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periência sui generis, em que cada indivíduo pode relatar a sua vivência, o seu encontro com o erótico.
A R T I G O
Vermes, latas e lixo:
Matéria de poesia
REFERÊNCIAS
José Rosa dos Santos Júnior
ARCHER, W.G. Prefácio. In. VATSYAYANA, Mallanaga.
Kama Sutra. Traduzido da versão clássica de Richard
Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Ed. Antígona, 1988.
GHIRALDELLI JR., Paulo. A Carne é Fraca: a filosofia e
a pornografia, ou o feminismo e a libertinagem. Filosofia,
Ano I. nº 4.
PANIKKAR, K. M. Introdução. In. VATSYAYANA,
Mallanaga. Kama Sutra. Traduzido da versão clássica de
Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986.
PAZ, Octávio. Um mais além erótico: Sade. SP: Mandarim,
1999.
PIGLIA, Ricardo. O Último Leitor. São Paulo: Cia das Letras,
2006.
TORRANO, Jaa. Hesíodo - Teogonia: A Origem dos Deuses.
Estudo e Tradução. SP: Iluminuras, 1995.
VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra. Traduzido da versão
clássica de Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986.
Carla Fernanda da Silva é doutoranda em História pela
Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professora da
Universidade Regional de Blumenau – FURB. Publicou
Grafias da Luz, Edifurb, 2009 e Clio no Cio: escritos livres sobre o corpo, Casa Aberta, 2010. E-mail:
[email protected]
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Orientador: Roberval Pereyr
RESUMO: Este artigo tem por objetivo dissertar acerca
da obra poética de Manoel de Barros e em especial como
esta poética ao mesmo tempo em que é moderna nega a
própria modernidade. Elegendo como tema a escória, o
ínfimo, o descartado, as “desutilidades”, Manoel de Barros instaura de maneira original uma literatura onde os
vermes, as latas e os lixos viram matéria de poesia.
Palavras-Chave: Poesia, Manoel de Barros,
Modernidade.
Sabemos o quanto é difícil nos desapegarmos das
coisas e dos benefícios que a modernidade e conseqüentemente as novas tecnologias nos oferecem. A vida
pós-moderna nos impõe uma rotina que nos obriga a
viver somente para o trabalho, os estudos, dando um
valor exacerbado ao mundo padronizado, reprimindo
dessa forma a singularidade do indivíduo. No correcorre de nossas vidas, mal temos tempo de escutar o
canto dos pássaros, de inclinar o nosso olhar e contemplar o pôr-do-sol que dá lugar à beleza da lua.
O pensamento enraizado no mundo moderno é
de que todas as coisas devem ter um fim útil, tudo aqui129
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
lo que não apresentar uma utilidade imediata deve ser
desprezado, afinal não devemos perder tempo com algo
que nos leve “a coisa nenhuma”. Quanto a isso, Manoel
de Barros nos diz:
do seu tempo (que lida com ruínas e destroços: fragmentos), ao mesmo tempo rejeita visceralmente esse
mundo. Assim, pureza – mas não puerilidade - e inutilidade são os aspectos explícitos desta poesia que estabelecem o máximo de tensão com o seu contexto
sócio-histórico e cultural. É uma poesia que rejeita o
urbano, o utilitarismo, as metas, a produtividade e a
reificação de tudo, entre outras coisas, e o faz predominantemente de forma indireta, ao reafirmar uma
outra visão e um outro sistema de valores para os seres e a vida. Um sistema de valores em que os seres e
as coisas recuperam a sua dignidade e com que recuperam a aura que lhes foi retirada pelo utilitarismo
grosseiro e alienante. Segundo Gullar (1989, p. 11):
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia.
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia(...)
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros;
serve para poesia.
Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita,
pisa, mija em cima
serve para a poesia
Pessoas desimportantes
Dão pra poesia
Qualquer pessoa ou escada.
O que é bom para o lixo é bom para a poesia.
As coisas jogadas fora têm grande importância
Como um homem jogado fora.
As coisas sem importância são bens de
Poesia. (Barros, 1999, p 17).
enquanto para Horácio a realidade se decifrava em termos mitológicos, para o poeta de hoje ela se decifra em
termos científicos e, ainda que o poeta não faça dessa
decifração a sua resposta à existência, não pode ignorála. (...) é a força do conhecimento científico que determinará o recuo da explicação religiosa, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da economia capitalista,
mudando drasticamente o sistema de vida, abalará os
valores tradicionais em que se apoiava a sociedade. Já
de há muito o poeta perdera a sua condição de eleito
dos deuses, criador das leis e fundador das cidades, mas
ainda conservava parte dessa mística na medida mesmo em que se identificava com a visão religiosa, que lhe
convinha preservar.
Neste poema, intitulado “Matéria de poesia”,
Manoel de Barros nos mostra de que é feita a sua poesia: de destroços e de inutilidades. Sendo uma poesia
Para Manoel de Barros, não basta somente
ressacralizar os elementos esquecidos e escamotea-
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dos por uma sociedade capitalista e utilitarista. Sua
poesia nos mostra que a nossa essência que há muito
foi perdida só pode ser reencontrada quando o homem
reaprender a ver e escutar o espetáculo do mundo e da
natureza que se materializam em linguagem. A poética
manoelina nos faz refletir sobre a nossa origem: “lembra que és pó e que ao pó tu voltarás” (BARROS, 1997,
p.27).
Saber que viemos do pó, do barro e que para lá
retornaremos nos devolve o “status” de seres integrantes da natureza. E nos retira do estado de alienação em
que nos encontramos. Manoel de Barros nos coloca a
todo o momento frente à importância de conhecer devidamente a nossa origem, a nossa essência, através de
imagens e de reflexões que retratam a nossa relação
com as coisas-seres que compõem nosso mundo. Essas nem sempre remetem diretamente à natureza. Neste
caso, o que é significativo é que todas as coisas que a
sua poesia toca são redimensionadas e dignificadas,
por passarem a ter um valor em si mesmas que se revertem num valor para nós mesmos. É o próprio autor
que nos alerta e relembra: “Conhece-te a ti mesmo”
(BARROS: 1997 p. 27):
Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens
E das coisas.
Eu imaginava que o mundo de uma borboleta –
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
Do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
Do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do
Que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
Os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
Ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul. (BARROS, 2000, p. 59)
Imaginar vendo o mundo com o olhar de um inseto é quase que uma missão impossível a nós humanos que acreditamos que todo universo gira em torno
do homem. Assim, esta poesia nos leva a refletir que
temos muito que aprender com a natureza, que aquilo
que julgamos conhecer a fundo, os pequeninos seres
que vivem apenas para cumprir um ciclo biológico sabem mais do mundo e das coisas que nós meros e mortais humanos. Desta maneira, todos nós somos convidados a perceber o mundo de um outro ângulo, alargando e flexibilizando assim nossa visão reduzida. É
uma poesia que convida o homem a retirar-se do seu
mundo estreito e condicionado, para ver-se a partir de
uma instância externa, mas relacionada às origens: a
natureza da qual viemos e a que voltaremos.
Ver como um pássaro ou uma borboleta é estar
descondicionado ao máximo dos padrões de hábitos e
crenças que põem na fôrma e que incidem sobre a pró133
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pria linguagem que, por sua vez, os dissemina. Mas,
paradoxalmente, é pelo uso especial da própria linguagem (na poesia) que se dá o descondicionamento. Na
poesia a linguagem se transforma em imagens originais da vida, do mundo e do homem:
APRENDIMENTOS
O filósofo Kiekkegard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates
fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia
que não sabia nada. Não tinha as certezas científicas.
Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza.
Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos
ensinar a cair sem alardes. Disse que se fosse ele um
caracol vejetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar
que a exuberância maior está nos insetos do que nas
paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele
podia conhecer todos os pássaros pelo coração de seus
cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia mais
no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das suas origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! Eu vivi
antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles – esse
pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das
origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava
todos os fósseis lingüísticos que achava para renovar
sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala. Sócrates falava que as ex134
CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
pressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se
explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O
que de mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma
ascese de mosca. (BARROS, 2008, p.109)
Assim, percebemos claramente que na poesia de
Manoel de Barros não é encontrada uma linguagem rebuscada, mas, paradoxalmente, a serviço da simplicidade, uma linguagem “pobre”, sem ser, contudo, simplória ou simplista (o que é bem diferente de ser “simples”). Sua poesia anseia por tocar o chão, roçar o solo
das palavras, tirando delas o que elas têm de terra, sem
abrir mão de uma visão filosófica que, por um lado,
nos devolve à natureza e por outro, nos põe em tensão
com o mundo humano:
Aprendo mais com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
Insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu olho.
Ainda não entendi porque herdei esse olhar para baixo.
Sempre imagino que venha
de ancestralidades machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar
das coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
Tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.
(BARROS: 1998, p. 27)
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
Essa preocupação com a simplicidade, com as
coisas rasteiras do chão, de falar através do fazer poético está ao lado da procura pela “pobreza” dos temas,
“pobreza” no sentido de que aquilo que Manoel de Barros escolhe para tratar na sua poesia é sempre algo “pequeno”, “ínfimo”, geralmente não privilegiado pela
maioria dos poetas. Na sua poesia, têm lugar privilegiado e seguro os insetos (formigas, principalmente),
os pássaros (beija-flor, bem-te-vi, rolinha, andorinha),
bichos que rastejam (sapos, lagartos, caranguejos),
lembrando as “coisas rasteiras” que ele elege como
tema:
Com a literatura de Manoel de Barros, viajamos
por um tempo paradisíaco de graça antecedente à
domesticação da natureza pelo homem, escavamos um
período mítico, revisitamos os subterrâneos do sonho
– individual e coletivo. A percepção animista que reveste a arte poética de Manoel de Barros é fonte de
conhecimento e de transformação, de recusa e de reconciliação. Enfim, em Manoel de Barros, o universo
apresenta-se plástico e fluido, pondo em evidência com
o auxílio da razão, as qualidades do sentir: a intuição, a
emoção, a sensibilidade, a experiência concreta - características do pensamento mágico que instaura o
mundo no âmbito do sagrado como veremos no poema a seguir:
Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco.
(Tem um tipo de árvores que dão cruz lagartos).
Alguns atravessam invernos que os pássaros morrem.
Borboletas translúcidas quedam estancadas no
tronco das árvores.
Se enxergam por perto os curimpãpãs.
Mas todos sabemos que esses lagartos curimpãpãs
são pouco favorecidos de horizontes.
Enxergam tão pequeno que às vezes pensam
que a gente é árvore e nem se mexem.
.....................................
(Essas noticias foram colhidas por volta de 1944,
entre os índios chiquitanos, na Bolívia)
Águas estavam iniciando rãs.
(BARROS: 1997, p.84)
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FONTES
Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança; dois, os
passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a preciência
das coisas de Deus. Quero falar primeiro dos andarilhos,
do uso em primeiro lugar que eles fazem da ignorância.
Sempre eles sabem tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhe dava uma linguagem
de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas,
mas inventavam caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem que eu pude prever que os que fogem da
natureza um dia voltam para ela. Aprendi com os passa137
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rinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor nas costas. E são livres para pousar em
qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – sem se machucarem. E aprendi com eles ser disponível para sonhar. O outro parceiro de sempre foi a criança que me
escreve. Os pássaros, os andarilhos e acriança em mim
são meus colaboradores destas memórias inventadas e
doadores de suas fontes. (BARROS, 2008, p. 127)
Nesta poesia nos deparamos com uma linguagem
sofisticadamente simples, uma inocência cheia de malícia implícita e uma poesia que se quer uma poética
(ou seja, uma poesia que reflete constantemente sobre a linguagem e sobre si mesma) e que por isso é
contemporânea, mas de uma forma muito singular. Ela
seria o equivalente ao que chamamos no romantismo
de “fuga”. Esta poesia foge da civilização. Mas se trata
de uma espécie de “fuga corajosa”, que traz em si uma
crítica e uma condenação implícitas e explícitas a essa
civilização. Nega uma realidade simplesmente ao instaurar e valorizar outra. Portanto, como no romantismo, esta poesia empreende uma fuga, uma fuga para
dentro da realidade: do cerne da vida, pelo
revigoramento da percepção, pela valoração da origem,
das fontes, da natureza.
Manoel de Barros ausculta a natureza interior e
exterior, ouve o sussurrar do cosmos e ressignifica tais
percepções em imagens, ritmos, melodias, que resultam em oscilações da alma, em fulgurações sagradas e é isso que nos fascina. Ele nos deixa vislumbrar, no
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
novo da aparência, o primordial e duradouro da essência. Segundo Heidegger apud Nunes (1992, p.249) “a
arte é uma consagração e um abrigo, por onde o real
dispensa ao homem o seu brilho até então escondido,
para que, numa tal claridade, possa ver, de maneira mais
pura, e ouvir, mais distintamente, o que fala à sua essência”. Manoel de Barros resgata o poder da linguagem de nomear, de compreender a natureza e, nesse
ato mágico, resgata o “ser” da poesia de que fala
Alfredo Bosi. Com Manoel de Barros, o poético não
sobrevive, ele revive em plenitude:
Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
De alcançar o murmúrio das águas nas folhas
Das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
Coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,
Passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam
Ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele
Pelas palavras
A torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na
Barriga do cavalo –
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
Palavra de um artista tem que escorrer
Substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
Limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
Enxergar no olho de uma garça os perfumes do
Sol. (BARROS, 1998, p.18-19)
Se bem observarmos, na poesia manoelina as
imagens da natureza são semeadas ao longo de sua obra
poética, tais como o ovo, a água (elemento sempre ligado à origem), o limo (espécie de lama, de lodo, ambiente úmido que sempre remete a uma origem), assim como bichos que lembram as coisas do chão, que
se ligam diretamente a um universo mais primitivo,
mais telúrico, muitas vezes aquático – lagarto, formiga, coruja, peixe, besouro, vaga-lume, osga (espécie
de réptil), aranha, rã, cágado. Todos esses bichos são
diretamente ligados a um mesmo universo mais remoto, às vezes “sujo”, viscoso, ou, no mínimo, obscuro,
das trevas, silencioso.
Manoel de Barros resgata em sua obra poética,
imagens tradicionalmente agregadas ao Brasil. Harmonizada com o movimento da natureza, sua poesia ganha
chão. Desfilam, na paisagem poética verbal e visual, a
fauna, a flora e a alma de um Brasil-criança. Sons disseminam aberturas de cor e cheiro da nossa terra, imagens que se afinam com a cadência de nossa paisagem
natural. Por entre as folhas das árvores, por entre os
cantos dos pássaros, sussurra a voz de nossos ances-
trais, nossa fala mais genuína. Ouve-se o “sussurrar”
de nosso olhar primeiro, primitivo, inaugural, coeso
com a natureza. Por isso, sua poesia é resistência, recusa à exploração do chão e ao desmatamento da alma
brasileira. Tudo isso se pesca no contato íntimo com a
natureza, em uma língua que, por recusa, reverte à escrita. Com ela, inscreve-se uma gramática do chão brasileiro. Manoel de Barros escreve com olhos sensíveis: vê, aproxima-se das palavras, espreita seus significados, descobre sentidos singulares. Com
onomatopéias, os poemas ganham sons, com metáforas e metonímias, os poemas ganham cores, formas,
visibilidades, com as combinações sinestésicas, os
poemas ganham cheiros, toques, ganham sentidos. Ao
leitor é mostrado o milagre do chão, a maravilha do
que não se esgota o encanto do que permanentemente
se refaz. Transubstancia homem em natureza, devolvelhe a origem, recolocando-o em estado de graça.
A singularidade desta poesia – como temos visto
- consiste no deslocamento de foco para a natureza e
para as coisas inúteis, numa crítica a racionalidade
produtivista e seus desastres. Também neste sentido,
utiliza a racionalidade contra ela mesma, ao instaurar
uma espécie de filosofia da inutilidade. Da mesma forma, o natural (a natureza) aparece com vigor em sua
linguagem, mediante o uso de procedimentos e artifícios (recursos) poéticos singulares e sofisticados, embora em função da simplicidade.
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Maria Auxiliadora Fontana Baseio, em O sagrado em Mia Couto e Manoel de Barros nos diz que:
A natureza - ventre poético - fecunda renovação e libertação. Ela é a matéria que compõe o sonho diurno do
poeta. Dela nasce o encantamento da letra, os deslimites
do verbo, o silêncio ressabiado das peraltagens poéticas. O poeta inaugura um mundo outro, inteiramente
distinto do ordinário. Sua linguagem põe-se rasteira, próxima da coisa, concreta, portanto, simples, um tanto vizinha da língua adâmica, por isso seus versos são livres,
soltos, desarticulados, (...) longe do estabelecido e próxima do bem antes da colonização. Com Manuel de
Barros, a poesia é devolvida às suas origens e nos devolve as origens, recuperando as múltiplas possibilidades que nossa língua tem de abrir ao homem a visão do
extraordinário. Com seus “despropósitos”, a poesia de
Manuel de Barros deita raízes em solo brasileiro, põe a
imaginação do leitor em revoada, para que, de fato,
amanheça. (FONTANA BASEIO, 2010, p.7)
Propositalmente, no poema XIV que encerra O
livro das ignorãnças, antes do “Auto-retrato falado”,
ele diz: “Todas as minhas palavras já estavam consagradas de pedras” (BARROS: 1997 p.102). Esse verso
parece apontar para um fim de trajeto, em que as palavras foram sendo desvestidas de seus significados até
chegarem ao estado de coisa, de pedra. Os versos seguintes a esse elucidam ainda mais essa idéia. Vejamos o poema na íntegra:
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
Mato e a fome tomavam conta das casas, dos
Seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
Me arrastei por beiradas de muro cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz
De La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o
Poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco
- no Peru
Achava que a partir de ser inseto o homem poderia
Entender melhor a metafísica.
Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente
E achar o que não procurava.
Naqueles relentos de pedra e lagartos, gostava de
Conversar com idiotas de estrada e maluquinhos
De mosca.
Caminhei sobre grotas e lajes de urubus.
Vi outonos mantidos por cigarras.
Vi lamas fascinando borboletas.
E aquelas permanências nos relentos faziam-me
Alcançar os deslimites do Ser.
Meu verbo adquiriu espessura de gosma.
Fui adotado em lodo.
Já se viam vestígios de mim nos lagartos.
Todas as minhas palavras já estavam consagradas de
Pedras.
Dobravam-se lírios para os meus tropos.
Penso que essa viagem me socorreu a pássaros.
Não era mais a denúncia das palavras que me
importava mas a parte selvagem delas, os seus
refolhos, as suas entraduras.
Foi então que comecei a lecionar andorinhas.
(BARROS: 1997, p.101-102)
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A investigação do poeta é pela “parte selvagem”
das palavras, pelas suas reentrâncias, o que a aproxima
de uma árvore, de uma pedra, de um bicho. Ou seja, é
uma investigação (termo próprio do saber e da linguagem científica), mas que resulta em poesia (em imagens poéticas): “refolhos, entraduras” - as palavras (a
linguagem) transformando-se, encarnando-se em imagens. Assim podemos dizer que “a imagem poética é
uma emergência da linguagem, está sempre um pouco
acima da linguagem significante (...) a poesia põe a linguagem em estado de emergência”. (BACHERLAD,
1993, p.11). Enfim, não se utiliza as palavras para definir ou conceituar, mas para encenar criativamente,
conferindo corpo (carne, sangue, galhos, asas) e alma
(vozes, toques, gestos) à linguagem e religada à sua
origem e à sua dimensão sagrada. Vejamos o que
Octavio Paz (1989, p.137-138) nos diz sobre as imagens poéticas:
A imagem não explica: convida-nos a recriá-la e literalmente a revivê-la. O dizer do poeta se encarna na comunhão poética. A imagem transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é, em espaço onde
os contrários se fundem. E o próprio homem,
desenraizado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro. A poesia é
metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso
confina com a magia, a religião e outras tentativas para
transformar o homem e fazer “deste” ou “daquele” esse
“outro” que é ele mesmo. (...) A poesia coloca o homem
fora de si e simultaneamente o faz regressar ao seu ser
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CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
original: volta-o para si. O homem é sua imagem: ele
mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo,
que é imagem, o homem é. A poesia é entrar no ser.
Assim, parafraseando Heidegger apud Nunes
(op.cit. 259) ser implica apresentar-se, surgir, aparecendo, propor-se, expor alguma coisa. Não ser, ao invés, significa afastar-se da aparição da presença. Fazer
poesia significa pôr à luz. O fazer artístico é um fazer
emergir algo que não se mostraria senão através da obra
e que constitui a essência poética da arte. A verdade
como clareira e ocultamento do ente acontece na medida em que é poética.
Insetos que se arrastam árvores que voam arbustos que
cantam - tudo isso implica, na poética de Manoel de
Barros, o desdobramento de imagens que comunicam a
revelação. As palavras se movem no poema, e o leitor
nunca se cansa de se surpreender; a poesia concretiza,
pela força da imaginação no próprio âmago do espírito:
Para entender nós temos dois caminhos
o da sensibilidade que é o entendimento do corpo;
e o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender,
[mas para incorporar.
Entender é parede; procure ser árvore.
(BARROS: 2000, p.77)
Nesse exercício de metalinguagem, o poeta aborda, com extrema agudeza, a problemática do que a poesia comunica cuja natureza, como se vê, é, essenci145
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almente, inefável. O estado poético, portanto, comporta
a desintegração das coisas, a decomposição da crosta que
as envolve: “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios” (BARROS: 1997 p. 09). Em outras palavras, o
estado poético consiste em mergulhar no avesso das
coisas - que é o avesso da linguagem - em descascar o
que há muito já se encontra cristalizado pela cultura.
Ser poeta é inverter. Ser poeta é transgredir:
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
e um sapo engole as auroras.
(BARROS: 1997, p.13)
Desta forma apresentamos o processo de
ressacralização operado pela lírica de Manoel de Barros, que se evola num universo singularmente harmonioso, uma vez que tal harmonia advém da própria poesia, que nos torna ressonantes e consoantes com ela.
Um universo que permanece em nós, exatamente porque não nos é imposto, mas tão-somente sugerido. É o
sonho que emana de uma percepção.
CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE
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de Janeiro: Record, 1998.
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de
Manoel de Barros/ iluminuras de Martha Barros. São Paulo:
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PAZ, Octavio. A Imagem. Trad. Olga Savary. In: O arco e a
lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
José Rosa dos Santos Júnior é Mestrando em Literatura e
Diversidade Cultural pela UEFS. [email protected]
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