Ano VII – n.º 53 – janeiro / fevereiro de 1989
Uma Caminhada Cristã
O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-35) oferece um na vida dos doentes e
necessitados sem violência. A narração nos diz que os dois discípulos passavam por momentos
difíceis em suas vidas. Haviam perdido alguém importante para e es: seu amigo intimo, Jesus, em
que tinham depositado toda a sua confiança e esperança, fora crucificado e estava mono. Era ele, no
entanto, que os animava a caminhar.
O doente, como pessoa humana, também perdeu o bem que mais lhe importa - a saúde. A
exemplo dos dois discípulos que se sentiam inseguros e confusos, sem saber para onde ir e em
quem confiar, também o doente se angustia, se entristece, Antes independente, agora depende dos
outros, enquanto busca uma explicação para seu sofrimento. A doença é como um caminhar sem
rumo.
Em meio a essa angústia e insegurança, Crista se aproxima como pessoa. Não caminha atrás
nem à frente; vai junto, ao lado, observa, procura entender.
Esta é a via pode onde o agente de saúde deve aproximar-se do doente: como pessoa e
entrando pela porta que ele abre. Crista se chegou aos discípulos de Emaús cm atitude de escuta,
deixando-os falar, ouvindo. Só depois de aberta a porta é que ele entra, ajuda, esclarece, mostra a
realidade. Eis o papel do agente.
A partir desse momento, Cristo deixou de ser o estranho para ser o amigo: os dois discípulos
sentiram naquela pessoa, até então desconhecida, alguém em quem podiam confiar. Assim também
deve ocorrer na relação doente agente: o encontro precisa levar o paciente a ver um amigo naquele
que o visita. Tal como ocorreu no caminho de Emaús: os discípulos aceitaram o estranho pelo
diálogo, pelo que dizia. Cristo os cativou. Mas não foram apenas palavras adocicadas. Quando se
estabelece o elo da amizade, quando se cativa alguém, também se assume uma responsabilidade,
que exige que se diga «aquilo que ela precisa ouvir e não somente aquilo que ela quer ouvir» (cfer.
Lucas 4, 25-27).
Há mais no episódio de Emaús. Estabelecido o clima de amizade e confiança mútua, os
discípulos querem que o amigo fique com eles: numa situação difícil, confusa, a presença de um
amigo é sempre uma segurança! Do mesmo modo será com o visitador: o doente desejará que o
agente entre em seu quarto e fique com ele. Ai acontece o mais importante - a partilha do pão, o
mesmo que a partilha da vida. Nisto os discípulos reconheceram Cristo. E, ao fazer a descoberta,
quiseram retê-lo para eles.
O doente também verá no agente a presença de Deus, quando ele partilha a sua vida com o
irmão que sofre. E quererá que o visitador fique.
No entanto, como foi necessário aos discípulos de Emaús, também será a hora de deixá-lo
para que interiorize o Cristo que lhe foi dado reconhecer. A missão do agente é igualmente ampla,
ele deve buscar mais pessoas. O doente que reconquistou a confiança caminhará, então, com suas
próprias pernas, ele próprio sendo o anunciador de Boas Novas para outros.
Se não fizer assim, se deixar-se ficar, alvo agora da gratidão que lhe satisfaz o ego, o agente
não terá feito com o doente a caminhada por inteiro. E lhe servirá apenas de muleta, não da
alavanca que moverá, dali para a frente, a sua vida.
Anísio Baldessin
A Doença Na Perspectiva Da Fé
O sofrimento é sempre o convidado inevitável da humanidade: Ele se faz presente na mãe
que acaricia seu bebê recém-nascido, na criança que brinca alegremente e no idoso que ora.
Não existe momento na vida, não há idade ou classe social que seja poupada de sua
presença. Existem os que nasceram e vivem em sofrimento e aqueles que devem confrontá-lo de
forma inesperada e particularmente em momentos difíceis. Há os que se sentem oprimidos
constantemente por ele e os que o usam como uma desculpa para evitar suas responsabilidades.
A realidade existencial daqueles que são atingidos pelo sofrimento é também diferente.
Existem os que o encontram no começo de suas vidas e aqueles que o enfrentam durante os estudos
ou no auge de suas carreiras como profissionais. Existem os que são obrigados a lidar com ele no
meio de suas responsabilidades familiares e aqueles que o enfrentam na velhice, quando sentem a
ausência de seus entes queridos.
Os mundos do sofrimento também não deixam de ser diferentes. De um lado, temos poises
que são equipados com os mais sofisticados meios para combater as enfermidades, enquanto, de
outro lado, existem áreas de extrema pobreza, em que falta até o que o que é mais elementar em
termos de serviços de saúde.
O hospital, em geral, é o lugar mais especializado de intervenções terapêuticas, embora
exista a necessidade urgente de humanizar este mundo que abriga a dor, de tal forma que não
abrigo a indiferença, desumanização e injustiça.
O hospital é uru microcosmo da sociedade, onde estuo presentes as diferentes culturas,
religiões e situações humanas. Nele encontramos as mais avançadas técnicas científicas e
profissionais especializados. Ele é também um local de múltiplos interesses, quer sejam políticos,
econômicos ou ideológicos.
De outro, temos que, se os cuidados de saúde são feitos em casa, o conforto de estar mais
perto das memórias
e pessoas é freqüentemente perturbado pelo fato de que o peso da assistência fica com a família.
É bom notar, contudo, que muito depende dos tipos de doenças que as pessoas enfrentam.
Uns são atingidos pela doença física, que revela disfunção de órgãos específicos, na
presença de doenças incuráveis, nos problemas que suo difíceis de diagnosticar ou curar. Outros
são oprimidos pela doença mental, que se manifesta na súbita e inesperada mudança de
personalidade, estados de depressão e medo, obsessões que paralisam, imaginações que alteram a
percepção da realidade. Outros, ainda, sofrem o drama da aridez espiritual, uma profunda
desconfiança no próximo e em si mesmos e a tentação de procurar o suicídio como a solução para
seu desespero e infelicidade.
Podemos também falar de uma «doença social», relacionada ao nosso ethos marcado pelo
consumo, atormentado pelo álcool e drogas e partido pela injustiça.
O sofrimento, portanto, tem muitas faces e expressões.
Minha intenção é focalizar especialmente o sofrimento chamado doença, com o objetivo de
identificar as reações, bem como os problemas que podem causar e as transformações humanas que
podem acontecer naqueles que o aceitam e vivem num contexto de fé.
O encontro com a doença
O encontro com a própria fragilidade humana inicia emocionalmente um processo que leva
o paciente, de forma gradual, a uma nova interpretação do mundo e a uma percepção diferente de si
próprio.
Este processo inicia-se com o evento da hospitalização. Esta experiência causa uma ruptura
brusca com o estilo de vida que vinha sendo cultivado e derruba o sentimento de relativa segurança
a que a pessoa estava acostumada.
Não raro, pela primeira vez, o paciente descobre que não está mais no controle do mundo.
Duas importantes
dimensões suo ameaçadas: o sentimento de integridade pessoal e a própria perspectiva existencial.
Primeiramente, o paciente percebe a doença como uma violação de sua integridade física.
Esta violação é experienciada no sacrificar partes do corpo, através de cirurgias, sendo a pessoa
obrigada a viver com órgãos cronicamente doentes, ou ser exposta à incerteza do futuro.
Existem situações em que a perda tia integridade é mais sentida no nível social que no nível
físico. Acrescentando-se a isso, a doença causa um isolamento psicológico dos outros, com
sentimentos de abandono e solidão.
As perdas são parte da vida. A vida nos chama a aprender como enfrentar estas situações e
mudanças com crescente maturidade e serenidade.
O segundo desafio que a doença apresenta é o efeito sobre a imagem pessoal ou a crise que
pode causar na mentalidade teológico-espiritual da pessoa. Se a identidade pessoal, anterior à
doença, estava relacionada ao papel social e ao trabalho, então o fato de estar confinado ao leito
priva daquelas funções que sustentam sua auto-imagem.
A coisa mais difícil de aceitação para muitos é a perda de sua independência, especialmente
quando ela é o valor primeiro.
O que ajuda a superar esta crise é a capacidade de a pessoa descobrir os componentes
redentivos do estado de
dependência.
Ser dependente não significa fraqueza. Pelo contrário, a aceitação serena de uma situação
difícil pode ser reflexo da força interior da pessoa. Um estado de dependência pode ser um convite,
no sentido de se aprender dos outros, o que, para muitos, é muito mais difícil do que dar.
Existe também a possibilidade de a doença provocar uma crise que englobe a visão
teológica do mundo da pessoa.
Muitas pessoas cresceram com a firme convicção de que existe uma ordem moral na
realidade e que um Deus de bondade não permite que seu fiel sofra injustamente.
O encontro pessoal com o sofrimento desmonta este castelo. A principio, a pessoa pode
sentir-se traída ou como uma vitima; gradualmente, emerge com uma visão mais sólida e realista do
mundo.
O significado da doença
A existência da doença é um apelo de compromisso para superá-la, usando todos os
recursos e técnicas disponíveis.
Infelizmente, nem sempre o esforço humano assegura os resultados desejados.
As pessoas, hoje em dia, provavelmente mais do que as de ontem, tendem a se rebelar
contra o destino: o caminho da aceitação é freqüentemente longo e tormentoso.
Existe uma gama enorme de sentimentos expressos: do medo ao choque, da raiva à tristeza,
da culpa para a esperança. Isto representa a evolução gradual das atitudes na jornada pela doença,
de modo particular quando crônica ou terminal.
Geralmente, duas direções podem ser seguidas perante o sofrimento: uma que leva a Deus e
ao próximo, a outra que aliena deles.
A escolha de direção depende da interpretação que se dá às causas e sentido do próprio
sofrimento.
O sofrimento, não é fácil de entende-lo, muito menos explicá-lo. Ele representa um encontro
difícil com nossa imperfeição humana.
De certa forma, o sofrimento não é tanto um problema como um mistério. Problema é uma
dificuldade que pode ser resolvida e da qual podemos libertar-nos. Mistério é parte de nossa
realidade humana e a pessoa cresce ao tornar-se sempre mais consciente dele.
A intensidade que alguém vive no espírito do mistério torna mais fácil interpretar e dar um
sentido ao todo da própria existência.
Neste contexto, não é tão importante saber o porquê da dor como é saber o como
transformá-la num momento de graça e instrumento de crescimento e redenção, uma maneira de
aprofundar nossa união com Deus e o próximo.
Simon Weil escreve com propriedade: «O cristianismo não explica o sofrimento; ele o usa».
O cristão que sabe como usar o sofrimento de uma forma positiva desenvolve uma nova
espiritualidade, que è
manifesta na capacidade de apreciar aquilo de cuja importância nunca se deu conta e uma nova
sensibilidade do valor dos relacionamentos.
O sofrimento pode contribuir para a revelação das forças interiores da pessoas, tais como
paciência, coragem, perseverança, e amadurecer outros valores, tais como tolerância, perdão e
oração.
Cristo vai ao encontro
Na parábola do Bom Samaritano, Jesus deixou-nos o exemplo mais eloqüente de como
amar.
Em sua missão entre nós, ele demostrou uma preferência especial para com os doentes. A
maior parte de seu
mistério foi direcionada a eles. Os gestos de colocar barro nos olhos do cego (Jo 9,6), pôr saliva na
língua do surdomudo (Mc 7,33), curar leprosos (Lc 17,12) - tudo revela sua profunda preocupação
e carinho para com os doentes.
Ele se relaciona com o todo da pessoa, e suas ações objetivam restaurar a saúde no sentido
pleno da palavra. Ás vezes, curando o corpo, como no caso da sogra de Pedro, outras vezes,
curando o espírito, como no caso de Zaqueu. Algumas vezes, cura com sua presença (Mt 9.2-22),
ou com sua palavra (Lc 7,14), ou com seu perdão (Jo g,3-11), ou com suas mãos (Mt 8,14-16).
No entanto, nem todos os que ele viu ou encontrou foram curados. Muitos permaneceram
com enfermidade. Jesus, de fato, veio não para tirar o sofrimento, mas para infundir esperança nele.
«No mundo tereis dificuldades, mas tende coragem, pois eu venci o mundo» (Jo 16,33). Ele
não veio para condenar o sofrimento, mas para colocá-lo numa perspectiva de fé: «Nem ele nem
seus pais pecaram, Jesus respondeu, ele nasceu cego para que nele se manifestem as obras de
Deus» (Jo 9,3).
Ele não veio para explicar o sofrimento, mas para tornar-se um participante nele: «Pai, se
for possível afaste de mim este cálice, mas não se faça a minha, mas a tua vontade»(Mt 26, 39).
No plano da salvação, então, a missão de Jesus não foi de libertar-nos do sofrimento, mas
aceitá-lo e transformá-lo. «Ele carregou os nossos sofrimentos e tristezas... por suas feridas fomos
curados» (Is 53, 4-5).
Á luz do mistério pascal
Em Cristo, a cruz torna-se um símbolo de vitória. A cruz continua a ser a resposta ao
sofrimento e ganha sentido nele que a carregou e morreu nela. A mais profunda imagem do amor
de Deus por nós é a cruz, onde Cristo está
despido frente ao mundo, em seu amor-doação.
Como o êxodo era o modelo de salvação no Antigo Testamento, assim a cruz no Novo
Testamento. Crista convida seus seguidores a seguir o seu exemplo: «Se alguém quiser ser meu
discípulo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 16, 24).
Os que aceitam este convite descobrem que a cruz nos leva para a luz e não para as trevas,
para um encontro com o Salvador e não ao abandono. A cruz è expressão de amor. «Sim, Deus
amou de tal forma o mundo que enviou o seu filho único, de modo que quem acreditar nele não se
perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,18).
O mistério pascal é um paradoxo porque expressa a teologia da esperança na imagem da
cruz, a teologia da vida pela morte.
Viver o mistério pascal significa aceitar os dois aspectos: sexta-feira da Paixão e o Domingo
da Ressurreição. A sexta-feira Santa sem Ressurreição é sem esperança, a Ressurreição sem a
sexta-feira Santa é sem sentido.
O mistério pascal nos lembra que a esperança da Ressurreição tem sua origem nas trevas da
tumba e que Cristo não eliminou a morte, mas a transformou em fonte de vida.
A fé é um convite para abordarmos a doença na perspectiva de ver as cruzes como
oportunidades de crescimento. A fé nos lembra que os pensamentos de Deus não são os nossos,
seus caminhos não são os nossos caminhos (ls 55,8).
Aos nossos olhos, o cego é somente uma pessoa deficiente, mas Jesus vê nele um crente;
aos nossos olhos, a doença aparece como uma forma de injustiça. Deus pode usá-la como momento
de graça e maturação. Aos nossos olhos, a dor pela perda nos entristece, Deus, porém, pode
transforma-la num momento de humanização. Aos nossos olhos, as limitações são causa de
frustração, mas, para Deus, elas são um convite à humanidade e confiança nele.
Cada uma destas provas pode tornar-« uma experiência da Ressurreição, se contemplada na
perspectiva de Deus.
A presença da Igreja
Seguindo o exemplo de Jesus, a Igreja, ao longo dos séculos, procurou responder às
necessidades dos doentes
em maneiras que responderam á realidade sócio-cultural de cada época.
Em geral, até o século XIX, a assistência caritativa era orientada principalmente para os
pobres, incuráveis, leprosos e órfãos.
Desde os primeiros séculos, a presença da Igreja foi marcante pela instituição da diaconia e
hóspices para peregrinos. Mais tarde, durante a reforma católica na Europa, a presença se faz sentir
no trabalho de numerosas congregações religiosas dedicadas ao serviço dos doentes e inspiradas
por grandes santos da caridade, tais como São João de Deus, São Camilo de Léllis e São Vicente de
Paulo.
Hoje, embora o Estado tenha assumido a responsabilidade pelos serviços anteriormente
desempenhados pela Igreja, ela continua a estar presente no mundo da saúde, particularmente
através de instituições próprias e ministério pastoral.
Esta presença se manifesta nas mãos do médico que cura, nas palavras da enfermeira que
conforta, na acolhida do voluntário e/ou agente de pastoral, na visita reconfortante de um amigo e
no apoio da comunidade que ora.
De uma forma especial, a Igreja é simbolizada através do ministério de quem faz Pastoral da
Saúde.
Tal presença se articula numa sociedade de momentos: sacramentos, escuta,
disponibilidade, calor de gestos e a autenticidade das palavras.
Arnaldo Pangrazzi
Dez Amos Depois De Alma-Ata
A meio caminho entre a reunião que resultou na Declaração de Alma-Ata e alvo definido
pela Organização Mundial de Saúde para o ano 2000, de Saúde para Todos, realizou-se na cidade
de Riga, na URSS, em março do ano passado, um novo encontro de especialistas da área
representando 22 países. Não obstante se possa notar, desde logo, uma diferença marcante entre
ambos os encontros ( em setembro d e1978, em Alma-Ata, no Cazaquistão Soviético, eram 134 os
países representados), a Conferência de Riga reafirmou com firmeza os princípios definidos 10
anos antes, considerando os cuidados primários de saúde ( CPS) como a preocupação fundamental
para que o objetivo de Saúde para Todos ( SPT) possa ser realidade até o ano 2000. Em documento
apresentado em Riga, o prof. Jonh H. Bryant, chefe do departamento de Ciências de Saúde
Comunitária da Universidade Aga Khan, do Paquistão, afirma que avaliar o ocorrido desde AlmaAta até hoje é uma tarefa extremamente complexa. Em texto publicado na edição de
agosto/setembro da revista “A Saúde do Mundo”, da OMS, ele admite que “muitos países têm
feito progressos notáveis na melhoria das condições, mas outros ou não melhoraram ou o fazem
lentamente”.
Após avaliar alguns parâmetros, Bryant enfatiza que “é evidente que os elaborados em
Alma-Ata, em 1978, deram ao mundo preceitos éticos, imperativos políticos e direções técnicas que
se tornaram orientações essenciais para a saúde e desenvolvimento comunitário em todo o
mundo”.
Surpreendeu-se agradavelmente, ma avaliação feita, “a amplitude da aceitação e utilização,
total ou parcial, da SPT por responsáveis de saúde, planejadores de programas, organizações de
financiamento, político, pessoal de saúde, professores, repórteres, mães, escolares”. Uma outra
surpresa, segundo ele, foi o fato de que também se notou influência do SPT em políticas e
programas de países desenvolvidos, o que, inicialmente, não se esperava obter, Bryant classificou
de “satisfatória” a aceitação da estratégia do SPT pelos países mais pobres.
Em sua avaliação, o prof. Bryant, embora ponderando ser essa uma visão pessoal, destaca
alguns pontos que considera fundamentais em relação ao SPT. E o primeiro deles é ressaltar sempre
que os cuidados primários de sáide são a chave para atingir o objetivo visado por Alma-Ata. Ele
assinala, contudo, que os CPS não são: * cuidados médicos primários; * unicamente cuidados
médicos ou sanitários de primeiro contato; * unicamente serviços de saúde para todos.
Para ele, os cuidados primários de saúde têm por objetivo: * atingir todas as pessoas,
especialmente as que têm maior necessidade; * atingir o nível familiar, não ficando limitado a
serviços de saúde; * uma relação contínua com as pessoas e as famílias.
Insiste o especialista do Paquistão em que, como chave para a SPT, os cuidados primários
de saúde devem incluir cinco conceitos, a saber: * cobertura universal da população, com prestação
de cuidados segundo as necessidades, o que é, como acentua, “uma exigência de justiça”. Por isso,
diz ele, ninguém deve ser posto de lado, por mais pobre que seja ou mais afastado que viva. Como
ele enfatiza: “se não é possível servir a todos, devem ter prioridade os com mais necessidade. Estes
são os todos da Saúde para Todos; * serviços capazes de promover, evitar, curar e reabilitar. Isso
porque “os serviços devem não só curar, mas também promover a compreensão da população
sobre saúde e estilos de vida saudáveis, e atingir as causas da doença, realçando a prevenção. O
tratamento de enfermidades e a reabilitação são igualmente importantes”; * serviços eficazes,
culturalmente aceitáveis, economicamente acessíveis e manejáveis. Diz Bryant que “os serviços
que não são eficazes e ridicularizam a cobertura universal e a SPT”. No entanto, ele chama a
atenção para a necessidade à custa da aceitação cultural, já que, “na realidade, as duas são
mutuamente dependentes”. Também é importante que os serviços sejam economicamente
aceitáveis, segundo os padrões locais, “porque os recursos governamentais são limitados e a
comunidade deverá, muitas vezes, participar dos custos”; * participação das comunidades para
promoção da autonomia. Essa é condição essencial para o êxito do SPT, segundo Bryant, pois “a
comunidade deve participar ativamente de todo o processo de definição de problemas e
necessidades d saúde, desenvolvendo soluções e aplicando e avaliando programas”; * relação das
abordagens à saúde com outros setores do desenvolvimento. Entende o professor da Universidade
Aga Khan que “as causas de má saúde não estão limitadas a fatores relacionados diretamente com a
saúde, e as medidas que se devem tomar para a tratar não devem ser unicamente de saúde”. Entre
esses fatores, ele cita a alfabetização, melhor renda, água potável, saneamento, melhor alojamento,
estabilidade ecológica, comércio de produtos mais eficaz, construção de estradas ou canais, realce
de funções para mulheres... “Todos esses fatores, afirma Bryant, podem ter um impacto substancial
na saúde”.
Pobres urbanos
No seu estudo, Bryant dedica atenção especial às questões de saúde dos aglomerados urbanos. E
diz que «os problemas de saúde dos pobres urbanos parecem representar muitos dos piores
problemas do subdesenvolvimento do Terceiro Mundo - padrões de doença que são um mosaico
das sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento; serviços de saúde que são uma mistura
ineficaz de cuidados de alta tecnologia para quem os pode pagar, com poucos ou nenhum serviço
planejado para atingir as instalações ilegais em crescimento constante, dificilmente contidas em
cidades cujo crescimento é econômica e ecologicamente pouco seguro».
«Os custos de manutenção das cidades, particularmente das grandes aglomerações urbanas,
são muito grandes: abastecer de alimentos e de água, remover o lixo e os dejetos é muito mais
dispendioso para algumas grandes cidades do que para as pequenas, e a devastação ecológica das
zonas periféricas não tem comparação. Não há dúvida de que os custos de manutenção das cidades
contribuem de maneira importante para a dívida do Terceiro Mundo».
Observa também o especialista do Paquistão que uma outra deficiência habitual em países
do Terceiro Mundo é seu pouco preparo para «trabalhar eficazmente em serviços de saúde de base
comunitária ou de nível distrital». E acentua que, se isso é notado em trabalhadores de qualquer
nível, a deficiência é mais prejudicial a nível dos médicos.
Bryant justifica: «normalmente, a educação das médicos, e muitas vezes também dos
enfermeiros, é orientada para os cuidados curativos, baseia-se no hospital, e é prestada em
instituições onde a saúde pública ou a medicina comunitária recebem pouca atenção e ainda menor
« respeito».
Em decorrência, ele considera «improvável que tais profissionais de saúde sejam úteis em
papéis de liderança, exigindo comunicação às comunidades, avaliação de necessidades e
planejamento, gestão e avaliação de programas, e supervisão da formação prática de outro pessoal».
E afirma: «não tendo competência, mas ocupando o papel de líder, o médico impede realmente o
funcionamento eficaz do resto da equipe de saúde».
O especialista admite, no entanto, que, «embora haja muitas exceções, os lideres de
enfermagem têm geralmente reagido aos problemas e possibilidades representadas pela SPT, o que
se reflete nos seus escritos e programas. No terreno, onde há uma orientação de saúde pública e de
CPS, a enfermagem é, muitas vezes, o esteio do serviço», conclui ele.
Dez Princípios de Saúde
Os 22 especialistas de saúde reunidos em Riga renovaram seu empenho em tornar realidade
os princípios da Saúde para 7bdos e recomendaram que, para acelerar o progresso em direção a
esse objetivo, os países devem;
1, Manter a SPT como um objetivo permanente de todas as nações até e depois do ano 2000.
Reafirmar a Saúde para Todos como um objetivo permanente de todas as nações, como
sublinhado na Declaração de Alma-Ata, e estabelecer um processo para estudar os desafios a prazo
mais longo da SPT, que continuarão no século XXI.
2. Renovar e reforçar as estratégias de SPT.
Cada país deve continuar a controlar os seus próprios problemas de saúde e desenvolver as
suas próprias estratégias de saúde dentro do espírito de Saúde para Todos. Isto revelará os seus
problemas de saúde mais urgentes e identificará as populações mais insuficientemente servidas e
mais vulneráveis.
Os programas devem ter por alvo tais populações dentro de um espírito de justiça, pedindo a
sua participação ativa na elaboração e das estratégias.
3. Intensificar ações sociais e políticas para a SPT.
Intensificar ações sociais e políticas necessárias para apoiar alterações em política e
atribuição de recursos exigidos para progredir rumo à Saúde para Todos, incluindo a participação
de outros setores, organizações não-governamentais, comunidades e outros interessados.
Procurar mecanismos para novas alianças a favor saúde entre eles e com o governo.
4. Desenvolver e mobilizar a liderança para a STP.
Em cada pais, dar grande realce desenvolver e estimular o interesse e apoio aos atuais e
potenciais lideres de saúde e outros setores a nível comunitário, distrital e nacional, a fim de dar
criatividade, apoio, empenho e recursos ao desafio do desenvolvimento sanitário,
5. Permitir a participação das peso tomadas de decisão e nas a favor da saúde.
Conceder poderes às pessoas, fornecendo informação, apoio técnico e possibilidade de
tomada de decisões, para que possam compartilhar oportunidades e responsabilidades por ação no
interesse de sua saúde. Dar atenção especial ao papel da mulher na saúde e desenvolvimento.
6. Transformar a colaboração intersetorial numa força para a SPT.
Apoiar a criação da colaboração intersetorial constante a favor da saúde, incorporando
objetivos de saúde em políticas setoriais e ativando mecanismos potenciais em todos os níveis.
7. Reforçar sistemas de saúde distritais baseados em CPS.
Reforçar sistemas de saúde distritais baseados em cuidados primários de saúde, como um
ponto de ação essencial para focar políticas nacionais, recursos e interesses locais nas necessidades
de saúde mais urgentes e nas pessoas mais insuficientemente servidas.
8. Planejar, preparar e apoiar peso soai de saúde para a SPT.
Alterar programas educacionais e de formação de pessoal de saúde, realçando a pertinência
às exigências dos serviços de saúde, localizando experiências de formação em sistemas de saúde
em funcionamento, baseados em cuidados primários de saúde. Prestar forte apoio moral e em
recursos ao pessoal, especialmente o que trabalha em lugares remotos ou em circunstâncias difíceis.
9. Assegurar o desenvolvimento e o uso racional da ciência e da tecnologia.
Realçar as aplicações da ciência e da tecnologia apropriada aos problemas de saúde graves
que ameaçam populações em todo o mundo, e reforçar as capacidades de investigação do Terceiro
Mundo, insistindo sobre a investigação destinada a melhorar a saúde dos mais desfavorecidos.
10. Superar problemas que continuam a oferecer resistência.
Estabelecer programas prioritários destinados a superar problemas graves onde o
subdesenvolvimento ou perturbações do desenvolvimento são fatores importantes e o progresso é
muito limitado, tais como: taxas altas de mortalidade materno-infantil; abuso de certas substâncias,
como tabaco e álcool; desequilíbrio entre crescimento populacional e recursos ambientais e sócioeconômicos; desenvolver abordagens melhoradas através dos cuidados primários de saúde,
realçando a ação inter-setorial.
O Individual e o Social na Saúde
Nada mais individual, aparentemente, que o desfrutar da saúde, tão desigualmente
outorgada até mesmo no âmbito da família. Entretanto, a promoção do «direito à saúde» (sobre a
qual voltamos em razão de sua importância) lança um direito individual como constante desafio nos
braços já onerados do Estado. A evolução não terminou. Alguns queriam confiar ao Estado a
administração direta de toda instituição sanitária, enquanto outros reconhecem que seria muito mais
benéfico promover a responsabilidade privada. Uma vez mais, um ligeiro recuo histórico nos
ajudaria a melhor situar os problemas.
Qualquer direito refere-se ao campo tia justiça. A perspectiva individualista em matéria de
justiça era praticamente desconhecida até o século XV. O conceito que Aristóteles tinha do «justo»
dominou o Ocidente na época medieval, em sintonia com a concepção romana do direito. A
questão fundamental era como repartir o bem comum, assegurando a todos uma participação
equitativa. Os problemas específicos da produção viriam muito depois. Durante séculos, o próprio
cristianismo enalteceu a pessoa humana, sem por isso elaborar o que chamaríamos de uma teoria
dos direitos humanos. O direito de cada um depende do disponível na sua comunidade; a antiga
evidência tornou-se estranha. Em outras palavras, «providenciar» era uma função da família
pequena ou grande), ao passo que «proteger» é a função especifica que gerou o Estado. Hoje,
estamos exigindo do Estado providências e previdências.
Ninguém imaginaria que isto ocorreu de repente. Os antigos especulavam sobre a lei natural
para determinar os deveres do sujeito moral, não para embasar suas reivindicações. As coisas
mudaram com a filosofia política do século XVIII: Declaração da Independência dos Estados
Unidos (1776), Declaração dos direitos do homem e do cidadão (1789), Declaração universal dos
direitos do homem (ONU, 19°l8)... Se cada direito subjetivo de um indivíduo implica deveres para
os outros (o que nenhum teórico nega), imagina-se a confusão suscitada pela multiplicação de
direitos subjetivos desvinculados das obrigações correspondentes e das decorrências inevitáveis. A
setorização das reivindicações obscurece ainda mais o campo pletórico das lutas sociais: direito ao
trabalho e ao lazer, à informação e à cultura, direito das crianças, dos adultos, dos velhos, dos
trabalhadores, dos desempregados, dos funcionários, dos fetos, dos imigrantes, dos excepcionais
por baixo, dos excepcionais por cima, dos loucos, dos normais...
Desde que o termo «direito» implica o social, ele exige seriar prioridades, nas muitas
funções e crescentes dispêndios do Estado. Governar é escolher. A democracia é o regime da
participação popular nas escolhas básicas. Não seria proveitoso melhor conscientizar-nos de que as
escolhas não são equivalentes, mesmo quando efetuadas no segredo duma pequeníssima equipe de
governo, e que saudável é a pressão popular exercida para alargar a participação nas opções que
não dependem de pura informação técnica?
Exemplificaremos com um famoso moralista de nossa época: «Recursos limitados podem
ser melhor empregados para a saúde pública do que em prol duma tecnologia exótica que, afinal,
não atinge as massas. Em questões de prioridade sanitária, sempre existe o perigo de atribuir
exagerada importância á perseguição de façanhas científicas e tecnológicas, em prejuízo de
procedimentos mais corriqueiros, necessitados pela saúde do povo» (Studia Moralia, 1985, 70).
Em resumo, os direitos são sempre comunitários, mesmo quando enraizados na dignidade
da pessoa. O conceito de pessoa como simples lugar de convergências sociais, vazio no centro, é
estranho à tradição cristã. As definições de prioridades não são menos comunitárias, mantendo-se
prudente distância com a honrada doutrina da igualdade dos indivíduos.
Na evolução destes conceitos, individual e social, e sobretudo direitos c prioridades
(conceitos afins, correlatos, salientamos), convém distinguir e articular não apenas vários fatores,
mas vários níveis de pensamento, de articulação, de implementação:
. a espiritualidade dimana essencialmente duma fé, teologicamente elaborável, dum modo
de ver e sentir contextualizados; cada centro de irradiação possui certa autonomia, mas num
universo mais pluralista tio que se supõe habitualmente;
. na moral teológica, notadamente nesta área da biomedicina, dialogam a fé expressa pelo
magistério, a reflexão dos estudiosos, as novas concepções e realizações tecno-cientificas;
. uma Bioética secular está-se formando, em que se defrontam não apenas expressões atualizadas
das deontologias tradicionais dos ramos profissionais interessados, mas ainda juízos populares c
avaliações de pesquisadores, analistas, projetistas, representantes das grandes correntes de
pensamento da praça;
. a elaboração do direito em vigor, leis ou regulamentos provisórios, depende ainda de outro nível
de reflexão, polarizado sobre o bem comum da sociedade civil, protegendo seu ethos das
perturbações que lhe desfecham os comportamentos extremos.
Um sistema coerente de diretos individuais pode teoricamente ser elaborado em qualquer
destes patamares de reflexão. O mesmo ocorre com as prioridades. A prática social, porém, exige
um mínimo de coordenação. O mundo contemporâneo, enquanto secular e pluralista, não è mais
dominado por soluções únicas que urna autoridade proclama solenemente em nome dum absoluto
intocável, reverenciado por todos. À medida em que se desvendem novas possibilidades, deve-se
valorizar o governo na sua função de busca do melhor na faixa do praticável. O poder e o saber não
são independentes nem tampouco se confundem: ambos encontram limitações. Se nossa militância
não desfruta de iodo o poder com que sonhamos, pelo menos tomamos conhecimento de que o
caminho de seu progresso passa pelo alargamento e aprofundamento do saber de que dispõe.
Hubert Lepargneur, Sacedote Camiliano, teólogo moralista.
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Ano VII – n.º 53 – janeiro / fevereiro de 1989 Uma Caminhada Cristã