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Guilherme Gomes Ferreira
uma pessoa cisgênero procura trazer à tona o que as pessoas transgêneros estão dizendo a respeito de suas próprias necessidades. Nem significa
dizer que a elaboração crítica da pessoa que experimenta a discriminação
é mais qualificada que a elaboração crítica de quem está de fora (é preciso
lembrar do conceito de alienação em Marx e de que as narrativas, sozinhas,
não podem compreender o real, é preciso também da contraprova histórica,
dos dados da realidade, dos estudos secundários, da observação, da análise da estrutura, etc.). Até mesmo porque a história das transgeneridades
no Brasil ainda é uma história de invisibilidade, de desencorajamento, de
desaposta social, de leviandade. É por isso que todos devem ser parceiros
dessa luta, mas não devem, no entanto, protagonizar essa luta. Parafraseando o que disse uma travesti ao se referir à representação da galeria – “quem
comanda a galeria não pode ser um homem; se o homem gosta da travesti,
ele tem que ser companheiro dela, mas ele não pode comandar, isso tem que
ser das travestis” (TP06, Diário de campo) –, o mesmo é preciso dizer sobre
a produção científica das travestilidades: em suma, a luta é para que, um
dia, as travestis, todas elas, possam narrar cientificamente suas histórias.
No caso do transfeminismo, além disso, é preciso recuperar outra
obviedade: todas as pessoas cisgêneros, quer dizer, cujas identidades de
gênero estão de acordo com aquilo que foi designado pela sociedade, são
pessoas privilegiadas e não podem usar o transfeminismo como espaço de
segurança, porque não sofrem a violência transfóbica, não necessitam dessa proteção. Precisam ser aliados dessa corrente e valer-se dela como luta
política e teórica. O que não significa, por outro lado, que em certos contextos as pessoas cisgêneros não experimentem os reflexos da transfobia
(não é a mesma, mas sim pequena parte dela), como no caso dos maridos
das travestis que são excluídos no momento que assumem relacionamento
com elas, ou nos casos em que uma pessoa cisgênero é confundida socialmente com uma pessoa transgênero.
O que fica desses questionamentos é o desafio ético de continuar sim
tematizando essas questões, na perspectiva de que o caminho para a consolidação das cidadanias trans ainda é longo. Mas é preciso, ao mesmo tempo, elevar as vozes dos sujeitos que experimentam as condições concretas
de vida (isso vale para outros sujeitos, como os que vivem na pobreza, que
sofrem com os padrões de normalidade e de deficiência, que são subjugados pelo racismo, pelos padrões estéticos do corpo belo e jovem, etc.), sem
nunca usar suas histórias para falar no lugar deles, para protagonizar suas
lutas. Além disso, não basta uma “confissão de privilégio” como um pedido
de benção ou um pedido de desculpas (SMITH, [2013]); é preciso apoiar
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