CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
DIREITO PENAL II - 4°semestre
Profª Paola Santos
AULA III
DIREITO PENAL II
TEMA: DOS CRIMES ABERRANTES
PROFª: PAOLA JULIEN O. SANTOS
EMENTA: Crimes aberrantes. Introdução. Erro na Execução (Aberratio Ictus). Aberratio Ictus
e dolo eventual. Resultado diverso do pretendido (Aberratio Criminis ou Aberratio Delicti).
Concurso material Benéfico nas hipóteses de Aberratio Ictus e Aberratio Criminis. Aberratio
Causae.
1.
Introdução
Muito se tem discutido ultimamente a respeito daquilo que se convencionou
denominar de “casos de bala perdida”. Esses fatos podem ser considerados como uma das três
hipóteses do chamado crime aberrante, que são as seguintes:
a) aberratio ictus;
b) aberratio criminis;
c) aberratio causae;
As duas primeiras encontram previsão no CP. No que diz respeito ao Aberratio
Causae, está somente é definida pela doutrina.
A aberratio ictus, que quer dizer desvio no golpe ou aberração no ataque veio
previsto no art. 73 do CP, sob a rubrica do erro na execução.
A aberratio criminis ou aberratio delicti encontrou guarida no art. 74 do CP,
discorrendo sobre o resultado diverso do pretendido.
2.
Erro na Execução (Aberratio Ictus).
Erro na execução é o desvio no ataque ao objeto jurídico, no caso, o ser humano.
O agente tem perfeito conhecimento da realidade, mas, por acidente ou erro no uso dos meios
de execução, acaba por atingir pessoa diversa da que queria acertar. Exs.: No momento em que
Antonio dispara contra João, Rodolfo aparece na frente da vítima, recebendo o tiro e morrendo
(trata-se de acidente, pois essa circunstância não estava sob o controle do agente). Rodrigo
dispara contra José, mas, por inabilidade no manejo da arma, termina por atingir Ismael.
O erro na execução difere do erro sobre a pessoa, pois, nesse caso, o agente não
tem o exato conhecimento da realidade, acertando uma vítima no lugar de outra. Ex.: Airton
atira em Jorge, pensando tratar-se de Roberto, seu pai. De acordo com o art. 20, § 3° do CP, o
agente responde como se tivesse conseguido matar a pessoa visada. No exemplo citado, Airton
responde por homicídio, agravado por ter sido cometido contra ascendente (art. 61, II, e).
O erro na execução não exclui a tipicidade: o crime continua sendo homicídio ou
lesão corporal. Altera-se, somente, a identidade da vítima, que não é aquela visada pelo
agente. Dando relevo à intenção do agente, a lei considera que ele responde como se tivesse
cometido o crime contra a pessoa desejada, nos mesmos moldes do erro sobre a pessoa. Nesse
sentido, o magistério de Guilherme de Souza Nucci:
“... o que se efetiva nos casos de desvio no ataque é um aproveitamento do dolo,
pois o objeto visado não se altera, incidindo a mesma tipicidade básica, apenas adaptada às
1
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
DIREITO PENAL II - 4°semestre
Profª Paola Santos
circunstâncias específicas da vítima virtual. Em outras palavras, o erro na execução envolve
somente pessoas, motivo pelo qual se o agente queria matar A e termina matando B, para a
configuração do tipo básico de homicídio (matar alguém) é indiferente. Logo, resta fazer a
adaptação das condições e circunstâncias pessoais da pessoa desejada e não da efetivamente
atingida, como se operássemos uma troca de identidade.”
Na realidade, se A quer matar B, mas acaba por atingir C, que estava ao lado,
ocorrem dois crimes: uma tentativa de homicídio contra B e um homicídio culposo contra C. De
acordo com algumas legislações, deve-se aplicar a teoria da concreção ou da concretude: o
agente responde pelos dois crimes em concurso formal. Porém, nosso Código Penal adotou a
teoria da equivalência: por ficção jurídica, o agente responde por crime doloso consumado
contra a vítima que pretendia atingir.
É possível a concorrência entre os erros contra a pessoa e na execução. Ex.:
Haroldo atira em João pensando tratar-se de Fernando e, por imperícia, acaba por matar
Marina, que estava ao lado de João. Nesse caso, Haroldo responde como se houvesse matado
João, a vítima desejada.
O art. 73 do CP prevê duas formas de aberratio ictus: com unidade simples e
com unidade complexa. No primeiro caso, existe um único resultado: lesão corporal ou morte.
O agente mata ou lesiona apenas a vítima efetiva e não a que ele queria acertar. No caso em
que o objetivo do agente é matar a vítima virtual, podem ocorrer duas situações: a vítima
efetiva sofre lesões corporais, sendo que o agente responde por tentativa de homicídio; a vítima
efetiva morre, respondendo o agente por homicídio doloso consumado.
Na aberratio ictus com unidade complexa, existem dois resultados, ou seja, são
atingidas a vítima virtual e uma terceira pessoa. Nesse caso, aplicam-se as regras do concurso
formal (CP, art. 70). Se o terceiro for atingido culposamente (concurso formal perfeito), será
aplicada a pena do crime mais grave com acréscimo de um sexto até a metade. Vejam-se os
seguintes casos, em que João quer matar Pedro, mas também atinge culposamente Paulo:
a)
João mata Pedro e Paulo. Há dois crimes: homicídio doloso em relação a
Pedro e homicídio culposo em relação a Paulo. João responde por homicídio doloso consumado,
crime mais grave, com a pena aumentada de um sexto até a metade;
b)
João mata Pedro e fere Paulo. Há dois crimes: homicídio doloso em relação
a Pedro e lesão corporal culposa em relação a Paulo. A princípio, João responderia por
homicídio doloso consumado, com a pena aumentada de um sexto até a metade. Porém, como
esse cálculo supera a soma das penas do homicídio doloso consumado e da lesão corporal, deve
ser aplicada a pena como se fosse concurso material;
c)
João fere Pedro e mata Paulo. Há dois crimes: homicídio culposo em relação
a Paulo e tentativa de homicídio em relação a Pedro. Considera-se que João matou Pedro, a
vítima virtual; por isso, responde por homicídio doloso consumado com a pena aumentada de
um sexto até a metade;
d) João fere Pedro e Paulo. Há dois crimes: lesão corporal culposa em relação a
Paulo e tentativa de homicídio em relação a Pedro. João responde por tentativa de homicídio,
crime mais grave que a lesão corporal culposa, com a pena aumentada de um sexto até a
metade.
Eventualmente, pode ocorrer que o terceiro seja atingido sem que haja culpa ou
dolo por parte do agente. Ex.: no momento em que A estava atirando em B, C, acidentalmente,
esbarra no braço de A, fazendo com que o tiro atinja D, que vem a morrer. Nesse caso, não
houve culpa de A, pois o esbarrão de C era imprevisível. Trata-se, portanto, de um caso
fortuito. A doutrina diverge no tocante à possibilidade de se imputar essa conduta ao agente:
2
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
DIREITO PENAL II - 4°semestre
Profª Paola Santos
parte considera que o art. 73 do CP prevê a possibilidade de responsabilização objetiva, ou
seja, o agente responde pelo resultado mesmo que tenha agido sem dolo ou culpa; outra
corrente entende que não é possível responsabilizar alguém pela mera causalidade material do
fato, sendo indispensável a existência de dolo ou culpa.
É possível a ocorrência de aberratio ictus na legítima defesa. Se A, para se
defender, quer matar B e acaba atingindo C, considerar-se-á que acertou em quem gostaria de
ter atingido, ou seja, B. Portanto, não será responsabilizado pela morte de C. Porém, o agente
será civilmente responsável pelo fato, nos termos do art. 930 do Código Civil.
De acordo com o Superior tribunal de Justiça, a ocorrência de aberratio ictus
não altera a competência, quando esta for fixada em razão da pessoa, ou seja, deve se
considerar, para efeito de fixação da competência, a vítima efetivamente atingida. Além disso,
o art. 77, II, do Código de Processo Penal considera que a aberratio ictus é uma das causas de
reunião de processos pro continência.
Paulo Queiroz realiza severa crítica à disciplina legal do aberratio ictus, que
pode levar, em certos casos, a soluções antigarantistas e desproporcionais. Para ilustrar sua
tese, ele utiliza o seguinte caso:
“Clarice de tal, residente no município de Ipirá, Bahia, deliberou, em razão dos
maus-tratos sofridos e constantes ameaças de morte, matar seu companheiro, Luís José de tal.
Para tanto, deu-lhe uma refeição, acondicionada em vasilha plástica, composta de farinha e
carne, sendo que, ao prepará-la, adicionou-lhe uma colher de chá do veneno conhecido por
‘chumbinho’. Posteriormente, Luiz José encontrou os seus filhos Rogério, 7 anos, e Gilvânia, 12
anos, aos quais entregou a marmita, a fim de que a levassem para casa, em razão de não haver
serviço naquele dia. Ocorreu que os menores, antes de chegarem à residência, comeram a
refeição e, em conseqüência, agonizaram até a morte. Presa, Clarice foi denunciada pelo
Ministério Público Estadual pelo crime do art. 121, §2°, III, c/c os arts. 61, II, "f", e 73, todos do
Código Penal (homicídio doloso qualificado e agravado).”
Nesse caso, ele considera desarrazoada a cominação da pena do homicídio
qualificado por meio insidioso (uso de veneno) e agravada por ser o crime cometido contra
ascendente a uma pessoa que passou por tal tragédia. Em situações como a relatada, o juiz
deveria realizar uma interpretação conforme a Constituição e aplicar a pena da tentativa de
homicídio contra o marido em concurso material com o homicídio culposo dos filhos.
3.
Aberratio Ictus e dolo eventual.
Erro na execução é quando atinge outra pessoa que não aquela que pretendia ofender, somente
se poderá cogitar em aberratio se o resultado for proveniente de culpa, afastando-se o erro na
hipótese de dolo, seja ele direto ou eventual. Isso porque se o agente queria (direto) ou não se
importava em produzir o resultado por ele previsto e aceito, agindo com dolo eventual, não há
de falar em erro na execução.
4.
Resultado diverso do pretendido (Aberratio Criminis ou Aberratio Delicti).
Tal qual no aberratio ictus, no resultado diverso do pretendido, também ocorre
um acidente um erro na execução do crime em relação ao objeto jurídico. Só que o erro
ocasiona um desvio do objeto jurídico do crime, ou seja, o agente quis atingir uma pessoa
3
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
DIREITO PENAL II - 4°semestre
Profª Paola Santos
(homicídio ou lesão corporal) e acaba por acertar uma coisa (dano), ou, inversamente, pretende
atingir uma coisa e termina por atingir uma pessoa.
Nesses casos, “o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime
culposo; se ocorrer também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”
(CP, art. 74). Ao contrário do aberratio ictus, a lei prevê que o resultado diverso do pretendido
só pode ser punido se ocorrer ao menos culposamente. Portanto, está expressamente vedada a
responsabilização objetiva, ou seja, a responsabilização do sujeito que agiu sem dolo nem
culpa.
Podem ocorrer os seguintes casos de aberratio criminis:
a)
A atira em B para matar, mas acerta apenas o carro de C: trata-se de
tentativa de homicídio contra B e dano culposo contra C. Como o dano é punido apenas a título
de dolo, A responde somente pela tentativa de homicídio, mas deve reparar civilmente C pelo
dano causado;
b)
A atira em B para matar, mas acerta apenas um monumento histórico:
nesse caso, o dano culposo é punível, nos termos do art. 62 da lei 9605/1998. A responde por
tentativa de homicídio em concurso formal com o dano culposo;
c)
A atira uma pedra em direção ao carro de B, com objetivo de danificá-lo,
mas, acerta C, acidentalmente, sem atingir o carro: tem-se tentativa de dano em concurso
formal com homicídio ou lesão corporal culposa;
d)
na mesma situação anterior, A acerta o carro de B: ocorre o dano
consumado em concurso formal com homicídio ou lesão corporal culposa;
e)
A atira a pedra no carro de B, quase acertando C: há somente o crime de
dano, pois não existe tentativa de crime culposo.
Na verdade, a disciplina do resultado diverso do pretendido, constante no art.
74 do CP mostra-se desnecessária, pois esse gênero de crimes obedece, como qualquer outro, às
normas referentes ao dolo e à culpa, constantes no art.18.
5.
Concurso material Benéfico nas hipóteses de Aberratio Ictus e Aberratio
Criminis.
Em qualquer das hipóteses de aberratio ictus ou criminis com unidade complexa, ou seja, com
a produção de dois resultados, deverá ser observada a regra do concurso material benéfico. A
regra do concurso formal cederá diante do caso concreto caso a regra do cúmulo material seja
mais benéfica ao agente.
6.
Erro Sucessivo ou Aberratio Causae.
Na aberratio causae, o agente quer conseguir determinado resultado e pratica
uma conduta com essa finalidade. O resultado não ocorre, mas o agente, imaginando sua
ocorrência, realiza outra ação, que leva efetivamente ao resultado querido. Ex.: Antonio
pretende matar Rodrigo, esganando-o. Imaginando que a vítima está morta, joga-a no rio,
vindo a morte efetivamente ocorrer por afogamento. O erro do agente refere-se ao ato que
causou a morte.
Não há previsão na lei a respeito do erro sucessivo. A disciplina dessa situação é
dada pela doutrina, na qual existem três orientações a respeito:
4
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
DIREITO PENAL II - 4°semestre
Profª Paola Santos
a)
há concurso material entre a tentativa de homicídio e o homicídio culposo.
A solução tem o mérito de prestigiar a realidade dos fatos, mas é francamente minoritária na
doutrina brasileira;
b)
existe somente uma tentativa de homicídio. De acordo com Damásio
Evangelista de Jesus, no termos da teoria da imputação objetiva, o resultado morte advindo da
segunda conduta não pode ser imputado ao agente, que não teve a intenção de causar esse
risco;
c)
ocorre um homicídio doloso consumado. O agente deve ser responsabilizado
por seu dolo inicial (precedente), tendo em vista a perfeita similaridade entre o que ele fez e o
que ele quis fazer. De acordo com Magalhães Noronha, “nos crimes dolosos, não é mister que o
dolo persista durante todo o fato: basta que a ação desencadeante do processo causal seja
dolosa”. Utiliza-se o mesmo raciocínio da aberratio ictus, em que a lei considera existir um
crime doloso em um fato culposo contra uma vítima que o agente não pretendia atingir.
5
Download

AULA III -CRIMES ABERRANTESx