Borboletas Tatuadas: Contracultura e Arte Contra a Cultura Rafael Tibo. UFOP. Caio Fernando Abreu utilizou-se de inúmeras simbologias e analogias para compor seu romance Onde Andará Dulce Veiga. Uma delas, digna de nota, aparece na forma de um jogo: “Um labirinto em forma de hexágono, sobre um fundo preto, com uma gota prateada de mercúrio, do lado de fora do labirinto, tudo coberto por um acrílico transparente”(Pág 172). Obviamente, o objetivo deste jogo é colocar a gota de mercúrio no centro do labirinto, sem que ela se divida em milhares de outras gotas menores. Esse jogo é adquirido pelo narrador, na casa de Lílian Lara, a atriz amiga de Dulce, onde o jornalista acaba roubando o brinquedo da casa da atriz: “Sozinho na sala, sem que eu mesmo esperasse, de repente peguei o labirinto e enfiei no bolso”(pág 177). O labirinto aos poucos vai tomando espaço no romance, tornando-se uma obsessão do narrador, ele se dedica inteiramente a conseguir centralizar no tabuleiro a gota de mercúrio: “(...) de repente tinha se tornado uma questão de vida ou morte conseguir aquilo...”. A brincadeira vai ganhando cunho pessoal, e autobiográfico, como também, vai se transformando em uma referencia direta à vida do narrador. O fato de se centralizar, de se manter inteiro, remete-nos no âmbito da psicologia, a um saudável equilíbrio de nossa psique, ou ainda, em uma desejável e equilibrada relação com nós mesmos e com os outros. “... De vida ou morte era exagero, mas de sanidade ou loucura não” (pág 180). Como podemos ver nessa passagem do texto, o jornalista alude claramente ao lado psicológico, que o labirinto ganha como interpretação. A respeito do narrador e de seu criador, o que podemos dizer é que: se já é difícil manter-se em um saudável equilíbrio hoje em dia, num mundo onde ainda resta a certeza de saúde e a confortável e ilusória confiança na distancia da morte, a tarefa se torna mais sofrível e árdua, quando se acorda toda a manhã com a morte a lhe tocar o corpo, em forma de um vírus. Lembremos, na época ainda era pior o preconceito e a qualidade de vida acerca de pessoas soropositivas. Para atestar toda essa alusão feita por Caio a respeito do equilíbrio emocional de sua personagem e, consecutivamente, o seu próprio, uma vez que a relação entre ambos é obvia no romance, citarei algumas passagens do livro, que mostram a intenção do escritor ao jogar com a idéia do labirinto de mercúrio. A primeira se encontra logo após o narrador ter conseguido colocar a gota no centro do labirinto: “Parada lá, íntegra, a gota de mercúrio tinha uma forma estranha. Assim como um P maiúsculo datilografado em cima de um L também maiúsculo” (pag180). Esta figura à qual o narrador se refere, é de fato o símbolo de plutão, símbolo esse referido também, por ter obtido um destaque evidente no mapa astral do protagonista, fundindo assim, a representação do labirinto à personagem, e consecutivamente ao próprio escritor. O fato de o narrador ter atingido o seu objetivo e conseguido colocar a gota de mercúrio inteira no centro do labirinto, tem em uma correspondência com a vida, não apenas do protagonista do romance, mas também com a de Caio Fernando Abreu, uma relação direta com a aceitação do destino por parte de ambos. Pois lidar com a certeza da morte que espreita iminente, obviamente influencia na composição de qualquer trabalho, creio eu, não tão somente os que fincam sua procedência no imo artístico. Podemos então correlacionar o atingir o próprio centro mencionado no romance, com uma maior 2 maturidade e discernimento para com todos os fatores da vida, incluindo neles a morte. Mais adiante no texto, Caio faz menção à aceitação crescente da morte: “Plutão, o Hades, senhor dos infernos, uma moeda sobre a língua do morto para pagar Caronte, na travessia do rio Estige, ao encontro de Perséfone” (pág 181). Essa alusão à morte e sua aceitação, fica ainda mais evidente, quando o narrador após vencer o labirinto, dirige-se para depositá-lo em cima do centro de uma mesa: “Deixei o labirinto bem no centro da mesa, exatamente sobre o G de Armagedom, o disco de Márcia” (pág 181). Ora, se o labirinto, como vimos representa aqui Caio e sua personagem e o fato dele ter sido posto no exato centro de uma palavra com tamanha significação, só pode encontrar correspondência, na presença de uma forte influência do fim e de sua compreensão por parte de ambos. Compreensão esta que vai trazer não somente um maior equilíbrio emocional, como também e conseqüentemente uma maior liberdade intelectual. A frase que segue no romance a ultima citação por mim inserida nesse texto, na qual o narrador deposita o labirinto no centro da mesa, tem um caráter elucidativo para esta afirmação, nela Caio utiliza o nome de um bairro, para se referir à evolução psicológica de seu personagem: “Chovia forte quando cheguei à liberdade” (pág 181). A natural comparação de liberdade, não vem desprovida de uma intensa chuva, simbolizando claramente a dificuldade de se atingir tal estado mental. A evolução emocional no decorrer do romance vem gradativamente se deixando entrever. No inicio do texto, o jornalista tem um caráter psicológico beirando a inércia psíquica e motora, porém, no desemaranhar dos acontecimentos, ele vai aos poucos indicando mudanças. Essas mudanças chegam a nos lembrar uma metamorfose, tamanha a diferença dentre o narrador das primeiras páginas e o das páginas finais da obra, como alguém que acaba de receber a noticia de uma morte certa e precoce, não apenas se acostumando com a idéia do fim, mas se utilizando dessa informação, para continuar a vida que lhe resta, com a maior serenidade e produtividade possíveis. Veremos a seguir, como e porquê Caio Fernando Abreu utilizou uma simbologia universalmente conhecida pelo seu significado e representação de mudança É evidencialmente reservado no romance Onde Andará Dulce Veiga, um grande espaço para aparições de borboletas, sendo estas uma das maiores portadoras de significação acerca do conceito de metamorfose. Para aludir a um lado místico oriental, podemos relembrar o contexto figurado no Bhagavad-Gita (11,29), no qual a borboleta se lança contra a chama de um candeeiro: “Como as borboletas se precipitam para a morte na flama brilhante, assim os homens correm para sua perdição”. Poderíamos facilmente ligar o vôo da borboleta em direção ao fogo, ao vôo de Ícaro em direção ao sol, ou ainda, por conseguinte, às grandes falências das utopias humanas do século XX. Porém, em quase todas as culturas, ocidentais e orientais, a chama é símbolo de purificação, de iluminação e de amor espirituais. Representando uma imagem do espírito e da transcendência. Levando-nos assim a acertar o passo entorno de uma outra direção, mais congruente. Percebe-se, que o autor demonstra mais de uma vez em seu romance, tratar de assuntos correspondentes a uma metamorfose espiritual. Ele deixará claro, como veremos doravante, sua posição a favor do crescimento do ser humano, fundamentado nas adversidades da vida. Crescimento este, que possui antes um cunho mais voltado à arte, ou à necessidade de criação desta, do que ao artista. 3 Assim sendo, veremos que a borboleta é antes de tudo símbolo de ressurreição e de potencial abstruso. “A crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser, a borboleta que sai dele é um símbolo de ressurreição. E ainda, se preferir, a saída do túmulo”.1 Utilizarei-me de dois níveis distintos para uma aplicação da simbologia da borboleta no romance de Caio Fernando. Em primeira instância, acentuarei a natural comparação da metamorfose e da morte da borboleta na flama da purificação espiritual, e ou intelectual, com a linha temporal seguida pelo narrador e seu criador, rumo ao final, o primeiro no romance e o segundo na vida pessoal do escritor O segundo plano de aplicação da simbologia, surgirá referindo-se a uma espécie de mensagem ocultada, propositalmente, pelo autor no cerne do livro. É, no entanto, uma mensagem de cunho drástico e fatalista a favor da arte, como um prenúncio, ou um último presságio, sem xurumbambos romanceados e desprovido de ideais utópicas. Um fortíssimo apontamento de caminho, que não somente ele seguiu, mas também outros, que ao se verem próximos do fim, levantaram-se sobre os trilhos e encararam de peito em riste a implacável locomotiva do destino. Antes de tudo, citarei com o intuito comprobatório, algumas passagens do livro onde encontrei referencias a borboleta. Pedirei de antemão ao leitor que entenda o excesso de exemplos como um atestado do escritor de não querer deixar dúvidas acerca da importância dessa simbologia para uma séria compreensão de seu romance. Os exemplos são: “Tinha seios pequenos, firmes, com dois bicos empinados como se estivesse excitada. Havia uma borboleta tatuada entre eles” (pag28). “Um homem de muletas ofereceu a borboleta, últimos bilhetes, na cabeça moço” (pág 36). “As palmas rosadas voltadas para cima, quietas como se esperassem que uma borboleta – e pensei nos seios de Márcia, no vendedor de bilhetes de loteria – pousasse nelas para então fechálas(...)” (pág 48). “E bateu com força as palmas das mãos. A borboleta, pensei, ele esmagou a borboleta” (pág 50). “A foto era cortada na altura do peito, pouco acima, de uma das asas da borboleta” (pág 53). “- O bicho, o jogo do bicho que você ganhou. Ele riu: - Ah, foi borboleta. Deu treze, borboleta na cabeça” (pág 67). “Márcia cantava pelas estradas procurando o som das asas das borboletas, quando pára de voar e tremem brevemente sobre as flores abertas(...)” (pág 93). 1 CHEVALIER,Jean. Dicionário de Símbolos.Rio de Janeiro: Júpiter,1982. 4 “Márcia flutuando no rio pinheiros, a espuma branca da poluição entre seus cabelos, quase tão branca quanto eles, um sapo pousado sobre a borboleta tatuada entre seus seios” (pág 143). “Atrás da blusa desabotoada, podia-se ver as cores de uma das asas da borboleta entre os seios dela” (pág 158). “Como se não ouvisse, Márcia entrou no camarim, me puxou para dentro, passou a chave, tirou a blusa e enrolou-se numa toalha antes que, outa vez, eu tivesse tempo de rever a borboleta entre seu seio” (pág 166). No que diz respeito ao jornalista, a metamorfose se demonstra óbvia até mesmo para um leitor mais desatento. O romance se inicia já com uma mudança em sua vida, a saber, o telefonema de Castilhos, o editor chefe do jornal, oferecendo-lhe um emprego. Antes desse telefonema, a personagem havia passado uma longa temporada de reclusão e profunda depressão. A partir desse momento, o que se nota é uma linha temporal conturbada, porém ascendente, de sua vida espiritual e intelectual. Pois, de imediato conseguir um emprego, já obviamente consiste uma mudança, nem que apenas de novos horários e novos compromissos, que gradativamente vão se resultando em outras e maiores transformações. Essas transformações fazem aparecer, no decorrer do romance, uma identificação entre o jornalista e a cantora desaparecida Dulce Veiga. Pois cada vez mais ele parece compartilhar a opinião da cantora de “querer outra coisa”, de querer “sumir um dia”. Desalento esse, referente a uma vontade de mudança, que vai aparecendo na imagem do jornalista no decorrer do livro. Essa vontade de mudar, em si já caracteriza uma transformação da forma de encarar a vida quase inerte da personagem, que, quando inicia o livro, não demonstrava a mínima vontade para o que quer que fosse. O que começa então a se notar é o crescimento espiritual da personagem, e analogamente do escritor, como creio que Caio quis intencionalmente deixar gravado em seu romance. Esse crescimento vem se desenvolvendo em decorrência dos acontecimentos do livro. Para deixar evidente sua intenção de narrar sua evolução emocional presente no livro, Caio Fernando utilizou-se de uma simbologia, a saber, fios de cabelo branco que nasceram no peito da personagem. No inicio do texto, o jornalista nos atenta para um único fio de cabelo descolorido presente em seu peito: “(...) – não queria lembrar, mas lembrei – há menos de uma semana descobrira o primeiro fio de cabelo branco” (pág 12). Mais adiante, numa consulta astrológica com Jandira de Xangô, esta lhe revela: “- Quando três fios brancos crescerem no seu peito, meu filho, Oxaguiã anuncia e traz paz” ( pág 138). Porém, antes de saber disso, o jornalista, já se mostrando em meio da metamorfose que sofre no transcorrer do livro, enuncia: “Entre os pêlos negros do peito, contei à toa dois fios inteiramente brancos. Amanha serão três, pensei” (pág 76). No final do romance, quando o jornalista afirma ter encontrado a paz e o equilíbrio há tanto perdidos. Quando esse se acha no centro de si mesmo, ao exemplo da gota de mercúrio: “”Eu estava ali, onde eu devia estar. Inteiro. Como uma gota de mercúrio” (pag210). Quando a evolução emocional se completa, como se previa, aparece o terceiro fio de cabelo branco em seu peito, deixando transparecer com uma inegável certeza, o final de 5 um ciclo evolutivo. “Abri a camisa. E na luz da lua, na luz que vinha de dentro da casa, da beira da estrada, em outra luz também, vi que havia três fios de cabelos brancos no meu peito. Em volta tudo brilhava” (pág 208). Contudo, para discorrer sobre aquilo que anteriormente destaquei ao leitor, como o segundo nível de aplicação da simbologia da borboleta e de sua metamorfose, terei que levantar e discutir uma outra analogia deixada pelo escritor em sua obra. Viso tão somente alavancar um bloco maior de informações para posteriormente dele me utilizar, na construção de minha análise. Um outro símbolo, do qual também se faz mister o entendimento, é aquele que engloba as voltas do numero sete. Julgando ser obviamente essencial para meu crédito perante o leitor, um levantamento de indícios que me levaram a tal conclusão, doravante citarei algumas passagens do livro onde encontrei referencias ao símbolo em foque. Peço desde já a compreensão por parte do leitor pela demasiada exemplificação, porém não pude deixar de abusar nos exemplos, pois julgo importante ressaltar a excessiva presença desse símbolo no romance, pois é essa excessiva presença que nos leva a crer em sua fundamental acuidade. São as seguintes passagens retiradas do romance: “ (...) num salto, olhos fechados, sete vezes repetir, olhos abertos, presos na estrela até fazer o último pedido, depois não olhar mais para cima” (pág.36). “Pedi sete vezes em voz alta, não havia ninguém por perto para olhar e talvez rir, um homem não muito jovem, todo molhado, falando sozinho, pedindo não sabia o quê. Força e fé, que tinha perdido, eu pedi” (pág.36). “Esfreguei as mãos com força. Do rádio saíam os primeiros acordes da voz do Brasil” (pág.37). Todos nós sabemos que este programa no rádio começa às sete horas da noite, marcando assim mais uma aparição do número sete. Enquanto subia os degraus da escada dirigindo-se ao seu apartamento, o narrador ouve num apartamento vizinho, um trecho de uma novela que dizia: “ – Leda, você não tem o direito de fazer isso comigo. Afinal, são sete anos . Sete anos, mais que de amor, de devoção! - Amor? Você diz ...amor? Só se for para você Rogério. Porque para mim, para mim foram sete anos de prisão e amargura.” (pág.37). Em um trecho fantástico do romance, no qual o narrador perseguia uma suposta Dulce Veiga: “Não havia sinal algum dela nas poucas lojas ainda abertas, nem nos seis ou sete caminhos que se encontravam naquele ponto” (pág.63). Quando o narrador observava uma foto de Dulce Veiga: “ Um dos braços de Dulce estava passado em volta dos ombros de Lílian, o outro circundava a barriga de sete, oito meses” (pág.58). Quando marcava uma entrevista pelo telefone com a banda de Márcia: 6 “ - Às seis, com o sol na cúspide das sete. - Muito tarde, pinto aí às quatro. - Com os sol na oito, de jeito nenhum.” (pág.80) Quando o narrador vai se encontrar com o dono do jornal, ele pensa: “Com o sol na sete, pensei absurdamente” (pág.85) Em uma carona na moto da Patrícia: “Os cabelos longos dela escapavam por debaixo do capacete para fustigar os olhos desprotegidos de Edward Morgan Foster, agarrado na cintura de Virgínia Stephen Woolf, sessenta ou setenta anos depois, de volta da Índia” (pág.99) Acordando em uma manhã de Quinta-feira: “Olhei no relógio nem oito da manhã”(pág.119) Numa passagem na qual o narrador se recorda de um encontro que teve com Dulce Veiga nos anos setenta, quando ele é indagado por oficiais do DOPS, sobre a localização do apartamento da cantora: “ (...) era tudo rápido demais, eu não tive culpa, eu falei o número, sem querer, acho que era setenta, eu disse” (pág.153) Patrícia se assusta som as horas quando ela e o protagonista conversam sobre o sumiço de Márcia : “ – Quase sete horas. Ela já devia estar no Hiroshima” (pág.144) Numa rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o narrador toma um banho de mar: “ (...) tirei os tênis, as meias, dobrei a barra das calças, entrei no mar e lavei sete vezes o rosto, na sétima onda, com a água salgada e fria da Guanabara” (pág.180). Em uma ocasião em que uma das personagens do livro tem uma crise de abstinência de heroína, o narrador observa: “ E desviei o corpo, ele bateu de encontro à penteadeira. O espelho quebrado rolou em cacos pelo chão, sete anos de azar, pensei ainda, mas não para mim, não tinha sido eu” (pág.192). 7 “ Os vizinhos fecharam as janelas. As vibrações coloridas de uma televisão ficaram pulsando nas frestas de um sétimo andar” (pág.192). Para não tornar o texto fatigante e tendo crido o objetivo comprobatório alcançado, terminarei aqui a citação de exemplos, que ainda podem ser encontrados em demasia no romance. A simbologia do número sete, nas mais variadas culturas, se concentram em torno da idéia efetivação de um ciclo. No livro, esse ciclo fica claro, pois os acontecimentos se desenredam em um período de sete dias, num tempo necessário para se fechar o ciclo semanal da criação do mundo, segundo a bíblia. O número sete corresponde não só aos sete dias da semana, mas também aos “sete planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas ou graus celestes, às sete pétalas da rosa, às sete cabeças da naja de Angkor, aos sete galhos da árvore cósmica e sacrificial do xamanismo etc”2. O número sete é também representação de solidez e totalidade. No cenário do islamismo, o sólido possui sete lados. O livro sagrado do islã, o Alcorão nos diz sobre o número sete: “ Tudo que existe no mundo é sete, pois cada coisa possui uma ipseidade e seis lados”3 Assim como no Apocalipse, final do ciclo terrestre, o sete aparece como chave, pois são sete as igrejas, sete estrelas, sete espíritos de Deus, sete selos, sete trombetas, sete trovões, sete cabeças, sete calamidades, sete taças, sete reis, etc... o sete encerra um ciclo indicando a passagem do conhecido para o desconhecido, um se findou, que há agora por vir? O sete, segundo Santo Agostinho, mede o tempo da história, ou o tempo da peregrinação do ser humano na terra. Portanto, creio estar na interpretação universal de que o número sete simboliza uma mudança seguida por uma renovação positiva, o intuito de Caio Fernando Abreu rechear seu romance com tal analogia. O final do ciclo, que poderia ser a vida do escritor às vésperas de um fim e sua evolução emocional durante a jornada. Porém, o escritor não se limitou a esgrimir um último lamento em vida, explicitando como cresceu com a noticia do fim, ou como as pessoas deveriam se comportar diante da vida e de seus semelhantes. Caio não foi um daqueles, que ao verem se aproximar a falange da morte, tremeram ou simplesmente sentaram a sua espera. Onde Andará Dulce Veiga, não é, portanto, uma obra emotiva de alguém próximo do fim, é antes uma serena e racional missiva para a posteridade sobre nossa história recente, e de como ela se reflete hoje em nossas vida. Utilizarei-me agora de todos os dados que anteriormente adquiri, para lançar meu derradeiro olhar acerca daquilo que atentei como sendo o segundo nível de aplicação da simbologia da borboleta-metamorfose. Caio Fernando Abreu deixou intrínseco em seu romance, toda critica quanto ao passado que viveu da contracultura com o objetivo final de nos alentar para um futuro, que mesmo sendo para sua vida algo duvidoso, positivo. O final do romance se dá com o encontro do narrador com a cantora desaparecida, a qual se encontrava em uma cidadezinha do Amazonas, chamada Estrela do Norte. Nessa 2 3 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio.2002. In: Idem. 8 cidade, o jornalista tem findada a sua evolução intelectual e espiritual, centralizando-se, como já referi anteriormente. Como o livro começa numa segunda-feira, seguindo a ordem dos sete dias, naturalmente é num domingo que o desfecho acontece, no dia do aniversário do narrador. Como presente, Dulce lhe dá um filhote de gato, que se chamava Cazuza. Cazuza, como todos nós sabemos, foi o maior ícone da luta contra a AIDS na década de 80. Caio Fernando fez o mesmo, só que pelo viés literário, pois, como pudemos perceber, Onde Andará Dulce Veiga, põe a nu todas as mazelas de uma sociedade que se julga libertada de uma moral vigente desde o final do século XIX. De uma sociedade que consome um passado alheio, e da qual poucos ainda não se debandaram totalmente para essa enorme ilusão: a ilusão de ter acontecido, a ilusão de ter havido mudanças suficientes, para sentarmos e desfrutarmos seus resultados. Caio utiliza a imagem de Cazuza para imprimir em seu romance, uma premissa positiva a respeito de nossas vidas. Apesar de não parecer, o que Caio nos mostra é sim algo de positivo. Positivo como o final de um ciclo amargo. Positivo como o emergir de um pântano de depressão para algo novo. Cazuza aparece no romance na forma de um gato, e como é sabido esse animal é cercado pela crença de possuir sete vidas. Utilizando-se da imagem de Cazuza, Caio nos mostra também o seu descontentamento com a mentira e a hipocrisia da geração do póscontracultura, porém de uma forma um pouco mais otimista. Quando Cazuza recebeu a notícia da AIDS, ele praticamente saiu atirando para todos os lados os quais ele acreditava esconder a mentira e a falsidade na sociedade. Podemos perceber que Cazuza não era o único descontente com essa situação, como ele escreveu na letra de O Tempo não Para, ele era apenas mais um “cara” entre tantos : “Disparo contra o Sol, sou forte, sou por acaso, minha metralhadora cheia de mágoas, eu sou um cara cansado de correr na direção contrária sem pódio de chegada nem beijo de namorada, eu sou mais um cara”. Desacreditado da verdade no meio social ele dedicou sua vida para tentar mudar essa situação da sociedade brasileira. Ainda nessa mesma letra da música ele nos atenta: “Mas se você achar que eu estou derrotado saiba que ainda estão rolando os dados, porque o tempo, o tempo não para”. Caio Fernando parece se apropriar dessa estrofe da musica de Cazuza para deixar uma missiva em seu romance. A simbologia do número sete aparece para dizer exatamente a mesma coisa: “o tempo não pára”, ele é cíclico. Como poderemos observar na passagem seguinte extraída da página final de Onde Andará Dulce Veiga, Caio aposta com uma descrição do nascer do Sol, em um futuro melhor, mesmo depois de todo o lado negativo que o romance expôs: “Do outro lado do rio, o Sol começou a nascer. Dava apenas para ver um semicírculo vermelho acima do horizonte, subindo aos poucos para iniciar seu caminho pelo céu de todas as cores” (pág 213). Quando ele se refere ao “céu de todas as cores”, obviamente está se referindo às sete cores que compõe o arco-íris, deixando claro ainda mais uma e pela última vez, sua posição de renovação positiva da história. 9 BIBLIOGRAFIA: ABREU, Caio Fernando. Onde Andará Dulce Veiga? : Um Romance B.São Paulo: Companhia das Letras. 1990. MORICONE, Italo. Caio Fernando Abreu: Cartas. Rio de Janeiro: Aeroplano 2002. BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografias & AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra: Rio de Janeiro: Forense/ universitária, 1981. ____________. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 1992 SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras, 1989. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. HOLLANDA. Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/70. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. ROSZAK, Theodore. A contracultura. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1972. CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeito: José Olympio,2002.