EDITORIAL É evidente que o aniversário de uma instituição não tem o mesmo sentido que o aniversário de um ser humano. A diferença está, é claro, no valor lógico de seus tempos. Enquanto o ser humano joga o baralho de sua vida com tempos marcados pela passagem perecível de seu corpo, o corpo institucional se revela, na medida em que aumenta a sua extensão, cada vez mais atrelado às circunstâncias discursivas que o sustentam. O ponto de articulação entre ambos é essa pequena partícula da língua que chamamos de significante. Pequena e sensível dobradiça que une, ao mesmo tempo que separa, a instituição de seus membros. Grifamos esta última palavra porque não deixa de nos chamar a atenção a precisão com que a língua destaca com delicadeza o caráter material de sua presença – a dos membros – advertindo-os sobre o viés corporal de sua existência. Presença efetiva, fazendo exercício dos significantes que desdobram o viés discursivo, no qual a instituição se suporta (no duplo sentido de suporte e tolerância). Tal o cerne disso que chamamos Instituição. Se ela for Psicanalítica, então os significantes que nela se articulam precisam cumprir uma particular função: a de transmitir um saber – o saber sobre a ignorância. Por acréscimo, e de modo fundamental, debelar a farsa da ingenuidade. Este último chama-se de Ética, que é, nem mais nem menos, simplesmente se fazer responsável pelas conseqüências de seu ato sobre o outro. A Associação Psicanalítica de Porto Alegre celebra nesse 17 de dezembro de 1999 dez anos de exercício de uma ética. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 1 NOTÍCIAS NOTÍCIAS EXERCÍCIOS CLÍNICOS Data: 4 de dezembro Horário: 10h Local: sede da APPOA Atualmente, é comum encontrarmos psicanalistas inseridos nas mais diferentes instituições da cidade. Hoje, mais do que nunca, eles estão conscientes de que, apesar dos limites, e até impossibilidades, impostos pelo contexto institucional ao exercício da prática psicanalítica, é importante apostar na possibilidade de que algum trabalho norteado pela ética psicanalítica encontre lugar. No entanto, algumas questões merecem uma atenção especial de nossa parte: que efeitos sofre a transferência analista-analisante quando desenvolvemos uma prática clínica em uma instituição? Como pensar a transferência do membro com a instituição e sua relação com a transferência analista-analisante? Qual é o Sujeito da transferência? Qual é o Outro numa instituição? Estas são as interrogações propostas para debate, por Valéria Rilho, para o próximo Exercícios Clínicos, o qual contará com a participação de Ana Maria da Costa e Liz Nunes Ramos, enquanto mediadoras da questão. CONGRESSO – CONVIDADOS No próximo dia 08/12, às 20h30min, na sede da APPOA, o Cartel Preparatório do Congresso – 500 Anos estará recebendo a historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Na oportunidade, a professora estará apresentando os temas de seu último livro - “O imaginário das cidades - Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre”. FESTA DE DEZ ANOS No próximo dia 04 de dezembro, estaremos comemorando os dez anos de fundação da APPOA. Convidamos a todos para festejarmos juntos esta data tão significativa na história de nossa Associação. A festa será realizada na sede, às 20h e 30min, e o valor do ingresso será R$ 10,00. Comissão de Eventos CARTEL DO INTERIOR REVISTA DA APPOA N. 17 NEUROSE OBSESSIVA Informamos que o próximo encontro do Cartel será no dia 04 de dezembro, às 14h e 30min, na sede da APPOA. Nessa oportunidade, o colega Volnei Dassoler apresentará seu projeto de pesquisa “A experiência analítica como uma ficção”. Lembramos que as reuniões do Cartel do Interior são abertas a todos os interessados. Cartel do Interior Foi lançada dia 20 de novembro, por ocasião da Jornada Clínica sobre a Neurose Obsessiva, a Revista da APPOA - Neurose Obsessiva. Lembramos aos membros e participantes da APPOA que o seu exemplar já se encontra disponível na secretaria, das 9h às 21h e 30min. Aos demais interessados, a Revista pode ser adquirida através de assinatura anual ou venda avulsa, conforme ficha anexa a esta publicação. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 2 3 NOTÍCIAS NOTÍCIAS REVISTA DA APPOA N. 18 O SÉCULO DA PSICANÁLISE ou A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA XIX JORNADA DE ESTUDOS DO CENTRO LYDIA CORIAT PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NA CLÍNICA DE CRIANÇAS COM PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO A afirmação de que a psicanálise é um produto do seu tempo encontra sua legitimidade na noção lacaniana de inconsciente como o discurso do Outro. Mas não esqueçamos que foi preciso uma posição de ruptura, a qual Freud teve singularmente condições de suportar, para dar uma certa formatação ao discurso social. A psicanálise, há algum tempo, vem se ocupando do discurso social. A idéia proposta como temática desta próxima Revista é fazer o caminho inverso: ater-se às contribuições que a psicanálise trouxe para o século XX. Podemos pensar que o século teria sido diferente sem ela? Quais as contribuições da psicanálise para o século que se encerra? Algumas delas já podemos contar como irreversíveis, a tal ponto que, hoje em dia, é difícil pensar o homem sem elas. As noções de sexualidade infantil e complexo de Édipo tornaram-se essenciais para a compreensão do desenvolvimento infantil e da estruturação da subjetividade. Faz parte do senso comum a idéia de uma relação direta entre o fracasso da vida sexual e a neurose, o que contribui para a abolição da cisão radical entre normal e patológico. Os sonhos, lapsos, sintomas e chistes são tomados como produtos do inconsciente e denunciam a presença de um sujeito em jogo. O inconsciente veio para ficar, mesmo que entendido desde diferentes acepções teóricas. Enfim, a psicanálise marcou mais o século, enquanto desdobrando idéias que vieram balizar condutas éticas, do que, propriamente, como uma possibilidade terapêutica, mesmo que tenha praticamente revolucionado o afazer terapêutico do século. Pedimos a todos que se sentirem convocados em colaborar na abordagem do tema ora proposto que enviem o seu texto para apreciação da Comissão da Revista até o dia 15 de março de 2000. “O trabalho psicanalítico e educacional na instituição do tratamento” Maria Cristina Kupfer (psicanalista, professora livre docente e doutora em educação do Instituto de Psicologia da USP, diretora da Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida, editora da revista “Estilos da clínica”) 4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 Após as pretensões iniciais de Sigmund Freud, de a psicanálise contribuir para uma educação menos repressiva, ambas disciplinas distanciaram-se na procura de sua especificidade. Enquanto a educação empenhou-se na pesquisa dos parâmetros racionais do objeto de conhecimento, a psicanálise persistiu no caminho de indagar os fundamentos do sujeito do desejo. Num ponto, porém, as interseções foram não só inevitáveis como necessárias: onde a patologia do sujeito faz obstáculo às aprendizagens, ou o déficit lógico coloca em questão o sujeito. Esse ponto de abordagem necessariamente interdisciplinar, alimentou um reencontro entre a psicanálise e a educação que, hoje em dia, transita por novos caminhos. Tal o ensejo que Maria Cristina Kupfer se propõe a desdobrar. DATA: 11 de dezembro de 1999 HORÁRIO: 8h e 30min abertura - 9h às 12h e das 14h às 18h LOCAL: Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano INSCRIÇÕES: Centro Lydia Coriat - rua André Puente, 415 - Porto Alegre Tel.: (51) 311 2243 ou (51) 311 0091 Estudantes e alunos do Centro Lydia Coriat - R$ 35,00 Profissionais - R$ 45,00 Profissionais de instituições (grupos de 10) - R$ 35,00 APOIO: Associação Psicanalítica de Porto Alegre Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 5 NOTÍCIAS NOTÍCIAS ENCONTRO SULAMERICANO DOS ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE Nos dias 13,14 e 15 de novembro, teve lugar no Instituto Sedes Sapientae a reunião convocada pelo grupo dos Estados Gerais de São Paulo. Houve inscritos de várias regiões do Brasil e também de Argentina, mais precisamente, de Buenos Aires. Foram apresentados em torno de 95 trabalhos, e se inscreveram 145 psicanalistas, de diversas procedências institucionais e independentes. Foi surpreendente o clima de trabalho e de troca que houve ao redor dos temas propostos. A avaliação realizada é de que a possibilidade de falar em nome próprio contribuiu decisivamente para este clima. Interessante constatar como os participantes colocavam, na pertença institucional, um enclausuramento – talvez um perseguidor? – que esteriliza os debates. Foram realizadas mesas com os seguintes temas: Psicanálise, Direito e Instituições; Depressão e Melancolia; Montagem tóxica e subjetividade na clínica; O lugar do Pai; Transmissão e Instituição da Psicanálise I e II; Psicanálise, Arte e Literatura I e II; Em torno da sublimação; O sexual e o feminino; Autismo:clínica e intervenção precoce; A clínica da psicanálise no ano 2000; Psicanálise e Psicofármacos I e II; Mal-estar na civilização e psicanálise; Ética e Psicanálise; e várias outras. Abriu-se um amplo leque de temas, de acordo com os trabalhos apresentados. Na reunião final, ficou como proposta, na medida em que o interesse dos participantes possa sustentá-lo, um novo encontro, posterior ao evento em Paris e integrando esta experiência, a ser realizado no mês de outubro do próximo ano. Isabel Marazina 6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 PROPOSTAS DE ENSINO PARA 2000 A Comissão de Ensino está recebendo propostas para o ensino que será ministrado no ano 2000. Gostaríamos de receber suas propostas até dia 5 de dezembro, pois, ao contrário de outros anos, queremos ser mais ágeis na divulgação de nosso Programa de Ensino. Por isso contamos com a sua colaboração. As propostas podem ser entregues na secretaria (em mãos ou via email). Não se esqueça de colocar todos os detalhes que são necessários para a divulgação: local, dias de funcionamento, data de início dos trabalhos e o nome do grupo ou seminário de uma maneira bem clara, bem como o nome completo do responsável ou responsáveis pelo ensino e ainda um telefone para contato para a Comissão de Ensino tirar eventuais dúvidas. Comissão de Ensino C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 7 GAGEIRO, A. M. A construção de uma psicanálise plural. SEÇÃO TEMÁTICA A CONSTRUÇÃO DE UMA PSICANÁLISE PLURAL N ós, os humanos, gostamos de contar o tempo; gostamos, ainda mais, de fechar contas em números redondos, dez anos, um século, outro milênio. Daí, rememoramos e comemoramos, se for o caso. O mês de dezembro do ano em curso oferece-nos essa dupla oportunidade: de comemorar os 10 anos da Fundação da APPOA e, também, de rememorar as circunstâncias e os fatores que tornaram este ato possível e necessário em nossa cidade. A bem da verdade, não se pode dizer quando uma instituição analítica começa, a não ser arbitrariamente, pois não se sabe bem quando o desejo ou a aposta que um laço se constitua e produza efeitos formativos se transforma numa realidade. Este é um dos temas que os textos desta edição procuram abordar. Ana Gageiro se propõe a rememorar as condições que marcaram a história recente da Psicanálise em Porto Alegre. Nosso colega Rodolpho Rufino reflete sobre a experiência institucional psicanalítica em sua cidade, São Paulo. Trazendo seu depoimento pessoal Domingos Paulo Infante nos fala sobre sua experiência institucional num dos movimentos que marcou os anos posteriores à morte de Lacan: o millerianismo. Denise Quintão escreve sobre a transferência e seus efeitos na transmissão da Psicanálise, e como esta se opera em uma instituição psicanalítica, passando pelo desfiladeiro perigoso da demanda de reconhecimento, de filiação, de mestria, para a possibilidade de um laço singular com a psicanálise, onde o desejo está em causa. Esperamos que esses depoimentos nos ajudem a refletir sobre a experiência institucional e seu efeitos formativos, que permitem enfrentar os impasses de toda experiência, para que possamos comemorar mais dez anos, com a mesma disposição que hoje nos alegra. Ana Maria Gageiro “D urante muitos anos, em Porto Alegre, ser psicanalista foi sinônimo de ser psiquiatra”. Este foi, com certeza, o enunciado mais repetido entre aqueles que entrevistei ao longo do meu trabalho de pesquisa. 1 Ao mesmo tempo em que ele afirma uma hegemonia da psiquiatria na formação dos psicanalistas gaúchos, durante duas décadas, ele fala de um passado recente. Consideramos que alguns fatos acontecidos em meados da década de 70 serão os primeiros movimentos nas mudanças deste cenário, que culminará nos anos 80, quando psicanalista e psiquiatra deixam de ser a mesma coisa, assim como a própria psicanálise deixa de ser uma só. Importante salientar uma particularidade do campo psiquiátrico/psicanalítico de nossa cidade, que muito contribuiu para a hegemonia da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). 2 Os dirigentes desta instituição, desde sua fundação, detinham o controle da cadeira de Clínica Psiquiátrica do curso de Medicina da UFRGS, do curso de Especialização em Psiquiatria e da residência em Psiquiatria na Divisão Melanie Klein do Hospital São Pedro. A alternância nas direções de todas elas se dava entre os didatas da SPPA, pelo menos nas décadas de 60 e 70. A partir 75, a SPPA passa a viver uma crise interna bastante forte e que repercute também no curso de Especialização em Psiquiatria da UFRGS. Esta crise tinha a ver com o descontentamento frente a permanência do mesmo grupo no comando das duas entidades. Um grupo de psicanalistas, ligados à Universidade, se antecipa e apresenta um projeto de Especializa- Maria Ângela Brasil Márcia Ribeiro 1 Pesquisa de doutorado sobre a história da psicanálise e de sua institucionalização em Porto Alegre. 2 Primeira associada da IPA em Porto Alegre, a segunda é a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (1998). 8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 9 SEÇÃO TEMÁTICA ção que é aprovado, impedindo assim a manutenção dos mesmos na condução do curso. Internamente na SPPA, alguns psicanalistas que, por anos à fio, davam seminários, foram dispensados destas funções. Era um segundo golpe sofrido pelas mesmas pessoas, que, então, se retiram da SPPA e da Universidade. O final da década de 70 é marcada também por um fenômeno que ficou conhecido como “o retorno dos reprimidos”. Tratava-se do retorno daqueles que não tinham sido aceitos para fazerem formação na SPPA, e que foram, então, para Buenos Aires, para realizar este objetivo. Alguns, também, buscavam um afastamento do país, devido às suas atividades políticas, que tornava a permanência aqui bastante difícil, pois estávamos em plena ditadura. Este grupo, quando retorna, traz em sua bagagem não só a formação analítica, mas, também, a vivência de um rico período de debates e mudanças na Associação Psicanalítica Argentina, a partir dos questionamentos dos grupos Plataforma e Documento e da formação da Coordenadoria de Trabalhadores de Saúde Mental e do Centro de Docência e Investigação. 3 Ao retornarem a Porto Alegre, é recusado o ingresso automático destes psicanalistas à SPPA, mesmo eles sendo membros da Associação Psicanalítica Argentina e, portanto, filiados à IPA. Seu ingresso seria mediante a apresentação de um novo trabalho de conclusão, não podendo ser o mesmo apresentado na APA. A outra condição seria terem, pelo menos, um caso em atendimento, supervisionado por um didata da SPPA. Praticamente todos se recusaram a se submeter às exigências, ficando, portanto, impedidos de ingressar na filiada da IPA de Porto Alegre e mantendo-se filiados à APA. A partir de 1976, começam a chegar em Porto Alegre alguns psicanalistas argentinos para quem a ditadura havia se tornado insuportável e perigosa. Miguel Massolo, Alfredo Jerusalinsky e Marta Brisio traziam na bagagem as leituras de Freud , de Melanie Klein e de Jacques Lacan. 3 GAGEIRO, A. M. A construção de uma psicanálise plural. Também neste mesmo ano, Roberto Harari passa a vir com freqüência à Porto Alegre, para desenvolver seminários de estudos de Freud, já com uma leitura lacaniana. Este trabalho terá como fruto a fundação da Maiêutica de Porto Alegre. Ainda neste período, temos as fundações do Centro de Trabalho em Psicanálise e Grupos, o Centro de Estudos Freudianos de Porto Alegre e a Cooperativa Cultural Jacques Lacan. Estavam lançados os principais ingredientes locais, que fariam fermentar as mudanças que viriam logo, tendo elas a marca da abertura e da democratização, que eram as palavras de ordem no Brasil deste período. Afirmação das instituições, dos partidos políticos e da sociedade civil era o clamor que indicava o caminho da reconstrução democrática. Aqueles que, por alguma razão exposta anteriormente, haviam ficado excluídos do legitimismo ipeísta, ou ainda pelo fato de não serem médicos, lançam-se na experiência institucional fora dele. É o período do surgimento das novas instituições, que proporão estudos e/ou formação em psicanálise e que, de formas diferentes, contribuirão na afirmação da análise profana. Do grupo que havia retornado da Argentina, tivemos o CEAPIA e, logo depois, do CEPP, que até 89 tinha o nome de Centro de Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica, denotando, no significante psicoterapia, a cautela de seus dirigentes neste difícil início. A troca de nome para Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, de seus estatutos e normas para a formação, ocorre no mesmo ano da fundação da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, indicando que, possivelmente, no final da década de 80, autorizávamo-nos, mais e mais, a tomarmos o significante psicanalítico como uma herança a administrar. Os que deixaram a Universidade e a SPPA, juntamente com mais alguns, deram início à Fundação Mário Martins, e aqueles que estudavam com Harari fundam a Maiêutica de Porto Alegre. Ainda no campo da psicanálise lacaniana, surge o Centro de Trabalho em Psicanálise e Grupos, o Centro de Estudos Freudianos de Porto Alegre e a Cooperativa Cultural Jacques Lacan. Interessante alguns depoimentos sobre essas fundações e sobre os novos contornos que a psicanálise foi adquirindo. Sobre os espaços funda- Sobre este tema ver Slavutzky, Abrão Psicanálise e Cultura, Vozes, Petrópolis, 1983. 10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 11 GAGEIRO, A. M. A construção de uma psicanálise plural. SEÇÃO TEMÁTICA dos pelos que retornaram da Argentina: “não sendo genuinamente ‘estrangeiros’, aplacaram, em parte, os sentimentos xenófobos locais. Posicionandose entre IPA e não-IPA, podiam falar de Freud, Klein e outros, porque eram avalizados pela IPA, mesmo sem pertencerem à associação local”. Sobre o campo lacaniano: “custamos a nos autorizar a trabalhar com divã, pois éramos psicólogos recém-formados. A transferência com os argentinos nos ajudou a sustentar o ser lacaniano em Porto Alegre, naquele início”. E ainda: “os argentinos que aqui chegaram nos mostraram que era possível ler Freud, sem ser um reacionário. Era possível estudar e praticar a psicanálise de um modo mais aberto. O discurso lacaniano veio legitimar esta possibilidade. Legitimar e possibilitar que os psicólogos se autorizassem psicanalistas”. Dois fatos ainda, no início dos anos 80, sacodem o legitimismo ipeísta local ao afirmarem a análise leiga. O primeiro é a derrota na justiça sofrida pela Associação Psicanalítica Americana, numa ação que questionava a legalidade da política de exclusão dos não-médicos. A partir desta derrota, a IPA orienta todas as suas filiadas a abrirem suas portas aos psicólogos. Na assembléia geral de março de 1989 da SPPA, é comunicada a abertura do Instituto da SPPA aos psicólogos que desejarem fazer formação analítica. O outro momento marcante foi o simpósio organizado em 81 pelo grupo Embrião, chamado “Alternativas no espaço psi”, que mobilizou um grande número de profissionais e estudantes, com empolgados debates em torno das práticas do psicólogo e da formação psicanalítica. Inicia-se um percurso nesta nova aventura institucional, fora do legitimismo, com a criação de um espaço de afirmação e de reconhecimento na pólis, que trouxe uma grande riqueza para a psicanálise local. Tivemos ainda, no campo lacaniano, a ruptura da transferência exclusiva com os argentinos e uma ampliação nas trocas com os franceses e com os psicanalistas do centro do país. A psicanálise se torna plural, os reconhecimentos não obedecem mais aos ditames burocráticos e, cada um, sente-se convocado a sustentar um nome, uma filiação e uma herança simbólica. A experiência da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, em 89,, vem na esteira dessas mudanças profundas, cujo resultado foi um amadure- cimento institucional. Ter experimentado a exclusão do campo psicanalítico pela determinação de outros, ter insistido nesta transferência com a psicanálise “apesar” dos legitimistas, ter assumido para si e com outros, numa instituição, o significante psicanalista e sustentado-o no laço social; tudo isso, possibilitou as experiências institucionais da década de 80. A aposta da APPOA na transferência de trabalho, como aquela que pode sustentar uma instituição psicanalítica, era o que muitos demandavam, pois eram conhecidos os efeitos dos ‘trenzinhos transferenciais’ e dos pequenos grupos com seus mestres. Rejeitava-se, de outro lado, a transferência burocrática, pois esta era a marca da ruptura que se fazia naquele momento. Ao comentar a experiência da APPOA, Contardo Calligaris4 refere: “estavam num momento do percurso analítico em que não precisavam acreditar que houvessem ‘únicos’. Que este ‘momento de graça’ transmita um estilo à geração seguinte”. Os anos 90 vem consolidando estas experiências institucionais e, sobretudo, afirmando o ganho qualitativo na quebra da hegemonia e no aparecimento das diferenças. Podemos, talvez, afirmar que o ganho tenha sido o de poder transmitir à geração seguinte que a psicanálise é plural e universal. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 12 4 CALLIGARIS, Contardo “À escuta do sintoma social” in Anuário Brasileiro de Psicanálise, coord. Daniel Ropa, vol. 1, n. 1 – Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1991, p. 14 e 15. 13 RUFFINO, R. Crônica de uma história sem traçados. SEÇÃO TEMÁTICA CRÔNICA DE UMA HISTÓRIA SEM TRAÇADOS Rodolpho Ruffino1 P ensei em esboçar aqui, não a história, porque ela ainda não se fez, mas dela um traçado. Há, entretanto, dela apenas traços, traços que poderão permitir sua escritura. Neste momento, porém, ela ainda se decide e a incerteza não autoriza, hoje, o saber do trilhamento da futura escritura. Há uma história dos traços, mas este que escreve está por demais envolto nos mesmos para tematizá-los. Não há pessimismo nestas linhas. É só o senso do impossível de uma retomada que aqui faz calar. No fazer, no construir, ao contrário, o entusiasmo não tem faltado. Do que falo? Da comunidade dos analistas de referência lacaniana em São Paulo, de sua organizabilidade e da possibilidade de sua história. Em São Paulo, se essa comunidade quiser ter algo parecido com um traçado de sua história em seu futuro, ela terá que, contra toda a inércia, provar-se capaz de estabelecer laços entre os analistas nela inscritos, que possam fazer frente ao individualismo que aqui corre a galope. Laços que ofereçam o suporte para certas apostas, que apontem para perspectivas que possam ser mais caras do que a sedução de uma imediaticidade segura, porém efêmera. Por vinte anos ficaram esgotadas as possibilidades que antes poderiam ter existido para isso. Hoje elas se reabrem. Saberemos o que fazer entre elas? Nos últimos vinte anos, de um lado, um pretenso império que exigia servidão aos seus, mas império que, há dois anos, veio a fraturar-se; de outro, os chamados, não por eles próprios, “independentes”: alguns, no centro de um pequeno feudo, nada queriam de laços com seus pares, outros, em isolamento, sobreviviam graças a incansáveis investidas sempre a serem 1 Membro Correspondente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e Membro Fundador do Fórum Psicanalítico de São Paulo. 14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 retomadas do ponto zero. Da servidão voluntária ao delírio de autonomia, assim se dividiam os analistas na “locomotiva do país”. Se uma história puder ser escrita, ela deve se apoiar nesta constatação: se o discurso do analista há de ser o avesso do discurso do capitalista, a história dos laços e das produções entre analistas numa cidade-locomotiva do capital só poderá se escrever quando a comunidade de analistas dessa cidade puder opor, ao inercial do gozo que lá se engendra, uma rede discursiva suficientemente capaz de dar suporte a um laço com a cidade, proporcional à negatividade que ele precisará suportar. Uma dissidência do império de diversas tonalidades, articulada com um conjunto dos ditos “independentes”, iniciaram conversações, para a qual constituíram um Fórum. Em seis meses, por três vezes, facções afeitas à imperialidade sem certo imperador deixaram o novo espaço; de outro lado, “independentes” sem vontade de laços, menos barulhentamente, faziam o mesmo, só que estes, com o cuidado de não fechar demais a porta. Hoje, vinte e seis inscritos, entre noventa em circulação, dos quais quinze operam quotidianamente a gestão do empreendimento, escutam-se mutuamente para reconstruir uma história cujo traçado permanece ainda na invisibilidade. O encontro reunia quem não se esperava, do ponto de vista do conjunto que se perfazia. Nomes a que a memória auditiva já nos acostumara, surgindo em rostos que a vista não registrava, mesclavam-se com casos opostos. Antigos companheiros, que duas décadas separaram, agora sentavam-se lado a lado. Aqui e ali, dois mútuos desconhecidos descobriam-se solidários em experiência e em pensamentos. Experiências distintas se revelariam homólogas e de homologias estruturais se descobririam singularidades distantes enriquecedoras: uma comunidade de diferenças a se constituir para além de um mero ajuntamento. Há muito a se fazer antes de poder se escrever uma história. Isto, estará para o futuro, desde que no presente algo já possa se inscrever. Uma aposta, isto é algo novo, que em São Paulo se inscreveu. Aqueles que esta aposta hoje reúne, entre desconhecimentos e reconhecimentos de rostos, nomes, experiências, pensamentos e singularidades, constituem uma C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 15 INFANTE, D. P. O millerianismo. SEÇÃO TEMÁTICA O MILLERIANISMO trama cujas linhas escondem ainda o segredo daquilo que, no sobrevivente, operou pela sobrevivência. Que sabedoria cada um guarda de si mesmo, a sete chaves, por meio da qual, sob condições tão adversas, eles mantiveram-se presentes na sustentação da experiência psicanalítica? Creio que a resposta que esta questão convoca, quando puder se apresentar, introduzirá o esboço de um possível traçado para a história a se fazer. A crônica alusiva, penso, bem convém a essa história ainda sem traçado que hoje ousa querer-se prenhe de futuro. Aqui encerro. Que a história possa, ao ser traçada, ter em bom lugar o laço onde, há tempos, eu reconheci a afinidade que articula São Paulo à Porto Alegre. Essa ponte tornou bem mais do que apenas agradável a persistência ao campo da psicanálise de ao menos um paulista em anos muito adversos: este que aqui assina. Domingos Paulo Infante1 Axiome: L’homme Thème: L’homme axiomatique Thèse: L’éxtase vexée (Ghérasim Luca – Théâtre de Bouche) A lguns episódios que testemunhei podem ser esclarecedores do fenômeno milleriano. Num cartel em que participava como mais-um, o desfecho foi tão intempestivo quanto melancólico. Numa das reuniões onde discutíamos a interpretação, é mencionado um texto, recente na época, de Jacques Alan Miller que anunciava o fim da interpretação. Uma colega, que tinha e tem uma importância na EBP, arrebatada, exclama: esse texto é definitivo e só mesmo JAM poderia tê-lo escrito! Frente a essa afirmação extravagante e, convenhamos, exorbitante, eu prontamente me oponho, não ao argumento do texto que era o que devia ser debatido, mas ao pressuposto da afirmação. Frente à insistência dessa colega, me ocorre dizer a ela que afinal aquilo não era uma leitura do torá, na qual se supõe que a verdadeira palavra é revelada, no caso revelada à JAM. Essa colega, indignada, levanta-se e diz: eu me recuso a participar de um cartel onde se possa dizer isso de JAM. Fim do cartel. Em 90, num encontro nacional do Campo Freudiano, cujo tema era a ética da psicanálise, JAM era o responsável pelo seminário do encontro. Ao 1 16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 Membro do Fórum de Psicanálise de São Paulo C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 17 SEÇÃO TEMÁTICA INFANTE, D. P. O millerianismo. término de uma dessas exposições, um colega intervém argumentando que JAM não deveria remeter seu ensino exclusivamente à Lacan, como havia feito durante toda a exposição, pois, para ele, era claro que havia, nas contribuições de JAM, algo que não se limitava à transmissão do ensino de Lacan. JAM responde dizendo que quando ele criasse algo novo, que estivesse fora do ensino de Lacan, ele marcaria esse evento, mas até ali isso não acontecia. Frente à insistência do colega entusiasta, JAM parece visivelmente contrariado e insiste de que o que ele trazia era o ensino de Lacan, ao qual ele nada acrescentava. No Encontro Internacional do Campo Freudiano, na Argentina, em 88, um analista argentino escreve um texto espinafrando o Anti-Édipo de DeleuzeGuatari. Antes de começar a ler o texto, esse analista diz que o escreveu por insistência de JAM, que queria um texto contra o Anti-Édipo no encontro, contudo, ele o fazia a contragosto, pois para ele o episódio Anti-Édipo estava encerrado. Esses três episódios, e poderia citar muitos outros, são reveladores do que podemos chamar de millerianismo. E podemos ver neles que o que assim chamamos não se reduz a uma questão pessoal de JAM. Pelo contrário, ele revela que estamos frente a um fenômeno que perpassa de alto a baixo uma certa comunidade dos chamados lacanianos. Esse é um dado fundamental, pois podemos ter millerianismo sem Miller; e, em muitos aspectos, o recém-fundado Campo Lacaniano demonstra esse fato. No primeiro episódio, temos a adesão fanática e acrítica; no segundo, a insistência em colocar JAM como o substituto do mestre perdido, sem contar a insistência de Miller, que se coloca como a leitura privilegiada e verdadeira de Lacan e a certeza de que o que ele diz é Lacan que o diz; no terceiro, a vergonhosa servidão voluntária do colega argentino, que ataca terceiros por procuração. O millerianismo, termo que não consta de nenhum dicionário psicanalítico, nem mesmo no recente dicionário de Roudinesco que, no entanto, desenvolve em sua História da psicanálise toda uma tese sobre a participação de Miller nos desdobramentos do lacanismo, está ainda por ser definido. O fato de os recentes acontecimentos (cisão da AMP e rede de fóruns), trazerem à baila toda uma discussão em torno do que ele seria não foi suficiente para identificá-lo em todos os seus aspectos. De qualquer forma, ele interessa, na medida em que pode trazer esclarecimentos para questões cruciais da psicanálise na contemporaneidade. Proporia examinar a questão em três vertentes, que se solidarizam no fenômeno milleriano: uma questão teórica, que corresponde a uma crescente axiomatização da obra de Lacan; uma vertente política, ligada às intenções expansionistas e mercadológicas; por fim uma vertente micropolítica, na medida em que o fenômeno milleriano está longe de ser um fenômeno pessoal, mas merece, como todo fenômeno coletivo, uma análise das motivações implicadas, do agenciamento de desejo que a ela corresponde; enfim, uma pergunta reichiana, num certo sentido, porque o millerianismo foi e é desejável mesmo sem Miller. Em termos teóricos o millerianismo identifica-se com uma fantástica axiomatização da obra lacaniana. Tomo aqui axioma no sentido aristotélico, como princípios evidentes que constituem toda ciência, um imperativo que obriga ao consentimento, uma vez que é enunciado e entendido. A máquina axiomática aqui funciona como homogeneização, conformidade, conjunções de fechamento. O primeiro texto de Miller intervindo na doutrina lacaniana tem o título, não por acaso, de Sutura. O próprio Lacan, segundo Roudinesco tentou contrabalançar o fechamento lógico que implicava esse texto, com o teorema de Godel e com seu texto A ciência e a verdade. Os matemas nunca foram dogmas, eles nada são sem o comentário que deve acompanhá-los e sem o real da clínica que verifica sua eficácia. No millerianismo, porém, embora não explicitamente, os matemas tornam-se axiomas que excluem qualquer não conformismo. O uso para fins de exclusão e de autoritarismo são evidentes. Os matemas não são nada fora de um debate dentro de uma comunidade e da diversidade das leituras possíveis. Solidária a esse processo está a questão do expansionismo com sua dupla face, uma visível e explicitada, de cunho doutrinário, outra nunca explicitada, verdadeiro tabu, que são os interesses mercadológicos. O C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 18 19 SEÇÃO TEMÁTICA INFANTE, D. P. O millerianismo. millerianismo, através de seus dispositivos, a Associação Mundial de Psicanálise e suas Escolas subordinadas, possibilitou uma internacional lacaniana de relativo sucesso. Acontece que essa universalização em extensão nunca correspondeu a uma propagação da teoria psicanalítica em intensão. A razão disso é que o millerianismo enfatiza, no lacanismo, seu aspecto dogmático e mimético, e isso, inevitavelmente, implica um empobrecimento da criação, em prol de um plágio generalizado fundado na leitura de Miller. O aspecto micropolítico, a meu ver o mais importante, é também o de análise mais difícil. Porque os analistas filiados à AMP desejaram, desejam ou não podem deixar de desejar, no caso do recém-criado Campo Lacaniano, o millerianismo? Uma das razões, sem dúvida, está ligada à questão do ideal. A Escola com seus dispositivos, o cartel, o passe, a permutação, cria a ilusão de uma organização comunitária congruente com o discurso analítico. Ora, os dispositivos nada garantem, mas a insistência no ideal leva à submissão em nome desse ideal. O que acontece? O respeito ou não a regras básicas de convivência entre pares fica em segundo plano, frente a esse ideal que deve ser mantido a todo custo. A escola torna-se assim um I(A), um ideal de ego fomentando em cada um, um i(a), ego ideal, amado por esse ideal. Como a posição de i(a) define a posição infantil, podemos dizer que o processo leva a uma infantilização generalizada e a uma impotência crítica. A questão micropolítica do millerianismo não se resume à questão do ideal, ela é feita também de arrivismo, da busca de garantia através do apoio político incondicional, do medo da impostura que acossa todo analista e do interesse mercadológico. O que ocorre é que o millerianismo, com seu interesse expansionista, desloca os investimentos da própria comunidade a qual o analista pertence em prol de uma psicanálise universalizada e internacionalizada, cuja marca registrada é a leitura inquestionável de Miller da obra lacaniana, em relação à qual ele se coloca como único e legítimo herdeiro. O efeito desse processo é o progressivo cinismo que se generaliza nas relações com os pares. Cinismo no sentido da Crítica da razão cínica de Sloterdjik, cuja figura é “eles sabem o que fazem mas assim mesmo conti- nuam fazendo”. Slavoj Zizek mostra como esse cinismo é um dos fenômenos ditos pós-modernos e desloca-se de uma figura de líder carismático para a figura do líder como instrumento de uma verdade dogmática. O exemplo paradigmático desse tipo de liderança é o stalinismo, cujos desmandos se justificam pois são instrumentos do materialismo dialético. Daí a insistência de Miller em argumentar que o que ele lê é o verdadeiro Lacan de cujo saber, ele, Miller, é o instrumento. É evidente que tal processo não pode se dar, guardadas as devidas proporções, sem um deslocamento perverso, onde tudo se justifica na medida que o sujeito é mero instrumento do gozo do outro, tomando aqui como outro esse Lacan hipostasiado por Miller. Aqui cabe comentar o que julgo um equívoco do próprio Lacan, do qual o próprio Miller pode ser considerado uma vítima se não usufruísse dele, o “ao menos um que sabe me ler”. Sem dúvida Lacan viu em Miller a possibilidade de evitar para a sua obra o mesmo destino que denunciou em relação à obra de Freud: o desvio. A tendência a um fechamento, via lógica, dos conceitos garantiria uma transmissão integral e Miller demonstrava desde o início uma particular leitura desse Lacan transformado em ciência rigorosa. A obra de Lacan é, como toda obra, inacabada, como bem nota Jean-Claude Milner em Obra clara, e isso faz dela uma provocação saudável para aqueles que herdaram seu ensino. Estes, porém, não se resumem a Miller. Elizabeth Roudinesco resume a situação que se estabelece entre o mestre e seu discípulo privilegiado: “Em 1965, o discurso de Miller radicaliza o de Lacan. Na teoria, esse discurso se pretende estritamente lacaniano, porém, na prática, traz para o lacanismo o alento de um militantismo combativo. Nesse sentido, portanto, já nessa data existe uma representação milleriana do lacanismo, que não é a simples tradução da doutrina lacaniana. Enquanto Lacan produz conceitos passíveis de uma certa “equivocação”, Miller tende a esclarecer ou racionalizar a conceituação lacaniana, de maneira a tornála mais uniforme, por vezes mais coerente. Esse deslizamento é ainda mais difícil de captar na medida em que, com muita freqüência, não é apreendido como tal pelos dois homens. Miller se pretende sempre o fiel comentador do mestre, e Lacan não se apercebe de que, por vezes, toma emprestadas dele C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 20 21 SEÇÃO TEMÁTICA INFANTE, D. P. O millerianismo. reformulações elaboradas a partir de sua própria doutrina. Entre o estilo desse rapaz brilhante, com pressa de agir, e a fala do velho mestre, sujeita a múltiplas interpretações, produz-se uma osmose tão forte que se tem a impressão de que o primeiro renuncia a sua escrita para submeter-se ao verbo do segundo, e que o segundo retoma os enunciados do primeiro acreditando que são seus. Com Miller, Lacan encontra o leitor, o espelho e o adversário dele mesmo que procurou por toda a sua vida: uma mistura de Rodrigo e Saint-Just.” É um fato interessante que hoje não se tem nenhum prurido a se atribuir equívocos a Freud , é algo que os psicanalistas podem admitir sem que a obra de Freud sofra nenhuma perda em relação à sua importância. No entanto com Lacan há uma sacralização da obra onde não se admite por parte do mestre nenhum equívoco. Essa mitificação sem dúvida fortalece o millerianismo na medida que, se o texto é sagrado, Miller é dele o profeta a quem a verdade é revelada. Se acrescentamos a isso o fato de que Miller é o herdeiro legal da obra de Lacan e que ele “estabelece” os seminários, a tarefa de separar o que dessa obra é Lacan ou Miller demandará uma verdadeira arqueologia no sentido que Foucault dá a essa palavra. Um aspecto institucional do millerianismo é o que eu chamaria de complexo de Torless de Musil. Frente a um mau estar emergente que envolve questões eminentemente políticas há toda uma mobilização em torno de um tratamento da crise por meio de um retorno ao texto, à erudição e dessa forma a análise das motivações políticas são tamponadas e entendidas como uma insuficiente compreensão do que em Lacan, certamente se encontrará uma resposta. Então a massa da comunidade se organiza no modelo dos encontros internacionais, cada qual com sua questão se contorcendo para transmiti-la numa estrita lógica lacano- milleriana. Entrementes todos sabem que as decisões políticas, as divisões de território , a desgraça ou ascensão de uma tendência qualquer serão maquinadas em “off” com um número restrito de “chers amis” de apoio incondicional. O engodo é julgar que retornando à letra de Lacan, se evitará as mazelas políticas, partindo do princípio que a toda crise política corresponde um equívoco teórico. Mas os equívocos teóricos quem os domina é o mestre. O jovem Torless, numa aula de matemática cogita: “Se isso que estão dizendo aí for realmente preparação para a vida, deve-se referir a alguma das coisas que estou procurando.” A aula em questão se referia aos números imaginários ( ? ) Torless procura um professor para pedir esclarecimentos. Esse professor, frente às expectativas de Torless, entre outras coisas lhe diz: “Por sorte, poucos alunos sentem isso, mas quando alguém, como você hojeembora, como eu disse, me dê grande prazer-, vem realmente nos interrogar, só podemos dizer: caro amigo, você simplesmente precisa acreditar; quando um dia souber dez vezes mais matemática do que hoje, compreenderá; por enquanto precisa acreditar.” Em seguida apontando para um livro de Kant, o professor acrescenta: “Está vendo esse livro, é filosofia, contem os fundamentos da nossa ação!” No dia seguinte, Torless, munido de um volume de Kant põe-se a ler. Nesse ponto a descrição de Musil é primorosa: “Mas já no dia seguinte teve uma grande decepção. Pela manhã, comprara o volume de Kant que vira na mesa do professor, e no primeiro intervalo pôs-se a ler. Mas, com tantos parênteses e notas de rodapé, não entendia nada; e quando seguia escrupulosamente as linhas com os olhos, era como se uma velha mão descarnada fizesse seu cérebro girar em espirais, arrancando-o de dentro do crânio. Quando, meia hora depois, parou exausto, havia gotas de suor em sua testa, e chegara apenas à segunda página. Apertou os dente,s leu mais uma página, até o intervalo acabar. À noite, já não desejava nem tocar no livro. Medo? Repulsa? Não sabia. Só uma coisa o atormentava, nítida: era que o professor, pessoa de aparência tão apagada, tivesse aquele livro bem exposto no quarto, como se ele fosse uma diversão cotidiana.” Torless, no seu fascínio, não pode perceber o engôdo, apesar do colega que o adverte: “– Mas aí é que está o logro! Eles não conseguem contar essas histórias a um sujeito que tenha apenas inteligência e nada mais. Isso só funciona depois que ele gastou dez anos de estudo afiado. Nesse meio – tempo ele faz milhares de cálculos sobre essa base e ergue enormes cons- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 22 23 QUINTÃO, D. T. da R. Transferência em transferência. SEÇÃO TEMÁTICA truções, sempre corretas até no menor detalhe; depois, ele acredita simplesmente na coisa, assim como os católicos acreditam na revelação – pois ela sempre funciona tão bem... Nesse caso, será que exige alguma arte convencer tal pessoa? Ao contrário, seria impossível convencê-la de que, embora sua construção se mantenha firme, cada pedra dela se desfaz no ar quando se quer agarrá-la.” 24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 TRANSFERÊNCIA EM TRANSFERÊNCIA Denise Teresinha da Rosa Quintão O presente texto tem a intenção de compartilhar questionamentos que se produziram a partir de uma experiência de trabalho de cartel na APPOA, o “Cartel da Transferência”, que vem funcionando há cerca de seis anos, tendo como texto referencial o Seminário 8, de Jacques Lacan, cujo tema é a Transferência. Evidentemente, temos presente o quanto o tema da transferência nos interroga e se renova frente a cada sujeito que nos dispomos a escutar, pois algo de novo se produz, quer seja pelas singularidades que se desnudam aos ouvidos de um analista, quer por aquilo que diz do seu desejo e de suas próprias formações do inconsciente, que entram em ação juntamente com este sujeito com quem possa ter embarcado na “aventura analítica”, a qual, como diz Lacan, às vezes, produz “efeitos tão singularmente assustadores”. Entretanto, pretendo abordar, neste momento, a questão da transferência e sua relação com a instituição psicanalítica, ou, melhor dizendo, os possíveis efeitos, inclusive imaginários, de fenômenos transferenciais que podem transcorrer num percurso de formação junto à instituição, fato este que, ao que me parece, obedece a princípios um tanto semelhantes a uma experiência de análise – à relação transferencial entre analisante e analista, guardadas as especificidades dessa experiência. Para tanto, me permitirei expor algumas das indagações que surgiram em diferentes ocasiões no cartel, de certa forma comuns ou produzidas a partir das discussões ao longo deste percurso de trabalho, no que diz respeito a uma formação psicanalítica e ao papel que possa representar a instituição - neste caso, a APPOA - neste processo. Houve situações em que pessoas que se interessavam em estudar o tema da transferência, ao se aproximarem do cartel, perguntaram: “Mas eu não sou associado; posso, mesmo assim, participar?” Ou, um pouco mais C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 25 SEÇÃO TEMÁTICA QUINTÃO, D. T. da R. Transferência em transferência. tarde: “Qual o meu lugar na APPOA, se participo de alguns espaços de ensino, mas não sou associado?” “Em que posso ou em que não posso participar?” “O que é preciso para ser associado?” Ou, ainda: “Quais as vantagens de ser associado?” “Será o de ter desconto de 50% nos eventos?” E “Quais as responsabilidades?” Disso, podemos levantar uma série de perguntas, tais como: O que seria “ser associado?” O que é isso que faz laço com a instituição e que sustenta uma transferência, apesar de “não se ser associado”? Da mesma forma, o que é mesmo que se busca numa instituição, pois um cartel não poderia, muito bem, funcionar em qualquer outro lugar? A propósito, o que caracterizaria um cartel e qual seu papel numa formação psicanalítica? Seria possível afirmar que um cartel se pretende “de formação” sem antes dar mostras de seus efeitos? E, pensando na instituição, que aspectos estariam em jogo ao considerarmos as diferentes categorias de associados: tratar-seia,simplesmente, de uma “hierarquia”, onde a experiência e o saber suposto aos mestres colocassem os “candidatos a analistas” numa condição de eternos principiantes / aprendizes? Isso não nos remeteria ao dispositivo da IPA? Afinal, qual o segredo para se “chegar lá” (expressão bastante usada em nossos dias, que pode nos conduzir a uma série de questões sobre o discurso social vigente)? Outro ponto, não menos importante, mas bastante referido, comumente, em pequenos grupos: trata-se das inibições e constrangimentos produzidos, ao menos durante algum tempo, pela convivência, em muitas circunstâncias, de analisantes e seus analistas, nas diversas atividades da instituição, uma vez que, com frequência, as análises pessoais ocorrem paralelamente com busca da instituição para viabilizar aspectos da formação, o que evidencia uma série de implicações transferenciais à espera (ou em busca?) de uma resolução. É importante lembrar, como nos ensinou Freud, que a transferência também está a serviço da resistência, quer dizer que, mesmo sendo a transferência a via que possibilita ao sujeito a produção / (re)invenção de algo novo, também permite, neuroticamente, pela repetição, a evocação de seu fantasma, colocando-se numa condição, por vezes, de intensa angústia, uma vez que a procura incessante do objeto perdido e da miragem de uma (im)possível completude, deixa-o em desam- paro frente ao Outro. Coloco isto por entender que, frente à instituição e aos “mestres”, estes fenômenos psíquicos tendem a se reproduzir, tendo em vista remeter à relação do sujeito com seu Outro. Na Ata de Fundação da APPOA, é explicitado que “a peça chave da formação do analista é sua análise pessoal (...), que ele seja interrogado pela experiência analítica”, e que essa análise possa permitir “as condições mínimas de um desprendimento subjetivo, necessário para a escuta de um analisante” o que implicaria numa “desmontagem das identificações imaginárias, uma redução das instâncias persecutórias do Outro ao significante (...)”. Num primeiro instante, podemos considerar que o que se busca junto a uma instituição seja tanto um lugar em que seja possível apropriar-se de um saber a partir do ensino dos mestres - cujos lugares de mestria, segundo Jerusalinsky, tendem a ser atribuídos àqueles que se vêem convocados a “produzir uma circunscrição ao redor do buraco de ignorância que organiza cada instituição”, cujo trabalho produz transferência – assim como um lugar de reconhecimento. De certa forma, uma instituição (não somente a psicanalítica) oportuniza espaço para isso. Ao pensarmos em nossa constituição subjetiva, por um lado, a psicanálise nos ensina que é preciso o reconhecimento do Outro, é o “és tu” da mãe que permitirá um “sou eu”, constituindo-se uma imagem de si a partir do olhar que nos é dirigido pelo Outro; trata-se da alienação imaginária, mas fundante, cujo objeto imaginariamente perdido nos remete a esta busca incessante de completude junto a nossos semelhantes, a quem supomos um saber sobre nosso desejo (de saber, inclusive).É como se pudéssemos absorver, por osmose, seu agalma (por nós atribuído). O que quero dizer com isso é que uma busca de reconhecimento que se fundamente neste princípio (narcísico), embora constitutivo, corre o risco de encaminhar o sujeito a uma relação narcísica e alienante com a instituição. Talvez deste prisma parta a idéia de uma “hierarquia” e que seja preciso galgar os degraus, num permanente oferecimento ao (gozo) Outro, para bem de se “chegar lá”. Imagino que, de certa forma, corremos este risco constantemente e não é sem propósito que num processo de formação a angústia, C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 26 27 SEÇÃO TEMÁTICA QUINTÃO, D. T. da R. Transferência em transferência. em muitos momentos, nos acompanhe com tanta fidelidade, uma vez que nos vejamos confrontados com o desejo do Outro – deste Outro outorgado transferencialmente como sujeito suposto saber – frente ao qual é preciso operar uma separação – e não uma eliminação, caso contrário cai-se na autonomia – para que algo do desejo de cada um possa advir. Como nos diz Robson de F. Pereira, em seu trabalho “O que é um psicanalista, ou observações a respeito da instituição como terceiro”, “esse lugar terceiro que a instituição assume tenta fazer sair da relação especular, virtual. Abrindo a possibilidade de que um sujeito possa estar responsabilizado, sem ter alguém a quem ele possa atribuir a origem da responsabilidade”. Tomando um fragmento do Banquete, de Platão, Alcibíades apresenta-se como amante (erástes) a Sócrates, escolhido como objeto de amor (erômenos) – aquele que tem atributos. Este, no seu discurso, denuncia que, no jogo do amor, ou no engano da transferência, o que ele (Alcibíades) busca é ser amado e, com isso, receber de Sócrates seus atributos. Dentre as muitas observações que Lacan faz ao trabalhar o conceito de transferência em seu seminário, a partir dos discursos proferidos sobre o amor e dos diálogos entre os personagens centrais deste texto, podemos enfatizar a frase de Sócrates frente à demanda (de amor) de Alcibíades: “Aqui onde você vê alguma coisa, eu nada sou”. Sócrates responde a partir de um lugar faltante, denuncia o lugar vazio, a falta do ser e sua posição indaga Alcibíades sobre o seu desejo. O que isso poderia nos interrogar a respeito dos laços transferenciais estabelecidos dentro da instituição? De que maneira um laço desta ordem se sustentaria de forma a permitir que cada um encontre um espaço para suas palavras? Um aspecto a ser tomado talvez seja, por um lado, a importância do reconhecimento da falta no Outro e da impossibilidade da produção de um saber que dê conta da verdade - há uma disjunção entre saber e verdade, conforme nos lembra Lúcia S. Pereira, em recente encontro com o cartel - o que convoca a instituição a resguardar o lugar da falta, que permite novas produções. Por outro lado, Chemama, em sua conferência “O pai e o mestre na transmissão da psicanálise” nos lembra que cada analista produz, na sua análise, significantes que o orientam, portanto, não há como herdar o significante, mas sim, uma falta, uma vez que uma herança se inscreve pela via da castração. Isto nos lança à questão da diferença, à medida que uma inscrição junto à instituição se faz singularmente, assim como um percurso de formação. Outro ponto a destacar trata do fato de que a condição de saber que constitui, a princípio, um motivo para a participação na instituição, que isso possa ser entendido como sendo apenas parte. Lúcia Pereira coloca que se busca, principalmente, um lugar no qual falar e agir em nome da Psicanálise, não na perspectiva de saber, mas que cada um possa se inserir dentro de um agir que sustente esta prática. Talvez não seja sem propósito que, com freqüência, utilize-se o termo “filiação” para caracterizar essa aproximação à instituição, pois falar em nome da Psicanálise nos leva à idéia de falar em nome do pai, em nome de um fundador. Não pretendo, aqui, desenvolver esse assunto, sem dúvida de relevante importância. Todavia, parece necessário evidenciar o risco que Chemama nos aponta de se tomar a Psicanálise como uma filiação e atribuir à instituição, de certa maneira, uma demanda de nomeação. Maria Ângela Brasil, no texto “O porquê da instituição” fala que “A questão à qual o analista deve estar atento é que, ele analisou sua alienação aos significantes da demanda familiar, ele não está imune quanto ao retorno da alienação sob a forma de uma instituição. Talvez, por isso, Lacan teria dito que ele não cessava de passar o passe, que o trabalho de passe, como o de separação, nunca é feito de uma vez por todas. (...) Daí, que o pedido feito a uma instituição psicanalítica seja de reconhecimento de uma filiação, só cabe no que diz respeito a uma doutrina (...). Mas, enquanto pedido de reconhecimento de psicanalista (...) continua vigente o ‘autorizar-se’”. Outra questão que surge, partindo destas considerações: o que poderia servir como “garantia” para que a relação transferencial com a instituição pudesse permitir a produção de um trabalho que representasse uma conseqüência tanto dos laços transferenciais quanto (e principalmente) da tarefa à C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 28 29 SEÇÃO TEMÁTICA QUINTÃO, D. T. da R. Transferência em transferência. cuja causa poderia remeter? Para tentar responder a isso, vou valer-me do caso de uma pessoa que tive a oportunidade de escutar numa situação de trabalho, porém, não no contexto da clínica. Tratava-se de uma moça que buscava um parecer psicológico que atestasse sua aptidão psicotécnica para o exercício da atividade de piloto comercial, por ser este o requisito para realizar o curso e o treinamento necessários para isso. Esta relata ser filha de um piloto agrícola, com quem compartilhava desde pequena o gosto pela aviação; sobrinha de um piloto comercial de linha aérea e jovem esposa de uma rapaz, também piloto comercial, proprietário de uma escola aérea de acrobacias. Desempenhava, naquele momento, a atividade de instrutora de ultraleves e já havia realizado o curso de piloto privado; porém, somente como piloto comercial poderia transportar passageiros, recebendo apoio dos “pilotos” da família, com a promessa de emprego “garantido”, era só se formar. Conta que o pai ficara abalado com sua decisão pelo casamento (aos 20 anos), pois a tinha como sua sucessora. Porém, viu-se diante de um impasse: ou casava, ou acabaria o resto da vida ao lado do pai, referindo que tudo aconteceu muito rapidamente. Todavia, na avaliação realizada, foi constatado que a moça não atendia a alguns critérios fundamentais para a habilitação que pretendia. Possivelmente, o resultado desfavorável, naquele momento, representava a primeira barreira para a concretização de seus objetivos, assim como denunciava uma falta com a qual precisaria haver-se. Curiosamente, ao ser comunicada do resultado e questionada sobre o que pensava disso, responde: “A doutora estudou para isso e deve saber se posso ou não passar.” É o Outro quem sabe sobre o seu desejo. Evidentemente, de algum efeito de uma possível vivência de castração, que este acontecimento possa ter lhe produzido, não se teve notícias. Este caso, de certa maneira, levou-me a considerar que não basta ser filho(a) para que se tenha assegurado o usufruto de uma herança, assim como a questão do desejo também é demarcada, pois, para essa moça, o lugar a priori garantido pelo discurso do Outro, não permite sustentar seu próprio discurso. Aí, a questão: o que é o desejo do Outro e o que poderia ser o próprio do sujeito? Que implicações teria reconhecer-se numa filiação frente à questão do desejo? Ou, indo um pouco mais adiante, o que seria o “autorizar-se” a ocupar um lugar – de filho, de pai, de piloto, de psicanalista... e a se responsabilizar por esta escolha – entendendo-se, aqui, algo da ordem do inconsciente? Esses aspectos levantados servem para pensar um pouco a participação na instituição psicanalítica, à medida que parece de particular importância que essa inscrição – e os efeitos de formação que possam se produzir – represente o reconhecimento em uma “filiação” à história do movimento psicanalítico, encontrando-se a instituição, de certa forma, num papel de manter atualizada essa causa. Só que a clínica nos ensina que a dívida simbólica para com nossa filiação – que nos permite advir como sujeitos – nos convoca, de alguma forma, a pagá-la. Lacan, em seu seminário sobre a Transferência, ao abordar a questão da afânise, coloca que a “quitação” da dívida simbólica implicaria a extinção do desejo. Não basta ser filho para gozar dos “direitos” de uma herança, é preciso o reconhecimento do próprio desejo, inscrito a partir de uma falta. Porém, todo saber que se produza para dar conta dessa falta remete a uma outra falta, o que leva a crer que uma dívida desta ordem não pode ser “quitada”, mas reinscrita. Mário Fleig, num texto: “Violência: lixo atômico não-reciclável”, ao falar sobre o impossível da relação sexual, do desencontro que produz resto diante do desejo do sujeito de formar um homogeneidade com o semelhante, efeito da operação de castração pela marca do significante Nome-do-Pai, que produz falta, coloca que o melhor recurso que podemos ter para lidarmos com este resíduo é a palavra empenhada, a palavra comprometida, tal qual acontece com o sujeito na clínica psicanalítica: “Ele não fala qualquer coisa, mesmo que fale qualquer coisa, mas ele não fala mais qualquer coisa porque está empenhado no que diz...” E aponta isto como chance mínima para tentarmos dar conta dos “resíduos” que atravessam gerações. Ao considerarmos a inserção dos sujeitos junto à instituição psicana- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 30 31 CALLIGARIS, C. Feliz aniversário e sonhe... SEÇÃO TEMÁTICA lítica, de modo particular, o ato de “associar-se”, isto implica que o psicanalista busque compartilhar sua produção e sua prática junto aos outros, a partir de uma ética que, por um lado, possui referência aos mestres – Freud, Lacan – e ao legado de sua obra e, por outro, pode se permitir a criação de algo novo. Que o pai seja reconhecido em sua função de piloto, é uma questão considerando-se os desdobramentos possíveis, quer seja pelo significante pai, quer pelo significante piloto - mas que o interesse de realizar outros vôos - ainda que seja o de ser piloto - implique o sujeito na responsabilidade de seu próprio desejo. BIBLIOGRAFIA ATA DE FUNDAÇÃO DA APPOA de 17/12/1989. BRASIL, Maria Ângela. O porquê da instituição. Boletim da APPOA, nº 3/4. CHEMAMA, Roland. O pai e o mestre na transmissão da psicanálise. Palestra realizada na APPOA em 17/08/1999. JERUSALINSKY, Alfredo. Está lotado. Conferência realizada na Jornada de Abertura da APPOA de 1998 - referências apresentadas por Luzimar Stricher na Seção Debates do Correio da APPOA de maio/1998. LACAN, Jacques. Seminário 8 - A Transferência. PEREIRA, Robson de Freitas. O que é um psicanalista, ou observações a respeito da instituição como terceiro. Revista da APPOA, Ato e Interpretação, nº 14. FELIZ ANIVERSÁRIO E SONHE COM OS ANJOS, FREUD!1 CONTARDO CALLIGARIS É o aniversário da “Interpretação dos sonhos”, a obra de Freud que inaugurou a psicanálise: 100 anos neste mês. Na imprensa americana, o evento é celebrado. Os artigos revisam a literatura neurológica dos últimos vinte anos para tentar fornecer ao leitor um veredicto: Freud tinha razão ou não? “New York Times”, ”Boston Globe”, ”Newsweek” e outros argumentam da seguinte forma: Freud dizia que os sonhos são a realização de desejos, ou seja, que neles se expressam, por vias tortas, desejos reprimidos, inconscientes.Ora, será que os sonhos são isso mesmo? Até o ano passado, nesta matéria, reinavam os trabalhos de Allan Hobson, psiquiatra americano segundo o qual Freud era todo pseudociência. Para Hobson, os sonhos seria uma escória da atividade cerebral durante o sono REM. O REM (“Rapid Eye Movement”, ”Movimento Rápido dos Olhos”) é aquele tempo do sono durante o qual fica bem ativa a parte do cérebro que comanda funções biológicas profundas. Nós sonharíamos no sono REM porque, nesta fase, o cérebro dispararia neurônios ao acaso, como para se purgar dos engarrafamentos do dia. Os sonhos, portanto, seriam apenas a aparição explícita e direta de emoções elementares e desconexas. Evidentemente, essa conclusão não cola muito com nossa experiência de sonhadores. Mas tanto faz, pois fomos liberados dessas idéias. Desde o ano passado, Mark Solms, neurologista inglês,vem demolindo a versão Hobson. Por um lado, Solms mostrou que os sonhos não dependem do sono REM.Por outro, ele verificou que não conseguem mais sonhar sujeitos que sofrem danos cerebrais que comprometam uma parte dos lobos frontais do cére- 1 32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo de 11 de novembro de 1999. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 33 SEÇÃO DEBATES CALLIGARIS, C. Feliz aniversário e sonhe... bro, que transmite a dopamina. Essa parte do cérebro – e a própria dopamina –são cruciais para a motivação, diretamente relacionadas com a premência dos desejos. Conclusão: os sonhos parecem ser produzidos por desejos. Não esta provado que estes desejos sejam reprimidos, como pensava Freud. Mesmo assim, é um ponto para psicanálise, logo no aniversário de sua obra fundadora. E deu manchete – Freud tinha razão, ou quase. Eu deveria ficar satisfeito com isso, mas lendo esses artigos todos, surge um vago mal-estar. Freud tinha ambições neurológicas e estaria feliz de se ver hoje vindicado contra o Seu Hobson. Mas a “Interpretação dos sonhos” não é uma tentativa de descrever o processo neuronial do sonhar O livro abre com uma revisão da imensa literatura que a humanidade consagrou aos sonhos e à tentativa de interpretá-los. Os sonhos sempre foram o pretexto de uma interrogação. São mensagens dos deuses? Será que nos falam do nosso futuro? Será que neles as sombras dos mortos nos visitam? E com Freud? Será que com eles podemos aprender sobre nosso próprio desejo, algo dele que, quando acordamos, não gostaríamos de saber? Por isso, no limiar do século, o livro se ergue como uma espécie de “Carón demônio”: “Entrem, estão condenados a se perguntar o que tudo isso significa, a começar por vocês, que nem sabem direito o que querem. Entrem para este século: as significações estabelecidas da vida e do mundo já se foram de vez, agora inventem”. A “Interpretação dos sonhos” não fornece interpretação nenhuma: sugere um método e promete que, se vocês interrogarem seus sonhos, como se eles contivessem alguma mensagem sobre desejos inauditos, quem sabe, com este exercício, vocês consigam mudar algo em suas vidas. Assim, a unânime celebração neurológica do aniversário se parece mais com um enterro. O veredicto embora favorável a Freud, é o sintoma de uma época em que o sujeito gostaria, sobre tudo, de se aposentar da tarefa de descobrir sentidos para sua vida. Bem venha, parecemos dizer, qualquer migalha de uma explicação do mundo que nos permita descansar. O tempo das interrogações, da construção de narrativas com as quais dar sentido a nossa presença no mundo, o tempo também do desespero pela falta que fazem os sentidos tradicionais, este tempo está acabando. Para substituir as angústias de uma procura de sentido que cansou a todos, o século celebra seu fim com uma bebedeira de descrições que são tão corretas quanto parciais e que, sorrateiramente, vêm modificando a qualidade de nossa experiência cotidiana. Não por má vontade, só por cansaço. Por exemplo, nossa maneira de descrever os sonhos modifica nossa experiência de sonhadores. Já pensamos que os sonhos vinham dos deuses: podíamos acordar e tentar escrutar a vontade divina. Já pensamos que eles vinham dos mortos e, com Freud, pensamos que vinham de zonas silenciosas dentro de nós mesmos. Aprendemos a interrogá-los com curiosidade e desconfiança: o que é isso ainda – perguntávamos – que pareço desejar e na verdade não quero de jeito nenhum? Agora, parece que Freud tinha razão, mas receio que o verdadeiro triunfo seja o da descrição neurológica, reconhecida no debate como lugar em que se decide o que é verdade. Receio, em suma, acordar amanhã atormentado com um sonho e responder a minha mulher, que poderia me olhar preocupada: ”Nada, são só neurônios que dispararam errado”. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 34 35 SEÇÃO DEBATES “ISSO NÃO IMPEDE DE EXISTIR 1” A EXPOSIÇÃO SOBRE FREUD TRÊS ANOS DEPOIS Marcia Helena de Menezes Ribeiro E m 23 de setembro último, fez 60 anos que Freud nos deixou. Suas proposições teóricas, seu legado conceitual, continuam produzindo efeitos transferenciais e, consequentemente, resistências. De outubro de 1998 a janeiro de 1999, foi realizada a exposição Freud: Conflito & Cultura, na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Sua passagem está prevista por outros museus americanos, pela Europa e, pelo Brasil em setembro de 2000, no MASP. A exposição é composta não só de objetos pessoais, fotos e manuscritos de Freud, que estiveram guardados na Library of Congress of Washington, mas, também, de filmes que foram produzidos sob os efeitos da psicanálise. Estava prevista, inicialmente, para acontecer em 1995, em comemoração ao centenário da psicanálise. Entretanto, de sua concepção até sua consecução, passaram-se três anos de controvérsias, debates acirrados no meio intelectual americano, ouvindo-se, no Brasil, através da imprensa, as duas vertentes da discussão. Na mesma época em que a exposição era suspensa pela primeira vez, a APA realizava um colóquio cujo título – Há um lugar para a psicanálise na cultura contemporânea? – era, no mínimo, irônico. Do outro lado, do lado RIBEIRO, M. H. de M. “Isso não impede de existir”... da oposição, intelectuais americanos identificados sob a rubrica de revisionistas – corrente de pensamento que critica a psicanálise freudiana como ultrapassada, ao indicar que a modernidade exige resultados rápidos –, preparavam um abaixo-assinado encabeçado pelo historiador Peter Swales, solicitando o cancelamento da exposição, por considerá-la apologética. Conseqüência disso ou não, a exposição foi adiada outras duas vezes. Freud não era ingênuo e tampouco condescendente, sabia que a “disseminação da peste” comportaria a dimensão do fascínio e do horror, mas apostava que um dos efeitos da psicanálise fosse justamente a saída dessa imobilizante posição de dupla face. Produzir efeitos na cultura, resistir à tirania do pensamento hegemônico, subvertendo-o, era outro dos efeitos esperados. Ultrapassar as resistências, portanto, permitiria o acesso à resistência, essa forma de subversão ao apelo totalizador. As tentativas de negar o legado freudiano, expressas pelas manifestações que buscavam impedir a exposição, nos fazem voltar à frase de Charcot, ouvida por Freud há quase um século: apesar das resistências e do ceticismo, “isso não impede de existir” a psicanálise como fato da cultura de nosso tempo e seus efeitos. Talvez, haja lugar para isso, enquanto houver resistência. 1 Freud, em seu texto Um estudo autobiográfico (1924), lembra que, quando era ainda um jovem médico, dirigiu-se à Salpêtrière para estudar com Charcot, participando das apresentações de pacientes. Em uma das aulas, ouviu do mestre francês uma frase que, muitos anos depois, ainda produzia efeitos: “Muitas das demonstrações de Charcot começaram por provocar em mim e em outros visitantes um sentimento de assombro e uma inclinação para o ceticismo, que tentávamos justificar recorrendo a uma das teorias da época. Ele se mostrava sempre amistoso e paciente ao lidar com tais dúvidas, mas era também muito resoluto; foi numa dessas discussões que (falando da teoria) ele observou: ‘Ça n’empêche pas de exister’, um mot que deixou indelével marca em meu espírito” (p. 24). 36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 37 RESENHAS RESENHAS A FICÇÃO DO SI MESMO INTERPRETAÇÃO E ATO EM PSICANÁLISE livro inicia com três dedicatórias muito especiais em que o significante tempo aparece nas expressões “...porque sempre é preciso futuro”, ”...que me ajudaram a não temer o passado”, “que me permitiu viajar no tempo”. Com esta poesia em prosa, Ana Maria consegue dizer ao leitor sobre o fio temático que corre nos subterrâneos de sua obra a qual, iniciando por questões relativas à temporalidade, vai, com esta, abrangendo os campos da ficção e da história, até culminar no estudo do ato e autorização. Este trabalho é resultado de sua tese de doutorado realizada na PUC de São Paulo. Os temas que aí aborda, há muito vem sendo motivo, por Costa, de estudo e investigação no campo da psicanálise, e conhecidos através de seu ensino e dos múltiplos e instigantes escritos que apresenta. Sua interrogação inicial com a clínica traz esta pergunta: “Como se organiza uma atividade interpretante?” (p.12), ou seja, o que levaria o analista a uma atividade, a uma intervenção qualquer durante as sessões? A resposta vem por uma espécie de “saber operativo”, diferente de outros “saberes”, pois que “sabe” mais que o eu; a autora descarta, porém, aqueles “saberes” que na análise possam levar a uma produção de fascínio, valorizando aquele que não sabe antecipadamente muita coisa, organizando-se como o sujeito do inconsciente, num tempo de posterioridade. Para tanto, propõe que uma atividade interpretante qualquer dispo- nha-se fundamentalmente em torno de três eixos, que serão a base das questões deste livro: o primeiro refere-se ao lugar desde onde ela é construída ou, de uma maneira mais ampla, o contexto tanto relacional como histórico, o que resulta numa indissociabilidade entre tempo e lugar. O segundo eixo diz respeito ao argumento, isto é, à relevância de uma ficção ou história, onde o lugar é tematizado; portanto, esses dois eixos se cruzam com conseqüências mútuas na atividade interpretante. O terceiro eixo refere-se ao ato resultante. Torna-se importante lembrar, nessa altura, que os elementos conceituais trazidos de outros campos à psicanálise, são totalmente subvertidos na referência ao inconsciente, a começar pela diferença de abordagem do sujeito nos diferentes campos de saber. Paralelamente aos três eixos, a autora coloca a referência estrutural baseada nos três tempos lógicos que Lacan aborda em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada’’ (Escritos). São eles, respectivamente: Instante de ver - tempo referido à possibilidade de um código sem sujeito, remetendo, também a um tempo de fascinação e uma posição de passividade; o Tempo de compreender - tempo de construção do lugar do eu, o qual, por sua divisão, necessita do constante suporte do Outro, portanto, tempo onde acontece propriamente a transferência na análise; o terceiro tempo surge como o Momento de concluir, onde se verifica o retorno à estrutura de um sujeito indeterminado, saber sem eu, mas, ao mesmo tempo, será um tempo de atividade, havendo um encontro entre o ato e o eu, daí a denominação de atividade interpretante. Estes três tempos irão corresponder às três partes do livro. No primeiro capítulo, denominado Temporalidade e Dissimetria, Ana Maria, preocupada com a produção de uma interpretação qualquer, ressalta que esta está firmemente ligada ao lugar desde onde é construída, lugar organizado, principalmente, a partir de uma função temporal. Além disso, apesar de que a definição de lugar possa ser pensada sob o ângulo das referências geográficas e históricas, determinantes das diferenças interpretativas, assinala a importância do elemento relacional, isto é, do lugar de cada um em relação a seus semelhantes. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 COSTA, Ana Maria Medeiros da. A ficção do si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 136 p. “Toma-se a palavra, antes que o Outro nos emudeça.” Ana M. M. da Costa O 38 39 RESENHAS RESENHAS Pensa, então, na possibilidade de aproximação entre lugar e sujeito, (diferente de indivíduo), ao estar representado, nesse sujeito, uma lógica do coletivo. Depois desses pressupostos, a autora passa a trabalhar a questão do Tempo e Distribuição de Lugares. Para tanto, dedica-se a fazer uma revisão dos conceitos psicanalíticos mais ligados ao tema de seu estudo, abrindoos e arejando-os com suas interrogações pertinentes e pontuais. Começa com os conceitos de prematuridade e a organização ativo - passivo. Mostra que, para Freud, a temporalidade é totalmente acessível ao conceito de recalque. A ele se ligam não só os conceitos de prematuridade, de posterioridade, como também essa memória que chamamos de retorno do recalcado. Pretende destacar conceitos que ainda possam ter importância na clínica atual, sem levar em conta o momento de seu aparecimento ou da valoração dada pelos psicanalistas. A autora discorre longamente sobre a teoria do recalque, apresentando questões interessantes e inteligentes, que o “tempo e lugar” nos impedem de colocar. Fica para o leitor. Entretanto, pode-se pinçar seus comentários sobre o caso Emma (Freud, 1895), com referência à prematuração do sentido sexual, num tempo da infância que parece não se referir à paciente. Freud dirá que o que traumatiza é a lembrança, quando a posteriori adquire significação sexual. Assim, o que traumatiza é o “vislumbre de um gozo onde o sujeito estava como objeto do sentido sexual proposto pelo adulto” (p.21). Desses dois elementos dependerá o retorno do recalcado. Costa, então, situa o conceito de recalque na direção da sexualidade e tempo, em função da defasagem de tempo entre o sentido sexual (a criança como objeto de manipulação) e o aparecimento de um sujeito interpretante, no início da adolescência. Por isso, o sentido sexual viria sempre investido de prematuridade, e, ainda mais, o lugar ativo da adolescência seria o lugar do outro que o teria tomado como objeto, como passivo, e ter, o sujeito, gozado dessa posição. Firma-se, aí, o lugar masoquista que Freud proporá como masoquismo primário erógeno. No momento em que vê o sorriso dos lojistas, Emma interpreta a cena da infância, e um saber se constitui como recalcado, estabelecendo uma disjunção entre o sujeito interpretante e a atividade sexual, ou seja, entre ato e interpretação. É o retorno do recalcado, ato sintomatizado. E conclui: “o ato é a própria memória reconhecida a posteriori”. No item “A sexualidade infantil questionada”, Ana discute o termo “infantil”, analisando as questões que envolvem as teorias sexuais infantis, mostrando, inclusive, a implicação recíproca existente entre a mãe e o bebê. À pergunta: “de onde vêm os bebês”, surge uma certa descrição do sexo materno apoiada nos orifícios corporais, levando a criança a produzir uma fantasia de sobreposição de seu corpo ao da mãe. Assinala aí um certo encontro do individual com o coletivo. Porque o corpo compartilhado é de ambos, da mãe e da criança, corpo do incesto, impossível, existente somente na ficção. Se, para Freud, o filho é o substituto do falo materno, espécie de “sexo” da mãe, como é possível, diz a autora, que a sexualidade da mãe não esteja em questão na resposta produzida do lado da criança? Nesta seqüência, vão surgindo questões sobre o masoquismo, sobre os gozos, repetição, o a posteriori, da antecipação, do corpo social, sobre o coletivo e sua relação com o sujeito do inconsciente. Ao voltar a trabalhar os tempos lógicos, ao final deste capítulo, retoma o problema da tensão constante existente entre o sujeito e o Outro, que lhe é antecipado, tensão responsável por uma diferença de lugares, uma dissimetria, e que vai ocasionar a necessidade de uma versão, onde o sujeito será construído. O que é mesmo próprio, individual, e o que é do outro, do coletivo? “A relação com o outro sempre engaja cada um de uma forma peculiar, a ponto de produzir a dúvida”, escreve. Pensando, então, o tempo de compreender, reporta-se às aulas de Lacan sobre Hamlet, citando o “ser ou não ser” como expressão da dúvida que mantém o ato – da vingança da morte de seu pai em suspenso. Não se pode deixar de lembrar a frase de Hamlet: “o pecado do pai é minha herança”, mas, nesse caso, o pecado fica sendo de quem mesmo? C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 40 41 RESENHAS RESENHAS Na segunda parte do livro, “Entre Ficção e História”, Costa retoma as questões anteriores, desenvolvendo-as sob outra face. Aponta a necessidade de um argumento (tempo de compreender), onde o eu possa fazer-se representar e, dessa forma, proporcionar alguma separação de um código absoluto, lugar do Outro. Retoma, pois, a constante pergunta, nunca totalmente respondida: “O que é o inconsciente para a clínica psicanalítica?” Para tanto, começa apresentando a ficção como um modo de transpor os obstáculos que as referências do inconsciente provocam. “Seguindo Freud, fantasia e desejo vão produzir uma nova versão da realidade. Os atos não precisam ser realizados para que se cumpra o desejo e desejar passa a ser a verdade que substitui a realidade”, escreve a autora. Surge, então, a divisão, isto é, princípio de prazer e princípio de realidade, transformando-se este último na ficção criada pelo princípio do prazer. Na clínica, a ficção constrói a figura do Outro que, além de sua face de linguagem, irá apresentar-se numa presença, num corpo, mesmo que seja um recorte ficcional. Assim, a figuração da mãe, primeira ficção que se constrói, é um corpo ficcional - mentira organizada na relação mãe-filho, produto do engano mútuo entre ambos. Interligada à mãe, a figuração do pai, traz elementos de aliança, de laço, onde se encontram tanto formas de submissão ou domínio, quanto de traços de referências relacionais, ou seja, de identificações. A tematização gira em torno da demanda de amor, e daí, a conseqüente possibilidade de amor e ódio, com a mesma violência da falta que diz que o pai está morto. No paradoxo do ato – assassinato do pai, saída do gozo absoluto e sua substituição por uma identificação – encontra-se o UM (o traço), formando um coletivo, e a conseqüente substituição do ato por uma identidade. Se, então, a dicotomia e a dúvida permeiam o sujeito moderno, sob que forma de expressão humana seria possível encontrar uma saída? A autora pensa na ironia como expressão possível do inconsciente, viabilizadora de certa condição equívoca do lugar interpretante, capaz de produzir um ato criativo, um ato do sujeito. Aproxima-se, inclusive, da própria organização que Freud defi- niu para o chiste. A terceira e última parte intitula-se “Ato e Autorização’’ e refere-se ao terceiro tempo lógico, “momento de concluir”. “Seria possível pensar a construção de uma ficção do si mesmo, que não passasse pela via sintomática?” pergunta-se Ana Maria, que dedica-se, neste capítulo, a abrir questões, lembrando que os psicanalistas trabalham, às vezes, com noções por demais estabelecidas. Surge a interrogação: “O que se faz com o pai?”, e sua resposta antecipada: “Com o pai se faz sintoma”. Trabalha, então, os sonhos de Freud que se relacionam com a morte e enterro do pai, e que produzem o aparecimento do dever e indulgência ao pai, assim como assinalam a dúvida, lugar do desejo. “Seria o édipo necessário?”. Atravessa um longo e importante estudo sobre conceitos psicanalíticos que incluem desejo e lei, desejo e as diversas formas de ato, e estendese sobre o sintoma: “Todas as produções humanas são resultantes do sintoma”. “A problemática da versão, ou da constituição de uma ficção do ‘si mesmo’, está na necessidade de uma autorização, ou seja, na necessidade de inclusão numa circulação fálica. É na dependência dessa inclusão que o significante se torna sintoma, quer dizer, na tentativa de transformação de um singular (representante do sujeito) em universal (ordem fálica)”. Gostaria de continuar, já que nessa leitura revisa-se, aprende-se, se prende, pergunta-se, mas estamos no “momento de concluir”. A autora apresenta pensamento condensado, preciso, o livro demanda uma leitura cuidadosa, concentrada em função das sutilezas das pequenas diferenças que propõe. A escrita, pontual e profunda, vai deslizando “no tempo” e num percurso onde vai-se visitando conceitos e colocações psicanalíticas, tomados em atenção sempre por algo novo que surge em sua apresentação. Por sua contribuição à teoria e clínica psicanalítica, é uma obra que deve ser incluída na bibliografia de estudos e de trabalhos de pesquisa. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 42 Maria Auxiliadora P. Sudbrack 43 Assine já a Revista da APPOA E conecte-se com os temas e eventos mais atuais em Psicanálise São 2 números por ano AGENDA Copie e preencha o cupom abaixo e remeta-o para: DEZEMBRO - 1999 Dia Hora 04 08 14h30min Sede da APPOA 18h Sede da APPOA 08 20h30min Sede da APPOA 09 09 e 23 13 e 20 13 e 27 23 21h 20h 20h30min 20h30min 21h A confirmar A confirmar Local ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Rua Faria Santos, 258 - Petrópolis 90670-150 - Porto Alegre RS Atividade Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Cartel do Interior Seminário “A topologia fundamental de Jacques Lacan” - Responsável: Ligia Víctora Cartel Brasil 500 anos com a presença da historiadora Sandra Pesavento Reunião da Mesa Diretiva Reunião da Comissão de Biblioteca Reunião da Comissão do Correio da APPOA Reunião do Fórum Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros da APPOA Cartel do Envelhecimento Relendo Freud - Análise Finita e Infinita Se preferir, utilize telefone, fax ou e-mail: Tel.: (51) 333 2140 Fax: (51) 333 7922 E-mail: [email protected] NOME: _______________________________________________________ ENDEREÇO: ___________________________________________________ CEP:_______________CIDADE:__________________________UF: ______ FONE: _________________________FAX: __________________________ E-MAIL: ______________________________________________________ INSTITUIÇÃO: _________________________________________________ Sim, quero receber a Revista da APPOA nas condições abaixo: PRÓXIMO NÚMERO O OUTRO DO MILÊNIO ( ) Assinatura anual – R$ 30,00 e receba o exemplar da revista n. 8, inteiramente grátis ( ) Para você que já é assinante do Correio da APPOA: Assinatura anual da Revista - R$ 25,00 e receba o exemplar da revista n. 8, inteiramente grátis ( ) Número da revista desejada para compra avulsa Título:____________________________________ Data: ____/__________/1999. 44 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 75, dez. 1999 E pagarei com cheque número ___________________________, do Banco ___________________,nominal à Associação Psicanalítica de Porto Alegre. S U M Á R I O N° 75 – ANO VII DEZEMBRO – 1 9 9 9 APPOA 10 ANOS EDITORIAL 1 NOTÍCIAS 3 SEÇÃO TEMÁTICA 8 A CONSTRUÇÃO DE UMA PSICANÁLISE PLURAL Ana Maria Gageiro 9 CRÔNICA DE UMA HISTÓRIA SEM TRAÇADOS Rodolpho Ruffino 14 O MILLERIANISMO Domingos Paulo Infante 17 TRANSFERÊNCIA EM TRANSFERÊNCIA Denise T. da Rosa Quintão 25 SEÇÃO DEBATES 33 FELIZ ANIVERSÁRIO E SONHE COM OS ANJOS, FREUD! Contardo Calligaris 33 “ISSO NÃO IMPEDE DE EXISTIR” A EXPOSIÇÃO SOBRE FREUD TRÊS ANOS DEPOIS Márcia H. de Menezes Ribeiro 36 RESENHAS “A FICÇÃO DO SI MESMO” 38 38 AGENDA 44 Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criação da capa: Flávio Wild - Macchina ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE GESTÃO 1999/2000 Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky 1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira 2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil 1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler 2a. 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