Fortaleza, 22 04 14
XX Congresso Brasileiro de Arquitetos
Reflexão sobre o espírito do público na arquitetura
contemporânea.
Arquiteto Sérgio Magalhães
Muito boa noite. Minha saudação cordial a todos.
Gostaria de agradecer à Comissão Científica do XX CBA por tão honroso convite para
fazer esta Conferência, o qual aceitei com dupla satisfação:
- primeiro, pela oportunidade de conversar com colegas de todo o nosso país em torno
de nossa paixão em comum, a arquitetura;
-segundo, pela oportunidade de encontro com nossos futuros colegas – estudantes de
arquitetura que prestigiam este Congresso e que, com isso, demonstram o seu
interesse por, desde logo, ajudarem a pensar a arquitetura brasileira – na verdade, o
Congresso é uma oportunidade de troca de experiências;
O tema que preparei – o espírito do público na arquitetura contemporânea - me
parece pertinente ao momento em que vivemos, quando 85% de nossa população,
mais de 175 milhões de brasileiros, já vivem em cidades.
Eu não terei a pretensão de falar sobre a arquitetura brasileira, em geral, por
sua óbvia complexidade e grande diversificação. Falarei mais simplesmente, tendo
como base a minha própria experiência profissional.
Dividi essa apresentação em três partes: vou falar um pouquinho sobre A cidade do
século XX e seu espaço; depois, sobre A revisão doutrinária e a cidade do século
XXI. Ao fim, apresentarei algumas imagens de ilustração.
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1
A cidade do século XX e seu espaço
Começarei trazendo uma crônica do princípio do século
XX, do escritor brasileiro João do Rio, publicada no livro
intitulado “A Alma Encantadora das Ruas”.
Diz João do Rio: “Eu amo a rua”. E continua:
“Esse sentimento de natureza toda íntima eu não o
revelaria a vocês se não o julgasse como um amor
compartilhado por todos.” Amor que é o “único que resiste
a todas as idades e épocas.”
Para o cronista, “A rua das fachadas alinhadas é um fator
de vida nas cidades” – “a rua é a mais niveladora das obras
humanas”, diz. “A rua faz as celebridades e as revoluções.”
Assim João do Rio escreveu, em 1908.
E assim se punha, também, durante os séculos anteriores,
construindo-se a cidade em um fenômeno no qual ao
espaço público correspondia o papel de lugar do encontro.
Diferentemente do que muitos afirmavam, hoje sabemos
que a cidade tem como característica fundadora justamente
ser o lugar onde se dá o encontro, a troca entre os
diferentes, a interação social, o lugar do conflito.
Essa característica é a qualidade essencial da cidade. E
o espaço público é o seu suporte material.
Mas é certo que pouco depois que João do Rio fez sua
declaração de amor à rua, aquela das fachadas alinhadas,
deu-se a condenação da “rua corredor”, sob a orientação
de Le Corbusier, e que se transmitiu mundialmente como
se fosse uma febre avassaladora.
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A explosão demográfica, a industrialização, as novas
relações econômicas, o automóvel, associados às novas
doutrinas arquitetônicas e urbanísticas, entre outros
fatores, fizeram do século XX um outro tempo para as
cidades.
Era o tempo da cidade funcional.
Nela, tudo seria autônomo: morar, trabalhar, recrear,
circular; cada função em seu lugar. E o lugar da circulação
não seria “povoado”, mas cheio de velocidade – de
automóveis, sobretudo.
Nessa cidade não há lugar para o espaço público.
Para a área vazia, sim, há; para o espaço não há.
Os edifícios adquiriram autonomia em relação à circulação
e tornaram-se células livres, soltas, isoladas. Foram
dispensados de manter relação de escala com o espaço
público – posto que a rua estava condenada.
Independentes do lugar e da paisagem, os edifícios foram
também dispensados de manter relação de escala entre
eles.
Esse modelo não foi capaz de acabar com as ruas, mas as
transformou em lugares inóspitos para o convívio, de pouco
interesse, barulhentos.
Continuam fruto do modelo funcionalista os bairros
homogêneos, os condomínios fechados, os “shoppings
centers”, e, logo, as autopistas, os elevados e a ausência
de calçadas. Também os centros das cidades sem
habitação, vazios à noite e nos fins de semana.
Especialmente, o isolamento entre funções urbanas exige o
uso crescente de veículos para os deslocamentos rotineiros
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– ademais de levar ao aumento de tempo de viagem casatrabalho, chegando ao impasse que hoje assombra nossas
cidades.
Paradoxalmente, quando viaja ao exterior, o brasileiro
procura cidades com espaços públicos muito bem
estruturados, onde se caminhe por ruas-corredores de
calçadas muito bem mantidas e de usos diversificados.
A cidade da segregação, do isolamento, da ausência de
serviços públicos e da circulação sem vida – esta cidade
não corresponde mais ao sonho contemporâneo.
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4
A revisão doutrinária e a cidade do século XXI
Dito isso como pano de fundo, falarei um pouco de minha
experiência e de muitos de minha geração.
Ao final da década de 1960, quando concluí o curso de
arquitetura, estávamos imersos plenamente no urbanismo
funcionalista – isto é, não gostávamos da cidade herdada.
Como epígrafe do trabalho de final de curso escolhemos,
minha equipe e eu, um poema de Anibal Machado, que
dizia:
Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.
Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.
De vez em quando, faça partir um barco. Veja onde ele vai.
Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.(...)
Sirva-se do vento, se achar difícil.
Eles estão perdidos, mas nem tudo o que fizeram está perdido.
(...)
Mande uma manhã de sol, na íntegra.
Com urgência, o projeto de uma nova cidade!
Para nós, o que poderia ser uma síntese melhor dos
princípios do urbanismo moderno? Para um arquiteto,
confiante nas gigantescas possibilidades do futuro, o que
poderia ser difícil? Mandar uma manhã de sol, na íntegra?
Talvez, apenas, algo que fosse maior do que suprimir o
mar.
Por que a arquitetura desejou, por 150 anos, uma nova
cidade? Uma cidade perfeita, uma cidade sem história?
O ponto de partida que eu sugiro para chegar a alguma
resposta se localiza no entendimento das noções de
tempo e de futuro que estiveram em vigor quando se
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formavam as bases da arquitetura moderna – quando, ao
início do século XIX, o crescimento da cidade industrial a
todos surpreendia.
Nesse momento de partida, o tempo é o de Newton e é
absoluto: o futuro é o lugar da felicidade, construída pela
razão.
Aos arquitetos caberia a tarefa de concepção do modelo
urbanístico da perfeição. Uma vez alcançado, a cidade se
manteria perfeita, pronta, definitiva, e ofereceria as
condições para o desenvolvimento de uma nova sociedade
igualitária.
É possível encontrar nessa tarefa todos os nossos mais
queridos doutrinadores –nossos profetas, que nos
ensinavam a soltar primeiro uma borboleta, e outras tantas,
seguidas, de cores diferentes, que encantavam os
desenhos de nossas pranchetas.
Eles estavam aí, inclusive aquele que nos impunha a
necessidade da tabula rasa para construirmos a cidade – o
arquiteto da máquina de viver.
Vimos, porém, que quando esses modelos urbanísticos
começam sua brilhante carreira de proselitismo, justamente
aí, as bases newtonianas são atingidas pela relatividade de
Einstein e pelos quânticos de Heisenberg.
É introduzido um elemento de imprevisibilidade ou de
casualidade na ciência, que irá alcançar a doutrina da
arquitetura e do urbanismo algumas décadas mais tarde:
justamente quando o moderno se torna hegemônico entre
nós, justamente naquela década em que nós, os de minha
geração, chegávamos à vida profissional e desejávamos,
com urgência, o projeto de uma nova cidade.
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A confiança inabalável em um futuro de felicidade eterna já
se perdia.
Faça partir um barco. Veja onde ele vai. (dizia o poeta)
Depois desses anos revisores da doutrina, o arquiteto
poderá projetar um novo barco, poderá fazê-lo partir. Mas
já não estará em condições de escolher o caminho. No
máximo, poderá ver para onde vai.
A geração de arquitetos que pensava projetar a arquitetura
da nova cidade da perfeição se encontrou com a beleza da
cidade imperfeita, da cidade diversa.
Agora, os elementos de trabalho em tempos de incerteza é
a cidade existente, aquela que foi contestada mais que
secularmente. É a cidade existente, não a nova cidade.
Mas nela também encontrou a cidade segmentada, a
cidade fragmentada, segregada, a cidade partida, a cidade
dispersa.
Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está
perdido.
É para esse novo contraste que a arquitetura se pergunta:
como trabalhar? O que fazer?
A cidade chegou ao cenário contemporâneo sem
possibilidade de reducionismo; seu estatuto não é o da
simplicidade. Nenhuma resposta única poderá satisfazer
sua complexidade conquistada.
Todavia, é indispensável que se busquem as respostas,
tendo por base o reconhecimento dessa múltipla realidade
de contrastes.
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Penso que uma contribuição possível é a compreensão de
que a incerteza é parteira de uma nova ética, a qual exige
um olhar desprovido de enquadramentos modelares em
relação à multiplicidade de cidades.
Ao mesmo tempo, a nova ética também exige um olhar
cheio de interesse radical para superação das realidades
iniquas que existem na cidade contemporânea.
De algum modo, recomeçamos o debate sobre a
necessidade da construção da cidade democrática.
É verdade que, ao longo desse tempo, a cidade, mesmo
permanentemente contestada, se consolidou como lugar da
democracia.
E a democracia é a equidade e a diferença.
No entanto, se nossas cidades se consolidam como lugar
da democracia, ainda se apresentam como lugar da
desigualdade.
Assim, ?quiçá o desafio central de nosso trabalho de
arquitetos poderá ser o de redesenhar o espaço da vida
urbana enfrentando a expansão desmedida das cidades,
que se apresenta como insustentável? Que fazer com as
estruturas ambientais segregadas? Com os centros vazios?
Como levar a todo o cidadão a disponibilidade de
equipamentos e de serviços públicos indispensáveis à vida
contemporânea? Como estruturar espaços cheios de vida,
em áreas vazias de cidade?
Tempo, presente e futuro, continuidade, contiguidade,
ruptura, interação, participação, diversidade, incerteza –
por certo são categorias indissociáveis de nossa
contemporaneidade.
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A cidade segmentada, a cidade sem identidade, irregular –
essa é nossa cidade existente, que também é heroica,
generosa, que foi capaz de suportar dois séculos de tábula
rasa e, assim mesmo, é a construtora da civilização do
século XXI, o tempo da vida urbana.
Na ingenuidade de nossos vinte anos, nós não sabíamos
que suprimir o mar poderia ser mais fácil do que suprimir a
cidade.
Felizmente, fomos vencidos.
SM
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