BULLYING: UMA QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS Luiz Gustavo Fabris Ferreira1 1. Introdução. 2. Conceito e caracterização do bullying. 3. Tipos de bullying e perfil dos agressores e vítimas. 4. O bullying e a dignidade da pessoa humana. 5. Considerações finais. 1. Introdução. Um tipo de violência física e/ou psicológica, caracterizada pela repetição de atos e pelo desequilíbrio de poder entre agressor e vítima. Essa é a definição de bullying, um fenômeno antigo, presente principalmente nas escolas, e que nem sempre recebeu a devida atenção de professores, pais, alunos e da sociedade. Por ser difícil uma tradução fiel do termo para a língua portuguesa, utiliza-se a denominação bullying para uma forma de violência que pode implicar em sequelas, tanto às vítimas quanto aos agressores, e no contexto escolar é compreendido como uma série de agressões como xingamentos, apelidos, fofocas, empurrões e chutes que ocorrem com frequência contra uma pessoa. A partir dos anos 80, vários países começaram a pesquisar tal fenômeno e pelo fato da difícil tradução que não tem equivalentes em outras línguas, abordaram-se diferentes definições nas pesquisas. Segundo CUBAS (2007, pág. 176), Heineman foi um dos primeiros a estudar esse fenômeno utilizando o termo mobbing, referindo-se à violência praticada contra uma pessoa “diferente”, que começa e termina inesperadamente. Já Olweus, professor da universidade de Bergen, Noruega, também usou esse termo, porém ampliou a definição incluindo os ataques sistemáticos, pessoa a pessoa, de uma criança mais forte contra uma criança mais fraca. Nos Estados Unidos, a palavra bullying, muitas vezes, é substituída por victimization (vitimização) ou peer rejection (rejeição pelos colegas). Na França, é utilizado o termo “violência moral”, enquanto no Brasil se usa “comportamento agressivo entre estudantes”. 2. Conceito e caracterização. Para a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas, realizadas de forma voluntária e repetitiva, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder. Sendo assim, os atos repetitivos entre iguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais que levam à intimidade da vítima. No entanto, a maior parte das pesquisas adota a definição elaborada por Olweus, segundo a qual parte de três características: trata-se de um comportamento agressivo ou 1. Graduando em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo (1° ano) e pesquisador membro do Grupo de Estudos. Outubro/2010. de uma ofensa intencional; ocorre repetidamente e durante muito tempo; ocorre em relações interpessoais caracterizadas por um desequilíbrio de poder. 3. Tipos de bullying e perfil dos agressores e vítimas. Existem dois tipos de bullying: o direto e o indireto. O primeiro é aquele mais fácil de ser percebido, por tratar-se de ataques abertos à vítima. Podem ser ataques físicos – socos, empurrões, chutes, etc. ou verbais – apelidos, ameaças, insultos, boatos e fofocas. O segundo é um tipo de agressão mais sutil e, por isso, mais difícil de ser percebido. São casos de alunos que fazem caretas ou gestos obscenos para suas vítimas, que manipulam relacionamentos, isolam e excluem colegas das atividades em grupo. Através das pesquisas de Olweus, foi possível traçar o perfil das vítimas e agressores dos casos de bullying nas escolas. Existem dois tipos de vítimas, as passivas ou submissas e as provocativas. Entre as primeiras estão as pessoas mais ansiosas e inseguras do que a média dos alunos, as mais sensíveis e quietas. Essas vítimas geralmente sofrem de baixa auto-estima e têm uma visão negativa de si mesmas. Quando agredidas, reagem chorando ou se afastando dos agressores. Sentem-se fracassadas e sem nenhum tipo de atrativo que possa conquistar amigos, o que as tornam solitárias e isoladas do grupo. A principal característica dessas vítimas é que não são agressivas e não provocam os outros alunos, reprovando atitudes violentas. Por outro lado, as vítimas provocativas são pessoas que apresentam, ao mesmo tempo, ansiedade e reações agressivas, podendo praticar bullying contra crianças mais fracas que elas. Geralmente esse tipo de vítima tende a provocar reações negativas de alguns ou de todos os alunos da sala. Um dado interessante da pesquisa é que alunos com características diferentes, como cabelos ruivos, óculos, aparelhos ortodônticos ou com acne, não são as vítimas mais frequentes das agressões, como se costuma pensar. Em relação aos agressores, claro está que a agressividade é uma das suas principais características, não apenas no trato com os colegas, mas também muito impulsivos com os adultos, professores e pais. Existe também o agressor caracterizado como secundário que não toma a iniciativa nas agressões, é uma espécie de cúmplice. Pode-se observar uma significante diferença entre meninos e meninas quanto ao tipo de participação. Os primeiros aparecem com maior frequência entre os agressores e em casos de bullying direto. As segundas, nos casos de bullying indireto. Investigações apontam que o senso de responsabilidade social fica reduzido quando várias pessoas participam das agressões, ou seja, o sentimento de culpa do grupo fica reduzido. Casos de bullying sem nenhum tipo de intervenção traz sérias consequências, pois favorecem comportamentos anti-sociais e de não aceitação ou quebra de regras que podem se estender para a vida adulta. Segundo pesquisas longitudinais, realizadas nos Estados Unidos, os agressores têm maior probabilidade de se envolver em casos mais graves de agressões, de serem presos ou de terem ocorrências criminais na vida adulta. Crianças vitimizadas tendem a ter baixa auto-estima e experiências de depressão, e a ter alto grau de sensação de medo, ansiedade, culpa, vergonha, desamparo, problemas com álcool ou depressão, se comparadas com pessoas que não tiveram a mesma experiência. 4. Bullying e a dignidade da pessoa humana. Como pode ser visto, bullying não é simplesmente uma fase do desenvolvimento normal de uma criança, é um problema social sério que pode afetar a habilidade dos alunos e seu progresso acadêmico e social, podendo ser classificado como uma forma de agressão física, moral e, dessa maneira, ir contra princípios básicos como o da dignidade da pessoa humana. SARLET conceitua dignidade da pessoa humana como sendo uma: Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Já, José Afonso da Silva define a dignidade como: Um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais (observam Gomes Canotilho e Vital Moreira), o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. Com a universalização dos direitos humanos após a II Grande Guerra e a proclamação da Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – DUDJ/ONU, em 1948, consagrou-se a dignidade da pessoa humana como valor fundamental da ordem jurídica, a significar a garantia última da pessoa humana em relação a uma total disponibilidade por parte do poder estatal e/ou social. A dignidade da pessoa humana foi assim elevada ao “máximo dos valores” ou “princípio jurídico supremo” e enquanto garantia constitucional, na medida em que positivada pelos ordenamentos nacionais, tornou-se o “princípio constitucional supremo”. A Constituição Brasileira, no artigo 1º, estabeleceu a dignidade da pessoa humana como um fundamento da República Federativa do Brasil. Afirma Luiz Alberto David de Araújo (In: MACHADO, 2003, pág.94) que a dignidade da pessoa humana é um dos princípios constitucionais fundamentais que orientam a construção e a interpretação do sistema jurídico brasileiro. O que se buscou enfatizar foi o fato de o Estado ter como um de seus objetivos proporcionar todos os meios para que as pessoas possam ser dignas. Este fundamento foi melhor especificado em relação à criança e ao adolescente no artigo 227 da Constituição Federal, estabelecendo que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A Lei dispôs como dever prioritário da família, da sociedade e do Estado, a necessidade de colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Esta questão acabou sendo tratada de forma específica e detalhada no Estatuto da Criança e do Adolescente que, em capítulo próprio, detalhou a questão da dignidade. Assim, estabelece o ECA: Art. 18 – É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Sabe-se que o fenômeno bullying, sendo uma forma de violência praticada principalmente no âmbito escolar e contra crianças e adolescentes, atenta diretamente contra o princípio fundamental da dignidade do ser humano. Até porque tais atos resultam em delitos criminais, como lesão corporal, difamação, calúnia, etc. Desta forma, deve ser combatido por todos que são responsáveis pelo desenvolvimento das crianças e adolescentes, como os pais, professores, diretores, e a sociedade em geral. Caso esta situação não se verifique, não há como negar que a prática desse fenômeno atenta contra os direitos humanos dessas crianças. Não é por outra razão que a Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece, em seu artigo 19, o seguinte texto: 1. Os Estados-partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. 2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de casos de maus-tratos a crianças acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária. 5. Considerações Finais. Como se pode observar, o problema que inicialmente parece uma parte do desenvolvimento e amadurecimento de uma criança, não é tão simples, pois envolve direitos humanos de um ser em formação. Por implicar sequelas à vítima, resultar em uma infração, deve ser desenvolvido um sistema de combate que envolva não somente a escola, mas também a sociedade como um todo. A questão essencial é reconhecer que esse tipo de comportamento afronta a lei, não podendo ficar compreendido apenas no âmbito escolar. Na hierarquia dos direitos que regulamenta o ECA, a dignidade humana encontra-se abaixo apenas do direito à vida e à saúde, ficando em posição superior aos direitos à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho. Dessa maneira, a atenção e o comprometimento que deveriam envolver a sociedade para pôr fim aos casos de bullying passam a ser um dever. Por essa razão é que há uma relação firmada entre tal fenômeno e a dignidade da pessoa humana. 6. Bibliografia. BRASIL – Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003. BRASIL – Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva, 2002. CUBAS, Viviane. Bullying: assédio moral na escola. In: CUBAS, Viviane de Oliveira, ALVES, Renato e RUOTTI, Caren. Violência na escola: um guia para pais e professores. São Paulo: Andhep. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. Positivo, 33ª edição, revista e atualizada – Malheiros Editoras, 2010, pág. 105. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP. Manole, 2003. (Luiz Alberto David de Araújo). SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, pag. 32.