Enredamentos Nomádicos A Anima e o "Sentimento Comunitário de Pertencimento" Carlos Bernardi Objetivos Aproximar as concepções de Jung e Maffesoli em relação ao processo de individuação e redefinir a anima como arquétipo do enredamento nomádico, devido à sua função mediadora e impulsionadora do encontro com o outro. Como repensar o conceito de anima para agora enfatizar sua dimensão social, sua abertura ao outro e ao mundo? Aproximando-a, além do mais, da idéia de "sentimento comunitário de pertencimento", desenvolvida por Michel Maffesoli. Através desta expressão o sociólogo francês quer enfatizar a necessidade de estarmos em vínculo com o próximo e com a existência no mundo, em um movimento que chamei de processo de enveredações. A anima nos levaria a buscar vínculos com quem nos reescreva e nos enrede em novas narrativas, em novas histórias. Vou chamá-la de arquétipo do enredamento, mas que necessita ser, além do mais, de caráter nomádico, transitando sempre por áreas desconhecidas da nossa existência. Se não for nômade nem possuir a capacidade de nos fazer tecer novos enredos, não é anima, mas apenas uma versão controlada de nós mesmos, uma mera cópia. A anima como arquétipo do enredamento nomádico sempre nos pro-jeta para a experiência do outro. Além do mais, cria um sentimento de pertencimento às várias comunidades com as quais nos deparamos, onde ocorre, como escreveu Maffesoli, "o abandono do ponto de vista do pequeno "eu" e o acesso a um nível transcendental". Este é seu mistério. Para Maffesoli, o homem que está buscando sua alma "está sempre sob tensão: na procura de um objeto provisório que, uma vez atingido, nunca o satisfaz plenamente, e não passa de uma etapa num processo sem fim cuja meta se desloca constantemente". A vida tem destas coisas. Encontros e desencontros que interrompem e alteram uma direção, um planejamento, ou mesmo um jeito de ser. Criam um antes e um depois. São marcas e são marcantes. Para Jung o esse in anima nos coloca em meio às coisas. Por isso concebe a anima como "arquétipo da vida", uma "borboleta — em grego psyché — que, inebriada, passa de flor em flor e vive de mel e amor". A alma, continua Jung, "seduz para a vida a inércia da matéria que não quer viver". Com isso a anima se constitui em uma "pulsão da errância" que possui sede de infinito. Uma pulsão sempre ameaçada, segundo Maffesoli, pelo "corpo lânguido e excessivamente amolecido pelo bem-estar e a segurança programados do alto". Desejo ilustrar estas teses com a história do pintor Aécio Sarti. Quando tinha 14 anos, pobre e vivendo ainda em Alagoas, teve uma experiência numinosa. Ao visitar a casa de um dentista em busca de alívio viu um quadro de uma mulher que, com seu esplendor arquetípico, deixou para sempre uma marca profunda em sua alma ainda inocente, apesar de já sofrer com o chão ressecado da vida. Na força desta epifania, seu destino foi traçado naquele instante. Ela até hoje lhe é desconhecida, nunca mais vista, mas foi neste vazio que nasceu o afã de retratá-la. É isso que Aécio Sarti busca fazer até hoje. A "saudade das imagens que eu não vi", frase que encabeça sua existência, é que fez dele o pintor de inúmeras mulheres. Suas mulheres são belas e coloridamente vestidas. Utiliza surradas e grossas lonas de caminhões que atravessam as distâncias do mundo como matéria prima para sua confecção. O suporte de suas pinturas não é o branco virginal, morto, mas o cinza manchado pela existência. Suas telas possuem cicatrizes e remendos, como nossas vidas. Pinta também querubins nestas mesmas lonas para vestir um caminhão que busca, pelo sertão sofrido e carente, vasos cheios de histórias de sobrevivência. E o sertão é enorme. Que os anjos nos protejam! Esse é o "ritmo da vida". A experiência da anima como enredamento nomádico também pode ser contemplada no romance Trem Noturno para Lisboa. A personagem Raimund Gregorius também teve sua vida mudada. Isso ocorreu quando, embaixo de uma chuva torrencial, viu uma mulher desejando se matar. Desvia de seu caminho cotidiano e resolve ajudá-la. Era uma portuguesa. O homem, sóbrio e previsível até aquele momento, chega encharcado e, consequentemente, desarrumado para exercer sua função de professor. Já não era mais o mesmo que entrava naquela sala havia muitos anos. O encontro com uma mulher desconhecida também transformou sua vida. Não tinha mais escolhas. Deveria pegar o trem noturno e se enveredar para a cidade de Lisboa, em busca de aspectos da existência que ainda lhe eram desconhecidos. Embora o próprio Jung enfatize a natureza relacional do processo de individuação, é com a sociologia de Michel Maffesoli que este aspecto extravertido do processo será claramente explicitado. Carlos Bernardi Psicólogo clínico Dr. Em Literatura Comparada Prof. Da Pós-graduação junguiana da Puc-RJ Prof. de Psicopatologia da Universidade Estácio de Sá Supervisor clínico da Universidade Estácio de Sá Supervisor da Casa das Palmeiras