guerra. À famosa proposição do estrategista prussiano Clausewitz: “a guerra é a política continuada por outros meios”, Foucault emenda: “ a política (le pouvoir) é a guerra, é a guerra continuada por outros meios” (FOUCAULT, 1999, p. 22). As análises pelo esquema da guerra devem fundamentar-se em: 1. técnicas de dominação: mostrar quais as técnicas de sujeição, de dominação e de fabricação dos sujeitos; 2. heterogeneidade das técnicas de dominação: mostrar como os agentes operadores da dominação se apóiam uns nos outros ou se negam em suas especificidades, em suma, mostrar que a dominação não é um todo homogêneo, mas múltiplo, líquido, que pode se virar contra si; 3. efeitos de dominação: procurar as técnicas de dominação em suas condições de possibilidade, isto é, no que as garante enquanto técnicas de dominação. Da hipótese de Nietzsche, há conclusões a extrair: primeiro, sendo guerra, as relações de poder de nossas sociedades se formaram em determinado momento histórico na e pela guerra e “a política seria a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra” (FOUCAULT, 1999, p. 23); segundo, se política é a continuação da guerra, sob a aparente “paz”, a guerra continua, guerra silenciosa, mas Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 202 que não cessa: as lutas pelo com e do poder são manifestações da guerra, em suma, tudo que não está em guerra, continua a guerra; por último, se a guerra funda o poder político, a guerra é o fim do poder político: a guerra das guerras, guerra última. Há outro ponto interessante: se fala-se em batalha, luta, afrontamento, é preciso que alguém lute contra alguém; ora, se há luta entre alguém, há também sujeitos, um nó teórico, que, ao que tudo indica, Foucault não desatou. Quem luta contra quem? Todos contra todos, guerra de todos contra todos. Mas não confundamos com Hobbes, pois para este o estado, a soberania, a sociedade, surgem como maneira de acabar com a guerra; para Foucault o estado e a sociedade surgem como formas de perpetuar a guerra, indicam que alguém venceu, mesmo que temporariamente a guerra; são efeitos da dominação, como que para assegurá-la. Do esquema guerra-repressão, este último termo é duramente criticado por Foucault; por isso falamos somente em modelo da guerra ou de Nietzsche. Já exposto este modelo, devemos agora buscar o que viria a ser esse poder que não é repressão, mas que produz; esse poder que não é centralizado, mas disperso; esse poder que, longe de ser somente estatal, se confronta, por vezes com esse estado; esse sub-poder, que se dispõe em rede; desse poder que não se detém em lugar nenhum, mas investe o que há de mais ínfimo e mais fundamental em uma sociedade: o corpo. Outra mudança refere-se ao regime político do corpo; o Absolutismo tratava o corpo comum, corpo das “gentes”, como algo a ser castigado ou expurgado, algo que deve ficar anônimo em benefício do corpo que deve aparecer, o do monarca. A maior parte das punições era a nível corporal: o suplício, marcações com ferro, açoitamento. Regime político de visibilidade do corpo que vai do mais alto ao mais baixo, isto é, quanto mais importante é-se politicamente, mais o corpo deve aparecer. A partir do final do século XVIII até 1840 (data da inauguração da colônia penal para crianças de Mettray) cada vez se insinuará no Ocidente um outro regime político do corpo, com vastos reflexos penais. Com efeito, o corpo deixará de ser aquilo que deve ser punido castigado, açoitado, marcado, linchado; em 1789, dirá Mably: “que o castigo, se assim posso me exprimir, fira mais a alma que o corpo” (FOUCAULT, 2006, p. 18); daí todo o “humanismo” das penas corretivas, da recuperação dos presos. O corpo será valorizado, trabalhado e investido a fim de se produzi-lo enquanto corpo politicamente dócil e economicamente útil. Para tanto o poder passará a investir o corpo através de uma técnica: a disciplina. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 203 A disciplina é uma tecnologia política do corpo. Pelos meios mais diversos ela se inscreve diretamente nos indivíduos, forjando-os. Por exemplo, a arquitetura e o projeto do panóptico de Bentham: [...] a moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução difundida; os encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve ser, sobre uma rocha; o nó górdio da Lei sobre os Pobres não cortado, mas desfeito – tudo por uma simples idéia arquitetônica. (2000, p. 15). Ou a disciplina manifestada no campo do saber: preocupações com o onanismo infantil, com a pureza da raça, da espécie, com o sexo, com a educação, com a pureza social, com a loucura e a razão, com os comportamentos, com os movimentos. Assim, constituição da medicina social, da medicina sanitária, da psiquiatria, da psicologia, da sociologia, da criminologia, da sexologia. Portanto, infiltração da disciplina na sociedade: escola, hospital, asilo, fábrica, exército, repartições públicas, na prisão. Concebida como um modelo arquitetônico para as prisões, a idéia do panoptismo é bem simples: em um edifício circular, as celas ocupam a circunferência; no centro, uma torre de vigilância; não há, entre os presos, comunicação, pois as celas são individuais; cada cela possui duas entradas, a janela e as grades, de maneira a garantir que esteja sempre iluminada; na torre de vigilância, um guarda que pode, simplesmente virando o pescoço, ver todas as celas, ao passo que das celas os presos não podem ver se estão, de fato sendo vigiados, graças a um jogo de venezianas da torre; a sensação é só uma nos presos: estão sempre me vigiando, não há como escapar ou o que fazer senão cooperar. Sem coerção física, sem força, sem suplícios que duram horas, sem carrascos ou sangue, o preso termina por se comportar, por se entregar a sua consciência, saindo, daí, inteiramente reformado. Era este o projeto de Bentham e o objetivo da máquina panóptica. Nessa pequena idéia, nesse pequeno princípio, Foucault enxergará uma nova forma de poder terrível, o panoptismo: [...] o panoptismo é uma forma de poder que repousa não mais sobre o inquérito mas sobre algo totalmente diferente que eu chamaria de exame [...] Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder [...] e enquanto exerce esse poder tem a possibilita tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber que deve determinar se um individuo se conduz ou não Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 204 como deve, conforme ou não á regra, se progride ou não, etc... [...] ele [o saber] se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer. (2005b, p. 87-88). E mais: “O tríplice aspecto do panoptismo – vigilância, controle e correção – parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade” (FOUCAULT, 2005b, p. 103). Um poder que se exerce sobre o corpo; que vigia os indivíduos; que busca controlá-los; corrigi-los de acordo com a norma. Certamente bem diverso das representações jurídicas ou repressivas que sempre se fez do poder. Pelas suas características, não pode tampouco ser identificado com o estado, pois está abaixo deste; tampouco pode ser reduzido a mente dos homens, como algo representado, aceitado e/ou interiorizado; é um sub-poder ou um micropoder, espalhado pela rede social, que vai até o corpo dos homens, que investe esse corpo, que controla, que produz. Seu imperativo é um só: “como fazer do tempo e do corpo dos homens, da vida dos homens, algo que seja força produtiva?” (FOUCAULT, 2005b, p. 122). Esse exercício de poder virá acompanhado de um saber do corpo que não é “a ciência de seu funcionamento” (FOUCAULT, 2006, p. 26), mas que será o embrião desse conhecimento, dessas ciências tão confusas para nós e que tanta dificuldade Foucault teve para enquadrá-las em seu triedro dos saberes em “As palavras e as coisas”, e que o Ocidente nomeou de ciências humanas: “temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura', 'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade, produz campos de objetos e rituais de verdade. O individuo e o conhecimento que dele pode se ter se originam nessa produção” (FOUCAULT, 2006, p. 161). O poder é uma relação de força, que tem como objetivo a dominação e o controle. Sua ação não é somente repressiva, mas produtiva: produz individualidades, efeitos, corpos, saber, verdade, realidades, sujeitos. Foi Heidegger que disse que aquilo que mais se dá é o que menos se vê; por ser tão quotidiano, esse poder é o que se esconde melhor, pois naturalizado; não está também, evidentemente, nesta coisa surgida depois da Revolução Francesa, que nós chamamos de “vida política”. Nas sociedades contemporânea as relações de poder, a ação do poder, vai até a menor parte de uma sociedade, o corpo dos indivíduos que a compõe a fim de trabalhá-lo, adestrá-lo – portanto, materialidade das relações de poder; a fim de alcançar esses corpos dispersos, Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 205 múltiplos e heterogêneos, o poder constitui grandes táticas e estratégias e as põem a funcionar através de aparelhos, de discursos, de instituições, de dispositivos; intrínseco a esses aparatos, o poder vai fundo no corpo social, se enraíza e passa a combater para consumar a dominação; luta móvel contra as pequenas ou grandes resistências, pois não se detém, e, luta astuciosa, busca usar as vitórias do adversário a seu favor. A estratégia, enquanto categoria para se pensar o poder, deriva diretamente do modelo da guerra. A constituição da prisão como forma privilegiada de pena é estratégia do poder disciplinar, bem como o internamento dos loucos, a medicalização da loucura, a universalização do ensino, etc. Portanto, poder-luta que afronta, submete, domina, prende, censura, mas que se vale não só desses meios na guerra; poder que mede as melhores soluções, que, cuidadosamente, pensa como dominar, como consolidar sua dominação, como aumentá-la, que busca fazer da resistência do adversário arma contra ele; que elabora táticas, que as reúne em estratégias globais, que, diante do inesperado, busca usá-lo a seu favor. Eis a epistemologia política, obviamente em linhas gerais; eis como verdade e poder se relacionam e relacionaram, seja com aquela gerando poder, no campo discursivo, através de mecanismos restritivos de produção e circulação do discurso, seja com o poder, por meio de estratégias, mecanismos e ação disciplinar, justificando-se por meio da verdade e dando a ela efetividade e materialidade plena, naquilo que Foucault chamou efeitos de verdade: verdade-poder se aplicando sobre o mundo. Da mesma forma, o exame, que constitui a disciplina, não só liberou epistemologicamente as ciências humanas, como serviu e serve de justificativa e motivo para uma série de ações do poder, como a eugenia, a repressão e deslocamento das classes perigosas, a submissão dos “não-sexualmente saudáveis”, e toda uma série de atos que, por si só, justificariam, cada um, uma pesquisa. No entanto, não é isso que aqui nos cabe e, por crermos ter atingido nosso fim, encerramos nosso texto. Referências ALVES, A. 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