VERDADE E MITO NA CIVILIZAÇÃO
GREGA
Rúbia de Jesus Braga
Psicóloga (CES/JF), Especialista em Psicanálise (UFJF),
Graduanda em Filosofia (UFJF).
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“In interiore homine habitat veritas.”
(Santo Agostinho)
A verdade – αλήθεια, Alétheia – tem uma distinta importância no vocabulário e na
vida dos gregos. Seu significado é portador dos maiores anseios de toda a humanidade
em relação a sua própria essência e existência – desvelar, trazer à luz. Por isso, a
verdade é, ela mesma, a questão fundamental que causa a filosofia e o filósofo, uma vez
que está aí sua tarefa: a busca da verdade.
O mito é aquilo que vem ficar no lugar da verdade quando o homem não encontra
um sentido ou um significado capaz de explicar racionalmente ou justificar algum evento
que o mobiliza mas, ao mesmo tempo, o conduz por uma via do saber, mesmo que
falaciosa.
Desde os primórdios da civilização, o ser humano mostra sua inquietude a respeito
da verdade sobre a origem do universo, da vida, da morte, do bem, do mal. A realidade
desconhecida acerca do princípio de todas as coisas – Άρχή, arché – aterroriza o homem
e, para amenizar tal angústia, ele introduziu um mundo sobrenatural como mediador
dessa aflição, criando assim uma relação com seres mitológicos divinos, recorrendo a
rituais mágicos e buscando sacralizar a natureza – φύσις, physis – para que ela o proteja,
alimente e permita reproduzir-se, sendo esta uma tentativa de subverter a verdade de sua
finitude.
É certo que não se considere somente o povo helênico como o único precursor da
busca do real na sua totalidade mas, seus pensadores, por volta do século VI a.C., mais
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tarde denominados filósofos, foram os principais responsáveis pela introdução da
problemática e com eles surgiram novas ideias e reflexões que, aos poucos, foram
rompendo com a tradição mitológica. Os pré-socráticos, por meio da cosmologia,
formularam com o uso da razão, princípios que explicavam a origem do universo e de
todos os seres que nele viviam. Para o grego, o κόσµος, cosmos – é uma ordem
harmoniosa e a regularidade dos fenômenos que nele se observam, e da própria vida, são
os objetos da reflexão intelectiva – νούς, nous – que faz emergir a filosofia e a partir daí a
questão cosmológica precipitará a questão ontológica e, só posteriormente, a
antropológica. (SANTOS, 2001).
Mas, então: “O que havia quando ainda não havia coisa alguma, quando não havia
nada? A essa pergunta os gregos responderam com histórias e mitos.” (VERNANT,
2000). Como foi enunciado, antes do surgimento da filosofia foi construída uma relação
entre homens e deuses para dar conta de uma verdade que jazia oculta. Diziam os
gregos que no princípio era o Caos; e o que é o Caos?
É um vazio, um vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda,
vertigem e confusão, sem fim, sem fundo. [...], abismo cego, noturno, ilimitado.
Depois apareceu Terra. Os gregos dizem Gaia. Foi no próprio seio do Caos que
surgiu a Terra. [...] e representa, em certos aspectos, seu contrário. A Terra não é
mais esse espaço de queda escura, ilimitado, indefinido. (VERNANT, 2000, p. 17).
O mundo helênico, em seus vários domínios, da estética à literatura, recorreu e se
serviu do mito, tendo como um dos seus grandes paradigmas as epopéias Ilíada e
Odisséia, sem deixar de citar Édipo Rei, signo de uma verdade trágica. A palavra grega
µϋθος, mithos, designa a narração de qualquer história, seja ela uma tragédia, comédia
ou fábula. O mito se opõe ao λόγος, lógos, porém, “são as duas metades da linguagem,
duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito.” (GRIMAL, 1983, p.,8) e,
portanto, uma parcela do irracional e uma parcela do racional que compõem o
pensamento humano e têm como função teleológica a verdade última das coisas.
O mito faz aflorar uma imagem, um símbolo, uma realidade qualquer dos conflitos
humanos que, de outra maneira, permaneceriam inefáveis. Mesmo quando os filósofos
encontraram o auge do uso da razão, não deixaram de recorrer aos mitos como um modo
de conhecimento que pudesse responder àquilo que restava como questão, ou como
mistério, enigma. “Para um grego, o mito não conhece nenhuma fronteira. Insinua-se por
toda parte. É tão essencial a seu pensamento quanto o ar ou o sol à sua própria vida.”
(GRIMAL, 1983, p. 9). Aqui é importante destacar uma dimensão ética e também moral
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atribuída ao mito na antiguidade grega, uma vez que tais valores estavam enraizados e
eram parte mesma da vida de um cidadão da πόλις, pólis.
Antes do desenvolvimento do pensamento filosófico, ou seja, antes da passagem
do mito para a razão, as divindades que foram forjadas tinham diferentes nomes e para
cada uma havia um aspecto específico da natureza ao qual ficava resguardado seu poder
e sua atuação.
De acordo com Vernant (2000), θέµις, Thémis, e ∆ίκη, Díke, foram consagradas
guardiãs do Templo da Verdade, porque ambas eram deusas da lei e da justiça. Thémís,
mãe de Díke e esposa de Zeus, está ligada à lei divina, da justiça que emana dos deuses
e, Díke personifica a lei dos homens.
Com efeito, a verdade não é somente aquilo que destrói a ilusão, é ainda, uma
oposição à mentira, à falsidade. Isso nos remete ao filósofo e profeta Epimênides de
Creta e o paradoxo de sua doutrina quando diz que todos os cretenses mentem. Quando
ele faz essa afirmação diz a verdade? Novamente insinua-se que, entre os filósofos
gregos, a verdade tem uma relação estreita com a ética, não dando lugar assim à
corrupção.
Platão (427 – 347 a.C.), no Livro VI da República, faz essa clara afirmação quando
expõe a verdadeira e especial natureza do filósofo, adjetivando-o como clarividente,
aquele que é capaz de olhar para a verdade absoluta com o maior rigor possível,
marcando dessa maneira os que não são filósofos como cegos, mergulhados nas trevas
(podemos excetuar Tirésias e Homero); e passa a considerar assim as características do
filósofo clarividente e seu compromisso com a verdade: o filósofo é amante da verdade e
de todo ser verdadeiro; odeia a mentira na mesma medida que ama a verdade; como
amante do saber, deseja vivamente, desde muito jovem, a verdade acima de tudo; para o
filósofo os prazeres da alma estão acima dos prazeres do corpo; não teme a morte; é
necessário que tenha boa memória para reter os conhecimentos adquiridos; portanto, “[...]
deve ser homem de espírito elevado, amável e amigo íntimo da verdade, da justiça, da
coragem e da temperança.” (PLATÃO, A República, Livro VI, p.231).
Os princípios éticos têm, sob certos aspectos, uma ligação com o bem e o mal,
como se encontra, por exemplo, na magia. Porém, o problema do bem e do mal também
pode ser abordado no aspecto moral, como a justiça – divina ou dos homens. Por este
lado, existe uma
via que leva ao campo religioso que, na pluralidade divina grega
caracterizava-se por deidades capazes de encarnar aspectos humanos ou meio-humanos
e meio-animais e, mais tarde, a unidade divina, que então suplanta a dimensão plural
mágica e insere o dever religioso; o homem alia-se ao divino e ao sagrado porque é dele
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o poder de justiça; está em Deus a verdade suprema. Delineia-se, desta forma, uma
fronteira entre mito e religião, porém, não se tem uma ideia clara onde termina um e
começa a outra.
Sabe-se que foi em Mileto que nasceu Tales (~624 – 546 a.C), filho de família
ilustre, e quem primeiro problematizou de forma racional o princípio de todas as coisas –
para ele tudo tinha origem na água. “E Demócrito talvez deva a Tales a sua sentença: A
verdade está num poço profundo.” (LEGRAND, apud SANTOS, 2001, p.22).
Mas, nenhum filósofo grego foi maior amante da verdade do que o ateniense
Sócrates (470-399 a.C.). Sua singularidade está ligada à singularidade de sua morte. A
morte de Sócrates não foi uma morte qualquer. Sócrates morreu em nome da verdade. A
verdade é singular.
Na primeira parte da Apologia de Sócrates, Platão escreve que diante de seus
acusadores no tribunal, Sócrates assim se manifesta sobre as falsas acusações que lhe
dirigem:
[...], não se envergonham com a possibilidade de que logo seriam desmentidos por
mim, concretamente, quando eu me apresentasse diante de vós, de nenhum
modo hábil orador? Essa é, na verdade, a sua maior imprudência, se, todavia, não
denominam ‘hábil no falar’ aquele que diz a verdade. (PLATÃO, Parte I, 2007, p.
57).
Para Sócrates, a verdade tinha o estatuto de sagrado e foi nesse patamar que
surgiu o germe de sua filosofia. Platão, seu mais ardoroso discípulo, nos mostra que a
verdade está no mundo das ideias. É a sua verdade ontológica. No Fédon diz que o
verdadeiro é aquilo sempre idêntico a si mesmo, algo imutável, portanto, a natureza da
verdade é eterna e a ideia é uma fonte da verdade; fora dela nada pode ser uma
verdadeira επιστήµη, episteme, apenas δόξα, doxa.
Santo Tomás de Aquino (apud, ALIGHIERI, 1988, p.21), no artigo primeiro da obra
‘Questões discutidas sobre a verdade’, introduz a problemática a partir da verdade
agostiniana: “o verdadeiro é aquilo que é.”, e isso o leva a concluir que o verdadeiro e o
ente (ser) são a mesma coisa e, evoca ainda, Aristóteles, (apud, ALIGHIERI, 1988, p. 21)
que no livro da Metafísica (comentário 27) afirma: “Ao definirmos o verdadeiro, dizemos
ser ele aquilo que é; ou, então, não ser ele aquilo que não é.”
Esta unicidade está no conceito de verdade erigido por Parmênides de Eléia (515
a.C. - ?), onde a única realidade é o ser, é o todo, ou seja, para além do ser nada existe;
além do todo não existe nada. Parmênides (em oposição à Heráclito que tem sua doutrina
fundamentada no devir), propõe a interdição eleata, que proíbe pensar o não-ser;
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segundo ele, dizer que o ser pode vir-a-ser significa uma contradição, pois se ele já é, não
pode vir-a-ser. O ser é e não pode não-ser. E se o ser não é, não pode vir-a-ser. Sua
verdade, sua explicação racional está no objeto do pensamento, uma vez que o que não
é, não pode ser pensado. (SANTOS, 2001).
Vê-se, que ao longo da história, a verdade sempre foi investigada e dela sempre se
procurou extrair uma expressão do real na sua mais rigorosa forma; assim aquilo que é
apreendido pelo homem é a forma da verdade possível, reduzida que é a ele e ao
escrutínio procedido entre o seu pensamento e a realidade.
Uma verdade possível pode ser entendida pela descrição que obtemos da
verossimilhança que “[...] representa a ideia de aproximação da verdade compreensiva.
Donde a conclusão de que a verossimilhança combina, portanto, a verdade com o
conteúdo, enquanto a probabilidade combina a verdade com a falta de conteúdo.”
(POPPER, apud, REALE, 1983, p.24).
O estado de dúvida clama pelo encontro com a verdade. A herança cartesiana nos
propõe um conceito de verdade como aquilo que podemos conceber clara e
distintamente. Abrindo mão de verossimilhanças, Descartes, a partir do cogito, ergo sum,
percorre uma via da verdade que vai do lógico ao ontológico. A certeza prática cartesiana
fundou a verdade subjetiva.
Do rigor do método de Descartes até hoje, surgiram entre os teóricos do
conhecimento, dois tipos fundamentais de verdade: “a verdade material e a verdade
formal, isto é, a correspondência com a realidade objetiva e a coerência consigo mesma –
dois aspectos [...] que, aliás, constituem uma unidade dialética.” (BAZARIAN, 1985, p.
138). Diferentemente das chamadas verdades axiológicas e axiomáticas, os dois tipos de
verdades acima são os únicos considerados como verdades propriamente ditas por
abarcarem o caráter objetivo, necessário e universal.
Para Bazarian (1985, p.132), “a verdade é a correspondência, a concordância, a
conformidade, a adequação, do pensamento com o ser, do sujeito com o objeto, do juízo
com o objeto real, da ideia com a coisa, ou em termos escolásticos: Adæquatio intellectus
cum re.”
Portanto, do ponto de vista do autor acima, compreende-se que a verdade está na
representação fiel do objeto na mente do pensador; é o produto exato da realidade
absorvido pelo juízo de quem o toma.
Nietzsche deixa claro que o filósofo, o pensador, tem como alvo de sua reflexão
mais profunda, a verdade. A veracidade não pode ser uma ideologia ou ainda servir de
coerção e exploração entre os seres humanos. O conhecimento daquilo que é verdadeiro
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provém da liberdade de pensamento. Em ‘Assim falava Zaratustra’ enfatiza o
compromisso do filósofo com a verdade: “A sua doutrina, e esta apenas tem como virtude
mais elevada a veracidade – opõe-se à vileza do idealista que foge ante a realidade:
Zaratustra tem mais valor, quanto à solidez, do que todos os demais pensadores. Dizer a
verdade é arremessar bem as flexas, é esta a virtude persa.” (NIETZSCHE, 1979, p.258).
Assim, quando enunciamos que a tarefa da filosofia e do filósofo é a busca da
verdade, podemos supor que ela não nos é dada, não está à nossa disposição, não está
pronta, não faz parte de nossa experiência cotidiana. “A verdade é, originariamente,
mistério, dissimulação da dissimulação.” (GARCIA-ROZA, 1998, p.15).
O caminho percorrido pela filosofia para a revelação daquilo que está oculto,
apesar de se pautar na não-contradição, tem levado o homem apenas a verdades de
caráter parcial, mesmo que seu objetivo seja a verdade absoluta; assim como se dá no
campo da religião.
Com os pré-socráticos, todos os caminhos possíveis para conhecer a natureza,
φὑσις, physis, foram investigados; a verdade foi incessantemente buscada. A partir daí,
com o advento da sofística, se direcionaram para o homem, άνθρωπος, ántropos..
Para Sócrates não se deve tentar compreender a natureza, φύσις, physis, porque o
homem corre o risco de enlouquecer, pois ele jamais poderá saber tudo; nesse momento,
desloca essa tentativa de compreensão para o homem: “Γνώθι σεαυτον.” – “Conhece-te a
ti mesmo.”
Desse modo, concluímos que, sobre a verdade, jamais se pôde dizer tudo ou
encontrá-la e alcançá-la em sua plenitude... É a verdade, então, um mito?
REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. Questões discutidas sobre a verdade. In: Santo Tomás de Aquino.
Seleção de Textos. Tradução Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
BAZARIAN, Jacob. O problema da verdade. Teoria do conhecimento. 2. ed. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1985.
DESCARTES, René. Discurso do método. Meditações. Tradução: Roberto Leal Ferreira.
2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GRIMAL, Pierre. A mitologia grega. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1983.
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. 6. ed. São Paulo: Hemus,
1979.
PLATÃO. Diálogos III. A República. Tradução: Leonel Vallandro. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, S/D.
_____. Apologia de Sócrates. Banquete. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin
Claret, 2007.
_____. Os pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
REALE, Miguel. Verdade e conjetura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SANTOS, Mário José dos. Os pré-socráticos. Juiz de Fora: UFJF, 2001.
VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução: Rosa Freire
d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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