2. A imagem no sincretismo cinematográfico:
um estudo de Noiva Cadáver1
Mônica Baltazar Diniz Signori2
Resumo
Esta análise do filme Noiva Cadáver é sustentada teoricamente pela semiótica greimasiana,
proposta que define a unidade textual como a manifestação decorrente da interação entre os
planos de expressão e de conteúdo, compreendidos, respectivamente, como a instância material
e a instância abstrata da linguagem. Com base nesse princípio, objetiva-se discutir os aspectos
da organização textual denominados semi-simbolismo e sincretismo, diretamente relacionados à
indissolubilidade entre os dois planos. Metodologicamente, por tratar-se da análise de um texto
sincrético, consideram-se as relações intrassemióticas, derivadas dos recortes sobre uma
substância específica, e as intersemióticas, estabelecidas a partir de substâncias distintas. Com essa
fundamentação teórico-metodológica, descreve-se como a imagem, em Noiva Cadáver, interage
com os recortes verbais e musicais, sincreticamente organizados, por sua vez, nas canções que
compõem a trilha sonora do filme. Aspectos imagéticos da obra evidenciam um jogo semisimbólico entre formas de expressão e formas de conteúdo que articulam contrários como vida e
morte, superficialidade e profundidade e, em nível mais abstrato, essência e aparência, oposição
fundamental cuja sintaxe é estabelecida pela sequência das canções na narrativa fílmica. Concluise que imagens e canções, com suas marcas específicas intersemioticamente relacionadas,
permitem, em Noiva Cadáver, a negação da aparência em favor da afirmação da essência.
Palavras-chave
Semiótica greimasiana, semi-simbolismo, sincretismo
1 Considerações Introdutórias
Noiva Cadáver é um texto que desperta sensibilidades contraditórias. Da não
rara repulsa frente ao título, alusão a abordagens grotescas do gênero terror, adentra-se
um cenário tão cuidadosamente constituído que desestabiliza a primeira impressão: a
figura de uma borboleta azul que passeia pelos espaços compõe o quadro de leveza na
organização dos componentes textuais, trazendo uma visão delicada e bela para a
história que se inicia.
Na sequência, mais um estranhamento: seria o filme em preto-e-branco?
Imagens muito escuras parecem se contrapor à sutileza do voo introdutório. O que
1
2
Tim Burton’s Corpse Bride, 2005.
Professora Associada do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos
poderia soar pesado, no entanto, é compensado pela canção, que devolve a suavidade e
a leveza ao conjunto.
Finalmente, a noiva cadáver, em cena espetaculosamente marcada pelo terror! E
suavemente envolvida por aquela que condensa todo o encantamento da obra.
O mundo dos vivos, então, encontra-se com o dos mortos. E tudo se transforma
pelo colorido da espontaneidade.
Explicar as condições de produção desses sentidos em Noiva Cadáver constitui o
objetivo deste trabalho e, para tanto, serão acionados o conceito de semi-simbolismo,
marca da integração entre plano de expressão (PE) e plano de conteúdo (PC)3, e o de
sincretismo, característica de construção discursiva que manifesta-se pela articulação
entre linguagens diferentes.
Os sistemas semi-simbólicos, ao se interdefinirem em relação ao simbólico e ao
semiótico4, não isolam o estudo da expressão e do conteúdo nem dispensam sua
distinção: evidenciam as categorias específicas dos dois planos da linguagem,
considerando, não obstante, a correspondência que estabelecem para a produção de
efeitos de sentido. Tal característica coaduna-se com a abordagem do sincretismo,
resultado de um arranjo textual inerente ao plano de conteúdo, e não apenas uma marca
de expressão.
3
O plano de expressão é compreendido como a instância textual que se organiza por meio dos
componentes próprios da materialidade a partir da qual cada linguagem se constitui; é uma forma – como
compreendida por Ferdinand de Saussure – capaz de estimular os sentidos humanos, gerando, assim, as
condições necessárias para a manifestação textual, em interação com o plano de conteúdo, instância
abstrata em que “a significação nasce das variações diferenciais graças às quais cada cultura, para pensar
o mundo, ordena e encadeia ideias e discurso” (Floch, p. 9).
4
“Na esteira de L. Hjelmslev, distinguem-se os sistemas simbólicos e os sistemas semióticos
propriamente ditos. Os sistemas simbólicos são as linguagens cujos dois planos estão em conformidade
total: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente um – elemento do conteúdo, a tal ponto
que não é mais produtivo para a análise distinguir ainda o plano da expressão e o plano do conteúdo, visto
que têm a mesma forma. As linguagens formais, o semáforo, os sinais de circulação são, desse ponto de
vista, sistemas simbólicos. Os sistemas semióticos propriamente ditos são as linguagens nas quais não
existe conformidade entre os dois planos, nas quais é preciso distinguir e estudar separadamente
expressão e conteúdo. As “línguas naturais”, o francês, o russo, etc., constituem o tipo mesmo de tais
sistemas semióticos; mas tem-se também os sistemas semióticos não-linguísticos, visuais, por exemplo.
Enfim, os trabalhos recentes tanto sobre a poesia quanto sobre as diferentes artes plásticas (pintura,
fotografia, cartaz, etc.) têm mostrado a importância de um terceiro tipo de linguagem interdefinível, aliás,
em relação às duas precedentes (e felizmente para a coerência da semiótica): os sistemas semi-simbólicos
que se definem pela conformidade não entre elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da
expressão e categorias do conteúdo.” (Floch, p. 29)
O embasamento teórico nos princípios da semiótica greimasiana – relacionados
à concepção de texto como uma manifestação decorrente da interação entre expressão e
conteúdo, planos compostos a partir da seleção de traços em substâncias diferentes,
específicas às suas formações – evidencia a complexidade de qualquer abordagem
textual, o que traça as preocupações metodológicas desta análise, amplificadas pelas
características da manifestação sincrética, que envolve não apenas as propriedades dos
dois planos da linguagem, mas, além disso, substâncias distintas de expressão.
Assim, a metodologia de análise de Noiva Cadáver mantém atenção constante na
concepção de que filmes são semióticas sincréticas, que acionam, inter-relacionam,
compõem, fazem interagir diferentes sistemas semióticos: o desafio é buscar a
compreensão do diálogo que se estabelece entre os dois planos dessa linguagem, que se
traduz não pela somatória de formas de expressão diferentes, mas pela constituição de
uma linguagem – a cinematográfica – com seus traços singulares de manifestação.
Para dar conta desse desafio, marcado pela atenção constante em não se operar
por somação, a análise busca, inicialmente, a discretização das categorias discursivas
intrassemioticamente, abordando a linguagem visual em particular, com o cuidado,
entretanto, de não delimitá-la de forma isolada, mas no interior de uma constituição
discursiva, caracterizada pela interação entre linguagens diferentes, intersemioticamente
relacionadas.
2 Semi-simbolismo em Noiva Cadáver: questão de vida ou morte
O conceito de semi-simbolismo diz respeito a relações entre categorias do plano
de expressão e categorias do plano de conteúdo. Ricardo de Castro Monteiro, em As
muitas vozes da canção: uma análise de Yesterday (p. 45), nos ajuda a compreender
melhor essa associação:
Aprendemos na escola que na bandeira brasileira a cor azul simboliza o céu,
o verde representa nossas matas, o amarelo, nossa riqueza e o branco, a paz.
A cada elemento cromático (cor) do plano de expressão, associa-se um
elemento do plano do conteúdo seja pela representação de objetos do mundo
natural como “céu” ou “matas” (figuratividade), seja através de conceitos
abstratos como “riqueza” e “paz” (tematicidade). Se quiséssemos contrapor, a
partir desse mesmo exemplo, as relações simbólicas às semi-simbólicas,
poderíamos chamar a atenção para o fato de que as categorias abstratas de
“riqueza” e “paz” aparecem associadas às cores mais claras, ao passo que os
elementos concretos “céu” e “mata” aparecem nas tonalidades mais escuras.
Há uma relação semi-simbólica relacionando a oposição entre as categorias
claro/escudo do plano da expressão com as categorias abstração/concretude
do plano do conteúdo.
Compostos a partir de diferentes substâncias, plano de expressão e plano de
conteúdo constituem-se como formas específicas, integradas, porém, na criação das
condições necessárias para se gerar a significação. Com a abordagem do sistema semisimbólico pretende-se, na análise proposta, evidenciar as correlações que se estabelecem
entre os dois planos da linguagem na promoção da manifestação e, consequentemente,
dos efeitos de sentido em Noiva Cadáver. Importante destacar o caráter interacional
entre os dois planos que, forjados em substâncias distintas, são interdependentes e se
inter-definem na unicidade textual.
2.1 Semi-simbolismo na constituição visual de Noiva Cadáver
Em Noiva Cadáver, observamos o efeito de semi-simbolismo em duas categorias
da linguagem visual: a cromática, responsável “pela manifestação por meio da cor”, e a
topológica,
responsável
“pela
manifestação
da
distribuição
dos
elementos
figurativizados” (Pietroforte, 2007, p. 39).
Com relação à CATEGORIA CROMÁTICA, evidencia-se no filme uma diferença na
composição dos dois mundos em que circulam os personagens de Noiva Cadáver: o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos vivos, inicialmente apresentado,
compõe-se de cores escuras, predominando a escala de cinza, com alguns detalhes
coloridos, sendo todos estes opacamente delineados. Ao se introduzir o mundo dos
mortos na trama, o cenário modifica-se por completo, preenchendo-se de cores e,
consequentemente, de luminosidade.
Os aspectos cromáticos do filme produzem um efeito de colorização, como se, a
partir de um fundo preto-e-branco as cores tivessem sido acrescentadas, criando-se a
impressão de uma pintura. Sobre esse fundo preto-e-branco, o mundo dos vivos é
esparsa e foscamente pincelado por alguma coloração, enquanto o mundo dos mortos é
totalmente colorido, destacando-se, ainda, um jogo entre as cores frias verde e azul, e a
cor quente vermelho.
Tal procedimento de caracterização dos dois mundos permite a configuração de
uma oposição que se estabelece entre os componentes cromáticos: não se relacionam,
apenas, cores no plano de expressão, mas uma categoria, marcada pelo preto-e-branco
em oposição ao colorido.
A alternância opositiva entre o preto-e-branco, caracterizando o mundo dos
vivos, e o colorido, caracterizando o mundo dos mortos, constitui, por essa disposição,
um processo de produção de sentido, em que o preto-e-branco relaciona-se à vida e o
colorido à morte. Sendo /vida/ e /morte/ categorias semânticas do plano de conteúdo,
instaura-se, assim, mais que composições específicas de um plano de linguagem, uma
relação semi-simbólica em Noiva Cadáver, pela correspondência que se estabelece entre
os planos de expressão e de conteúdo, conforme quadro a seguir:
Linguagem Visual – Categoria Cromática
Relação Semi-Simbólica1
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/preto-e-branco/ vs /colorido/
Como, naturalmente, o preto-e-branco e o colorido evidenciam diferenças de
luminosidade, é possível propor um segundo quadro, derivado do primeiro:
Linguagem Visual – Categoria Cromática
Relação Semi-Simbólica1’
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/opaco/ vs /iluminado/
As figuras 1 e 2 ilustram o semi-simbolismo instaurado: nas duas, temos a
presença de Victor, compondo a cena com Victoria, na figura 1, e com Emily, na figura
25. Evidente a diferença na constituição das cores e da luminosidade características do
mundo dos vivos e do mundo dos mortos.
Figura 1: o mundo dos vivos
Figura 2: o mundo dos mortos
Figura 1: o mundo dos vivos
Fonte: Noiva Cadáver, cena 3
Figura 2: o mundo dos mortos
Fonte: Noiva Cadáver, cena 16
Além dessa composição geral manifestada pelo preto-e-branco/opaco e pelo
colorido/iluminado, observa-se uma oposição específica no ambiente colorido entre
cores frias e cores quentes, caracterizando uma complexidade no mundo dos mortos que
não se observa no mundo dos vivos, monotonamente pincelado pelo simples preto-ebranco/opaco. Essa monotonia é configurada de maneira associada à (falta de)
movimentação dos personagens vivos, como em alguns exemplos citados a seguir.
Na cena 1, dois peixeiros cortam, automática e condicionadamente, cabeças de
peixes, acompanhando o ritmo compassadamente lento da música.
A cena 4 – o ensaio para o casamento de Victor e Victoria – é ritualisticamente
marcada, não havendo espaço para nenhum improviso que desconfigure a convenção do
momento.
5
Victor Van Dort, um novo rico, aceita um casamento arranjado com Victoria Everglot, uma nobre
decadente; por engano, acaba por pedir a mão de Emily, a noiva cadáver, em casamento.
Na cena 20 – casamento de Victoria e Lord Barkis6 –, convidados sonolentos
compõem uma cerimônia silenciosa, sonorizada apenas pelo ressonar de alguns que
efetivamente dormem e pelo lamento de alguém envelhecido, cansado, desenergizado.
A vibração no mundo dos mortos, em contraposição, é constante:
os (re)encontros são alegremente festejados: sempre que há um “recémchegado” todos se apressam a bem recebê-lo, com bebida e “comitê de boas-vindas”,
como na cena 17;
essa disposição para a celebração é evidente na oposição entre a cena 20 e a
anterior, em que se prepara o casamento da noiva cadáver: felicidade, cumplicidade,
companheirismo envolvem a todos, que se enfeitam, se embelezam, e confeitam um
bolo descomunalmente maior em comparação ao de Victoria, além de colorido e
iluminado; o de Victoria, claro, é branco, opaco, diminuto;
a contraposição entre as duas noivas revela-se significativamente por seu
envolvimento com a linguagem musical: Victoria não pôde aprender a tocar piano
porque sua mãe não a queria influenciada pela música, que é “muito passional” (cena
3); Emily, ao contrário, toca muito bem e expressa suas emoções, em especial durante a
cena 13, quando, por meio de uma canção, manifesta o fato de ter emoções, mesmo
estando morta; as figuras 1 e 2 refletem essa situação das duas noivas: Victoria apenas
passa as mãos por sobre as teclas, sem poder tocar, enquanto Emily demonstra seu
virtuosismo, improvisando uma espécie de duelo musical com Victor.
Pertinente, então, propor, ainda, uma outra relação a partir da categoria cromática:
por um lado, a composição entre cores frias e quentes e, por outro, apenas a escala de
cinza. Sendo a oposição /cores frias/ vs /cores quentes/ uma característica do mundo dos
mortos e a escala de cinza, do mundo dos vivos, se estabelece mais uma relação semisimbólica entre uma categoria cromática e a oposição do plano de conteúdo /vida/ vs
/morte/, ilustrada no quadro seguinte:
Linguagem Visual – Categoria Cromática
6
Ao pedir a mão de Emily em casamento, Victor acaba sendo levado para o mundo dos mortos; com seu
desaparecimento, os Everglot mudam os planos para sua filha, casando-a com Lord Barkis, que se
apresenta como uma pessoa muito rica.
Relação Semi-Simbólica 2
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/escala de cinza/ vs /cores quentes-cores frias/
De forma mais abrangente, o mesmo quadro pode ser representado como:
Linguagem Visual – Categoria Cromática
Relação Semi-Simbólica 2’
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/monocromatismo/ vs /policromatismo/
Relativamente à
CATEGORIA TOPOLÓGICA,
o mundo dos mortos está no subsolo,
em contraste com o mundo dos vivos, localizado no solo. Essa categoria, portanto,
organiza os elementos textuais a partir da oposição /em-cima/ vs /embaixo/, permitindonos propor a primeira relação semi-simbólica topológica:
Linguagem Visual – Categoria Topológica
Relação Semi-Simbólica 3
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/em-cima/ vs /embaixo/
Pela figura 3, observamos Emily embaixo, no subsolo, agarrando a mão de Victor,
localizada em cima, no solo.
Figura 3: localização das mãos de Emily e de Vítor
Fonte: Noiva Cadáver – cena 5
A imagem também sugere a oposição /dentro/ vs /fora/, já que apresenta Emily
saindo de dentro da terra, possibilitando, então, visualizar uma segunda relação semisimbólica topológica:
Linguagem Visual – Categoria Topológica
Relação Semi-Simbólica 4
plano de conteúdo
/vida/ vs /morte/
plano de expressão
/fora/ vs /dentro/
Quando associamos os elementos das categorias cromática e topológica,
observamos uma inversão na representação da ordem natural de constituição geográfica,
em que o subsolo é escuro e o solo é tocado pela luz, já que, no filme, o mundo dos
vivos, localizado no solo, é escuro e o mundo dos mortos, localizado no subsolo, é
iluminado e colorido. Na cena 11, entretanto, essa ordem natural é considerada, quando
Emily vai até o “mundo de cima”, iludida de que conheceria os pais de seu noivo. Ao
iniciar sua caminhada para o mundo dos vivos, afirma o seguinte: “passei tanto tempo
na escuridão que havia me esquecido da beleza do luar”. Temos por essa fala de Emily a
confirmação de que, naturalmente, os espaços mantêm-se escuros no subsolo e
iluminados no solo. Consequentemente, a luz e a cor do mundo dos mortos e a
opacidade do mundo dos vivos só podem ser compreendidas como o reflexo do
universo interior de seus habitantes, e não como um fenômeno natural de suas
localizações.
Mais uma vez inter-relacionando os aspectos cromáticos e topológicos, agora com
base em sua definição baseada em questões de ordem íntima dos seres, e não em fatores
naturais, podemos reconfigurar as relações semi-simbólicas até aqui construídas,
associando
o preto-e-branco opaco à ausência de luz interior dos vivos, em contraste com o
colorido iluminado, devido à presença de luz refletida pelos mortos;
a escala de cinza monocromática ao uni-direcionamento constitutivo do mundo
dos vivos, em contraste com a relação policromática entre cores quentes e cores frias,
exteriorizada pela complexidade imanente ao mundo dos mortos.
Estando todos os componentes textuais entrelaçados por uma mesma configuração
de valor7, também as relações topológicas terão sua significação delimitada pelas
injunções que se aplicam às associações cromáticas. A oposição /em-cima/ vs
/embaixo/, assim, pode ser redefinida como /superficialidade/ vs /profundidade/, e /fora/
vs /dentro/ como /exterioridade/ vs /interioridade/, sendo essas redefinições apropriadas
às especificidades dos sujeitos que transitam pelos mundos de Noiva Cadáver.
Há, ainda, uma terceira categoria cromática, a
EIDÉTICA,
responsável “pela
manifestação por meio da forma” (Pietroforte, p. 39), que, em Noiva Cadáver, é
importante para a caracterização dos personagens: ou muito altos e magros, ou muito
gordos e baixos, todos fragilmente sustentados por pés minúsculos, fazendo parecer
improvável que pudessem se manter sobre eles. Tal representação relaciona-se aos
7
De acordo com a teoria saussuriana.
dispositivos topológicos e cromáticos do filme, marcando de forma tensiva8 a inserção
desses personagens em seus mundos, numa interação que questiona toda possibilidade
de solidez, de certeza sobre o universo de valores em que se constituem como sujeitos.
Figuras 4 e 5: Víctor Van Dort e Finis Everglot
8
“Pode-se comparar a concepção analítica da semiótica tensiva com o ponto de vista anterior.
Basicamente, no que diz respeito à fundamentação do sentido, substituíram-se as operações de afirmação
e negação do quadrado semiótico por inflexões tônicas, e a noção dos termos simples na geração do
sentido é repensada em termos complexos.” (Pietroforte, p. 11)
Fonte: Noiva Cadáver – cena 3
2.2 Relação intersemiótica em Noiva Cadáver: a imagem e a canção
Em Noiva Cadáver, as linguagens verbal e musical associam-se na composição de
canções, destacando-se o recurso à argumentação figurativa9, que funciona no filme
como um dispositivo narrativo.
9
Segundo categorização proposta por Luiz Tatit, “existem canções temáticas, passionais e figurativas. Na
categoria das temáticas, estão as canções de andamento veloz, que privilegiam os ataques das consoantes
em detrimento dos alongamentos das vogais, cujos motivos melódicos, dada a velocidade, se delineiam
claramente e se aproximam como se quisessem possuir um ao outro, e, não raramente, tratam de assuntos
relacionados a um estado de conjunção do sujeito com o objeto. Na categoria das canções passionais, ao
contrário, estão aquelas de andamento mais lento, que privilegiam os alongamentos das vogais em
detrimento dos ataques consonantais, cujo desenho melódico somente se define ao final de um longo
percurso e, mais comumente, tratam de temas relacionados à disjunção do sujeito com o objeto. Já as
canções figurativas são aquelas que se aproximam da fala coloquial, ou seja, deixam mais explicitamente
transparecer a voz que fala por detrás da voz que canta. No entanto, esses processos persuasivos sempre
atuam concomitantemente em uma canção. (...) Figurativizar significa, no âmbito da semiótica da canção
a utilização de elementos que indiciem que canção nada mais é do que a fala cotidiana, com suas
entonações estabilizadas pela melodia. Figurativização são os procedimentos utilizados na canção
análogos aos utilizados na fala. Figurativizar é fazer a canção parecer situação cotidiana de fala.”
(Coelho, p. 14-15).
São quatro canções, três delas entoadas no mundo dos mortos e apenas a primeira
– According to Plan – no mundo dos vivos, esta inspirada no clássico gênero musical
ópera. Narra o “plano” de casamento de Victor e Victoria, cujo objetivo é a ascensão
social dos Van Dort (família de Victor – comerciantes de peixe) e a salvação da falência
para os Everglot (família de Victoria – representantes da nobreza decadente). A
segunda, Remains of the Day, um animado e descontraído jazz, já no mundo dos
mortos, conta a história do casamento entre a noiva cadáver, então viva, e Lord Barkis;
traduz a ilusão de Emily, enganada pelo noivo, que apenas desejava seus bens materiais,
assassinando-a assim que conseguiu objetivar seu intento. De maneira dramática, a
relação entre as duas primeiras canções reforça o comportamento dos vivos, que têm no
casamento uma instituição social a serviço de seus projetos de ascensão
socioeconômica, desconsiderando qualquer investimento de ordem emocional no
consórcio, o que é verbalmente manifestado pela letra de According to Plan.
A terceira canção – Tears to shed – narra o lamento de Emily, preterida por
Victor, que ama Victoria. A expressão desse lamento leva à comparação entre as duas
noivas, destacando-se as qualidades de Emily frente à “senhorita vivinha, com as
bochechas rosadas e o coração pulsante”, afirmando-se que estar viva é seu único
atributo – “a única finura daquela criatura é viva estar” –, e que este não se configura
como uma condição inerente a ela, já que a vida é “algo circunstancial, que se acaba de
repente, sem nenhum sinal”. Em relação a Emily, portanto, que possui “uma
personalidade maravilhosa”, Victoria é (des)caracterizada como uma personagem vazia.
Após o diálogo entre as duas primeiras canções, que tece o perfil interesseiro dos vivos,
Tears to Shed estabelece uma comparação entre mortos e vivos em que estes aparecem
desprovidos de valores, como pessoas que tão somente possuem “pulmões com ar”, o
que, por si só, não representa nada, já que é um estado comprovadamente passageiro.
Com a quarta canção, The Wedding Song (o anúncio do casamento de Emily),
entra em cena um espetacular coral, em que vários naipes evoluem e envolvem todo o
mundo dos mortos, em uma celebração ao amor. Estabelece-se significativa relação com
According to Plan, em que o casamento de Victoria é anunciado como um plano de
ascensão socioeconômica: enquanto essa canção manifesta-se por um arranjo simples,
que dispõe linearmente a expressão musical, The Wedding Song anuncia o casamento
de Emily por meio de um complexo jogo de vozes que se interpõem em um festivo
coral.
Buscando a compreensão da relação intersemiótia entre a musicalidade de Noiva
Cadáver e a sua configuração visual, verificamos em According to Plan a associação
com o monocromatismo característico do mundo dos vivos: a canção operesca
estabelece o ritmo dos personagens no início do filme, culminando com a disposição
daqueles que pretendem instituir uma sociedade por meio do casamento de seus filhos,
em cena marcada por uma rigorosa disposição teatral. A simplicidade monocromática
da linguagem visual associada à linearidade do arranjo da canção caracteriza o unidirecionamento dos vivos pelas convenções, sem que as individualidades possam se
manifestar. Não há, assim, vozes que se destacam, que se diferenciam; pelo contrário,
harmonizam-se unissonamente com a monotonia visual do preto-e-branco. Igualmente
completam-se
as
oposições
topológicas
/exterioridade/
vs
/interioridade/
e
/superficialidade/ vs /profundidade/: os vivos, influenciados pelas injunções de ordem
social, que os atingem de fora para dentro, deixam-se definir pela exterioridade das
convenções, não se aprofundando em direção à sua própria condição íntima.
No mundo dos mortos verifica-se o oposto: a musicalidade segue ritmo menos
determinado, havendo canções lentas e canções rápidas, que se manifestam por meio de
estilos diferentes, como o jazz, o coral, a canção passional, sugerindo a condição de
espontaneidade dos mortos que, despidos das representações sociais, movimentam-se
em busca de seu próprio eu, havendo, por isso, variadas expressões, como variadas são
as personalidades. O jazz Remains of the Day é perfeitamente incorporado a uma cena
iluminada, colorida, cheia de vibração e descontração, ainda que se esteja contando uma
“trágica história de romance, paixão e assassinato a sangue frio”. O lamento Tears to
shed expressa a emoção de Emily que, mesmo morta, ainda tem “lágrimas para dar”, ou
seja, está repleta de sentimentos verdadeiros e espontâneos. The Wedding Song, a
celebração do casamento entre os mortos, associa sua complexidade musical à
contraposição marcada pela linguagem visual, selando a oposição entre os dois mundos:
a diferença descomunal de tamanho, cor e luminosidade dos bolos dos casamentos da
noiva viva e da noiva cadáver e a monotonia sonolenta do casamento de Victoria, frente
à sonoridade envolvente da alegria pelo casamento de Emily.
Figura 6: celebração do casamento de Emily
Figura 7: celebração do casamento de Victoria
Fonte: Noiva Cadáver – cena 19
Fonte: Noiva Cadáver – cena 20
Assim, preenchem-se de significação as relações semi-simbólicas construídas pela
linguagem visual, com o mundo dos mortos caracterizado pela profundidade e pela
interioridade, representações topológicas envolvidas pelas individualidades de seus
habitantes, que se refletem também no policromatismo das cores quentes e frias. É um
mundo que se constitui pelo inter-relacionamento de diversas personalidades com a
liberdade de expressão de suas particularidades. E essa complexidade é manifestada
pelo arranjo específico dos elementos visuais e musicais.
A relação intersemiótica em Noiva Cadáver configura, pela oposição entre mundo
dos vivos e mundo dos mortos, o universo interior das pessoas, positivando a condição
íntima em detrimento das convenções de ordem exterior. Pelo encadeamento das
canções, associadas intersemioticamente com o conjunto das linguagens no filme, temos
a sustentação do texto, em que According to Plan e Remains of the Day destacam, por
um lado, o convencionalismo, e, por outro, a fugacidade dos valores a ele associados,
com a certeza da transitoriedade de tudo o que pertence a essa realidade. Tears to shed
afirma a transcendência do ser ao simples fato de estar vivo; nessa canção, Victoria
figurativiza aquele que nada tem para oferecer, alguém que “não toca piano, nem dança,
nem canta”: “a única finura dessa criatura é viva estar”, o que é “dispensável, trivial, já
sabemos que isso é circunstancial...”. Reitera-se, assim, a fugacidade da vida e de toda a
exterioridade de que ela é revestida.
According to Plan afirma a transitoriedade do convencionalismo, que não permite
que as pessoas manifestem-se como verdadeiramente são; Remains of the Day afirma
que esse convencionalismo fatalmente será destruído; Tears to shed afirma os valores
inerentes à pessoa, independentemente de sua condição. O conjunto das canções em
Noiva Cadáver constitui, assim, a sintaxe fundamental do filme, que se organiza de
modo a:
o afirmar a aparência (According to Plan)
o negar a aparência (Remains of the Day)
o afirmar a essência (Tears to shed)
Em relação com a linguagem visual, luz e cor, por um lado, componentes
cromáticos que caracterizam o espaço da morte, e, por outro, opacidade e sombra
envolvendo o espaço da vida, produzem o efeito de euforização da essência e de
disforização da aparência.
Estar vivo apenas não basta, transitar pelos valores socialmente instituídos é muito
pouco. Ao cessar a vida e suas convenções sociais, resta o que a pessoa efetivamente
tem de si. Emily não está viva, mas tem sentimentos, é verdadeira; o mundo dos vivos,
no entanto, é limitado pela exterioridade, esvaziando-se de emoções, de sentimentos, de
autenticidade. Assim, a oposição /essência/ vs /aparência/, estabelecida por meio do
encadeamento das canções, constrói, em Noiva Cadáver, a temática da fugacidade da
vida e, consequentemente, a reflexão sobre os valores que se eternizam.
3 Considerações Finais
Buscou-se descrever o recurso ao semi-simbolismo na organização da linguagem
visual, que faz interagir significativamente os dois planos da linguagem, com isso
orientando a abordagem intersemiótica. A relação das categorias imagéticas com as
linguagens verbal e musical, sincreticamente organizadas nas canções, fizeram
aprofundar a análise que, inicialmente focada na constituição figurativa do mundo dos
vivos e do mundo dos mortos, atingiu níveis de maior abstração e generalidade,
evidenciando a sustentação semântica de Noiva Cadáver com a oposição /essência/ vs
/aparência/.
Espera-se, com essa abordagem, destacar a interação entre as linguagens,
indispensável, obviamente, para a constituição textual sincrética, que não se caracteriza
pela superposição ou sobreposição de linguagens no enunciado, mas por uma
construção que se organiza nas profundidades da enunciação:
os textos sincréticos se constituiriam como aqueles que possuem o plano da
expressão formado por diversas linguagens em relação, construindo, no
entanto, um todo significante. Ou seja, seriam marcados pela multiplicidade
de substâncias abrigadas sob uma só enunciação, que as organiza. Desse
modo, a própria natureza do objeto a ser analisado aponta de antemão para
um percurso de análise que deve privilegiar a complexa estratégia
enunciativa construída. Deve-se, então, perceber de que modo a enunciação
alinhava as diferentes linguagens, conferindo-lhes o caráter de texto único.
(Sousa, p. 2)
Referências
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2. A imagem no sincretismo cinematográfico