UEFS periência sui generis, em que cada indivíduo pode relatar a sua vivência, o seu encontro com o erótico. A R T I G O Vermes, latas e lixo: Matéria de poesia REFERÊNCIAS José Rosa dos Santos Júnior ARCHER, W.G. Prefácio. In. VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra. Traduzido da versão clássica de Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986. BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Ed. Antígona, 1988. GHIRALDELLI JR., Paulo. A Carne é Fraca: a filosofia e a pornografia, ou o feminismo e a libertinagem. Filosofia, Ano I. nº 4. PANIKKAR, K. M. Introdução. In. VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra. Traduzido da versão clássica de Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986. PAZ, Octávio. Um mais além erótico: Sade. SP: Mandarim, 1999. PIGLIA, Ricardo. O Último Leitor. São Paulo: Cia das Letras, 2006. TORRANO, Jaa. Hesíodo - Teogonia: A Origem dos Deuses. Estudo e Tradução. SP: Iluminuras, 1995. VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra. Traduzido da versão clássica de Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986. Carla Fernanda da Silva é doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professora da Universidade Regional de Blumenau – FURB. Publicou Grafias da Luz, Edifurb, 2009 e Clio no Cio: escritos livres sobre o corpo, Casa Aberta, 2010. E-mail: [email protected] 128 Orientador: Roberval Pereyr RESUMO: Este artigo tem por objetivo dissertar acerca da obra poética de Manoel de Barros e em especial como esta poética ao mesmo tempo em que é moderna nega a própria modernidade. Elegendo como tema a escória, o ínfimo, o descartado, as “desutilidades”, Manoel de Barros instaura de maneira original uma literatura onde os vermes, as latas e os lixos viram matéria de poesia. Palavras-Chave: Poesia, Manoel de Barros, Modernidade. Sabemos o quanto é difícil nos desapegarmos das coisas e dos benefícios que a modernidade e conseqüentemente as novas tecnologias nos oferecem. A vida pós-moderna nos impõe uma rotina que nos obriga a viver somente para o trabalho, os estudos, dando um valor exacerbado ao mundo padronizado, reprimindo dessa forma a singularidade do indivíduo. No correcorre de nossas vidas, mal temos tempo de escutar o canto dos pássaros, de inclinar o nosso olhar e contemplar o pôr-do-sol que dá lugar à beleza da lua. O pensamento enraizado no mundo moderno é de que todas as coisas devem ter um fim útil, tudo aqui129 UEFS CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE lo que não apresentar uma utilidade imediata deve ser desprezado, afinal não devemos perder tempo com algo que nos leve “a coisa nenhuma”. Quanto a isso, Manoel de Barros nos diz: do seu tempo (que lida com ruínas e destroços: fragmentos), ao mesmo tempo rejeita visceralmente esse mundo. Assim, pureza – mas não puerilidade - e inutilidade são os aspectos explícitos desta poesia que estabelecem o máximo de tensão com o seu contexto sócio-histórico e cultural. É uma poesia que rejeita o urbano, o utilitarismo, as metas, a produtividade e a reificação de tudo, entre outras coisas, e o faz predominantemente de forma indireta, ao reafirmar uma outra visão e um outro sistema de valores para os seres e a vida. Um sistema de valores em que os seres e as coisas recuperam a sua dignidade e com que recuperam a aura que lhes foi retirada pelo utilitarismo grosseiro e alienante. Segundo Gullar (1989, p. 11): Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia. O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia Terreno de 10x20, sujo de mato – os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas servem para poesia(...) Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros; serve para poesia. Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa, mija em cima serve para a poesia Pessoas desimportantes Dão pra poesia Qualquer pessoa ou escada. O que é bom para o lixo é bom para a poesia. As coisas jogadas fora têm grande importância Como um homem jogado fora. As coisas sem importância são bens de Poesia. (Barros, 1999, p 17). enquanto para Horácio a realidade se decifrava em termos mitológicos, para o poeta de hoje ela se decifra em termos científicos e, ainda que o poeta não faça dessa decifração a sua resposta à existência, não pode ignorála. (...) é a força do conhecimento científico que determinará o recuo da explicação religiosa, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da economia capitalista, mudando drasticamente o sistema de vida, abalará os valores tradicionais em que se apoiava a sociedade. Já de há muito o poeta perdera a sua condição de eleito dos deuses, criador das leis e fundador das cidades, mas ainda conservava parte dessa mística na medida mesmo em que se identificava com a visão religiosa, que lhe convinha preservar. Neste poema, intitulado “Matéria de poesia”, Manoel de Barros nos mostra de que é feita a sua poesia: de destroços e de inutilidades. Sendo uma poesia Para Manoel de Barros, não basta somente ressacralizar os elementos esquecidos e escamotea- 130 131 UEFS dos por uma sociedade capitalista e utilitarista. Sua poesia nos mostra que a nossa essência que há muito foi perdida só pode ser reencontrada quando o homem reaprender a ver e escutar o espetáculo do mundo e da natureza que se materializam em linguagem. A poética manoelina nos faz refletir sobre a nossa origem: “lembra que és pó e que ao pó tu voltarás” (BARROS, 1997, p.27). Saber que viemos do pó, do barro e que para lá retornaremos nos devolve o “status” de seres integrantes da natureza. E nos retira do estado de alienação em que nos encontramos. Manoel de Barros nos coloca a todo o momento frente à importância de conhecer devidamente a nossa origem, a nossa essência, através de imagens e de reflexões que retratam a nossa relação com as coisas-seres que compõem nosso mundo. Essas nem sempre remetem diretamente à natureza. Neste caso, o que é significativo é que todas as coisas que a sua poesia toca são redimensionadas e dignificadas, por passarem a ter um valor em si mesmas que se revertem num valor para nós mesmos. É o próprio autor que nos alerta e relembra: “Conhece-te a ti mesmo” (BARROS: 1997 p. 27): Borboletas me convidaram a elas. O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu. Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens E das coisas. Eu imaginava que o mundo de uma borboleta – Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas. 132 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE Daquele ponto de vista: Vi que as árvores são mais competentes em auroras Do que os homens. Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças Do que pelos homens. Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do Que os homens. Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que Os cientistas. Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do Ponto de vista de uma borboleta. Ali até o meu fascínio era azul. (BARROS, 2000, p. 59) Imaginar vendo o mundo com o olhar de um inseto é quase que uma missão impossível a nós humanos que acreditamos que todo universo gira em torno do homem. Assim, esta poesia nos leva a refletir que temos muito que aprender com a natureza, que aquilo que julgamos conhecer a fundo, os pequeninos seres que vivem apenas para cumprir um ciclo biológico sabem mais do mundo e das coisas que nós meros e mortais humanos. Desta maneira, todos nós somos convidados a perceber o mundo de um outro ângulo, alargando e flexibilizando assim nossa visão reduzida. É uma poesia que convida o homem a retirar-se do seu mundo estreito e condicionado, para ver-se a partir de uma instância externa, mas relacionada às origens: a natureza da qual viemos e a que voltaremos. Ver como um pássaro ou uma borboleta é estar descondicionado ao máximo dos padrões de hábitos e crenças que põem na fôrma e que incidem sobre a pró133 UEFS pria linguagem que, por sua vez, os dissemina. Mas, paradoxalmente, é pelo uso especial da própria linguagem (na poesia) que se dá o descondicionamento. Na poesia a linguagem se transforma em imagens originais da vida, do mundo e do homem: APRENDIMENTOS O filósofo Kiekkegard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que se fosse ele um caracol vejetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia mais no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das suas origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles – esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis lingüísticos que achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala. Sócrates falava que as ex134 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE pressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O que de mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca. (BARROS, 2008, p.109) Assim, percebemos claramente que na poesia de Manoel de Barros não é encontrada uma linguagem rebuscada, mas, paradoxalmente, a serviço da simplicidade, uma linguagem “pobre”, sem ser, contudo, simplória ou simplista (o que é bem diferente de ser “simples”). Sua poesia anseia por tocar o chão, roçar o solo das palavras, tirando delas o que elas têm de terra, sem abrir mão de uma visão filosófica que, por um lado, nos devolve à natureza e por outro, nos põe em tensão com o mundo humano: Aprendo mais com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o Insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho. Ainda não entendi porque herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – Antes que das coisas celestiais Pessoas pertencidas de abandono me comovem: Tanto quanto as soberbas coisas ínfimas. (BARROS: 1998, p. 27) 135 UEFS CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE Essa preocupação com a simplicidade, com as coisas rasteiras do chão, de falar através do fazer poético está ao lado da procura pela “pobreza” dos temas, “pobreza” no sentido de que aquilo que Manoel de Barros escolhe para tratar na sua poesia é sempre algo “pequeno”, “ínfimo”, geralmente não privilegiado pela maioria dos poetas. Na sua poesia, têm lugar privilegiado e seguro os insetos (formigas, principalmente), os pássaros (beija-flor, bem-te-vi, rolinha, andorinha), bichos que rastejam (sapos, lagartos, caranguejos), lembrando as “coisas rasteiras” que ele elege como tema: Com a literatura de Manoel de Barros, viajamos por um tempo paradisíaco de graça antecedente à domesticação da natureza pelo homem, escavamos um período mítico, revisitamos os subterrâneos do sonho – individual e coletivo. A percepção animista que reveste a arte poética de Manoel de Barros é fonte de conhecimento e de transformação, de recusa e de reconciliação. Enfim, em Manoel de Barros, o universo apresenta-se plástico e fluido, pondo em evidência com o auxílio da razão, as qualidades do sentir: a intuição, a emoção, a sensibilidade, a experiência concreta - características do pensamento mágico que instaura o mundo no âmbito do sagrado como veremos no poema a seguir: Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou banho em cima. Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no olho encapado. Depois se escondeu debaixo de um tronco. (Tem um tipo de árvores que dão cruz lagartos). Alguns atravessam invernos que os pássaros morrem. Borboletas translúcidas quedam estancadas no tronco das árvores. Se enxergam por perto os curimpãpãs. Mas todos sabemos que esses lagartos curimpãpãs são pouco favorecidos de horizontes. Enxergam tão pequeno que às vezes pensam que a gente é árvore e nem se mexem. ..................................... (Essas noticias foram colhidas por volta de 1944, entre os índios chiquitanos, na Bolívia) Águas estavam iniciando rãs. (BARROS: 1997, p.84) 136 FONTES Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a preciência das coisas de Deus. Quero falar primeiro dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles fazem da ignorância. Sempre eles sabem tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhe dava uma linguagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza um dia voltam para ela. Aprendi com os passa137 UEFS rinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor nas costas. E são livres para pousar em qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – sem se machucarem. E aprendi com eles ser disponível para sonhar. O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os pássaros, os andarilhos e acriança em mim são meus colaboradores destas memórias inventadas e doadores de suas fontes. (BARROS, 2008, p. 127) Nesta poesia nos deparamos com uma linguagem sofisticadamente simples, uma inocência cheia de malícia implícita e uma poesia que se quer uma poética (ou seja, uma poesia que reflete constantemente sobre a linguagem e sobre si mesma) e que por isso é contemporânea, mas de uma forma muito singular. Ela seria o equivalente ao que chamamos no romantismo de “fuga”. Esta poesia foge da civilização. Mas se trata de uma espécie de “fuga corajosa”, que traz em si uma crítica e uma condenação implícitas e explícitas a essa civilização. Nega uma realidade simplesmente ao instaurar e valorizar outra. Portanto, como no romantismo, esta poesia empreende uma fuga, uma fuga para dentro da realidade: do cerne da vida, pelo revigoramento da percepção, pela valoração da origem, das fontes, da natureza. Manoel de Barros ausculta a natureza interior e exterior, ouve o sussurrar do cosmos e ressignifica tais percepções em imagens, ritmos, melodias, que resultam em oscilações da alma, em fulgurações sagradas e é isso que nos fascina. Ele nos deixa vislumbrar, no 138 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE novo da aparência, o primordial e duradouro da essência. Segundo Heidegger apud Nunes (1992, p.249) “a arte é uma consagração e um abrigo, por onde o real dispensa ao homem o seu brilho até então escondido, para que, numa tal claridade, possa ver, de maneira mais pura, e ouvir, mais distintamente, o que fala à sua essência”. Manoel de Barros resgata o poder da linguagem de nomear, de compreender a natureza e, nesse ato mágico, resgata o “ser” da poesia de que fala Alfredo Bosi. Com Manoel de Barros, o poético não sobrevive, ele revive em plenitude: Há um cio vegetal na voz do artista. Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto De alcançar o murmúrio das águas nas folhas Das árvores. Não terá mais o condão de refletir sobre as Coisas. Mas terá o condão de sê-las. Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos, Passarinhos... Nos restos de comida onde as moscas governam Ele achará solidão. Será arrancado de dentro dele Pelas palavras A torquês. Sairá entorpecido de haver-se. Sairá entorpecido e escuro. Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na Barriga do cavalo – Vai o menino e fura de canivete a sambixuga: Escorre sangue escuro do cavalo. 139 UEFS CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE Palavra de um artista tem que escorrer Substantivo escuro dele. Tem que chegar enferma de suas dores, de seus Limites, de suas derrotas. Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de Enxergar no olho de uma garça os perfumes do Sol. (BARROS, 1998, p.18-19) Se bem observarmos, na poesia manoelina as imagens da natureza são semeadas ao longo de sua obra poética, tais como o ovo, a água (elemento sempre ligado à origem), o limo (espécie de lama, de lodo, ambiente úmido que sempre remete a uma origem), assim como bichos que lembram as coisas do chão, que se ligam diretamente a um universo mais primitivo, mais telúrico, muitas vezes aquático – lagarto, formiga, coruja, peixe, besouro, vaga-lume, osga (espécie de réptil), aranha, rã, cágado. Todos esses bichos são diretamente ligados a um mesmo universo mais remoto, às vezes “sujo”, viscoso, ou, no mínimo, obscuro, das trevas, silencioso. Manoel de Barros resgata em sua obra poética, imagens tradicionalmente agregadas ao Brasil. Harmonizada com o movimento da natureza, sua poesia ganha chão. Desfilam, na paisagem poética verbal e visual, a fauna, a flora e a alma de um Brasil-criança. Sons disseminam aberturas de cor e cheiro da nossa terra, imagens que se afinam com a cadência de nossa paisagem natural. Por entre as folhas das árvores, por entre os cantos dos pássaros, sussurra a voz de nossos ances- trais, nossa fala mais genuína. Ouve-se o “sussurrar” de nosso olhar primeiro, primitivo, inaugural, coeso com a natureza. Por isso, sua poesia é resistência, recusa à exploração do chão e ao desmatamento da alma brasileira. Tudo isso se pesca no contato íntimo com a natureza, em uma língua que, por recusa, reverte à escrita. Com ela, inscreve-se uma gramática do chão brasileiro. Manoel de Barros escreve com olhos sensíveis: vê, aproxima-se das palavras, espreita seus significados, descobre sentidos singulares. Com onomatopéias, os poemas ganham sons, com metáforas e metonímias, os poemas ganham cores, formas, visibilidades, com as combinações sinestésicas, os poemas ganham cheiros, toques, ganham sentidos. Ao leitor é mostrado o milagre do chão, a maravilha do que não se esgota o encanto do que permanentemente se refaz. Transubstancia homem em natureza, devolvelhe a origem, recolocando-o em estado de graça. A singularidade desta poesia – como temos visto - consiste no deslocamento de foco para a natureza e para as coisas inúteis, numa crítica a racionalidade produtivista e seus desastres. Também neste sentido, utiliza a racionalidade contra ela mesma, ao instaurar uma espécie de filosofia da inutilidade. Da mesma forma, o natural (a natureza) aparece com vigor em sua linguagem, mediante o uso de procedimentos e artifícios (recursos) poéticos singulares e sofisticados, embora em função da simplicidade. 140 141 UEFS Maria Auxiliadora Fontana Baseio, em O sagrado em Mia Couto e Manoel de Barros nos diz que: A natureza - ventre poético - fecunda renovação e libertação. Ela é a matéria que compõe o sonho diurno do poeta. Dela nasce o encantamento da letra, os deslimites do verbo, o silêncio ressabiado das peraltagens poéticas. O poeta inaugura um mundo outro, inteiramente distinto do ordinário. Sua linguagem põe-se rasteira, próxima da coisa, concreta, portanto, simples, um tanto vizinha da língua adâmica, por isso seus versos são livres, soltos, desarticulados, (...) longe do estabelecido e próxima do bem antes da colonização. Com Manuel de Barros, a poesia é devolvida às suas origens e nos devolve as origens, recuperando as múltiplas possibilidades que nossa língua tem de abrir ao homem a visão do extraordinário. Com seus “despropósitos”, a poesia de Manuel de Barros deita raízes em solo brasileiro, põe a imaginação do leitor em revoada, para que, de fato, amanheça. (FONTANA BASEIO, 2010, p.7) Propositalmente, no poema XIV que encerra O livro das ignorãnças, antes do “Auto-retrato falado”, ele diz: “Todas as minhas palavras já estavam consagradas de pedras” (BARROS: 1997 p.102). Esse verso parece apontar para um fim de trajeto, em que as palavras foram sendo desvestidas de seus significados até chegarem ao estado de coisa, de pedra. Os versos seguintes a esse elucidam ainda mais essa idéia. Vejamos o poema na íntegra: 142 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o Mato e a fome tomavam conta das casas, dos Seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore. Me arrastei por beiradas de muro cariados desde Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz De La Sierra, na Bolívia. Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o Poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco - no Peru Achava que a partir de ser inseto o homem poderia Entender melhor a metafísica. Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente E achar o que não procurava. Naqueles relentos de pedra e lagartos, gostava de Conversar com idiotas de estrada e maluquinhos De mosca. Caminhei sobre grotas e lajes de urubus. Vi outonos mantidos por cigarras. Vi lamas fascinando borboletas. E aquelas permanências nos relentos faziam-me Alcançar os deslimites do Ser. Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Fui adotado em lodo. Já se viam vestígios de mim nos lagartos. Todas as minhas palavras já estavam consagradas de Pedras. Dobravam-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. Não era mais a denúncia das palavras que me importava mas a parte selvagem delas, os seus refolhos, as suas entraduras. Foi então que comecei a lecionar andorinhas. (BARROS: 1997, p.101-102) 143 UEFS A investigação do poeta é pela “parte selvagem” das palavras, pelas suas reentrâncias, o que a aproxima de uma árvore, de uma pedra, de um bicho. Ou seja, é uma investigação (termo próprio do saber e da linguagem científica), mas que resulta em poesia (em imagens poéticas): “refolhos, entraduras” - as palavras (a linguagem) transformando-se, encarnando-se em imagens. Assim podemos dizer que “a imagem poética é uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante (...) a poesia põe a linguagem em estado de emergência”. (BACHERLAD, 1993, p.11). Enfim, não se utiliza as palavras para definir ou conceituar, mas para encenar criativamente, conferindo corpo (carne, sangue, galhos, asas) e alma (vozes, toques, gestos) à linguagem e religada à sua origem e à sua dimensão sagrada. Vejamos o que Octavio Paz (1989, p.137-138) nos diz sobre as imagens poéticas: A imagem não explica: convida-nos a recriá-la e literalmente a revivê-la. O dizer do poeta se encarna na comunhão poética. A imagem transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é, em espaço onde os contrários se fundem. E o próprio homem, desenraizado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro. A poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso confina com a magia, a religião e outras tentativas para transformar o homem e fazer “deste” ou “daquele” esse “outro” que é ele mesmo. (...) A poesia coloca o homem fora de si e simultaneamente o faz regressar ao seu ser 144 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE original: volta-o para si. O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem é. A poesia é entrar no ser. Assim, parafraseando Heidegger apud Nunes (op.cit. 259) ser implica apresentar-se, surgir, aparecendo, propor-se, expor alguma coisa. Não ser, ao invés, significa afastar-se da aparição da presença. Fazer poesia significa pôr à luz. O fazer artístico é um fazer emergir algo que não se mostraria senão através da obra e que constitui a essência poética da arte. A verdade como clareira e ocultamento do ente acontece na medida em que é poética. Insetos que se arrastam árvores que voam arbustos que cantam - tudo isso implica, na poética de Manoel de Barros, o desdobramento de imagens que comunicam a revelação. As palavras se movem no poema, e o leitor nunca se cansa de se surpreender; a poesia concretiza, pela força da imaginação no próprio âmago do espírito: Para entender nós temos dois caminhos o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo Poesia não é para compreender, [mas para incorporar. Entender é parede; procure ser árvore. (BARROS: 2000, p.77) Nesse exercício de metalinguagem, o poeta aborda, com extrema agudeza, a problemática do que a poesia comunica cuja natureza, como se vê, é, essenci145 UEFS almente, inefável. O estado poético, portanto, comporta a desintegração das coisas, a decomposição da crosta que as envolve: “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios” (BARROS: 1997 p. 09). Em outras palavras, o estado poético consiste em mergulhar no avesso das coisas - que é o avesso da linguagem - em descascar o que há muito já se encontra cristalizado pela cultura. Ser poeta é inverter. Ser poeta é transgredir: No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite e um sapo engole as auroras. (BARROS: 1997, p.13) Desta forma apresentamos o processo de ressacralização operado pela lírica de Manoel de Barros, que se evola num universo singularmente harmonioso, uma vez que tal harmonia advém da própria poesia, que nos torna ressonantes e consoantes com ela. Um universo que permanece em nós, exatamente porque não nos é imposto, mas tão-somente sugerido. É o sonho que emana de uma percepção. CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE REFERÊNCIAS BACHERLAD, Gaston. A poética do espaço. Trad. 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[email protected] 146 147