UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
REFORMA AGRÁRIA E DESFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA:
UMA RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO? –
o caso da região de Barreira Branca, Tocantins
Luciana de Oliveira Rosa Machado
Orientador: Richard Georges Pasquis
Dissertação de Mestrado
Brasília, agosto/2002.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
REFORMA AGRÁRIA E DESFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA:
UMA RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO? –
o caso da região de Barreira Branca, Tocantins
Luciana de Oliveira Rosa Machado
Dissertação de Mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade
de Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Mestre em
Desenvolvimento Sustentável, área de concentração Gestão e Política Ambiental, opção
Profissionalizante.
Aprovado por:
___________________________________
Richard Georges Pasquis, Doutor (Pesquisador associado, CDS-UnB)
(Orientador)
_____________________________________
José Augusto Drummond, Doutor (CDS-UnB)
(Examinador interno)
____________________________________
Joseph Weiss, Doutor
(Examinador externo)
Brasília, 29 de agosto de 2002.
[Ficha catalográfica]
MACHADO, LUCIANA DE OLIVEIRA ROSA
Reforma agrária e desflorestamento na Amazônia: uma relação de causa e efeito? – o caso da região de
Barreira Branca, Tocantins, 110p, 297 mm (UnB-CDS, Mestre, Política e Gestão Ambiental, 2002).
Dissertação de Mestrado – Universidade de Brasília. Centro de Desenvolvimento Sustentável.
1. Reforma Agrária
2. Desflorestamento
I. UnB
3. Colonização
4. Amazônia Legal
II. Título
É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta dissertação e
emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. A autora
reserva-se outros direitos de publicação e nenhuma parte desta dissertação de mestrado pode ser
reproduzida sem a autorização por escrito da autora.
___________________________
Luciana de Oliveira Rosa Machado
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar o processo de ocupação e as políticas de reforma
agrária na Amazônia e as suas relações – diretas ou indiretas – com a evolução das taxas de
desflorestamento observadas nas últimas décadas. Para tanto, foi realizado um estudo sobre uma
pequena região no norte do estado do Tocantins, mais exatamente a região conhecida como
Barreira Branca, onde estão localizados seis projetos de assentamento criados pelo Incra a partir
de 1996. Essa pesquisa envolveu levantamentos bibliográficos sobre os temas de interesse, bem
como trabalhos de campo junto às famílias assentadas e a instituições de pesquisa e órgãos
estaduais relacionados às questões de conservação e desenvolvimento no estado. Os resultados
alcançados apontam para a existência de uma relação direta entre a política de reforma agrária e o
desflorestamento observado na região. Todavia, a relação de causa e efeito observada traduz-se
em uma mudança no padrão de desflorestamento, e, não necessariamente, no aumento das taxas
observadas. Outrossim, a relação entre políticas de criação de projetos de assentamento e
desflorestamento só se dá em razão da falta de articulação entre as políticas agrárias e demais
políticas públicas territoriais, sejam elas estaduais ou federais.
ABSTRACT
The aim of this work is to analyze the occupation process and the agrarian reform policies in the
Brazilian Amazon rain forest and their relation with respect to the evolution of the deforestation
rate in the last years. For that purpose a study was carried out in Barreira Branca, a small region
located at the north of the Tocantins state, where some settlement projects have been established
since 1996. This work includes a bibliographic research and (field) interviews with settled families
and institutional organizations related to the conservation and development policies in the state.
The results indicated that there is a connection between the agrarian reform policy and the
deforestation observed in that place. However, this connection does not mean that the rates are
increasing, but that there is a variation in the deforestation. Moreover, the relation between the
settlement establishment policies and the deforestation growth only occurs because of the lack of
coordination between the agrarian policies and other government policies.
i
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................................................................................i
ABSTRACT ....................................................................................................................................................................i
SUMÁRIO......................................................................................................................................................................ii
LISTA DE TABELAS E QUADRO.......................................................................................................................iv
LISTA DE FIGURAS..................................................................................................................................................v
LISTA DE SIGLAS ....................................................................................................................................................vi
1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO .................................................................................................1
1.1. Introdução.......................................................................................................................................................1
1.2. Contexto político-institucional ....................................................................................................................3
1.3. Critérios para a seleção da área de estudo..................................................................................................4
2. REFERÊNCIAS TEÓRICAS E CONCEITUAIS..........................................................................................10
2.1. Definindo Reforma Agrária .......................................................................................................................10
2.2. O que é desflorestamento?.........................................................................................................................12
2.3. Ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável .........................................................................13
3. METODOLOGIA ADOTADA.........................................................................................................................15
3.1. O diagnóstico de sistemas agrários ...........................................................................................................16
3.2. Levantamento de dados: pesquisa bibliográfica, observação direta e entrevistas abertas................18
3.3. Análise dos resultados.................................................................................................................................20
4. POLÍTICAS DE OCUPAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA NA AMAZÔNIA ........................................22
4.1. A ocupação da Amazônia: colonização ou reforma agrária? ................................................................22
4.1.1. O sentido da ação do Estado: colonização induzida.........................................................................24
4.1.2. Outras formas de ocupação: os verdadeiros beneficiários da colonização ...................................27
4.1.3. As novas atribuições do Incra e as dificuldades em se fazer reforma agrária ...............................30
4.2. A “colonização” em um novo contexto ..................................................................................................32
4.2.1. Revisão dos sistemas de colonização...................................................................................................34
4.2.2. Novos padrões de desenvolvimento econômico e a era da globalização ......................................37
4.2.3. O desenvolvimento social em debate..................................................................................................40
4.2.4. Crise ambiental e tomada de consciência............................................................................................42
5. O DESFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA.............................................................................................46
5.1. O quadro geral do desflorestamento na Amazônia................................................................................46
5.2. O desflorestamento: uma avaliação difícil ...............................................................................................47
5.2.1. Definição ambígua em área de referência incerta..............................................................................48
5.2.2 Um imbróglio metodológico..................................................................................................................52
5.3. Causas e dinâmicas extremamente variáveis............................................................................................54
5.3.1. Pequenos ou grandes proprietários de terras – de quem é a culpa? ...............................................54
5.3.2. Dinâmicas que variam conforme o espaço-tempo considerado .....................................................57
5.3.3. Outros fatores relacionados ao desmatamento..................................................................................62
5.4. Impactos do desflorestamento: uma questão de escala .........................................................................66
5.4.1. O desmatamento e a biodiversidade....................................................................................................67
5.4.2. Outros efeitos do desmatamento .........................................................................................................68
6. O TOCANTINS NA AMAZÔNIA ...................................................................................................................70
6.1. O desmembramento de Goiás e a criação do Tocantins ......................................................................70
6.2. O Tocantins como fronteira de recursos: ocupação do espaço e uso dos recursos naturais ..........71
6.3. A ocupação mais recente e o surgimento de conflitos fundiários .......................................................74
6.4. O vai-e-vem das posses: concentração, distribuição e reconcentração de terras..................................77
6.5. O Incra e a criação de projetos de assentamento no Tocantins ..........................................................79
ii
6.6. O estado hoje: caracterização geral e atividades produtivas desenvolvidas .......................................81
6.6.1. Condições físicas favoráveis ao desenvolvimento de atividades agropecuárias............................81
6.6.2. Crescimento populacional: dinamismo e desigualdades regionais..................................................83
6.6.3. Uso atual e distribuição das terras no estado .....................................................................................84
6.6.4. Cenário político-econômico para o desenvolvimento do “estado da iniciativa privada e da
justiça social” ........................................................................................................................................86
7. A GRANDE REGIÃO DE ARAGUAÍNA E O CASO DE BARREIRA BRANCA: ENTRE O
DESENVOLVIMENTO E A CONSERVAÇÃO.......................................................................................88
7.1. As terras em Barreira Branca: desenvolvimento ou conservação? ......................................................88
7.2. Caracterização dos projetos de assentamento.........................................................................................92
7.2.1. Características gerais da área .................................................................................................................92
7.2.2. Infra-estrutura e serviços existentes.....................................................................................................93
7.2.3. Perfil socioeconômico dos assentados ................................................................................................95
7.2.4. Aspectos institucionais do assentamento............................................................................................97
7.2.5. Condições ambientais e desflorestamento nos projetos de assentamento ....................................98
7.3. A conservação das florestas em Barreira Branca: que alternativas?.....................................................99
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO.......................................................................................... 103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................................ 106
iii
LISTA DE TABELAS E QUADRO
Capítulo 4
Tabela 4.1 – Participação percentual das grandes regiões brasileiras no PIB nacional – 1970-1990.............29
Tabela 4.2 – Assentamento de famílias no governo de Fernando Henrique Cardoso, 1995-1998................36
Tabela 4.3 – Índice de evasão (%) em assentamentos, por grandes regiões e estados da Amazônia Legal .36
Tabela 4.4 – Produção de soja, unidades federativas da Amazônia Legal e Brasil, 1993-2000 (ton.)............40
Tabela 4.5 – Índice de desenvolvimento humano (IDH).....................................................................................41
Tabela 4.6 – Beneficiários da reforma agrária de acordo com as grandes regiões - no de famílias. ...............42
Capítulo 5
Tabela 5.1 – Taxa média anual e extensão total do desflorestamento bruto na Amazônia Legal (km2/ano)
................................................................................................................................................................................47
Tabela 5.2 – Estratificação da Amazônia brasileira ...............................................................................................49
Tabela 5.3 – Preço médio de venda de terras na Amazônia Legal – 1o semestre de 1998 ..............................63
Tabela 5.4 – Valor da terra de acordo com sua cobertura vegetal ......................................................................63
Capítulo 6
Quadro 6.1 – Ciclos históricos da economia do Tocantins..................................................................................74
Tabela 6.1 – Número total de projetos de assentamento criados pelo Incra, nos estados da Amazônia
Legal até julho de 2001 .......................................................................................................................................80
Tabela 6.2 – Tocantins: população (urbana e rural), taxa de crescimento e densidade demográfica.............83
Tabela 6.3 – Distribuição das terras no estado do Tocantins ..............................................................................85
Tabela 6.4 – Situação da propriedade da terra no Tocantins ...............................................................................85
Capítulo 7
Tabela 7.1 – Projetos de assentamento criados pelo Incra no município de Aragominas ..............................92
Tabela 7.2 – Situação de alguns imóveis comprados/desapropriados pelo Incra ............................................92
iv
LISTA DE FIGURAS
Capítulo 1
Figura 1.1 – Fitofisionomias do Tocantins: localização da região de interesse para o estudo..........................6
Figura 1.2 – Localização dos projetos de assentamento no estado do Tocantins ..............................................7
Figura 1.3 – Municípios que integram o Arco do Desflorestamento e antropismo ...................................................8
Figura 1.4 – Imagens de satélite (Landsat, composição colorida 5, 4, 3), utilizadas para a seleção da área de
estudo. Barreira Branca, último maciço florestal do estado do Tocantins: aumento e mudança no
padrão de desflorestamento entre os anos 1992, 1996 e 1999 .......................................................................9
Capítulo 3
Figura 3.1 – Componentes de um modelo interativo de análise de dados.........................................................21
Capítulo 4
Figura 4.1 – Número de projetos de assentamento criados pelo Incra entre 1970 e 2000 .............................26
Figura 4.2 – Área ocupada pelos projetos de assentamento criados pelo Incra entre 1970 e 2000...............26
Figura 4.3 – Áreas desapropriadas, por grande região – 1985-1989 ...................................................................32
Figura 4.4 – Avança Brasil: investimentos totais, públicos e privados, para 2000-2007..................................38
Capítulo 5
Figura 5.1 – Tipos de vegetação – áreas abertas, floresta de transição, floresta ...............................................50
Figura 5.2 – Ecorregiões do bioma amazônico ......................................................................................................51
Figura 5.3 – Estimativas de diversos autores para a extensão do desflorestamento bruto na Amazônia
Legal até 1988 (mil km2) .....................................................................................................................................53
Figura 5.4 – Esquema hipotético do processo de desmatamento em projetos de assentamento. .................58
Figura 5.5 – Área dos projetos de assentamento criados e taxa anual de desflorestamento bruto na
Amazônia Legal ...................................................................................................................................................58
Figura 5.6 – Área acumulada dos projetos de assentamento e extensão do desflorestamento na Amazônia
Legal.......................................................................................................................................................................59
Figura 5.7 – Área acumulada dos projetos de assentamento criados e extensão do desflorestamento bruto
nos estados de Acre, Amapá, Mato Grosso e Rondônia, 1978-2000..........................................................60
Figura 5.8 – Extensão do desflorestamento bruto e área dos projetos de assentamento criados no estado
do Tocantins – dados cumulativos ...................................................................................................................61
Figura 5.9 – Extensão do desflorestamento bruto e número de projetos de assentamento criados no
estado do Tocantins – dados cumulativos.......................................................................................................61
Figura 5.10 – Evolução da taxa de desflorestamento bruto e do aumento da população na Amazônia Legal
entre 1960 e 2000.................................................................................................................................................64
Capítulo 6
Figura 6.1 – População residente no estado do Tocantins, 1950-2000 ..............................................................83
Figura 6.2 – Número (classes) de estabelecimentos rurais no Tocantins, 1985-1995 ......................................86
Capítulo 7
Figura 7.1 – Cadeia dominial das terras da grande região de Araguaína – loteamentos Lontra e Andorinha
e Barra do Ribeirão Muricizal: cores iguais representam lotes de uma mesma família ............................89
Figura 7.2 – Fazendas existentes na região de Barreira Branca: um mosaico de áreas desflorestadas (em
tons de rosa e verde claro) e superfícies cobertas por floresta ombrófila (verde escuro)........................90
Figura 7.3 – Habitações típicas do Projeto de Assentamento Vitória Régia .....................................................94
Figura 7.4 – Propaganda da cidade de Santa Fé do Araguaia, “a capital do boi gordo!”.................................96
Figura 7.5 – Ribeirinho assentado no P. A. Vitória Régia, preparando peixe para ser vendido na Praia do
Escapole (rio Araguaia).......................................................................................................................................97
Figura 7.6 – Síntese da ocupação em Barreira Branca: projetos de assentamento criados com a
desapropriação de antigas fazendas, áreas propostas para a criação da ReBio Barreira Branca e Reserva
Particular da Fazenda Malasca........................................................................................................................ 100
v
LISTA DE SIGLAS
Abra – Associação Brasileira de Reforma Agrária
ASB – Programa Alternative to Slash and Burn
Basa – Banco da Amazônia S.A.
CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável
Cirad – Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement
CNDRS – Comissão Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
CNRS – Centre National de Recherche Scientifique
Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT – Comissão Pastoral da Terra
DEID – Departamento de Identificação de Delimitação de Terras Indígenas
DSA – Diagnóstico de Sistemas Agrários
FAO – Food and Agriculture Organization
Finam – Fundo de Investimentos na Amazônia
FNO – Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
Funai – Fundação Nacional do Índio
Gebam – Grupo Executivo do Baixo Amazonas
Getat – Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins
IAG – International Advisory Group
Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
Ibra – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
Idago – Instituto de Desenvolvimento Agropecuário de Goiás
IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Inda – Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário
Inpa – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
IPAM – Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
Iterpa – Instituto de Terras do Pará
Itertins – Instituto de Terras do Tocantins
Jica – Japanese International Cooperation for Agriculture
MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEPF – Ministério Extraordinário de Política Fundiária
MMA – Ministério do Meio Ambiente
MPO – Ministério do Planejamento e Orçamento
MST – Movimento dos Sem-Terra
NAPIAm – Núcleo de Apoio às Políticas Integradas para a Amazônia
Naturatins – Instituto de Meio Ambiente do Tocantins
ONGs – Organizações Não-Governamentais
PA – Projeto de Assentamento
PAE – Projeto de Assentamento Agroextrativista
vi
PCT – Projeto de Cooperação Técnica
PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável
PGAI – Projeto de Gestão Ambiental Integrada
PIN – Programa de Integração Nacional
Planafloro – Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia
PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Polamazônia – Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
Polocentro – Programa de Desenvolvimento do Cerrado
PPG-7 – Programa Piloto para conservação das Florestas Tropicais do Brasil
Proarco – Programa de Prevenção e Controle às Queimadas e aos Incêndios Florestais no Arco do
Desflorestamento
Prodeagro – Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado do Mato Grosso
Proderur – Programa de Desenvolvimento Rural
Prodex – Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Extrativismo
Profloresta – Programa de Apoio ao Desenvolvimento Florestal
ProManejo – Projeto de Apoio ao Manejo Florestal na Amazônia
Pronaf – Programa Nacional de Agricultura Familiar
Pronera – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
Prorural – Programa de Apoio à Pequena Produção Familiar Rural Organizada
Proterra – Programa de Redistribuição de Terras
ReBio – Reserva Biológica
RIT – Relatório de Informações Trimestrais
Ruraltins – Instituto de Extensão Rural do Tocantins
SCA – Secretaria de Coordenação da Amazônia
Seplan/TO – Secretaria Estadual de Planejamento e Meio Ambiente do Tocantins
Sepro/TO – Secretaria Estadual de Produção do Tocantins
SIG – Sistema de Informações Geográficas
SIUC – Sistema de Informações sobre Unidades de Conservação
SPRN – Sub-Programa de Política de Recursos Naturais
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Sudam – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
Suframa – Superintendência da Zona Franca de Manaus
TREES – Tropical Ecosystem Environment Observation by Satellite
UICN – União Internacional de Conservação da Natureza
UnB – Universidade de Brasília
WHRC – Woods Hole Research Centre
WWF – World Wildlife Fund
ZEE – Zoneamento Ecológico-Econômico
vii
1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
1.1.
Introdução
Este trabalho busca discutir a questão do desflorestamento na Amazônia, revisando e
reformulando algumas hipóteses sobre suas causas e dinâmicas. Para tanto, foi testada, para o caso
específico da região de Barreira Branca, no estado de Tocantins, a relação de causa e efeito entre a
criação de projetos de assentamento e o desflorestamento observado na área nos últimos anos.
A motivação para a realização deste trabalho surgiu do empenho da Secretaria de
Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente (SCA/MMA), em controlar o
processo de desflorestamento, cujas taxas, em meados da década passada, mostravam-se
alarmantes. Tendo em vista a discussão ainda inacabada sobre as principais causas e os atores
envolvidos no processo de remoção da cobertura florestal amazônica, pareceu-nos importante
analisar o tema tendo como foco principal as políticas de colonização e reforma agrária e a
implantação de projetos de assentamento na região. Dessa forma, uma das bases do presente
trabalho refere-se a uma extensa revisão da bibliografia existente sobre o tema, bem como
pesquisas de campo realizadas em área previamente selecionada.
É comum, quando se fala em desflorestamento na Amazônia, relacioná-lo a variáveis tais
como construção de estradas e vias de acesso, políticas agrárias e agrícolas de incentivo à
produção agropecuária (incluindo preços dos produtos e créditos concedidos) e também
crescimento populacional, esse último, nem sempre verdadeiro. No entanto, quando o tema
começa a ser analisado com mais profundidade, percebe-se uma grande dificuldade no
estabelecimento de uma variável-chave ou um fator único que seja capaz de explicar o processo
em toda a sua extensão e complexidade. Isso pode parecer um tanto frustrante, mas é também
facilmente compreensível quando pensamos na dimensão da região, na escala em que se dão os
desmatamentos e nos diferentes atores envolvidos.
Todavia, uma questão recorrente nas discussões sobre o tema é o papel de pequenos e
grandes produtores rurais no processo de ocupação da região e de avanço da fronteira agrícola.
Levantamentos recentes realizados por instituições envolvidas no assunto indicam uma
contribuição importante dos pequenos agricultores e dos projetos de colonização e assentamento
para o desflorestamento na Amazônia.
Entretanto, faltam ainda explicações e dados mais consistentes sobre os diferentes fatores
e as variáveis que interferem no processo e determinam a opção, por parte de cada um dos
1
agentes envolvidos, pela manutenção ou não da floresta. Essas variáveis podem ser de ordem
econômica, política, social ou ambiental. Por exemplo: Quais são as alternativas econômicas que
se apresentam aos produtores rurais (pequenos, médios ou grandes) que desenvolvem a pecuária
extensiva? Como as políticas de incentivos fiscais poderiam contribuir para a manutenção da
floresta em pé? Quais as tecnologias disponíveis para a pequena agricultura familiar? Quais os
impactos das políticas de conservação sobre os grupos sociais presentes na região?
Na tentativa de responder a algumas dessas perguntas, a maioria delas relacionadas ao
desenvolvimento dos projetos de assentamento implantados na região, este trabalho tem como
objetivo analisar os efeitos das políticas de reforma agrária sobre o processo de desflorestamento
que vem sendo observado na Amazônia, em particular no estado do Tocantins, nas últimas
décadas. Para tanto, foi estruturado em sete capítulos, além desta introdução, que também
apresenta o contexto em que se insere este trabalho e os principais critérios para a escolha da
região de estudo. No Capítulo 2 são focalizados alguns conceitos importantes para a compreensão
dos grandes temas envolvidos; não se trata de uma revisão exaustiva sobre referências conceituais,
mas tão-somente um recorte sobre alguns conceitos utilizados, tais como reforma agrária,
desflorestamento e desenvolvimento sustentável. O Capítulo 3 aborda os aspectos metodológicos da
pesquisa, os quais incluem pesquisa bibliográfica e levantamentos de campo. A seguir, no Capítulo
4, faz-se um breve apanhado sobre as políticas de ocupação e reforma agrária implantadas na
Amazônia, mostrando o papel do Estado como elemento indutor da colonização e os obstáculos
por ele enfrentados no que tange à realização de uma reforma agrária de fato. O Capítulo 5
apresenta o quadro geral do desflorestamento na região, com as principais dificuldades
encontradas no processo de avaliação e monitoramento das taxas anuais e sua real extensão, além
de discutir algumas de suas causas, atores e impactos. Ao Capítulo 6 coube uma abordagem
histórica do estado do Tocantins, desde o desmembramento do estado de Goiás até os dias atuais.
Também aí foram apresentados alguns resultados das pesquisas de campo, sobretudo aqueles
relacionados às políticas estaduais de ocupação, desenvolvimento e conservação. O Capítulo 7
apresenta os principais resultados da pesquisa de campo na região de Barreira Branca e mostra
como se deu a criação dos projetos de assentamento ali existentes e qual a sua relação com as
políticas estaduais de conservação de um dos últimos remanescentes florestais do estado. Por fim,
no Capítulo 8 encontram-se as considerações finais e conclusões deste trabalho.
2
1.2. Contexto político-institucional
O presente trabalho teve início no marco de um acordo de Cooperação Técnica
estabelecido entre o Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o
Desenvolvimento – Cirad1 e o Núcleo de Apoio às Políticas Integradas para a Amazônia –
NAPIAm, da Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente –
SCA/MMA. Esse projeto, proposto sob o título de Caracterização e Avaliação dos Formatos de
Ocupação do Espaço Amazônico, foi estabelecido no início de 1999 e previa a realização de diferentes
atividades relacionadas ao processo de ocupação da Amazônia, as quais deveriam servir como
base de apoio à elaboração de um diagnóstico da situação atual da região e como marco
referencial para as estratégias de atuação da SCA frente às importantes e recentes mudanças
ocorridas na Amazônia brasileira, sobretudo aquelas relacionadas à remoção da cobertura florestal
da região.
Dentro desse quadro, diferentes estudos, pesquisas, treinamentos e ateliers foram
conduzidos, no sentido de reunir e sistematizar as informações existentes, mas dispersas, sobre
temas amazônicos de relevância, atualizando os conhecimentos acerca do novo contexto regional
e propondo modelos e alternativas viáveis para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Sobre os documentos produzidos durante o referido acordo, cabe mencionar a elaboração de
diagnósticos estaduais e a definição de áreas prioritárias para discussão nas reuniões das Agendas
Positivas de cada um dos estados amazônicos, bem como da Agenda Positiva Regional; estudos
temáticos específicos, alguns deles já veiculados nas duas versões do CD-ROM Informações de Apoio
ao Planejamento Estratégico para a Amazônia, produzido pelo NAPIAm, juntamente com o Programa
Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG-7. Por fim, os resultados desses
esforços foram traduzidos em um documento apresentado à SCA em outubro de 2001, como
produto final da ação de cooperação técnica – Diagnóstico dos Formatos de Ocupação do Espaço
Amazônico.
No decorrer de todo este processo, foram identificados diferentes temas de relevância e
interesse – entre eles, a dinâmica do desflorestamento na Amazônia e seu relacionamento com a
política de reforma agrária implantada na região nas últimas décadas –, não só no nível
institucional, como também em termos de pesquisa e desenvolvimento. Dessa forma, pareceu
oportuna a conciliação das atividades que vinham sendo desenvolvidas com reflexões e discussões
mais acadêmicas, tais como as promovidas pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília – CDS/UnB. A proposta de ingressar no curso de Mestrado
1
Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement
3
Profissionalizante em Política e Gestão Ambiental desse centro foi então apresentada à Secretaria,
que prontamente se dispôs a apoiá-la por intermédio da Coordenação do NAPIAm.
Não obstante o apoio recebido, mudanças ocorridas nas instituições acima mencionadas,
em meados de 2001, fizeram com que parte do presente trabalho ficasse a cargo do Ministério da
Ciência e Tecnologia – MCT, que, em convênio com o PPG-7, viabilizou sua continuidade,
financiando os custos de funcionamento durante a fase de redação do texto que ora se apresenta.
Não menos importante foi o apoio recebido do Centro Nacional de Pesquisa Científica do
Governo Francês – CNRS2 e do Projeto de Apoio ao Manejo Florestal na Amazônia –
ProManejo, que viabilizaram algumas viagens ao estado do Tocantins, possibilitando o
levantamento de informações de campo – nos assentamentos – e junto a diferentes instituições
governamentais e não-governamentais.
1.3. Critérios para a seleção da área de estudo
Considerando a temática central do trabalho – a existência de uma relação de causa e
efeito entre a política de reforma agrária e a dinâmica do desflorestamento na Região Amazônica-,
a área de estudo deveria ser caracterizada por uma dinâmica de ocupação marcante e recente, que
contivesse projetos de assentamento implantados pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária – Incra e, ao mesmo tempo, apresentasse uma mudança significativa em termos
de remoção da cobertura vegetal. Isso porque o objetivo primeiro da SCA – e, conseqüentemente,
do acordo de cooperação estabelecido com instituições francesas – sempre esteve pautado pela
implementação de políticas públicas que permitam reverter o modelo de ocupação predominante
na região, caracterizado por atividades econômicas de alto custo ambiental e baixo retorno social,
que tiveram como conseqüência o desflorestamento hoje observado na região.
Com as mudanças ocorridas no quadro institucional de realização do trabalho, a área de
estudo deveria ainda fazer parte de uma região onde o tema Conservação e Desenvolvimento parecesse
contraditório (linha de pesquisa do CNRS), além de ter uma relação com projetos desenvolvidos
pelo PPG-7. Nesse contexto, e utilizando-se das informações levantadas na elaboração dos
Diagnósticos Estaduais para as Agendas Positivas, foram selecionados, inicialmente, dois estados
de interesse: Rondônia e Tocantins. A partir de então foram organizadas algumas viagens a ambos
os estados, incluindo visitas a projetos de assentamento, após o que se optou por trabalhar apenas
no estado do Tocantins. Deve-se ressaltar que, além dos fatores já mencionados, a escolha desse
estado levou em conta também alguns outros elementos, quais sejam tratar-se de um estado
4
relativamente novo e pouco estudado em termos de desflorestamento, quando comparado com
Rondônia, e sua maior proximidade de Brasília e, portanto, menores custos com as viagens de
campo. Outrossim, estavam em curso, no momento da escolha, discussões sobre possíveis
acordos entre a Universidade do Tocantins e o Cirad, para a realização de pesquisa relacionada ao
desenvolvimento da agricultura familiar no estado; e entre aquela e o CDS, para a implantação de
um curso de mestrado – a exemplo do que já existe com outras universidades de Mato Grosso do
Sul, Vitória da Conquista (BA) e Amapá.
Depois de escolhida a grande região – o estado do Tocantins –, fazia-se necessária a
definição de uma área específica para a realização de trabalhos de campo que integrariam o estudo
de caso. Foi então que consultas realizadas em diferentes instituições estaduais – em especial a
Secretaria Estadual de Planejamento e Meio Ambiente do Tocantins – Seplan/TO – levaram à
delimitação da “zona de influência” de Araguaína como área de interesse para o estudo, uma vez
que se trata de uma das poucas áreas de fisionomia florestal do estado e, portanto, classificada
como potencial para conservação, pelos órgãos estaduais (Figura 1.1). Todavia, essa região tem
sido ocupada nos últimos anos por projetos de assentamento, por meio da desapropriação de
grandes fazendas que dominavam, e ainda dominam, a região (Figura 1.2). Além disso, a referida
zona está inserida no chamado Arco do Desflorestamento (Figura 1.3), o que a torna prioritária para o
estado e para a SCA em termos de controle do desflorestamento. Tanto assim que a região foi
selecionada pelo PPG-7 para receber financiamento e apoio técnico do Projeto de Gestão
Ambiental Integrada da Região do Bico do Papagaio – PGAI Bico do Papagaio3. Este, por seu
turno, adotou como um dos critérios de seleção a importância socioambiental da área para o
estado, haja vista constituir-se em palco de conflitos fundiários com repercussão nacional e
internacional durante as décadas de 1970 e 1980.
Por fim, a escolha dos projetos de assentamento foi realizada por meio de análises
multitemporais de imagens de satélite disponíveis (Figura 1.4), que, juntamente com informações
sobre tipos de solo, vegetação, infra-estrutura, etc., constantes do Atlas do Estado do Tocantins,
elaborado pela Seplan/TO, permitiram a identificação de diferentes padrões de ocupação
existentes na região de Barreira Branca, a qual integra a zona de influência de Araguaína.
Centre National de Recherche Scientifique
Projeto elaborado pelo Sub-Programa de Política de Recursos Naturais (SPRN), do PPG-7, com a finalidade de
identificar e diagnosticar os principais problemas ambientais de cada estado. No caso específico do PGAI Bico do
Papagaio, cinco sub-componentes foram identificados, para ser implementados de forma integrada, quais sejam
zoneamento ecológico-econômico, monitoramento ambiental, controle ambiental (incluindo fiscalização), promoção
do manejo sustentável dos recursos naturais e estruturação de suas instituições executoras.
2
3
5
#
Belém
#
Brasília
Estado do Tocantins
Amazônia Legal
Belém-Brasília
Região de interesse
Barreira Branca
Regiões fitoecológicas
Floresta ombrófila densa
Floresta ombrófila aberta
Floresta estacional decidual
Floresta estacional semidecidual
Áreas de tensão ecológica
Cerrado
Hidrografia
Rodovias
Malha municipal
50
0
50
100
km
Figura 1.1 – Fitofisionomias do Tocantins: localização da região de interesse para o estudo
(Fonte: Seminário Consulta Macapá – Instituto Socioambiental, 2001.)
6
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Municípios da grande
região de Araguaína
Projetos de assentamento
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50
0
50
100 km
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Figura 1.2 – Localização dos projetos de assentamento no estado do Tocantins
(Fonte: Seminário Consulta Macapá – Instituto Socioambiental, 2001.)
7
Desflorestamento 1971 a 1976
Desflorestamento 1977 a 1987
Desflorestamento 1988 a 1991
Desflorestamento 1992 a 1997
Arco do desflorestamento
Amazônia Legal
Antropismo
Desflorestamento 1971 a 1976
Desflorestamento 1977 a 1987
Desflorestamento 1988 a 1991
Desflorestamento 1992
50
0
50
100 km
Figura 1.3 – Municípios que integram o Arco do Desflorestamento e antropismo
(Fonte: Seminário Consulta Macapá – Instituto Socioambiental, 2001.)
8
1992
Área de interesse
para o estudo
1996
Aumento dos
desmatamentos
1999
Mudança no padrão
de desmatamento
Figura 1.4 – Imagens de satélite (Landsat, composição colorida 5, 4, 3), utilizadas para a seleção
da área de estudo. Barreira Branca, último maciço florestal do estado do Tocantins: aumento e
mudança no padrão de desflorestamento entre os anos 1992, 1996 e 1999 (imagens obtidas em
http://www.bsrsi.msu.edu).
9
2. REFERÊNCIAS TEÓRICAS E CONCEITUAIS
2.1. Definindo Reforma Agrária
O Estatuto da Terra (Lei no 4.504, de 1964) define a reforma agrária como “o conjunto de
medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de
sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”
(art. 1o, § 1o).
Etimologicamente, reforma vem das palavras re e formare e significa mudar uma estrutura
anterior, para modificá-la em determinado sentido. O prefixo re significa a idéia de renovação,
enquanto formare é a maneira de existência de um sentido ou de uma coisa. Reforma agrária é,
pois, na acepção etimológica, a mudança da estrutura agrária vigente, para modificar o estado atual
da situação agrária. E esse estado que se procura modificar é o do “feudalismo agrário”, que
influenciou o surgimento das sesmarias e capitanias hereditárias no Brasil colonial, e o da grande
concentração agrária (formação de latifúndios) em benefício de agricultores e trabalhadores do
campo. Assim sendo, pode-se dizer que a reforma agrária deve combater formas inadequadas de
produção, que se caracterizam, sobretudo, pelo latifúndio e o minifúndio4.
Na definição de Le Coz (1974), uma reforma parte da constatação da inadequação das
instituições à realidade das estruturas em exercício. O autor ressalta ainda que o emprego do
termo reforma implica que a ação deve ser voluntária, o resultado de um programa mais ou menos
elaborado e geralmente expresso por uma decisão governamental ou em um texto legislativo
preciso. Do contrário, trata-se de uma simples transformação agrária ou então, se o fenômeno ocorre
de forma muito vasta e radical, de uma mudança agrária. Para Michel Guttelman (citado em
Bursztyn, 1984), a diferença entre a transformação e a reforma agrária reside no fato de que
naquela as mudanças na estrutura agrária, considerada pelo autor como “a materialização, no
espaço, de um sistema de relações de força”, ocorrem de maneira insensível; enquanto que nesta
as mudanças são brutais e socialmente explicitadas.
Ainda dentro do conceito estabelecido pelo Estatuto da Terra, a reforma agrária tem
como princípios a promoção da justiça social, o aumento da produtividade e a conservação dos
recursos naturais. Ou seja, além de transformar a estrutura agrária, deve modificar as relações
sociais, assegurando a melhoria das técnicas de cultivo, o aumento da produção agrícola e o uso
Ver artigo de Clóvis Antunes Carneiro de Albuquerque Filho: A Reforma Agrária no Brasil, disponível em
http://www.jus.com.br
4
10
adequado do solo e dos recursos. Dentro dessa perspectiva, Leroy (1999) apresenta a seguinte
formulação para Reforma Agrária:
envolve cada assentado, cada agricultor familiar que tenha a sua propriedade titulada, homens, mulheres,
jovens, cada assentamento ou núcleo (entendido aqui como áreas ocupadas pela agricultura familiar, também
atingidas pela Reforma Agrária quando consolidadas as posses) e os milhares de assentamentos e núcleos
rurais em conjunto;
possa garantir a vida de seus beneficiários, como seres humanos, como membros de organização(ões) e
coletividade(s) local(ais) e cidadãos pertencendo a uma coletividade territorial nacional;
implique uma luta e uma ação de preservação do meio ambiente em que vivem as famílias (sustentabilidade
ambiental), do uso dos recursos naturais de tal forma que garantam a continuidade da sua produção no
longo prazo e a manutenção da biodiversidade (sustentabilidade ecológica), de qualidade de vida, com
dignidade e segurança (sustentabilidades econômica e social) de possibilidade de exercício da cidadania
(sustentabilidade política);
estenda-se, com essa luta e ação, à escala da região e do país, criando assim condições para que as futuras
gerações possam continuar a construir um país e uma sociedade em que haja condições para cada ser
humano viver com dignidade e felicidade.
Esse poderia ser o arcabouço de uma reflexão sobre reforma agrária e meio ambiente ou,
mais exatamente, sobre a sustentabilidade da reforma agrária, numa perspectiva em que a reforma
agrária não aparece como um problema para o meio ambiente, mas como parte da solução para a
sustentabilidade do território e da sociedade.
Todavia, para que se cumpram esses objetivos, cabe ao Estado dar a todos oportunidade
de acesso à propriedade da terra e favorecer o bem-estar dos proprietários e trabalhadores que
nela labutam. No entanto, pelo fato de modificar as relações de força e poder de uma dada
sociedade, e ainda reorientar a produção agrícola dentro de preceitos de sustentabilidade
(ambiental, ecológica, econômica, social, política, etc.), a reforma agrária constitui-se também em
uma “escolha política”. Assim, a reforma agrária passa a ser o retrato de conflitos e tensões
existentes no meio rural e da tomada de consciência, por parte dos interessados, do modo de
inserção de sua classe no contexto social vigente (Le Coz, 1974).
A reforma agrária também pode se dar em diferentes níveis, de acordo com a sua extensão
geográfica ou a importância das inovações que ela introduz. É nesse contexto que Le Coz (1974)
fala de reforma parcial, em que apenas algumas regiões de um país são atingidas, ou revolução agrária,
em que são realizadas verdadeiras mudanças na estrutura de produção. Esse foi o caso, por
exemplo, de países como China e Cuba. Já no Brasil, se se pode falar em reforma agrária, devemos
nos restringir à primeira classificação, a reforma parcial. Bursztyn (1984), analisando mais
profundamente a questão, chega a falar em contra-reforma. Para ele, as transformações mais
substanciais na estrutura agrária deram-se em espaços determinados, onde alguns setores se
enquadram no conceito de reforma parcial e outros, no de contra-reforma. Ou seja,
11
de acordo com a análise dos “programas especiais” [de desenvolvimento regional – PIN,
PROTERRA, POLONOROESTE, POLONORDESTE, etc.], constata-se que, ao mesmo tempo
em que as relações de produção se modificam em alguns setores mais diretamente ligados aos mecanismos de
intervenção do Estado, os setores mais tradicionais sobrevivem e, às vezes, mesmo se reproduzem. Esta
coexistência da reforma com a contra-reforma não é nada mais do que duas faces da mesma moeda – a
busca de legitimidade do poder central – em espaços geográficos determinados... que buscam mascarar as
necessidades e possibilidades de modificar a estrutura fundiária regional (Bursztyn, 1984, p. 132).
2.2. O que é desflorestamento?
Várias realidades se dissimulam sob os vocábulos de desflorestamento ou desmatamento e
podem ser entendidas como toda perturbação na floresta (por exemplo, o corte seletivo de
espécies madeireiras) ou estar restritas à conversão, a longo prazo, de floresta em área de
vegetação não-florestal (Buschbacher, 1986). A definição dada por Pomel e Salomon (1998) para
o desflorestamento abrange desde as derrubadas totais praticadas por agricultores e pecuaristas até
a formação de capoeiras provocadas pelos ameríndios no âmbito da agricultura itinerante,
passando pela exploração mais ou menos seletiva dos recursos florestais, pelas madeireiras, o que
corresponde bastante à realidade amazônica. Fearnside (1997), por sua vez, restringe o
desmatamento apenas às superfícies onde a floresta foi suprimida, não levando em consideração
as florestas perturbadas pela exploração de madeira, o que a Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação – FAO5 prefere chamar de degradação: “mudanças no âmbito de uma
categoria de floresta que afetam negativamente o povoamento ou o sítio e, particularmente,
reduzem a capacidade de produção”. Para a FAO, o desflorestamento seria “a conversão de terras
florestais em áreas destinadas a outros usos, com cobertura florestal inferior a 10%” (FAO, 1997).
De acordo com Glossário de Ecologia (MCT/CNPq, 1997), o desmatamento seria
diferente de desflorestamento na medida em que este compreende a remoção da cobertura
florestal do solo, enquanto que aquele faz referência a práticas como corte, capina, queimada (por
fogo ou produtos químicos), que levam à retirada da cobertura vegetal existente em determinada
área.
Neste trabalho esses dois conceitos serão tratados como sinônimos. E, ainda que se
reconheça a pertinência de um conceito mais abrangente, em se tratando de Região Amazônica, o
termo será abordado em conformidade com a definição adotada pelo Projeto de
Desflorestamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Prodes/Inpe, órgão
oficialmente responsável pelo monitoramento do desflorestamento da Floresta Amazônica. Dessa
forma, considera-se desflorestamento (ou desmatamento) “a conversão de áreas de fisionomia
5
Food and Agriculture Organization
12
florestal primária, por ações antropogênicas, para o desenvolvimento de atividades
agrossilvopastoris, detectadas a partir de plataformas orbitais” (Prodes/Inpe, 2001).
Muito embora a definição dada anteriormente não leve em conta áreas com outros tipos
de cobertura não-florestal, e tampouco inclua as áreas afetadas por incêndios naturais ou
atividades de exploração madeireira (que não são identificadas na escala utilizada), sua escolha
justifica-se pela utilização de dados numéricos (extensão e taxas anuais de desflorestamento) que
permitiram uma análise da dinâmica e evolução do processo na Amazônia, como um todo, e no
estado do Tocantins, em particular. Além disso, a avaliação anual realizada pelo projeto apresenta
a grande vantagem de utilizar sempre a mesma metodologia (imagens de satélite em composições
coloridas na escala 1:250.000) e considerar a mesma região de referência (florestas primárias) em
todos os seus levantamentos, fatores que serão discutidos mais adiante como responsáveis pelo
surgimento de dados controversos sobre a real extensão do desflorestamento na Amazônia.
Não obstante, sempre que necessário, far-se-á referência ao termo em seu sentido mais
amplo, evidentemente, com a devida ressalva.
2.3. Ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável
O termo ecodesenvolvimento foi utilizado pela primeira vez em 1972, por Maurice Strong, na
Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente, para definir um estilo de desenvolvimento
apropriado às áreas tropicais do Terceiro Mundo, baseado na potencialização – e não-destruição –
dos recursos naturais. Todavia, o grande mérito de tê-lo desenvolvido conceitualmente e
convertido em um campo de reflexão teórica e de ação política coube a Ignacy Sachs (Leff, 1998).
O conceito de ecodesenvolvimento, hoje também conhecido como desenvolvimento
sustentável, surgiu a partir de um confronto entre duas correntes diametralmente opostas. A
primeira delas era constituída pelos defensores do crescimento econômico a qualquer custo, que
percebiam o meio ambiente como um capricho de ecologistas e ambientalistas ou ainda como um
obstáculo a mais ao avanço dos países do Hemisfério Sul em processo de industrialização. A
outra, no extremo oposto, anunciava o apocalipse para o dia seguinte, alegando ser necessário
conter o crescimento demográfico e econômico ou, pelo menos, o crescimento do consumo de
bens materiais. Tentando aproveitar um pouco de cada corrente, os participantes da Conferência
de Estocolmo (1972) chegaram a uma via intermediária entre o economicismo arrogante (de livre
mercado) e o ecologismo absoluto (de crescimento zero) que pudesse levar a um desenvolvimento
orientado pelo princípio da igualdade social em harmonia com o equilíbrio do meio ambiente. O
crescimento continuava sendo necessário, sem dúvida, mas deveria assumir um novo estilo –
13
diferente daquele caracterizado pelo crescimento selvagem – cujos benefícios fossem mais bem
repartidos (Sachs, 1998).
Eficiência econômica, justiça social e prudência ecológica são, pois, os três pilares
fundamentais do conceito de desenvolvimento sustentável, consagrado em 1987 pelo Relatório de
Brundtland (também conhecido como Nosso Futuro Comum), que o definiu como sendo aquele que
responde às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras em satisfazer as
suas necessidades. Por essa definição, percebe-se que, para se alcançar o desenvolvimento
sustentável, é preciso planejamento de longo prazo e a conscientização, por parte da sociedade, de
que os recursos naturais não são inesgotáveis e de que as decisões que podem afetar a coletividade
devem ser tomadas de forma ampla e participativa. Dessa forma, o ecodesenvolvimento ou
desenvolvimento sustentável representa uma abordagem em relação ao desenvolvimento, cujo
horizonte temporal se coloca décadas ou mesmo séculos à frente. Envolve a garantia de satisfação
das necessidades das gerações futuras, ou seja, deve haver uma solidariedade diacrônica, sem,
contudo, comprometer a solidariedade sincrônica com a geração presente (Sachs, 2000).
Para que esse conceito se torne operacional, é necessário um amplo conhecimento acerca
das sociedades e ecossistemas, sobretudo da maneira como as pessoas se relacionam com o meio
ambiente. De acordo com Sachs (1986), esse novo modelo de desenvolvimento implica que, para
cada ecorregião, devem ser consideradas as soluções específicas para seus problemas particulares,
levando em conta os dados ecológicos da mesma forma que os culturais, as necessidades
imediatas, como também aquelas de longo prazo. Ainda segundo o autor, vários critérios de
sustentabilidade devem ser cumpridos para uma abordagem harmônica desses objetivos. São eles:
social, cultural, ecológico, ambiental, territorial, econômico, político-nacional e políticointernacional (Sachs, 2000). Para este trabalho, contudo, trataremos a sustentabilidade com base
em apenas quatro deles, quais sejam social, ambiental, econômico e político-institucional.
Uma vez definidos esses conceitos, necessários ao bom desenvolvimento e ao
entendimento da discussão apresentada ao longo deste trabalho, passaremos então à descrição da
metodologia adotada para o levantamento de dados e a análise dos resultados obtidos.
14
3. METODOLOGIA ADOTADA
Tendo como objetivo primeiro identificar a relação existente entre a implantação de
projetos de assentamento e o desflorestamento na Região Amazônica, um dos principais
elementos estruturantes deste estudo está relacionado ao padrão de desmatamento observado na
região. É ele que permite, em um primeiro momento, caracterizar e avaliar o modelo de ocupação
adotado, seja dos projetos de assentamento, seja das demais formas de ocupação espacial
presentes na região de Barreira Branca.
A dinâmica de uma região de fronteira como a de Araguaína responde a inúmeras
influências: processo histórico de ocupação, formas de aquisição de terras, estratégias comerciais,
especulação fundiária, etc. Assim sendo, seu desenvolvimento envolve diferentes aspectos que, se
não forem considerados de uma forma sistêmica, podem não retratar a realidade verificada em um
dado momento. Em outras palavras, para entender o contexto no qual os projetos de
assentamento se desenvolvem – fatores que limitam e/ou promovem o desenvolvimento de
determinada atividade –, faz-se necessário realizar um bom “diagnóstico” da realidade na qual se
pretende intervir.
Nesse contexto, e levando em consideração as premissas básicas do conceito de
desenvolvimento sustentável, que postula a articulação entre o local e o global, optou-se por
adotar a estratégia de estudo de caso para os levantamentos de dados primários. Isso porque o
estudo de caso fornece a base dessa articulação, possibilitando o questionamento de teorias e
hipóteses formuladas, a partir de uma realidade específica estudada (Gómez et al., 1999).
De acordo com o propósito deste trabalho, a metodologia de Diagnóstico de Sistemas
Agrários, definida pelo Incra em convênio com a FAO, pareceu bastante adequada, uma vez que
permite entender o contexto local, do ponto de vista ambiental, econômico, social e político, e
identificar as potencialidades e obstáculos presentes na implantação de projetos de assentamento
(Incra/FAO, 1999). Essas abordagens vão ao encontro dos princípios básicos do
desenvolvimento sustentável, segundo os quais, além da dimensão ambiental, é indispensável levar
em conta a eqüidade social, a eficiência econômica e as formas de organização dos diferentes
grupos de interesse. Tais condições obrigam a que o estudo também tenha como foco de análise e
15
avaliação a realidade rural e os sistemas de produção6 adotados pelos assentados em suas
dimensões ambientais, econômicas, sociais e institucionais.
Assim, além das taxas de desflorestamento, foram consideradas, no nível ambiental,
questões como potencialidade/vulnerabilidade dos ecossistemas. Quanto aos aspectos sociais,
foram analisados, por exemplo, dados referentes aos diferentes atores sociais envolvidos e suas
respectivas participações no processo de ocupação regional, cultura e visão sobre a floresta e o
ambiente, nível de instrução e condições de saúde. Economicamente, foram levantadas
informações acerca das atividades produtivas desenvolvidas pelos assentados, suas formas de
produção (familiar, empresarial, coletiva/cooperativa) e tecnologias utilizadas, além da
disponibilidade e acesso a créditos rurais e financiamentos. Finalmente, no nível institucional,
foram levadas em consideração as instituições e organizações sociais envolvidas e seus respectivos
papéis e funções, e ainda os resultados alcançados e as dificuldades encontradas no
desenvolvimento de práticas sustentáveis de uso do solo e de exploração dos recursos naturais.
3.1. O diagnóstico de sistemas agrários
O Diagnóstico de Sistemas Agrários (DSA) não é um fim em si mesmo, mas uma
ferramenta. Seu principal objetivo é contribuir, por meio de pesquisa e divulgação de informações,
para a elaboração de linhas estratégicas do desenvolvimento rural, isto é, para a definição de
políticas públicas, de programas de ação e projetos (Incra/FAO, 1999). Isso porque os
responsáveis pela adoção de ações estratégicas e implementação de políticas para o
desenvolvimento regional em geral não conhecem, ou conhecem pouco, a realidade sobre a qual
trabalham. Adotam, pois, uma política “de cima para baixo”, assim conhecida por não levar em
conta, em suas fases de identificação, formulação e preparação de programas e projetos, a
participação das comunidades envolvidas, ou mesmo dos responsáveis locais (FAO, 1991). Dessa
forma, o DSA deve ser rápido e operacional para que tenha aplicabilidade no desenvolvimento
rural. Mas deve também ter rigor científico, não apenas descrevendo a realidade, mas, sobretudo,
explicando-a. Deve também dar conta da complexidade e da diversidade que, em geral,
caracterizam a atividade agrícola e o meio rural.
Aqui entendido como o conjunto de culturas e criações dentro de uma unidade de produção (no caso, o lote do
assentado). De acordo com Guanziroli e colaboradores (2001), a agricultura familiar, em geral, desenvolve sistemas
complexos de produção, combinando várias culturas, criação de animais e transformações primárias tanto para o
consumo da família, como para o mercado. Assim, o sistema de produção reflete não apenas as potencialidades e
restrições socioambientais e agronômicas particulares de cada local, mas também a história local e das famílias que o
adotam; e a compreensão de sua lógica e dinâmica requer a reconstrução de seu itinerário histórico, das encruzilhadas,
restrições e oportunidades enfrentadas pelas famílias.
6
16
Um primeiro fator de complexidade advém dos ecossistemas, que representam
potencialidades ou impõem limites às atividades agrícolas. Para o estado do Tocantins, esse fator
adquire relevância ainda maior, por tratar-se de um “estado de transição ecológica” entre o
cerrado e a Floresta Amazônica. Secundariamente, tem-se o fator de diferenciação das sociedades,
que são compostas de categorias, de camadas e de classes sociais que mantêm relações entre si
(populações tradicionais, agricultores familiares, fazendeiros, assalariados, comerciantes, bancos,
poder público, organizações da sociedade civil, etc.). Por fim, a complexidade dos sistemas
implantados pelos pequenos agricultores é afetada ainda pela existência de fatores externos, por
exemplo, créditos, insumos e mercado.
Os princípios gerais metodológicos do DSA baseiam-se em passos progressivos, partindo
do geral para o particular. Ele começa pelos fenômenos e pelos níveis de análise mais gerais (país,
estado, região), terminando nos níveis mais específicos (município, projeto de assentamento,
unidade de produção) e nos fenômenos particulares (cultivos, criação de animais). E, em cada
etapa, os fenômenos devem ser interpretados e confrontados com as etapas anteriores, de modo
que, ao final, possam ser elaboradas hipóteses a ser verificadas na etapa seguinte. Assim, constróise progressivamente uma síntese cada vez mais aprofundada da realidade observada.
Partindo da premissa de que a realidade agrária se relaciona a diferentes fenômenos, faz-se
necessário entender as relações entre as partes e entre os fatos ecológicos, técnicos, sociais e
econômicos que explicam a realidade. Daí a utilização, nos diferentes níveis de análise, do enfoque
sistêmico7. Cabe ressaltar que os diferentes níveis de análise aqui citados dependem da
problemática do caso estudado, podendo ser utilizadas diferentes ferramentas – qualitativas ou
quantitativas. No caso específico deste estudo, optou-se pelas qualitativas, tendo em vista a
natureza essencialmente exploratória da pesquisa. Dessa forma, foram utilizadas algumas técnicas
de pesquisa, tais como a observação direta e entrevistas abertas e semi-estruturadas. Em caráter
secundário e complementar, foram feitas ainda algumas considerações de natureza quantitativa, a
partir de dados existentes sobre a região e, mais especificamente, sobre a área de interesse.
A teoria do enfoque sistêmico consiste em analisar e explicar um objeto complexo em termos de sistema, sendo
necessário, em primeiro lugar, delimitá-lo, traçar uma fronteira entre esse objeto e o resto do mundo; em particular,
distingui-lo dos outros objetos que, sendo da mesma natureza, são, ao mesmo tempo, diferentes o bastante para
serem considerados pertencentes a uma outra espécie do mesmo objeto (Mazoyer, 1992).
7
17
3.2. Levantamento de dados: pesquisa bibliográfica, observação direta e entrevistas
abertas
As informações aqui apresentadas são o resultado de pesquisas bibliográficas e de
trabalhos de campo desenvolvidos junto a diferentes instituições estaduais e em projetos de
assentamento localizados na região de Barreira Branca – TO. Além desse material, foram também
utilizadas informações contidas em censos estatísticos, tais como aquelas divulgadas pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, assim como dados secundários já existentes sobre a
região.
Quanto à pesquisa bibliográfica, vale mencionar que a obtenção de dados secundários, em
especial estatísticas oficiais e trabalhos anteriores sobre a região de estudo, em muito colaboraram
para a compreensão do processo histórico de ocupação do estado e sua relação com o quadro
atual observado nos levantamentos de campo.
Para os levantamentos de campo propriamente ditos, a metodologia de pesquisa adotada,
conforme mencionado, foi baseada na estratégia de “estudo de caso”, o qual foi constituído de
área de relevante interesse em termos de dinâmicas de ocupação e uso do espaço – em especial
por projetos de assentamento – e sua relação com o fenômeno do desflorestamento. As técnicas
utilizadas foram a observação direta e entrevistas. A observação pode ser entendida como a
expressão da capacidade do sujeito-pesquisador de ver as coisas, sendo importante não apenas
aquilo que se vê, mas o que é observado com método e preparação apropriados. Dessa forma, a
escolha da metodologia aplicada em uma pesquisa científica, assim como a obtenção de dados
secundários que possibilitem um conhecimento prévio da situação a ser investigada, tornam-se
elementos de suma importância para o seu sucesso. De acordo com Goode e Hatt (1977), a ciência
começa com a observação e, finalmente, tem que voltar a ela para encontrar sua convalidação final. A observação
nas ciências sociais possui as mesmas características e o mesmo significado que nas demais
ciências. Em qualquer setor da investigação científica, cabe à observação descobrir e evidenciar as
condições de produção dos fenômenos estudados (Arena, 1983).
As formas de observação podem ser muito variadas, conforme o objetivo da pesquisa a
ser realizada. Dessa forma, tem-se observação estruturada e não-estruturada, participante e nãoparticipante, individual e em grupo, etc. Para este caso concreto, a observação foi conduzida de
forma estruturada, tendo em vista os objetivos definidos da pesquisa; e individual e em grupo,
uma vez que uma das viagens de campo foi realizada juntamente com pesquisadores do CNRS.
Essa etapa, aliás, foi bastante interessante, pois possibilitou o estabelecimento de discussões entre
18
os pesquisadores acerca do tema estudado, as quais, em geral, envolviam diferentes visões de uma
dada situação.
Além da observação, foram realizadas algumas entrevistas junto a assentados e membros
da sociedade civil organizada que atuam sobre a questão agrária e ambiental. Também foram
considerados atores governamentais em diferentes níveis, quais sejam representantes de órgãos
federais, estaduais e municipais (Incra, Ibama, Naturatins, Itertins, Ruraltins, Basa, Banco do
Brasil, Secretarias Estaduais e Municipais, entre outros).
Para Arena (1983), a entrevista permite a aproximação de uma situação em que se medem
os fenômenos sociais, dentro de certos limites, e na qual o entrevistador pode variar a natureza da
atmosfera no momento em que elabora a pergunta. A entrevista, como técnica, requer um
contexto metodológico que permita fazer comparações entre indivíduos e classes sociais,
conhecer um pouco mais as atitudes e opiniões, cultura e informação. Para Goode e Hatt (1977),
a entrevista tem adquirido cada vez mais importância para a investigação contemporânea, por
meio da reafirmação qualitativa de metodologias usadas por antropólogos e que eram
fundamentalmente aplicadas para sondar e obter informações preliminares.
Da mesma forma que a observação, a entrevista pode ser realizada de diferentes maneiras:
formal ou informal, estruturada ou não-estruturada, aberta ou fechada. Independentemente da
modalidade escolhida e aplicada, as diferentes entrevistas têm em comum o fato de facilitar a
obtenção e troca de informações entre diferentes interlocutores, obtendo-se assim maior
quantidade de dados relacionados a um determinado problema ou situação. Ademais, além da
cronologia dos fatos relacionados ao tema de interesse, as entrevistas também permitem o
estabelecimento de relações de causa e efeito entre estes fatos.
Muito embora alguns roteiros de entrevistas tenham sido elaborados previamente
(entrevista semi-estruturada), as diferentes situações encontradas levaram-nos a combinar,
conforme o caso, outras formas de entrevista como, por exemplo, a entrevista aberta. Essa
flexibilidade no método permitiu, em determinados casos, um contato mais próximo com os
diferentes interlocutores. De fato, como apresentado no Guia Metodológico do Incra/FAO,
Questionários elaborados fora das áreas em estudo, sem um bom conhecimento da problemática local, podem
gerar atrasos e imprecisões no trabalho. Além disto, questionários fechados dificilmente permitem estabelecer
correlações entre os diferentes elementos levantados (o que é fundamental na análise sistêmica) ou incluir o
elemento novo que apareça durante a pesquisa. A entrevista aberta permite acompanhar o fio condutor do
pensamento dos próprios agricultores, é capaz de revelar informações qualitativas preciosas para o
diagnóstico (Incra/FAO, 1999, p.32).
19
Entretanto, na essência de todas as entrevistas, as questões levantadas sempre diziam
respeito à história da região e da criação dos projetos de assentamento, origem e história de vida
dos assentados, atividades desenvolvidas pelos diferentes atores envolvidos e presentes na região
de estudo e sua importância socioeconômica relativa, estabelecimento de relações entre os
diferentes atores, relações com o ambiente natural, visão da floresta e projetos futuros, etc.
3.3. Análise dos resultados
De acordo com Maroy (1995), a análise qualitativa dos resultados de uma pesquisa pode
ser realizada por meio de diferentes técnicas de análise de conteúdo (l’analyse de contenu), as quais
podem ter finalidades estritamente descritivas ou de verificação de hipóteses. O que se tentou
fazer neste estudo foi combinar esses dois elementos, descrevendo, por meio da análise de dados
secundários, a realidade observada para a região, a qual foi comparada com as informações
obtidas nas entrevistas, e testando a hipótese de relação de causa e efeito entre a criação de
projetos de assentamento e desflorestamento para o caso específico da área estudada.
Para tanto, algumas tarefas básicas no processo de análise de dados qualitativos, propostas
por Miles e Huberman (1984), foram levadas em consideração, quais sejam i) redução dos
dados, isto é, simplificação, resumo, seleção de informação a ser sistematizada; ii) separação em
unidades, ou a decomposição do todo em partes, por meio de critérios espaciais, temporais,
temáticos ou sociais; iii) síntese e agrupamento, que é a identificação e classificação dos dados
em categorias; e, finalmente, iv) obtenção dos resultados e conclusões, que é a reconstrução do
todo, estruturado e significativo, em que entram as decisões do pesquisador e o conhecimento
adquirido. É importante frisar que algumas dessas etapas podem ser realizadas simultaneamente,
como é o caso da simplificação dos dados, que, quando realizada durante a fase de coleta, permite
uma análise preliminar dos resultados e o redirecionamento do levantamento, se for o caso. Da
mesma forma, o processo de interpretação dos resultados também tem relação direta com a
apresentação dos resultados, conforme mostra a figura a seguir.
20
Coleta de
dados
Simplificação e
transformação
dos dados
Organização e
apresentação
dos resultados
Interpretação e
conclusão
Figura 3.1 – Componentes de um modelo interativo de análise de dados (adaptado de Maroy,
1995).
Assim, alguns dados aqui apresentados receberam tratamento estatístico descritivo, o que
permitiu apresentá-los de forma absoluta, relativa ou acumulada, nos diferentes gráficos e/ou
tabelas que integram o documento. Todavia, considerando a natureza essencialmente qualitativa
deste estudo, lançou-se mão também de outros métodos de análise, quais sejam análises
cartográfica e espacial. Estas, por sua vez, foram feitas com o uso de mapas e imagens de satélite e
de algumas técnicas de geoprocessamento, o que possibilitou a visualização da informação obtida,
por meio de sobreposições “temáticas” (por exemplo, dinâmica de uso da terra, criação de
projetos de assentamento e alterações na cobertura vegetal da área), facilitando o entendimento e
a interpretação da situação observada.
Além disso, com a abordagem geográfica ou, mais precisamente, cartográfica, pode-se
colocar em evidência mecanismos de abertura de novas regiões de fronteira, assim como seus
atores potenciais. O monitoramento do desflorestamento a partir de imagens de satélite obtidas
para diferentes períodos (1992, 1996, 1999) permite ainda traçar um paralelo entre a história, ou
evolução, da cobertura vegetal de uma região e sua história fundiária, em que a correlação entre
“apropriação de espaços” ou “distribuição de terras” e desflorestamento aparece em toda a sua
complexidade.
Em vista disso, passaremos a seguir a uma breve discussão sobre as políticas de ocupação
e reforma agrária adotadas para a Região Amazônica nas últimas décadas e seus impactos sobre o
uso do solo e dos recursos naturais presentes na região, bem como sobre seus efeitos em termos
de remoção da cobertura vegetal.
21
4. POLÍTICAS DE OCUPAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA NA AMAZÔNIA
4.1. A ocupação da Amazônia: colonização ou reforma agrária?
A ocupação da Região Amazônica deu-se em diversas fases, como resposta a mudanças no
processo de desenvolvimento econômico em diferentes níveis, que vão desde o local e regional,
até o nacional e o internacional.
À exceção do grande “ciclo da borracha”, no final do século XIX, até meados do século
passado, o desenvolvimento da região sempre esteve voltado para atividades de subsistência
praticadas pelas populações tradicionais e indígenas, relacionadas ao extrativismo, à agricultura e à
pesca (ciclos das “drogas do sertão”, da extração da castanha-do-brasil, de madeiras e de outros
produtos vegetais e animais, além do extrativismo mineral). Essas atividades foram desenvolvidas
durante séculos com base numa estreita relação que essas comunidades mantinham com o meio
ambiente, uma vez que dele dependiam para a sua sobrevivência.
Com a revalorização estratégica da borracha, em meados do século passado, a ocupação
da região entra numa nova fase, estimulada por um processo de especialização da produção, que
estava baseado na extração de produtos florestais. Milhares de migrantes nordestinos, fugidos da
pobreza e da seca, são novamente atraídos para a Amazônia em busca de melhores condições de
vida.
Nesse momento é criado um novo estatuto jurídico para a região, que passa a se constituir
em “Amazônia Legal8” (Lei no 1.806, de 1953). Soma-se a isso a promulgação de uma emenda
constitucional que destinava parte dos recursos da União, dos estados e dos municípios
amazônicos (3% da renda tributária) à execução de planos de valorização econômica e social da
região (Miranda Neto, 1991). De acordo com Pasquis e colaboradores (2001), é também nesse
período que o governo cria mecanismos institucionais, como a Superintendência do Plano de
Valorização da Amazônia (SPVEA) e o Banco de Crédito da Amazônia (antigo Banco da
Borracha), para viabilizar e subsidiar a ocupação de terras à frente da expansão pioneira.
Após essas transformações, desencadeia-se um processo de ocupação promovido pelo
Governo Militar, que era fundamentado na Doutrina da Segurança Nacional. Dessa forma, o
Estado passa a intervir na região, no sentido de maximizar sua produção econômica, lançando
A Amazônia Legal corresponde às áreas ao norte do paralelo 16o S, do estado do Mato Grosso, e do paralelo 13o S,
do estado de Goiás, além da porção do meridiano 44o W, do estado do Maranhão. Foi ampliada em 1977 quando
incorporou todo o estado de Mato Grosso, então criado, e corresponde hoje a aproximadamente cinco milhões de
km2, ou 57,4% da área total do Brasil (Becker, 1998).
8
22
diferentes programas de desenvolvimento regional. Dentre eles, destacam-se os chamados
programas de colonização e reforma agrária, que começaram a ser implantados na região ainda no
período militar, com a criação do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – Ibra e do Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário – Inda9, que alguns anos depois deram origem ao Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra (Decreto no 1.110, de 1970).
Ainda que sob o discurso de reforma agrária, essa fase de ocupação pode ser considerada
tão-somente como um processo de colonização10, visto que as terras da Amazônia foram, por
muito tempo, consideradas “vazios demográficos”, ou “terras sem dono”. Sobre o assunto, Ianni
(1979) escreve que
a Amazônia chega à década 60 com extensas áreas de terras tribais e devolutas. Segundo estimativa feita
por José F. Graziano da Silva e sua equipe, com base nos dados censitários colhidos pelo Incra e o IBGE,
pode-se dizer que em 1970 os estados da região Norte, com exceção do então território do Acre, todos
exibiam taxas de ocupação, tanto aparente quanto efetiva, inferiores a 25%. Daí se deveria concluir que,
descartadas as áreas urbanas – que são inexpressivas em relação à superfície territorial nestes estados –
teríamos cerca de três quartos de suas superfícies territoriais constituídas por terras devolutas (Ianni, 1979,
p. 14).
Além disso, deve-se considerar que, por trás do discurso favorável à implementação da
reforma agrária e, portanto, a uma mudança na estrutura fundiária, a fusão do Ibra/Inda em Incra
resultou na transferência de novas funções e atribuições burocráticas a este último, que passou a
atuar também no cadastro de imóveis rurais e atualizações periódicas, em cobrança de impostos
(entre eles, o Imposto Territorial Rural) e construção de infra-estruturas no campo (escolas e
hospitais). A transformação do Ibra em Incra representou também um deslocamento do vetor das
ações transformadoras do Estado – no tocante à estrutura agrária –, que passam do domínio da
reforma agrária ao da colonização. Tanto assim que, a partir da promulgação do Estatuto da
Terra, em 1964, e até 1974, o número de famílias beneficiárias das ações de reforma agrária era de
9.237, e o que correspondia à colonização era de 38.948. A persistir o ritmo da reforma agrária
dessa época, seriam necessários 34 mil anos para que 75% das famílias sem terra na década de
1960 fossem estabelecidas. E isso, sem considerar o crescimento natural das necessidades
(Bursztyn, 1984).
O Ibra era encarregado de executar apenas a Reforma Agrária, tratada no Título II do Estatuto da Terra, ficando a
cargo do Inda as atividades de colonização, extensão rural e outras, agrupadas no Título III da mesma lei (Silva,
1987).
10 A colonização, de acordo com o Estatuto da Terra, diz respeito a terras já incorporadas ao patrimônio público,
enquanto que a reforma agrária se dá, via de regra, em terras particulares que não estejam cumprindo a sua função
social.
9
23
4.1.1. O sentido da ação do Estado: colonização induzida
Muito embora alguns autores, entre eles Ianni (1979), considerem esse processo de
colonização “espontâneo”, a ação do Estado, sobretudo após a criação do Incra, leva-nos a pensar
que mesmo as ocupações das regiões de fronteira, teoricamente espontâneas, deveriam ser
classificadas como induzidas. Isso porque, de acordo com Silva (1973), considera-se espontânea a
colonização que se caracteriza pelo estabelecimento de grupos sociais em uma determinada região,
com seus próprios recursos e por livre iniciativa. Ora, se a ocupação da região sempre esteve
relacionada com ações adotadas pelo governo federal, seja com a construção de rodovias (Belém–
Brasília, Cuiabá–Porto Velho, Transamazônica), seja com a implantação de infra-estrutura (criação
de centros industriais, aproveitamento do potencial energético, etc.), ou com a destinação de
recursos orçamentários para o desenvolvimento de projetos agropecuários, mesmo não sendo
planejada ou envolvendo um mínimo de orientação quanto à escolha e/ou organização da área a
ser colonizada (o que, para o referido autor, seria a colonização dirigida), também não pode ser
considerada meramente “espontânea”.
Independentemente da classificação, o fato é que os primeiros anos da década de 1970
(1970-1974) ficaram marcados – equivocadamente – pela adoção, por parte do governo federal,
de uma política de colonização oficial em diversas áreas da Amazônia. Um dos mecanismos
utilizados para a implementação dessa política foi a criação da Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia – Sudam, cuja missão era coordenar e supervisionar programas e
planos regionais de desenvolvimento, decidindo sobre a redistribuição de incentivos fiscais; e da
Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa, que era responsável pela integração da
porção ocidental da Amazônia, mediante criação de um centro industrial e agropecuário.
Foram também elaborados, conforme mencionado, diferentes programas especiais de
desenvolvimento regional, que tinham como premissa básica a incorporação da Região
Amazônica, tida como detentora de grandes “espaços vazios”, ao território nacional. Aqui se
ressaltam o Programa de Integração Nacional – PIN (1970) e o Programa de Redistribuição de
Terras – Proterra (1971).
O primeiro deles era baseado em projetos de colonização em torno de agrovilas, agrópolis e
rurópolis11 ao longo da rodovia Transamazônica, com as chamadas “colônias oficiais”. Segundo a
versão da época, esse programa buscava integrar “os homens sem terra do Nordeste às terras sem homens
11 De acordo com documento governamental escrito em 1973, “para melhor atender às necessidades sociais, culturais
e econômicas do meio rural, idealizamos três tipos de ‘urbs’ rurais: a agrovila, agrópolis e a rurópolis, formando uma
hierarquia urbanística segundo a infra-estrutura social, cultural e econômica, e tendo cada qual sua função
específica...” (Incra, 1973. Urbanismo rural, citado em Ianni, 1979).
24
da Amazônia”, utilizando, para tanto, as áreas situadas ao longo das rodovias, as quais eram
subdivididas, via de regra, em lotes de cem hectares (400 x 2.500 m), podendo chegar a 500
hectares se se tratasse de exploração pecuária. Nessa época, o Incra pretendia assentar cem mil
colonos em cinco anos. Mas, na prática, foram assentadas apenas cinco mil famílias e a um custo
bastante superior àquele inicialmente previsto: US$ 40,000.00/família (Droulers, 1995).
Da mesma forma que o PIN, o Proterra, cujo objetivo era a capitalização do meio rural
(Becker, 1998), foi concebido com o intuito de dinamizar a economia regional. Todavia, por se
tratar de um programa de impacto muito mais político do que econômico ou social, não obteve
muito sucesso, haja vista a demora na sua implantação e o reduzido número de famílias
beneficiadas: somente quatro anos após a criação do programa, ou seja, em 1975, promoveu o
assentamento de 500 famílias. Assim, seus efeitos, no tocante ao seu papel transformador da
estrutura econômico-social regional, foram muito pouco relevantes.
Para Costa (2000), essas ações significaram, na verdade, uma estratégia do Governo
Militar para manipular os fluxos migratórios como forma de amenizar as tensões existentes. Nessa
época era comum colocar a colonização oficial em evidência como forma de preservar a pax
agrariae e regular os desequilíbrios sociais, transferindo o excedente demográfico das áreas de
tensão para as regiões de fronteira, principalmente por meio dos programas de ocupação da
Amazônia. Tratava-se, na verdade, de encontrar um paliativo à caracterização de uma situação em
que uma transformação brutal da estrutura agrária seria um imperativo (Bursztyn, 1984). Daí o porquê
de esse processo ter sido considerado como válvula de escape (Graziano da Silva, 1981), ações de
contra-reforma agrária (Ianni, 1979) ou ainda como minirreforma agrária (Bursztyn, 1984).
De fato, em termos de políticas agrárias, esse período inicial da atuação do Incra não deve
ser considerado como um dos mais importantes, pelo menos não no que diz respeito ao número
de projetos criados por esse instituto nos estados da Amazônia Legal e demais estados brasileiros
(Figura 4.1). E talvez tenha sido esse quadro que deu subsídios para que Martine Droulers
escrevesse ironicamente que a autarquia acabou sendo conhecida como o “Instituto que Nada
Conseguiu Realizar na Amazônia”. Por outro lado, ainda que em número reduzido, esses projetos
ocupavam uma superfície considerável (Figura 4.2).
25
Número de projetos criados pelo Incra
2000
1995-1999
1990-1994
1985-1989
1980-1984
1975-1979
Estados da Amazônia
Outros estados brasileiros
1970-1974
até 1970
-
500
1.000
1.500
2.000
2.500
3.000
3.500
Número de projetos
Figura 4.1 – Número de projetos de assentamento criados pelo Incra entre 1970 e 2000
(Fonte: Divisão de Assentamentos/Incra, 2001.)
Área dos projetos criados pelo Incra
2000
1995-1999
1990-1994
1985-1989
1980-1984
1975-1979
Estados da Amazônia
Outros estados brasileiros
1970-1974
até 1970
-
2.000
4.000
6.000
8.000
10.000
12.000
14.000
16.000
área (mil ha)
Figura 4.2 – Área ocupada pelos projetos de assentamento criados pelo Incra entre 1970 e 2000
(Fonte: Divisão de Assentamentos/Incra, 2001.)
A ação do Incra nesses anos não esteve voltada para toda a Região Amazônica,
restringindo-se aos estados de Rondônia e Pará, mais especificamente nas zonas de influência das
rodovias BR-364 e Transamazônica. De acordo com dados da Divisão de Assentamentos do
Incra, nos demais estados amazônicos, a ação da autarquia só teve importância a partir do final da
década de 1970 (Acre, Mato Grosso e Roraima) e meados dos anos 1980 (Amazonas, Amapá,
26
Maranhão e Tocantins)12. Para Ianni (1979), esses empreendimentos, pelo modo como foram
instalados, expressam aspectos importantes da política estatal de colonização da Amazônia;
mostram como o poder estatal procurou bloquear, orientar, integrar, disciplinar ou subordinar a
reforma agrária espontânea à colonização oficial.
4.1.2. Outras formas de ocupação: os verdadeiros beneficiários da colonização
Além da migração induzida por meio dos programas especiais de colonização, o Estado
também interveio na ocupação da Amazônia por meio do incentivo à implantação de projetos de
colonização privada. Essa forma de colonização, também prevista no Estatuto da Terra, foi
definida como toda atividade realizada por grupos e empresas particulares, que tenha por
finalidade promover o acesso à terra e o seu aproveitamento econômico por meio da divisão da
propriedade em parcelas adequadas à região considerada ou pelo sistema cooperativo.
Para viabilizar esses projetos, caberia ao Estado estimular, por intermédio de assistência
técnica e financeira, implantação de infra-estrutura e eletrificação rural, as iniciativas particulares
de colonização. Assim, por meio da concessão de créditos subsidiados e incentivos fiscais, o
governo federal promoveu a penetração de novos atores na região. De acordo com Ozório de
Almeida (1992), em meados da década de 1970, o suposto “fracasso” da colonização oficial
incentivou a implantação de um outro grupo de projetos, que eram desenvolvidos por empresas
privadas, impulsionadas pelo crédito fundiário subsidiado do Proterra. Vem daí a criação, durante
a década de 1970, de 80 projetos de colonização particular na Amazônia, sobretudo no Mato
Grosso, contra apenas 15 da colonização oficial.
Deve-se ressaltar que essas medidas reforçaram os interesses da empresa privada,
principalmente grande, nacional ou estrangeira, que passaram a predominar, de modo ostensivo,
na política de terras que o governo federal passou a executar. Em outras palavras, a política de
colonização oficial da Amazônia, sobretudo após 1974, ficou relegada a segundo plano, e a
colonização particular passou a receber maior apoio e incentivo do governo e atingiu seu auge
entre 1978 e 1980. Todavia, com o fim do Proterra e do subsídio nele embutido – 12% de juros
nominais ao ano –, o ritmo de implantação de projetos caiu consideravelmente.
Muito embora a finalidade dessa política fosse a dinamização das atividades de ocupação e
exploração econômica das terras amazônicas, a participação do Estado por meio da implantação
de projetos de colonização era apenas uma forma de catalisar os ganhos e valorizar as terras
12
À exceção dos estados do Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, a criação de projetos de
27
baratas da região. Isso porque os incentivos fiscais e os créditos subsidiados tornaram-se a mais
nova forma de se obter lucro com as terras, que passaram a ser vistas como uma reserva de valor
(Reydon e Muniz, s/d). Dessa forma, o capitalismo impulsionado pelo Regime Militar (19641984) promoveu a modernização do latifúndio, por meio de crédito rural fortemente subsidiado e
abundante. O dinheiro farto e barato, aliado ao estímulo à agricultura capitalizada – para gerar
grandes excedentes exportáveis –, propiciou a incorporação das pequenas propriedades rurais
pelas médias e grandes: exigência de propriedades maiores, cuja aquisição da terra era facilitada
pelo crédito.
Além da colonização particular, esse período também foi marcado pelo estabelecimento
de diferentes regiões-programa para grandes projetos agropecuários e mínero-metalúrgicos, altamente
intensivos em capital e que utilizavam tecnologias de última geração, financiadas, por sua vez, com
recursos advindos de empréstimos externos (Pasquis et al., 2001). Alguns exemplos dos
megaprojetos de desenvolvimento dessa época são Polamazônia (1974), Programa Grande Carajás
(1980), Polonoroeste (1981) e Calha Norte (1985).
Pode-se dizer, portanto, que o modelo de ocupação da Amazônia, ao longo das décadas
de 1970 e 1980, esteve voltado essencialmente para as grandes empresas e fazendas,
caracterizando uma forte atuação estatal, que visava à substituição de importações e ao aumento
de exportações, por meio do aumento da produção nacional (Kitamura, 1994). Os programas
desenvolvimentistas dessa época estavam bastante voltados para a capitalização e modernização da
agricultura, que passava por um processo de transformação tecnológica – também conhecido
como “revolução verde”. Esse processo, bastante intenso nas Regiões Sul e Sudeste do país, teve
reflexos diretos na Região Norte, onde as transformações ocorridas eram proporcionadas, em
grande medida, pelo crédito agrícola subsidiado, que dotou os proprietários de terra – e não os
pequenos agricultores – de condições de capitalização, possibilitando a industrialização do campo.
Durante esse período, toda a economia brasileira cresceu com vigor. Era a época do
Milagre Brasileiro. A economia amazônica passou a experimentar taxas de crescimento
relativamente altas – 13,85% ao ano. Dados apresentados por Pasquis et al. (2001) demonstram
que a Região Norte apresentou um aumento significativo do PIB entre os anos 1970 e 1990
(Tabela 4.1), além de um crescimento regional superior à média nacional.
assentamento pelo Incra nos demais estados brasileiros aconteceu apenas na década de 1980.
28
Tabela 4.1 – Participação percentual das grandes regiões brasileiras no PIB nacional – 1970-1990
Região
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Brasil
1970
2,15
11,70
65,56
16,71
3,88
100,00
1975
2,09
11,30
64,21
18,11
4,27
100,00
1980
3,02
11,96
62,35
16,97
5,51
100,00
1985
3,05
12,54
62,41
16,93
5,07
100,00
1990
3,49
13,21
60,91
16,75
5,64
100,00
Fonte: Kasznar, 1991, extraído de Pasquis et al., 2001.
Esse período também foi marcado por uma forte industrialização e urbanização, sem ter
havido, no entanto, a democratização da posse da terra. O projeto de reforma agrária foi
esquecido e a herança da concentração da terra e da renda permaneceu intocada. Em outras
palavras, as ações governamentais favoreceram a expansão do setor agropecuário, que tinha como
principal característica a ocupação das áreas destinadas a projetos de colonização e assentamento,
empurrando os colonos para dentro da floresta, de forma a ocupar os espaços existentes entre os
centros de desenvolvimento.
Ainda segundo Pasquis et al. (2001), nessa mesma época, empresas de variados ramos
também receberam incentivos fiscais para o desenvolvimento de grandes projetos agropecuários
feitos por corporações multinacionais, tais como rio Cristalino, da Volkswagen; Fazenda Santa
Rosa, da Mercedes Bens; Tamakavi, do Grupo SBT; Fazenda Sharp. De acordo com dados
apresentados por Costa (2000), até meados da década de 1980, a Sudam havia aprovado
incentivos fiscais no montante de quase quatro milhões de dólares para 959 empresas, das quais,
584 agropecuárias e 44, agroindustriais.
O resultado dessa política de incentivos, cujos projetos beneficiados, em sua grande
maioria, estavam baseados em atividade pecuária, pode ser verificado em estudo realizado por
Reydon e Herbers (1989). Relacionando física e temporalmente a entrada de grandes projetos
agropecuários subsidiados e os movimentos do preço da terra na Amazônia, os autores
constataram que as regiões que apresentaram as maiores elevações dos preços foram aquelas onde
houve a entrada de grandes grupos econômicos, ocorrendo, concomitantemente, elevados índices
de destruição da floresta e os maiores conflitos pela terra.
O apoio governamental à modernização das grandes fazendas e empreendimentos
agroindustriais acabou por manter e ampliar a má distribuição de terras, fazendo com que os
produtores com menor capacidade financeira fossem excluídos dos incentivos, chegando a ponto
de perderem suas terras. Não é de estranhar, pois, o surgimento de novos conflitos no meio rural,
29
que tiveram como conseqüência a repressão política e a criação dos primeiros projetos de
assentamento em estados amazônicos que ainda não haviam “experimentado” a ação do Incra em
termos de colonização e reforma agrária (Amazonas, Amapá, Maranhão e Tocantins). Data dessa
época a criação de grupos especiais como o Grupo Executivo do Baixo Amazonas – Gebam – e o
Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins – Getat.
4.1.3. As novas atribuições do Incra e as dificuldades em se fazer reforma agrária
Além da forte atuação como colonizador e “promotor” da ocupação na Amazônia, o
Incra continuou desempenhando outras atribuições em termos de política fundiária. Essas
atribuições referem-se à mediação de conflitos surgidos pela posse de terras entre diferentes
atores (extrativistas, colonos, fazendeiros, empreendedores, etc.), à alienação irregular procedida
pelos estados na faixa de fronteira, às transcrições indevidas de títulos de terras e à deficiência dos
cartórios em controlar esse processo, às grilagens e invasões criminosas e ao fluxo migratório
desordenado de excedentes rurais das regiões mais populosas do país.
Dessa forma, tem-se início um processo de regularização fundiária por meio da adoção de
uma política que tinha como principais instrumentos a discriminação de terras, a desapropriação
de imóveis por interesse social e a ratificação de títulos, entre outros. Em cinco anos (1979 a
1984) o Incra atuou no sentido de acelerar as atividades de discriminação, distribuição de terras e
titulação, com ênfase nos projetos de colonização e assentamento e suas inúmeras variações13.
Como resultado desses esforços, tem-se que, nesse período, mais de 66 milhões de hectares foram
arrecadados e matriculados em nome da União, cerca de 830 mil documentos de titulação
receberam outorga, 187 projetos de colonização (oficial e particular) foram criados e 110 mil
famílias foram assentadas em todo país (MDA/Incra, 2000).
Com a redemocratização do país, no governo Sarney, a bandeira da reforma agrária volta a
ser levantada, sensibilizando diversos segmentos da sociedade. Inicia-se então a fase de elaboração
do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que beneficiava posseiros, parceiros,
arrendatários, assalariados rurais e minifundiários (Morissawa, 2001). O objetivo desse plano,
encabeçado por José Gomes da Silva, grande conhecedor dos problemas agrário e social do Brasil,
era dar aplicação rápida ao Estatuto da Terra e viabilizar a reforma agrária. Para tanto, contava
Projeto de Integração e Colonização – PIC, Projeto de Colonização – PC, Projeto de Assentamento Dirigido –
PAD, Projeto de Assentamento Agroextrativista – PAE, Projeto de Assentamento Rápido – PAR, Projeto de
Assentamento – PA, entre outros.
13
30
com a participação de seus futuros – e supostos – beneficiários, tanto na fase de elaboração, como
de execução e avaliação14.
Não obstante os esforços de seus mentores, a versão do PNRA aprovada pelo Decreto no
91.766, de 1985, nada tinha a ver com a “proposta” inicial, tendo sido totalmente desfigurada e
tornada impraticável15. Essas “deformações” introduzidas pelos latifundiários – que criam nesse
mesmo ano a União Democrática Ruralista (UDR) – tratavam inicialmente de problemas
referentes à forma, mas foram se concentrando progressivamente em questões de conteúdo,
principalmente no tocante à definição das áreas prioritárias onde deveriam ocorrer as
desapropriações. Com essas ações, caracterizadas pela coexistência de minirreformas agrárias
localizadas e uma contra-reforma agrária generalizada, o Estado procura ampliar suas bases de
apoio, assegurando a legitimidade dos grupos conservadores.
É nesse contexto que se estabelecem os conceitos de latifúndio improdutivo e função social da
terra, conceitos amplos e complexos que serviram como forma de burocratizar e impedir os
avanços da reforma agrária. Ou, como ressalta Bursztyn (1984), de conteúdo “vago e
condicionado a uma interpretação ideológica, fato que explica sua utilização apenas em casos
muito raros de desapropriação”. É também nesse momento que ocorre a promulgação da nova
Constituição da República (1988), que reforça o conceito de propriedade produtiva, estabelece
critérios para que a terra cumpra a sua função social (art. 186) e subordina a reforma agrária à
política agrícola e ao PNRA (art. 188).
Ora, se a questão era a distribuição de terras improdutivas e que não estivessem
cumprindo a sua função social, nada melhor do que direcioná-la para a Região Amazônica, onde
os latifúndios representavam 80% da superfície cadastrada no Incra (Droulers, 1995). Daí o
porquê de se dizer que o processo de colonização e reforma agrária tem sido muito mais intenso
na Amazônia do que nas outras regiões do país.
Com efeito, dos cerca de dez milhões de hectares desapropriados entre 1985 e 1989, 43%
estavam localizados na Região Norte (Figura 4.3). E, desse total, cerca de 4,2 milhões de hectares
foram transformados em projetos de assentamento, sendo quase 80% nos estados amazônicos.
Outro resultado dessa medida foi o assentamento de apenas 89.945 famílias (das quais, 56 mil na
Essa participação era assegurada por meio de discussões realizadas em congressos da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura – Contag, as quais contavam com a presença de entidades “a favor” da reforma agrária,
tais como o recém-criado Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, a Associação Brasileira de Reforma
Agrária – Abra, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária – CNRA, além de diversas entidades sindicais e
movimentos populares não ligados diretamente ao campo (Silva, 1987).
15 Sobre as diferentes versões apresentadas desde a concepção inicial e a aprovação do PNRA, ver Silva (1987).
14
31
Amazônia) no período de 1985 a 1989, enquanto a meta inicial estipulada era de 1,4 milhão
(MDA/Incra, 2000).
Áreas desapropriadas entre 1985 e 1989
24%
43%
5%
2%
26%
Norte
Nordeste
Sul
Sudeste
Centro-Oeste
Figura 4.3 – Áreas desapropriadas, por grande região – 1985-1989 (MDA/Incra, 2000)
Além das questões relacionadas diretamente à elaboração e implementação do PNRA,
vários outros fatores contribuíram para o fracasso das ações voltadas para a distribuição de terras.
O primeiro foi a mudança no aparato institucional federal voltado para a política fundiária e a
reforma agrária. Alterações na política e estrutura do Incra16 fizeram com que a meta de
distribuição de terras já não fosse mais considerada uma prioridade para o órgão, que foi
reestruturado para cumprir objetivos de zoneamento, cadastro e tributação, bem como a
promoção de articulações com os órgãos estaduais de terras. Outrossim, a crise financeira e
política que atingiu o Brasil nessa época também fez com que as ações governamentais fossem
direcionadas para a redução das despesas públicas e o incentivo às exportações e ao
desenvolvimento de novas tecnologias (Becker, 1998). Essas transformações agravaram ainda
mais os conflitos existentes, provocando o surgimento dos movimentos sociais.
4.2. A “colonização” em um novo contexto
A estratégia governamental de crescimento econômico não levava em conta os impactos
sociais nem tampouco os ambientais advindos das políticas de integração e desenvolvimento
regional, adotadas até o final do período militar. O modelo desenvolvimentista predominante na
história recente de ocupação da Amazônia – seja por questões de segurança nacional, seja por
interesses políticos e econômicos diversos –, muito embora tenha trazido alguns ganhos em
No final da década de 1980, em apenas 48 meses o Incra teve sua estrutura administrativa alterada seis vezes e teve
doze presidentes efetivos e interinos (MDA/Incra, 2000).
16
32
termos de economia regional, acabou por colocar a região em um cenário de devastação
ambiental: entre 1976 e 1991, 14,07% do território amazônico já havia sido impactado,
correspondendo ao total da área da Amazônia convertida em pastagens, áreas agrícolas,
exploração madeireira e mineral, garimpo, extrativismo e áreas urbanas (Ferreira et al., s/d).
Esse cenário, por sua vez, despertou a atenção não só da sociedade brasileira em geral,
como também de diversos segmentos da comunidade internacional, que deram início a um
processo de mobilização interna e externa, conjugando elementos sociais e ambientais a serem
considerados na elaboração das políticas públicas regionais. Essa mobilização, ocorrida no final da
década de 1980 e início dos anos 1990, levou à elaboração de propostas de mudança no padrão de
desenvolvimento, que deveria ser ressalvado ambientalmente. Assim, em vez de incentivar o
crescimento econômico puro e simples, as políticas públicas deveriam ser pautadas pela idéia de
desenvolvimento sustentável, cuja premissa se baseia na redução dos desperdícios, no aumento da
eficácia no uso dos recursos naturais e em princípios de eqüidade social e oportunidades para as
gerações atuais e futuras (Pasquis et al., 2001).
Como reação a esse processo, a sociedade civil brasileira se organiza e se amplia, com a
presença não apenas do movimento ambiental, mas também do sindicalismo, dos seringueiros e
indígenas, associações e pequenos produtores rurais. Para esse novo “modo” de produzir, a
natureza é valorizada não só como capital futuro, mas também como meio de vida para
populações tradicionais e como base de recursos para produtores e para a sociedade brasileira.
Tem-se, de um lado, a emergência de um vetor que parece permitir a preservação do espaço
geográfico; do outro, maior incidência das demandas econômicas externas por matérias-primas
básicas (sobretudo madeira) e produtos primários (grãos), que voltam a exercer forte pressão
sobre o mesmo espaço (Ferreira et al., s/d).
Dessa forma, no final dos anos 1980, foi decretado o Programa de Defesa do Complexo
de Ecossistemas da Amazônia (Programa Nossa Natureza), que previa o zoneamento ecológicoeconômico da região. Além disso, esse mesmo governo baixou um decreto no qual, pela primeira
vez, ficava suspensa a aprovação, por parte da Sudam, de projetos agropecuários que implicassem
a conversão de áreas florestais em pastagens (Decreto no 99.943, de 1988). Sobre esse tema, faz-se
mister a menção de que desde 1976 vigora a Resolução no 2.525, do próprio Conselho
Deliberativo (Condel) da Sudam, que veda a concessão de incentivos a projetos pecuários em
áreas de mata. Mas, lamentavelmente, esse dispositivo nunca foi cumprido, nem mesmo pelo
próprio Condel, que, por inúmeras vezes, transgrediu-o ao apreciar novos projetos (Pandolfo,
1994). A participação da Sudam, por meio de seus incentivos fiscais, na remoção da cobertura
vegetal da Amazônia foi avaliada em 1988, demonstrando que 4,71% do desmatamento da região
33
naquela época se encontrava em áreas de projetos beneficiados pelo Fundo de Investimentos na
Amazônia – Finam.
As políticas governamentais para a região, muito embora ainda seguissem uma linha de
integração e desenvolvimento, assumiram uma nova tendência, adotando ações mais voltadas à
idéia de Estado mínimo e estabelecendo parcerias entre cada grupo de população. Essas ações
caracterizaram uma fase que foi regida pelo princípio da hegemonia do mercado sobre o Estado
na regulação de sistemas econômicos e sociais – o neoliberalismo. Muito embora essas mudanças
não tenham alterado o sentido geral de dominação e uso do aparato do Estado pelos grupos
econômicos, elas apresentam uma certa diferenciação em relação aos grupos prioritariamente
beneficiários das políticas públicas, bem como uma alteração considerável na forma de ação do
Estado (Machado, 2000). Um exemplo disso foi a instituição dos Fundos Constitucionais de
Financiamento, criados pela Constituição Federal (art.159, I, c), para a aplicação em programas de
financiamento de setores produtivos das regiões consideradas como as menos favorecidas do país,
ou seja, Norte (0,6%), Nordeste (1,8%) e Centro-Oeste (0,6%). Regulamentada pela Lei no 7.817,
de 1989, essa política apresentava um diferencial em relação às demais políticas adotadas até
então, haja vista a prioridade dada aos micro e pequenos produtores, à produção de alimentos
básicos e ao consumo interno e às atividades com o uso intensivo de matéria-prima e mão-deobra locais.
4.2.1. Revisão dos sistemas de colonização
Nesse contexto de transformações, o governo federal passou a considerar a possibilidade
de realizar mudanças na política de colonização e ocupação regional, cuja meta passava a ser não
mais a expansão espacial e a incorporação de novas fronteiras, mas a consolidação e a manutenção
dos projetos de colonização e assentamento existentes até então. Uma medida importante dessa
época foi a execução, na segunda metade dos anos 1980, de vários projetos previstos no II Plano
Nacional de Desenvolvimento (PND), que, muito embora ainda conservassem o instrumental
fiscal e institucional do período anterior, propunham-se a “reavaliar os programas de colonização
e ocupação da Amazônia”, que estavam sendo alvo de inúmeras críticas por parte de organizações
nacionais e internacionais. Todavia, o contexto econômico de crise pelo qual o país passava, a
reduzida dotação orçamentária do Incra e o bloqueio substancial de recursos interferiram
sobremaneira na execução das mudanças necessárias, impedindo e/ou retardando a programação
da reforma agrária em níveis satisfatórios (MDA/Incra, 2000).
34
Mesmo cercado de limitações de ordem financeira, as ações do Incra, nos primeiros anos
da década de 1990, tiveram algum êxito em virtude da determinação política de implementação de
um programa de reforma agrária mais justo e dentro de um contexto legal. Destacam-se para esse
período medidas que representaram avanços de caráter qualitativo e quantitativo e ações que
promoveram melhoria dos serviços e da produtividade da instituição, tais como treinamento
sistemático de servidores; implantação de um sistema de informática que buscava modernizar os
serviços; e desenvolvimento de trabalhos em parceria com organismos técnicos nacionais e
internacionais. É também nesse contexto que se dá a assinatura de convênio entre Incra e FAO
para o estabelecimento dos Principais Indicadores Socioeconômicos dos Assentamentos de
Reforma Agrária e para o levantamento do Índice de Evasão nos Projetos de Assentamento
existentes, bem como de alternativas para a manutenção das famílias assentadas no campo. A
esses estudos, seguiram-se vários outros relacionados às políticas agrárias e ao desenvolvimento da
agricultura familiar no Brasil. Projetos de Cooperação Técnica (PCT) com outras instituições
também tiveram lugar nessa década, quais sejam PCT/Incra-IICA (Instituto Interamericano de
Cooperação para a Agricultura) e PCT/Incra-PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento).
Por ouro lado, o programa de novos assentamentos ficou paralisado, cabendo registrar
que, no período de governo de Fernando Collor (1989-1991), não houve nenhuma desapropriação
de terra por interesse social para fins de reforma agrária. Isso porque a ausência de
regulamentação dos dispositivos constitucionais pertinentes à reforma agrária impediu a União de
desapropriar imóveis rurais, conforme entendimento do Poder Judiciário. Em 1993, foi
regulamentado o procedimento da desapropriação por interesse social (Lei no 8.629, de 1993),
que, juntamente com a aprovação do Programa Emergencial para a Reforma Agrária, possibilitou
o assentamento de 23 mil famílias em 152 projetos distribuídos no Brasil, numa área de 229 mil
hectares (BRASIL, 1997).
Outra medida importante nesse período foi a criação de unidades avançadas que, em
termos práticos, significaram a interiorização do aparato administrativo do Incra, aproximando-o
dos seus beneficiários finais (os trabalhadores rurais) e encurtando os canais de comunicação
(MDA/Incra, 2000).
Mais recentemente, a questão da distribuição de terras passou a ser uma das prioridades do
governo de Fernando Henrique Cardoso, que em seu primeiro mandato (1995-1998) assumiu o
compromisso de assentar 280 mil famílias em quatro anos. A despeito das condições para o
desenvolvimento dos projetos de assentamento e a manutenção dessas famílias no campo –
questões que serão discutidas mais adiante –, essa meta foi atingida (Tabela 4.2), marcando o
35
início de um novo momento da reforma agrária, não só no que diz respeito à obtenção de terras,
como também no que tange ao assentamento de trabalhadores rurais.
Tabela 4.2 – Assentamento de famílias no governo de Fernando Henrique Cardoso, 1995-1998
Ano
1995
1996
1997
1998
TOTAL
Previsão de famílias
assentadas (metas)
40.000
60.000
80.000
100.000
280.000
No de famílias
assentadas
42.912
62.044
81.944
101.094
287.994
Área total
(hectares)
1.242334
2.259.918
4.771.987
5.964.983
14.239.222
Fonte: BRASIL, 1997; MDA/Incra, 2000.
Ocorre, no entanto, que o critério adotado para a avaliação dessas políticas e o
cumprimento de metas do governo Fernando Henrique – número de famílias assentadas – não
leva em conta fatores de ordem econômico-social e tampouco a questão ambiental. E o resultado
disso é que, passados alguns anos, as famílias assentadas, por não ter condições de se manter no
campo, vendem ou simplesmente abandonam seus lotes e voltam a engrossar o cadastro dos semterra no Brasil. Enquanto isso, novas famílias vão sendo assentadas nesses mesmos lotes,
formando um círculo vicioso, que engorda as estatísticas oficiais, mas não se traduz,
necessariamente, em mudanças na estrutura agrária vigente.
Talvez tenha sido esse o motivo que levou o Incra a estabelecer convênio com a FAO
para o desenvolvimento de estudos específicos sobre as causas e os percentuais de evasão dos
assentamentos de reforma agrária existentes no Brasil e na Amazônia, em meados da década de
1990. Alguns resultados sobre o índice de evasão dos assentamentos nas grandes regiões
brasileiras e em alguns estados da Amazônia Legal são apresentados a seguir, apenas para
exemplificar essa situação, onde o Tocantins figura com uma média de 35%.
Tabela 4.3 – Índice de evasão (%) em assentamentos, por grandes regiões
e estados da Amazônia Legal
Região
Média Aritmética
Norte
29,9
Nordeste
17,9
Centro-Oeste
27,8
Sudeste
19,6
Sul
Brasil
27,5
26,2
Estado
Acre
Amazonas
Maranhão
Mato Grosso
Pará
Rondônia
Tocantins
Amazônia legal
Fonte: INCRA/FAO, 2001
Média Aritmética
7,7
38,8
12,7
38,3
60,6
7,6
35,0
28,7
36
Destaca-se também, nesse período recente, a criação da Agenda Ambiental do Incra, com
a finalidade de inserir a dimensão ambiental nas ações de reforma agrária, promovendo, entre
outras ações, a formulação de um Termo de Cooperação Técnica Incra/Ibama (Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), bem como a criação e
implantação dos Projetos Casulo, Roda Viva, Cédula da Terra e Lumiar, que tinham por escopo a
implementação do Programa Qualidade e Produtividade nos Assentamentos de Reforma Agrária.
Essas ações visavam a apoiar as famílias assentadas, melhorando as condições de sustentabilidade
nas parcelas e a emancipação dos projetos em menor lapso de tempo. E, ainda que não tenham
trazido os resultados esperados, podem ser consideradas um grande avanço.
4.2.2. Novos padrões de desenvolvimento econômico e a era da globalização
A década de 1990 foi marcada por novas tendências econômicas, não só no Brasil, como
no mundo, favorecendo fluxos e refluxos demográficos. O motivo principal é que o
desenvolvimento econômico contemporâneo baseado na indústria se dá por meio da
concentração das atividades econômicas no espaço, e não mais no desenvolvimento das atividades
relacionadas às frentes pioneiras, típicas do extrativismo e da agricultura tradicional. O progresso
técnico, com produtos sintéticos, novos materiais e biotecnologia, tende a dispensar produtos
tropicais, com suas cores, sabores, texturas e outras propriedades exóticas que sustentam o
crescimento demográfico na Amazônia. A substituição da borracha pelo látex produzido nos
seringais de cultivo e posteriormente no laboratório é um bom exemplo no caso amazônico
(Sawyer, 1992).
Um outro fenômeno que merece ressalva é o da globalização, que abre espaço para a
entrada de produtos importados no mercado nacional. Um exemplo disso é a chegada de um óleo
vegetal produzido pela Malásia – o óleo de palmiste, que é extraído da amêndoa do fruto do
dendê (Elaeis guineensis) –, que entrou no mercado nacional a um preço bem menor do que o óleo
extraído artesanalmente do coco de babaçu (Orbignya spp.), que constituía a base da subsistência
de várias famílias tradicionais e assentadas no sul do Maranhão e no extremo norte do estado do
Tocantins.
O processo de globalização também intensifica a produção destinada ao mercado
internacional, provocando vários questionamentos acerca da maneira “não-sustentável” com que
essas atividades têm sido realizadas. Por outro lado, tem sido responsável por um significativo
aumento das exportações da região nos últimos anos. Tal crescimento pode ser justificado com a
37
estabilidade financeira conseguida nesse período, que estimulou a retomada de investimentos de
grande porte na região, voltados essencialmente para o mercado externo (Pasquis et al., 2001).
Assim sendo, o modelo de desenvolvimento previsto pelo governo federal para o
conjunto da região continua adotando a visão de crescimento de fora para dentro, de crescimento a
partir de demandas nacionais de inserção competitiva mundial, mesmo que, em termos de
macroobjetivos, esteja sendo proposto um modelo que integre o desenvolvimento social e a
conservação ambiental.
Desde 1996, com a implantação dos projetos do Programa Brasil em Ação e, mais
recentemente, do Avança Brasil, o propósito de atingir as metas programadas vem sendo cumprido
com o máximo rigor. Centrados no investimento em obras de infra-estrutura (transportes, energia,
comunicações – Figura 4.4), os quatro Eixos Amazônicos (Arco Norte, Madeira–Amazonas,
Araguaia–Tocantins e Oeste) passam a ser os espaços mais dinâmicos da região. Em vista disso,
pode-se dizer que as iniciativas políticas adotadas nesse período configuram um novo projeto de
desenvolvimento regional mais estratégico, articulado e economicamente racional, ainda que
baseado em antigos projetos de infra-estrutura. Refletem também a retomada da capacidade de
investimento público e privado, sobretudo para a Região Amazônica, mas que se diferencia do
fluxo ocorrido nas décadas anteriores na medida em que facilitam a entrada do capital
internacional por meio das privatizações (Machado, 2000).
Informação e
Conhecimento
R$ 2,4 bilhões
Desenvolvimento
Social
R$ 112,8 bilhões
Meio Ambiente
R$ 15,7 bilhões
Infra-estrutura
Econômica
R$ 186,1bilhões
Figura 4.4 – Avança Brasil: investimentos totais, públicos e privados, para 2000-2007
Diferentemente da estratégia de integração nacional dos anos 1960, 1970 e início de 1980,
tal política adota uma estratégia de globalização, em que o Estado participa como elemento
diretor – e não mais como promotor – do desenvolvimento regional (Machado, 2000). Essa
estratégia é decorrente do novo modelo de desenvolvimento projetado pelo governo Fernando
38
Henrique Cardoso e implica redução da intervenção direta do Estado na economia, abertura de
mercado, privatizações, etc. Esse modelo gera uma nova política de ocupação, uso e exploração
dos recursos naturais da Amazônia, promovida por iniciativas como: a viabilização das hidrovias
Madeira–Amazonas, Araguaia–Tocantins, Teles Pires–Tapajós–Amazonas; o asfaltamento da BR–
163, que liga Cuiabá a Santarém, e da rodovia que liga Manaus a Boa Vista, até a fronteira com a
Venezuela; a Lei Kandir, que beneficia a agricultura mecanizada de soja, ao transferir para o
exportador o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS; a intensificação do
processo de reforma agrária na Amazônia, aumentando a pressão sobre áreas florestais; nova
política mineral, com a abertura de novas concessões de áreas de exploração mineral; nova política
florestal, baseada na atração de investimentos de capital transnacional – principalmente asiático –;
e concessões florestais à iniciativa privada, por intermédio da criação de florestas nacionais de
exploração.
As rodovias de maior importância, previstas para ser construídas na região dentro do
Programa Avança Brasil, também dão continuidade aos projetos do Brasil em Ação. Atualmente, há
previsões de que sejam liberados pelo governo federal cerca de sete milhões de reais para a
pavimentação da BR-163. Há uma forte pressão por parte de políticos paraenses para que a obra
seja iniciada, o que, para eles, representaria um grande avanço para a ocupação da área entre os
rios Tapajós e Xingu, respaldando ainda mais as discussões em andamento para a constituição do
estado de Tapajós.
As conseqüências desse conjunto de propostas podem ser avaliadas com base em
diferentes fatores, entre eles, a consolidação do Arco do Desflorestamento, que vai desde o sul do
Pará, passando pelo norte de Mato Grosso, Rondônia e Acre, até chegar ao sudoeste do
Amazonas; consolidação do cinturão da soja, que acompanha o arco do desflorestamento, com
perspectivas de ocupar não apenas as áreas de cerrado, mas também as áreas de floresta de
transição e áreas de Floresta Amazônica já desmatadas; aumento da taxa de desmatamento;
incremento das queimadas e efeito estufa decorrente desse aumento, elevando a participação do
Brasil na emissão global de CO2 na atmosfera; poluição do ar em cidades como Manaus, Porto Velho,
Rio Branco, Cuiabá, Sinop e Paragominas; aumento da taxa de antropização da floresta por meio da
exploração florestal e de projetos de reforma agrária; comprometimento do potencial hídrico e da
biodiversidade amazônica; e elevado grau de privatização do bem comum, por exemplo, a privatização
das Florestas Nacionais.
No que se refere à expansão da soja, cumpre ressaltar que o potencial de crescimento do
mercado internacional desse produto levou o governo federal a anunciar recentemente metas de
exportação de cem milhões de toneladas de grãos em 2002, pois o complexo soja é o principal
39
item da balança comercial brasileira, com exportação de US$ 5,7 bilhões em 1997. A exportação
de soja em grãos (sem incluir farelo e óleo) atingiu 9,5 milhões de toneladas em 1999, com uma
previsão de crescimento da ordem de 40% até o ano 2005. Em termos de produção, as estatísticas
trazem dados ainda mais elevados e nelas figuram vários estados amazônicos, inclusive o
Tocantins (Tabela 4.4).
Tabela 4.4 – Produção de soja, unidades federativas da Amazônia Legal e Brasil, 1993-2000 (ton.)
Estado
Maranhão
Mato
Grosso
Pará
Rondônia
Tocantins
Amazônia
Brasil
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
87.370
4.118.726
140.637
5.319.793
162.375
5.491.426
194.868
4.759.114
252.000
5.721.300
302.400
7.150.000
390.500
7.134.400
439.300
8.456.000
10.852
26.506
11.052
57.585
10.800
36.191
11.250
14.030
1.180
8.900
19.700
14.100
80.200
19.500
93.800
4.900
35.400
110.400
4.145.232
5.377.378
5.527.617
4.773.144
6.005.077
7.230.200
7.228.200
9.048.000
22.590.978 24.931.832 25.651.272 23.210.877 26.160.000 31.364.400
30.752.800
32.345.000
Fonte: CONAB (2000).
4.2.3. O desenvolvimento social em debate
Após um intenso processo de migração e colonização ocorrido nas décadas anteriores, a
Amazônia passou a ser caracterizada como uma região onde predominam populações de baixa
renda, que vivem em condições precárias. Apesar do aumento do número de empregos e das
oportunidades de ocupação no campo, a distribuição da renda continua apresentando grandes
deformações (Pandolfo, 1994).
Os sistemas produtivos até agora adotados na região não conseguiram criar uma
“socioeconomia” estável, por não terem considerado as características do ambiente amazônico.
Esse fato tem levado a região a um processo de degradação ambiental, que se traduz, entre outros,
nos elevados índices de desflorestamento observados nos últimos anos.
Resultados de estudo realizado recentemente pelo Banco Mundial atestam que “de todas
as espécies amazônicas, a mais ameaçada é o homem”. Esse é, certamente, o ponto de vista de
vários atores presentes na região, sobretudo aqueles relacionados ao movimento social e a
organizações de classe. Evidentemente esse resultado não poderia ser diferente, pois é justamente
esse o segmento de representação das comunidades e populações amazônicas. Dentre os
problemas regionais relacionados à questão social e de qualidade de vida humana, destacam-se
aqueles ligados ao modelo de ocupação, que provocou uma forte migração para a região e,
40
conseqüentemente, o surgimento e o crescimento desordenado de centros urbanos, que tiveram
como resultado a falta de saneamento básico, a violência, a prostituição e a falta de segurança
(assaltos e mortes). Também foram relacionados, no referido estudo, problemas referentes à
pobreza e ao desemprego, à falta de infra-estrutura social (hospitais, escolas, etc.) e ao aumento do
índice de doenças (Pasquis et al., 2002).
De fato, de acordo com pesquisa realizada pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD, que leva em conta critérios outros que não apenas o econômico para
medir o progresso humano (possibilidade de vida longa e saudável e acesso ao conhecimento), os
estados amazônicos apresentam índices de desenvolvimento humano entre médio e baixo (Tabela
4.5). Aqui merecerm destaque Maranhão e Piauí, que são considerados os estados brasileiros que
apresentam as piores condições de desenvolvimento humano.
Tabela 4.5 – Índice de desenvolvimento humano (IDH)
Estados
IDH
AC
0,754
AP
0,786
AM
0,775
MA
0,547
MT
0,767
PA
0,703
RO
0,580
RR
0,818
TO
0,587
Amazônia
0,702
Brasil
0,809
Fonte: PNUD (1991).
A forte urbanização da Amazônia, resultado da expansão geográfica do modelo de
desenvolvimento econômico adotado nas últimas décadas, fez com que grande parte das
migrações inter e intra-regionais fossem direcionadas a cidades e núcleos urbanos. Em alguns
lugares da região, o crescimento urbano chegou a apresentar um aumento da ordem de 7.000%
entre o período de 1981 e 1990 (Becker et al., 2000). Nos últimos anos, o que se verifica na região
é um fluxo migratório endógeno, concentrado principalmente na Amazônia centro-meridional e
no extremo norte da região. Hoje podem ser encontrados municípios com taxas de crescimento
intensas, enquanto outros apresentam um crescimento negativo (Pasquis et al., 2001).
Em suma, a era dos grandes fluxos migratórios provenientes de outras regiões terminou.
Como resultado desse processo, tem-se um aumento da população urbana, que passa a viver em
condições de vida bastante precárias, muitas vezes abaixo do nível de pobreza e completamente à
margem do processo produtivo. A essa classe Buarque (1999) dá o nome de excluída. Isso porque,
para o autor, o conceito de pobreza não deve mais ser entendido com base em indicadores
econômicos como a renda familiar, mas sim pela exclusão de bens e serviços sociais essenciais.
Ser pobre não é só principalmente ganhar pouco; o conceito de pobreza precisa ser desmonetarizado e
realizado de forma real, menos econômico e mais ético, menos contínuo e mais descontínuo; é não ter garantia
41
de alimentação, acesso à educação, atendimento à saúde, condições de moradia com higiene, disponibilidade
de transporte urbano eficiente e proteção de justiça e segurança (Buarque, 1999, p.39).
Nesse sentido, a luta pela erradicação da pobreza passaria mais pela oferta pública e
universal desses serviços do que pelas falsas promessas de renda que permitiriam adquiri-los no
mercado. E é mais ou menos dentro dessa premissa que os movimentos sociais passaram a atuar
nos últimos anos.
Evidentemente, no que tange à questão rural, a luta pela terra (que, de certa forma,
também é contra a pobreza) ainda é uma realidade em todo o país. Tanto assim que existem no
Brasil 4,5 milhões de famílias sem ou com pouca terra para produzir (Tabela 4.6).
Tabela 4.6 – Beneficiários da reforma agrária de acordo com as grandes regiões - no de famílias.
Regiões
Demandantes (1) Demandantes (2) Demandantes (3)
Norte
77.316
294.352
348.351
Nordeste
802.846
2.004.585
2.349.305
Centro-Oeste
20.838
119.711
216.958
Sudeste
89.514
537.652
828.966
Sul
153.118
641.816
772.231
Brasil
1.143.632
3.598.116
4.515.811
Fonte: IBGE - Censo Agropecuário, 1995-1996.
(1) ocupantes + parceiros + arrendatários;
(2) ocupantes + parceiros + arrendatários + minifundiários (< 10hectares);
(3) ocupantes + parceiros + arrendatários + minifundiários (< 10hectares) + assalariados.
Todavia, os movimentos sociais apresentam uma nova configuração. Além da titularidade,
lutam também pela melhoria das condições de vida das famílias já assentadas e sua manutenção
no campo, assim como pela preservação dos recursos naturais, principalmente florestais, já
bastante escassos na região. Menezes (2000) resume bem essa mudança quando escreve que, “para
este segmento campesino, a luta pela posse da terra se configura, acima de tudo, na luta pela vida.
A terra, que para muitos é apenas objeto de especulação imobiliária, é para esse segmento um ser
vivo que respira e exige cuidados”.
4.2.4. Crise ambiental e tomada de consciência
Em termos ambientais, o início da década de 1990 é marcado por um clima tenso, em que
denúncias e desconfiança a respeito de ações governamentais, investimentos de empresários
nacionais e internacionais e bancos financiadores internacionais criam condições para ampliar a
mobilização que as Nações Unidas iniciavam em torno da Conferência do Rio (1992), que iria
42
tratar de alternativas a problemas globais e da integração das questões ambientais e de
desenvolvimento. Para a perspectiva internacional, a Região Amazônica representa, hoje, um
espaço que, de um lado, serve como reserva de recursos genéticos, especialmente para novas
modalidades de transformação industrial; e, de outro, atua na “amenização” dos problemas
ambientais globais, entre eles, as mudanças climáticas, o seqüestro de carbono e a regulação das
emissões de outros gases que permanecem na atmosfera e dão origem ao efeito estufa.
Esse debate, no entanto, tem sido extremamente polêmico, por causa das teorias
contraditórias a respeito da contribuição (positiva, negativa ou nula) das florestas tropicais no
equilíbrio global. Entretanto, o conjunto de convenções e acordos internacionais sobre temas
ambientais que tratam, por exemplo, da camada de ozônio, das mudanças climáticas, da
biodiversidade, entre outros, mostram o grau de importância da região.
Outro aspecto importante relaciona-se a alterações introduzidas nos programas
internacionais: mesmo aqueles destinados à construção de infra-estrutura econômica passam a ter
obrigatoriedade de apresentar uma avaliação ambiental e de destinar uma parcela de seus recursos
a um componente de conservação ou controle, fiscalização e monitoramento ambiental. Foi
somente após o cumprimento de tais condições que o governo conseguiu a aprovação do Plano
Agropecuário e Florestal de Rondônia – Planafloro e do Programa de Desenvolvimento
Agroambiental do Estado do Mato Grosso – Prodeagro.
Embora não tenha sido de grande envergadura em termos de política de conservação, esse
quadro trouxe resultados para a Amazônia: somente durante a década de 1990 foram
institucionalizadas 34 Unidades de Conservação Federais, perfazendo uma superfície de mais de
dez milhões de hectares, entre áreas de proteção integral e de uso sustentável. Essas unidades,
somadas às já existentes e às que foram criadas nos últimos dois anos, totalizam, hoje, uma
superfície de cerca de 35 milhões de hectares, representando 7,0% da superfície regional
(SIUC/Ibama, 2002). Somando-se os dados referentes às terras indígenas já reconhecidas pelo
poder público – que até o final da referida década somavam 97 milhões de hectares, ou 19,5% da
região (DEID/Funai, 2001) –, a superfície em áreas protegidas ou de uso restrito na Amazônia estaria
em torno de 26,5% de sua superfície total. Não obstante, ainda representa um espaço conservado
de pouca significância frente à diversidade (ambiental, social, ecológica, cultural, etc.) existente na
região e às dinâmicas espaciais resultantes de áreas incorporadas pela política de colonização, que,
para o mesmo período, era responsável por aproximadamente 34 milhões de hectares só em
Projetos de Assentamento do Incra (Divisão de Assentamentos/Incra, 2001). Mais insignificante
ainda se considerarmos que o desflorestamento já atinge 58,7 milhões de hectares, ou quase 15%
das florestas outrora existentes na região (Prodes/Inpe, 2002).
43
É justamente nesse contexto que a sociedade – nacional e internacional – se vê diante da
necessidade de repensar o desenvolvimento regional com base em novos conceitos, como o de
sustentabilidade da agricultura ou agricultura sustentável, passando a considerar que o desenvolvimento
da agricultura não poderá ser alcançado se continuar a ser encarado de uma forma estanque, sem
o comprometimento dos diferentes níveis de governo e o envolvimento dos segmentos da
sociedade beneficiários desse processo. Seguindo essa mesma linha, David e colaboradores (1998)
consideram que um programa de reforma agrária deve buscar transformar as condições de vida de
seus beneficiários e estar inserido em uma estratégia produtiva que assegure a sustentabilidade
dessa agricultura. Esta, por sua vez, deve ser pensada não só como meio de sobrevivência das
famílias, mas principalmente como fonte geradora de excedentes que assegurem novos
investimentos e permitam a ampliação da produção e da produtividade da agricultura brasileira.
Indo um pouco mais além no conceito de agricultura sustentável, as organizações nãogovernamentais (ONGs), reunidas em Fórum Internacional durante a Rio-92, definiram-na como
“aquela ecologicamente correta, economicamente viável, socialmente justa, culturalmente
adaptada, que se desenvolve como um processo, numa condição democrática e participativa”.
Dentro dessa nova concepção, as ações implantadas pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) e Incra vêm sendo orientadas no sentido de transformar o trabalhador rural
assentado em agricultor economicamente viável, por meio do desenvolvimento de atividades
menos impactantes em termos ambientais. Dessa forma, a idéia de desenvolvimento rural sustentado
passou a ter como diretriz básica a integração das políticas de reforma agrária e agrícola17, visando
a dar sustentabilidade à agricultura familiar (MDA/Incra, 2000).
Ademais, tentativas de negociação entre as diferentes pastas de governo também começam
a ser estabelecidas. Um exemplo é a iniciativa da SCA/MMA, que tem como premissa que a
criação de projetos de assentamento está intimamente ligada à dinâmica do desmatamento, em
discutir a questão com o MDA (então Ministério Extraordinário de Política fundiária – MEPF)
para a elaboração de políticas voltadas à manutenção da floresta em áreas de assentamento. Como
resultado desse processo de negociação, foi publicada, em fins de 1999, uma portaria ministerial que
proibia desapropriação, aquisição ou quaisquer outras formas de obtenção de terras rurais em
áreas com cobertura florestal primária, incidentes no ecossistema amazônico..., excetuando-se os
casos de áreas rurais destinadas à criação de Projetos de Assentamento Extrativistas (PAE) ou que
17 A política de reforma agrária, ou política fundiária, difere da política agrícola na medida em que aquela é parte
especial desta; prevê o disciplinamento da posse da terra e de seu uso adequado. No entanto, as condições necessárias
para que isso aconteça devem estar estabelecidas nas políticas agrícolas. A terra tem uma função social, que é
justamente a produção agrícola para alimentar a população humana e a sociedade urbanizada.
44
atendam às exigências previstas em normas internas do Incra18 (Portaria MEPF no 88, de 7 de
outubro de 1999 – art. 1o, parágrafo único).
Outro avanço a ser considerado nesse contexto de conscientização ambiental é a
concordância, por parte do Ministério do Planejamento e Orçamento – MPO, após inúmeras
discussões com o MMA e segmentos da sociedade civil organizada, em realizar a Avaliação
Ambiental Estratégica dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento previstos no
Programa Avança Brasil. O argumento utilizado em favor dessa avaliação baseia-se no fato de que
o estudo elaborado inicialmente não levou em conta os zoneamentos já realizados nem a variável
ambiental. Na verdade, os eixos, da forma como foram previstos, representam uma nova divisão
do país, mas pouca importância está sendo dada à região diretamente afetada – a Amazônia. Em
outras palavras, a base de análise dessa política é essencialmente econômica e está fundamentada
no escoamento da produção agrícola – sobretudo grãos – de outras regiões do país para o
mercado externo (Mello, 2002). Nesse sentido, a Região Amazônica deverá arcar com os custos
socioambientais de sua implantação, sem, contudo, usufruir os seus benefícios econômicos.
Todavia, o que se percebe e que será discutido ao longo dos capítulos subseqüentes é que,
mesmo com esses esforços, as políticas públicas – e aqui se podem incluir as políticas ambientais,
agrárias, agrícolas, de transportes, de implantação de infra-estrutura, etc. – continuam sendo
elaboradas de forma independente e desarticulada, não levando em conta o contexto em que se
inserem, qual seja a Amazônia Legal e toda a sua diversidade.
Sobre as normas internas previstas, faz-se mister a menção de que, um mês depois da publicação da Portaria MEPF
no 88/99, o Incra baixou uma portaria criando uma nova modalidade de Projeto de Desenvolvimento Sustentável –
PDS, que deverá ser criado em atendimento a interesses sociais e ecológicos e deverá contar com a participação do
MMA e do Conselho Nacional de Seringueiros, tendo, portanto, as bases de sustentabilidade e de qualidade de vida
como seus pontos determinantes (Portaria/Incra no 477, de 4 de novembro de 1999 – arts. 1o e 3o ).
18
45
5. O DESFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA19
5.1. O quadro geral do desflorestamento na Amazônia
A retirada indiscriminada e sem reposição dos recursos florestais amazônicos constitui-se
hoje em tema de debates nacionais e internacionais, em razão dos efeitos provocados sobre a
conservação da biodiversidade, a manutenção do potencial produtivo dos solos, a qualidade dos
recursos hídricos da região e as mudanças climáticas globais. Outros impactos desse fenômeno
incluem também o modo de vida de populações locais, que tiram da floresta seu sustento, com
base em usos e costumes que vêm sendo mantidos ao longo de gerações.
A compreensão do funcionamento das florestas tropicais brasileiras, da dinâmica de seus
ecossistemas e dos impactos das atividades econômicas sobre o estoque de recursos naturais ainda
é um grande desafio para a comunidade científica. Essa tarefa requer o estabelecimento de novos
parâmetros e o entendimento acerca das razões fundamentais que conduzem à conservação ou à
destruição da floresta (Becker et al., 2000).
Um levantamento preliminar da bibliografia referente ao desmatamento na Amazônia nas
últimas décadas indicou que boa parte dos trabalhos realizados aponta as causas do desmatamento
da região com base em análises gerais, realizadas a partir de dados secundários. Além disso, alguns
trabalhos, ainda que fundamentados em informações primárias, não apresentam uma descrição
clara e precisa das variações temporais, espaciais e metodológicas utilizadas20. Dessa forma, as
opiniões controversas a respeito dos principais fatores que estimulam a destruição da floresta
constituem-se em lugar-comum nas discussões sobre o tema. Para muitos autores, a política de
reforma agrária implantada na região pelo Incra, que se traduz essencialmente na criação de
projetos de assentamento, desempenha um papel importante no processo de desflorestamento na
Região Amazônica. Outros, no entanto, apesar de concordar com o fato de que os pequenos
colonos têm sua parcela de responsabilidade nesse processo, afirmam que grande parte do
desflorestamento decorre da implantação da pecuária extensiva em grandes latifúndios, dos
projetos agropecuários e da exploração madeireira insustentável.
19 As informações apresentadas neste capítulo foram assunto de trabalhos específicos realizados sobre o tema e de
outros documentos de trabalho elaborados no marco do Projeto de Cooperação Técnica entre CiradNAPIAm/SCA/MMA, alguns deles já veiculados no CD-ROM Informações de apoio ao Planejamento Estratégico para a
Amazônia.
20 Sobre este tema, ver Machado e Pasquis, 2002.
46
Ocorre, no entanto, que a grande territorialidade21 da Região Amazônica faz com que seus
atores tenham comportamentos variados com relação à floresta. Ao contrário do que podem
pensar alguns leigos no assunto, a Amazônia brasileira não é homogênea, apresentando-se
extremamente complexa, não só em termos naturais, como também socioculturais. Em outras
palavras, a especificidade dos diferentes estados que compõem a Amazônia brasileira faz com os
fenômenos relacionados ao desflorestamento não se verifiquem de maneira uniforme. Taxas
preocupantes de desflorestamento são apresentadas por alguns estados, enquanto outros mantêm
taxas relativamente baixas (conforme mostra a tabela a seguir), políticas estaduais de incentivo à
exploração madeireira ou ao desenvolvimento da agropecuária (em especial em Mato Grosso,
Pará e Rondônia) e políticas de desenvolvimento voltadas para a sustentabilidade e o manejo dos
recursos naturais (tais como as adotadas pelos governos do Acre e Amapá) são apenas alguns
exemplos.
Tabela 5.1 – Taxa média anual e extensão total do desflorestamento bruto na Amazônia Legal
(km2/ano)
Estados
77/88*
88/89
89/90
90/91
91/92
92/94**
94/95
95/96
96/97
97/98
98/99
99/00
Extensão
total
Acre
620
540
550
380
400
482
1.208
433
358
536
441
547
15.767
Amapá
60
130
250
410
36
-
9
-
18
30
-
-
1.963
Amazonas
1.510
1.180
520
980
799
370
2.114
1.023
589
670
720
612
30.322
Maranhão
2.450
1.420
1.100
670
1.135
372
1.745
1.061
409
1.012
1.230
1.065
104.256
Mato Grosso
5.140
5.960
4.020
2.840
4.674
6.220
10.391
6.543
5.271
6.466
6.963
6.369
143.930
Pará
6.990
5.750
4.890
3.780
3.787
4.284
7.845
6.135
4.139
5.829
5.111
6.671
200.118
Rondônia
2.340
1.430
1.670
1.110
2.265
2.595
4.730
2.432
1.986
2.041
2.358
2.465
58.143
Roraima
290
630
150
420
281
240
220
214
184
223
220
253
6.386
Tocantins
1.650
730
580
440
409
333
797
320
273
576
216
244
26.842
Amazônia
21.130
17.860
13.810
11.130
13.786
14.896
29.059
18.161
13.227
17.383
17.259
18.226
587.727
* média da década; ** média do biênio (Fonte: Relatório Prodes/Inpe, 2002.)
5.2. O desflorestamento: uma avaliação difícil
A uma taxa média anual de 17.000 km2, ou três vezes a área do Distrito Federal, o
desflorestamento na Amazônia apresenta conseqüências em diferentes escalas espaço-temporais,
não sendo possível relacioná-lo a um fato gerador específico. Dessa feita, o tema vem sendo
bastante pesquisado e debatido, não só entre cientistas de diversas áreas de conhecimento e
Entendida aqui em seu sentido mais amplo, o qual inclui não apenas a extensão territorial em si, como também
elementos de formação de um novo território, envolvendo a história de ocupação e suas dimensões produtivas,
sociais e culturais.
21
47
ambientalistas do mundo inteiro, como também entre os diferentes níveis de governo.
Evidentemente essas discussões têm aspectos positivos, na medida em que permitem uma grande
evolução em termos de estudos e acúmulo de informações importantes sobre solos, fauna, flora,
clima, recursos minerais, etc., e maior conhecimento acerca do funcionamento do meio
amazônico. Mas também geram algumas divergências, sobretudo no que tange à questão da
avaliação do desflorestamento, intrinsecamente relacionado às diferentes atividades desenvolvidas
na região ao longo dos últimos 50 anos. Com efeito, a própria definição de conceitos básicos
relacionados ao processo de ocupação do espaço ainda é tema de discussões e controvérsias.
5.2.1. Definição ambígua em área de referência incerta
Conforme discutido em capítulo anterior (v. Capítulo 2), além da questão conceitual,
existem ainda outros problemas relacionados à avaliação do desflorestamento da Região
Amazônica. Um deles, e talvez o principal, é que os diferentes estudos conduzidos sobre o tema
nem sempre tratam da mesma região22. Os próprios limites da área de referência não são
consensuais: vão da região biogeográfica à bacia hidrográfica, até a “Amazônia Legal”, em seu
conceito administrativo, sem contar as confusões com o estado brasileiro do Amazonas. As
conseqüências dessa confusão são as diferenças encontradas na avaliação da extensão da
cobertura florestal, e mesmo da própria região, as quais podem ser superiores a 20%, e, em alguns
casos, chegar a quase 50% (Tabela 5.2).
Huguet, em 1990, distinguiu três “Amazônias”, apenas no território brasileiro: i) a Amazônia Legal (536 milhões de
hectares), que inclui os nove estados do norte do país, mas também envolve, ao sul, outras bacias de captação além da
bacia do Amazonas; ii) a Amazônia geográfica, isto é, apenas a bacia de captação do Amazonas, ou seja, 350 milhões de
hectares; iii) a Amazônia florestal, localizada mais ao norte do que a anterior, de 280 milhões de hectares, levando em
conta apenas a floresta tropical perene, e mais de 385 milhões de hectares se acrescentarmos as florestas semi-úmidas
ou decíduas de transição.
22
48
Tabela 5.2 – Estratificação da Amazônia brasileira
Fonte
Floresta (km2) Cerrado (km2)
Definição legal (1)
Cepik, 1999
FAO, 1981 (1)
Fatheuer, 1994
Fearnside et al., 1990
Kiracofe, 1989 (2)
Mahar, 1989
Malingreau e Tucker, 1988
McCloskey e Spalding, 1989 (2)
Meanwhile/IBGE, 1988 (1)
Nepstad et al., 1999
Prodes/Inpe, 2000
Skole e Tucker, 1993
4.090.000
3.996.000 (3)
3.562.800
~3.500.000
4.195.660
3.500.000
> 2.500.000 (4)
3.500.000 (4)
3.587.150
3.793.664
4.092.831
~4.000.000
4.092.831
850.000
Água (km2)
Superfície total (km2)
90.000
~5.000.000
4.900.000
5.029.000
4.906.784
3.500.000
> 5.000.000
5.000.000
793.279
20.972
4.964.920
847.400
92.694
~5.000.000
5.032.925
4.176.078
798.517
77.516 (outros)
5.052.111
4.145.087(5)
884.404
80.314 (outros)
5.109.805
Média
3.782.140
-
-
4.874.628,75
Desvio padrão
447.844,60
-
-
418.130,98
CGA/SCA/MMA, 2000
Menezes, 2001
1.149.943
(1) Fonte Skole e Tucker, 1993; (2) Fonte Glantz et al., 1997; (3) Cobertura florestal original, uma vez que o autor escreve em
1996 que essa cobertura já é de apenas 3.483.600 km2; (4) Floresta de terra firme; (5) Bioma Amazônia.
Essas diferenças devem-se a razões conceituais e metodológicas e são agravadas pela
complexidade espaço-temporal e pelas dimensões da região (Pasquis, 1999). A extensão de cerca
de quatro milhões de quilômetros quadrados do maciço florestal é a resultante de uma “oscilação”
que depende dos ciclos climáticos na escala geológica (em expansão desde a última glaciação) e do
curto tempo da atividade antrópica que se contrapõe a essa dinâmica natural.
Tampouco há consenso sobre o tipo de vegetação a ser considerado. Numa região
ocupada e utilizada há vários milênios23, será que as florestas secundárias e as antigas capoeiras
devem ser consideradas da mesma forma que a floresta “virgem”?
A noção de floresta perene também está no âmago dos debates entre os especialistas. Para
alguns, ela admite uma mistura de caducifolhadas (Elhaï, 1968) e recebe o epíteto “tropical
úmida” entre os trópicos. Para outros, no entanto, ela deveria ser chamada de “densa equatorial”.
Determinados autores, entre eles Elhaï (1968) e Ozenda (1982), admitem que essa denominação é
sinônimo de “floresta pluviosa” ou “pluvial”, “ombrófila”, “rain forest”, “regenwald” ou “pluviisylvae”,
É cada vez mais consensual que a Floresta Amazônica é um maciço onde há muito já vem ocorrendo intervenção
humana. As descobertas arqueológicas e a concentração de certas espécies vegetais sem explicações naturais evidentes
despertam dúvidas, sempre crescentes, sobre o estado “primário” da floresta.
23
49
evocando, todas, a importância das chuvas que nela desabam. Um certo consenso esboça-se, às
vezes, entre anglofônicos e francofônicos acerca de “tropical evergreen forest” e “forêt tropicale
sempervirente”. Para Trochain (1980), não há dúvida: a Região Amazônica é certamente o lugar da
floresta densa úmida “intertropical” primária. Ela apresenta, no entanto, vários tipos de vegetação,
seja secundária ou edáfica; “densa heliófila” (floresta inundável e pantanosa), “densa ripícola”,
“mangrove” e sobre areias continentais ou escudos aflorantes.
Embora o projeto TREES (Eva et al., 1998) ainda ressalte diferenças consideráveis entre as
suas estimativas e as da FAO (+28%) e da União Internacional para a Conservação da Natureza –
UICN (-8%), recentes pesquisas baseadas em um importante trabalho de sensoriamento remoto
permitem imaginar que um consenso pode estabelecer-se em torno de 3.600.000 km2 de floresta
densa. De fato, o Banco Mundial (Albaladejo e Tulet, 1996) trabalha com o número de 3.400.000
km2, e Centeno (1993) estima a cobertura florestal amazônica em 3.575.000 km2 (floresta densa).
Quanto à classificação dos tipos vegetacionais existentes na Amazônia, também existem
algumas divergências. As avaliações e as cartografias correspondentes baseiam-se em conceitos
diferentes, que vão dos ecossistemas às regiões naturais, passando por biomas, ecorregiões, tipos
de vegetação, formações vegetais, “zonas de vida”, paisagens, etc. A exemplo disso temos que em
1997 o IBGE publicou, em seu Diagnóstico Ambiental da Amazônia, um mapa de vegetação com
três classes diferenciadas: áreas abertas, floresta de transição e floresta (Figura 5.1); já a
classificação do Fundo Mundial para a Natureza – WWF24 é feita em termos de biomas, havendo
distinção entre Amazônia, Cerrado e suas “Zonas de Transição”.
Figura 5.1 – Tipos de vegetação – áreas abertas, floresta de transição, floresta (Fonte: IBGE, 1997.)
24
World Wildlife Fund
50
Ainda com relação à identificação dos tipos de vegetação, é exatamente quando se
aumenta o nível de detalhes que as coisas se complicam. Embora globalmente a Região
Amazônica seja coberta de floresta densa, cercada nas suas bordas por savanas e dominada pela
floresta subtropical úmida de altitude, nos Andes, em uma escala maior, toda a sua riqueza
explode em uma paleta multicolorida de tipos diferentes de vegetação. Em vista disso, de acordo
com classificação do WWF, também adotada pelo Ibama para a definição de áreas prioritárias
para a criação de unidades de conservação, o bioma Amazônia constitui-se de 23 diferentes
ecorregiões25 (Figura 5.2).
Figura 5.2 – Ecorregiões do bioma amazônico (Fonte: Ferreira et al., 2001.)
Enfim, se o conhecimento do meio amazônico fosse tão profuso quanto os conceitos e
métodos utilizados para estudar a sua cobertura vegetal, o desenvolvimento regional talvez não
representasse mais um desafio tão grande. Mas, infelizmente, essa profusão resulta mais da falta
de consenso entre especialistas e da competição entre as diferentes escolas do que de um
verdadeiro acúmulo de conhecimentos sobre a complexidade da região. A falta de equivalência
entre os métodos e a falta de correspondência entre as unidades delimitadas estão aí para
comprová-lo. Soma-se a isso o fato de que poucas entre elas são suficientemente operacionais
para ser utilizadas pelas equipes que analisam e monitoram o desflorestamento, servindo-se de
unidades muito mais sintéticas: floresta/não-floresta, ou floresta primária/degradada/culturas, etc.
Essa situação leva-nos de volta, portanto, a perguntas básicas: “o que é o desflorestamento?” e
“o que está desflorestado?”
Essas ecorregiões foram classificadas com base no conceito de Dinnerstein et al. (1995), que consideram uma
ecorregião como um conjunto de comunidades naturais, geograficamente distintas, que compartilham a maioria de
25
51
5.2.2 Um imbróglio metodológico
Ainda sobre o tema do desflorestamento de extensas regiões como a Amazônica, deve-se
ressaltar o fato de que sua avaliação pode ser realizada por meio da utilização de diferentes
metodologias, a maioria delas baseada no uso de imagens de satélite e técnicas de sensoriamento
remoto. De acordo com a forma de obtenção das informações, as metodologias atualmente
disponíveis para a identificação de áreas desmatadas podem ser classificadas em descritivas,
estimativas e levantamentos mais abrangentes (tipo “censo”). Essas metodologias podem ainda
sofrer variações de acordo com a hipótese levantada para o monitoramento do desmatamento de
uma dada região. Como exemplo dessas variações, pode-se citar o conceito de hot spot26 (utilizado
pelo Projeto TREES), a estimativa baseada em definições de áreas críticas (realizadas pelo
Prodes/Inpe27) e a projeção do desmatamento ocorrido em períodos anteriores ou em áreas
específicas (Banco Mundial).
Se, por um lado, essa diversidade permite a realização de levantamentos em diferentes
escalas espaço-temporais, por outro, é responsável pelo surgimento de informações bastante
heterogêneas sobre a real extensão e a evolução do desflorestamento na Amazônia (ver Machado
e Pasquis, 2001). Para exemplificar essa situação, alguns dados divulgados na literatura foram
resumidos na figura a seguir.
suas espécies, dinâmicas e processos ecológicos, e condições ambientais similares, que são fatores críticos para a
manutenção de sua viabilidade a longo prazo.
26 De acordo com Proarco (1998), hot spot ou foco de calor é uma expressão utilizada para interpretar o registro de
calor (temperaturas acima de 47o C) captado na superfície do solo pelo sensor AVHRR (Advanced Very High Resolution
Radiometer), que viaja a bordo dos satélites da série NOAA (US National Oceanographic and Space Administration).
27 Projeto de Estimativa do Desflorestamento Bruto da Amazônia, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O
conceito de áreas críticas refere-se àquelas áreas onde o desflorestamento bruto da região tende a se concentrar e está
baseado na experiência acumulada pelo projeto ao longo dos anos. As áreas críticas envolvem uma fração
relativamente pequena da região (cerca de 20%), possibilitando a geração de estimativas provisórias da taxa de
desflorestamento bruto da Amazônia. Entretanto, é preciso remarcar que essa metodologia é adotada como forma de
antecipar as avaliações que vêm sendo realizadas anualmente pelo Inpe, não devendo ser tomada como forma de
obtenção de dados definitivos, sobretudo em uma região como a Amazônia, onde as transformações ambientais se
processam de maneira bastante rápida.
52
Extensão do desflorestamento bruto na Amazônia legal até 1988
800
Mantovani &
Setzer, 1997
áre a (mil km2)
600
Mahar, 1989
(World Bank)
Tardin et al.,
1990
400
Tardin & Cunha,
1989
200
Fearnside et al.,
1990
INPE/"Nossa
Natureza"
Skole & Tucker,
1993
0
e stimativas
Figura 5.3 – Estimativas de diversos autores para a extensão do desflorestamento bruto na
Amazônia Legal até 1988 (mil km2)
É importante ressaltar que grande parte dessas diferenças pode advir do fato de que a
maioria dos levantamentos realizados com o uso de sensoriamento remoto não é acompanhada de
trabalhos de campo que permitam a verificação e comprovação do que é mostrado nas imagens
de satélite. Além disso, a grande extensão da região faz com que esses levantamentos sejam
realizados na escala de 1:250.000, o que inviabiliza a identificação da remoção da cobertura
florestal em pequenas áreas (inferiores a 6,25 hectares, de acordo com Prodes/Inpe, 2000),
bastante comuns em atividades realizadas por pequenos agricultores e pela exploração seletiva de
madeira.
Ademais, cumpre mencionar, por exemplo, o tratamento dado ao cerrado, que, por ser
removido mais rapidamente do que a floresta, pode quase duplicar as estimativas do
desmatamento (Fearnside, 1995). Essa formação florestal tem sido muito utilizada para o
desenvolvimento de atividades agrícolas, em especial a cultura da soja, que predomina nos estados
de Mato Grosso, Rondônia, Tocantins e no sul do Maranhão (que integram o Arco do
Desflorestamento). Entretanto, essas superfícies não são computadas nas estimativas do
Prodes/Inpe, que monitora apenas o incremento de “polígonos” ou áreas com padrão corte raso
de desflorestamento em florestas primárias (Krug, 2001).
Uma outra limitação relativa à avaliação do desmatamento refere-se à velocidade com que
se processam as mudanças e a dinâmica de ocupação e uso do solo amazônico. A Região
Amazônica, por ser um mosaico de fronteiras de ocupação com várias idades, infra-estruturas,
mercados, tamanho de propriedades, origem de populações, regimes pluviométricos e tipos de
53
floresta, desafia qualquer esquema de amostragem (Nepstad et al., 1999). Esse mosaico reflete
diferentes situações e combinações de fatores, sobretudo em termos de políticas estaduais,
dificultando a análise dos atores envolvidos e das causas do desmatamento na região. Para Becker
e colaboradores (2000), a controvérsia existente está fundada na dificuldade em se obter dados
precisos sobre a extensão da degradação efetuada por cada agente isolado e em avaliar o papel de
cada um deles na dinâmica do processo. Ademais, como afirma Wanderley Messias da Costa28, o
que aconteceu na Amazônia ontem pode não ser mais a realidade de hoje. Assim, os dados de
desmatamento divulgados anualmente pelo Prodes/Inpe, cujos levantamentos apresentam a
grande vantagem de considerar sempre a mesma área de estudo e o mesmo tipo de vegetação – as
florestas primárias da Amazônia Legal –, podem não estar refletindo a realidade, por tratar de
mudanças ocorridas na região com uma defasagem média de dois anos da sua divulgação. Ou,
como explica Krug (2001), a cada ano t o governo anuncia as estimativas provisórias para o
período t – 2 → t – 1 e as estimativas finais para o período t – 3 → t – 2.
5.3. Causas e dinâmicas extremamente variáveis
5.3.1. Pequenos ou grandes proprietários de terras – de quem é a culpa?
Os atores e as causas do desflorestamento na Amazônia são diversos e têm participações
diferenciadas no cálculo total de sua extensão, de acordo com o período e a área em que se
inserem. Eles tornam-se bem mais complexos do que foram no passado, pois, além de possuir
natureza múltipla, às vezes interagem entre si (Becker et al., 2000). Contudo, parece haver um
consenso sobre a importância da atividade agrícola nas taxas de desmatamento. O que ainda não
está bem definido é o grau de contribuição dos diferentes atores envolvidos: pequenos colonos,
médios fazendeiros e proprietários de grandes extensões de terras.
Para Traumann (1998), até a década de 1980, o desmatamento era feito por grandes
empresas, em projetos agropecuários financiados pelo governo, e por colonos que migravam do
sul do país para os estados de Rondônia, Mato Grosso e Pará. Agora o fenômeno é outro: a
migração diminuiu e os projetos agropecuários fracassaram. A destruição hoje se dá
principalmente pelo cultivo em pequenas propriedades familiares na borda da floresta. Isso inclui
áreas invadidas pelos sem-terra. Contrapondo essa idéia, Fearnside explica que a agricultura
Em palestra sobre as “Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia”, proferida no 4o
Atelier de Análise Prospectiva: Que Políticas Públicas para a Amazônia?, promovido por NAPIAm/SCA/MMA e
Cirad, em novembro de 1999.
28
54
itinerante, prática agrícola comum entre pequenos colonos e assentados, é um fator de
desmatamento importante no Equador e no Peru, mas não o é no Brasil, visto que é uma prática
ultrapassada, que já foi substituída pelo estabelecimento de pastagens em grandes propriedades.
No mesmo artigo o autor afirma que a agricultura itinerante apresenta taxas de crescimento e,
portanto, uma relação direta com o desflorestamento, em apenas três estados amazônicos –
Rondônia, Acre e Roraima –, dois dos quais apresentam taxas relativamente baixas de
desflorestamento (Fearnside, 1991).
Bunker (1980) afirma que a colonização de pequenos proprietários na Amazônia alterou,
em dez anos, menos da metade da superfície florestal removida pela pecuária extensiva em um
período de três anos. Para Browder (1988), somente 4% das áreas desmatadas na Amazônia no
início dos anos 1980 estariam relacionadas à atividade desenvolvida por pequenos agricultores que
foram assentados ao longo da Transamazônica. Barbier e colaboradores (1991) mencionam que
entre 38 e 73% das áreas florestais que foram alteradas na década de 1980 para o desenvolvimento
da pecuária encontravam-se em grandes propriedades, incentivadas pelo governo federal por meio
da concessão de créditos e benefícios fiscais. Nesse mesmo período, segundo os autores, os
pequenos colonos e assentados eram responsáveis por apenas 11% do desflorestamento
observado na região.
Essa mesma idéia sobre a “distribuição” do desflorestamento na Amazônia é
compartilhada mais uma vez por Fearnside (1995; 1997), que, ao estudar o caso do Mato Grosso,
responsável por 26% do desmatamento total observado em 1991, concluiu que 84% das terras
particulares desse estado eram de fazendas de mil hectares ou mais (apenas 3% se constituíam em
pequenas propriedades). Ainda segundo o autor, o estado de Rondônia, famoso pelo
desmatamento provocado por pequenos agricultores, contribuiu com apenas 10% do
desmatamento observado naquele ano. A partir desses dados, o autor estima que 70% dos
problemas ambientais da Amazônia são provocados pela atividade agropecuária e não por
pequenos agricultores.
Ainda seguindo essa linha, Nepstad e colaboradores (1999), em pesquisa realizada no ano
de 1996 em cinco municípios amazônicos (Paragominas-PA, Alta Floresta-MT, Santana do
Araguaia-PA, Ariquemes-RO, Ouro Preto d’Oeste-RO e Rio Branco-AC), constataram que cerca
de 20% do desmatamento ocorreu em áreas menores que cem hectares (pequenas propriedades) e
50%, em áreas maiores que mil hectares (grandes fazendas). Esses dados concordam, de certa
forma, com os dados do Prodes/Inpe para os anos de 1995 a 1999, segundo os quais 20% do
número total de polígonos de desflorestamento em áreas de floresta ombrófila densa e aberta são
menores que 50 hectares, e aproximadamente 10%, em áreas acima de mil hectares, os quais se
55
somam a mais 21% de desflorestamentos ocorridos em áreas de região de contato (ou transição
entre cerrado e floresta), da mesma classe de tamanho (superior a mil hectares) (Krug, 2001).
Myers (1991), por sua vez, afirma que o principal agente do desflorestamento na
Amazônia é o pequeno agricultor ou migrante que, para matar a fome e em resposta à falta de um
programa de desenvolvimento rural voltado para a agricultura tradicional, não vê outra alternativa
senão cortar e queimar a floresta para a instalação de culturas de subsistência. Para ele, esses
atores adotam essa prática por receber menos atenção política, quando comparados com outros
segmentos (latifundiários, madeireiros, etc.), e são responsáveis por pelo menos 60% do
desflorestamento, taxa esta com uma tendência à rápida expansão. Com efeito, a política adotada
pelo Incra esteve e ainda está bastante voltada à distribuição de terras, sem maiores preocupações
com a manutenção das famílias assentadas no campo. Sobre esse tema, Bartholo e Bursztyn (1999,
p.165) escrevem que “os executores da política de reforma agrária em Rondônia (Incra) optam
sistematicamente por uma ‘ocupação de fronteira’ sem efetivas preocupações com a questão da
sustentabilidade de médio e longo prazos”.
Para Eduardo Martins, ex-presidente do Ibama, a maior parte do desflorestamento da
região ocorre em pequenas propriedades rurais, situadas em áreas de assentamento do programa
de reforma agrária29. Essa idéia de que são os pequenos agricultores os principais agentes
causadores do desmatamento na região também é defendida por Adriana Moreira, que, em
entrevista à Gazeta Mercantil30, afirmou que “não são só os grandes fazendeiros os responsáveis
pelo desmatamento e pelo fogo na Amazônia. Entre 1997 e 1998, 166 mil famílias foram
assentadas pelo Incra na região. Se levarmos em conta que cada família pode desmatar até três
hectares por ano, é possível concluir que os assentados podem ter desmatado cerca de quinhentos
mil hectares no período”. Para Sawyer (2001) essa relação é bastante válida para a região, na
medida em que, em uma população rural de oito milhões de pessoas, ou quase dois milhões de
famílias, pode-se supor que haja pelo menos um milhão de agricultores familiares; se esses
produtores desmatassem apenas dois hectares por ano, o total chegaria a dois milhões de hectares,
ou seja, vinte mil km2, o que corresponderia ao total do desmatamento em alguns anos.
Já Margulis (2001) afirma que as contribuições dos pequenos agricultores no processo de
expansão da fronteira – e conseqüentemente do desmatamento – foram bastante relevantes nas 23 últimas décadas. Entretanto, mais recentemente, esse padrão modificou-se, e os pequenos
agentes (ou agricultores) deixaram de ser os grandes vilões do processo e deram lugar aos grandes
29
30
Em entrevista publicada no Diário de Pernambuco, em 27 de janeiro de 1998.
Em entrevista publicada na Gazeta Mercantil, em 10-12 de setembro de 1999.
56
proprietários de terras e criadores de gado, sob regime de pecuária extensiva. Ainda segundo o
autor, a pecuária ocupa mais de 75% das áreas convertidas e se constitui em fator fundamental na
propulsão dos desmatamentos. Ademais, é dominada por atores capitalizados e “sofisticados” que
certamente têm acesso a outras opções de investimento, depois da remoção (aparente) dos
subsídios.
5.3.2. Dinâmicas que variam conforme o espaço-tempo considerado
Muito embora não seja possível relacionar diretamente os impactos do desflorestamento a
um único agente isolado, muitos autores valem-se da informação levantada pelo Inpe – segundo a
qual a grande maioria das áreas desflorestadas a cada ano tem menos de cem hectares, área
considerada pequena nos padrões amazônicos – para atribuir a responsabilidade do
desmatamento aos pequenos proprietários de terras. Deve-se considerar, no entanto, que, via de
regra, os pequenos agricultores não são capazes de realizar desflorestamentos de tal ordem, por
dois motivos principais. Primeiro, porque os assentados, em geral, não dispõem de condições
financeiras para a derrubada de grandes áreas, limitando-se à abertura anual de pequenas parcelas
(inferiores a cinco hectares) para a instalação de cultivos de subsistência. Segundo, porque nem
sempre seus lotes atingem a cifra de cem hectares: à exceção de Acre, Amazonas, Roraima e Mato
Grosso, nos outros cinco estados amazônicos a média do tamanho do lote é de, no máximo, 50
hectares (Gasques e Conceição, 2000), dos quais deve-se ainda descontar a área a ser mantida
como reserva legal. Dessa forma, é lícito supor que esses desmatamentos estejam relacionados ao
incremento ou à incorporação de novas áreas às áreas já desmatadas em médias ou grandes
fazendas, em geral associadas à formação de pastagens extensivas.
Por outro lado, como a tecnologia de monitoramento utilizada pelo Inpe não permite a
identificação de desmatamentos inferiores a 6,25 hectares, pode ocorrer que essas novas áreas
desmatadas sejam o resultado de alguns anos de intervenção dos pequenos agricultores sobre o
maciço florestal. Em outras palavras, o desmatamento de cerca de três hectares de cada assentado
(no melhor dos casos!) só será percebido, no levantamento por satélite, ao final de três anos,
quando já tiver atingido uma área superior a 6,25 hectares. Se esses desmatamentos, em
determinado momento, juntarem-se, a área percebida nas imagens pode atingir as proporções
acima mencionadas (Figura 5.4).
57
1o ano
Desmatamentos isolados de
cerca de três hectares, não
identificados em imagens de
satélite
2o ano
Desmatamentos de 3 a 6
hectares, que ainda não podem
ser identificados em imagens de
satélite
3o ano
Desmatamentos cumulativos,
que já são identificados em
imagens de satélite:
12 e 24 hectares
Figura 5.4 – Esquema hipotético do processo de desmatamento em projetos de assentamento.
Esse mesmo argumento pode ser usado para justificar o incremento nas taxas de
desflorestamento observadas para a Amazônia Legal entre os anos 1994 e 1995, como reflexo do
aumento dos projetos de assentamento verificado entre 1991 e 1992. A mesma relação também
pode ser estabelecida para a redução das taxas de desflorestamento entre os períodos 1989/1991 e
1995/1996, em virtude da diminuição na criação de projetos de assentamento entre 1988/1989 e
1992/1993, respectivamente. Apesar da tendência à retomada do crescimento apresentada,
sobretudo nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso, a política de implantação de
projetos de assentamento do Incra também é permeada por oscilações ao longo do tempo (Figura
5.5).
3.000
Taxa desflorestamento bruto
Área dos assentamentos
Área (mil ha)
2.500
2.000
1.500
1.000
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
1989
-
1988
500
Figura 5.5 – Área dos projetos de assentamento criados e taxa anual de desflorestamento bruto na
Amazônia Legal (Fonte: Prodes/Inpe, 2002; Divisão de Assentamentos/Incra, 2001.)
58
De uma forma ou de outra, sabe-se que os problemas ambientais provocados pelos
pequenos colonos e assentados produzem os mesmos efeitos que aqueles promovidos pelos
latifundiários, principalmente em relação à perda da biodiversidade, à precarização de nascentes e
rios e à perda de serviços ambientais, entre outros. Entretanto, como explica BRASIL (1998), o
desflorestamento em pequenas áreas, não contíguas, transforma a floresta em um verdadeiro
tabuleiro de xadrez, com a seqüência de áreas florestadas e desflorestadas, expondo a fauna e a
flora das áreas florestadas a toda sorte de ataque, inclusive incêndios florestais31. Essa situação,
aliás, conforme será visto mais adiante, tem caracterizado a região de Barreira Branca, no estado
do Tocantins, antes dominada por grandes fazendas para a criação de gado e hoje mais voltada
para o desenvolvimento dos projetos de assentamento lá implantados nos últimos anos.
Pequenos, médios ou grandes proprietários de terras, todos têm sua parcela de
responsabilidade no que tange à questão da destruição da Floresta Amazônica. Essa parcela, mais
uma vez, pode variar de acordo com o período e o espaço considerado. A sobreposição de
informações relativas à extensão do desflorestamento bruto e da evolução do processo de criação
de projetos de assentamento reflete bem esta situação (Figura 5.6).
50.000
Desflorestamento bruto (dados cumulativos)
Área dos assentamentos (dados cumulativos)
45.000
40.000
área (mil ha)
35.000
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
1989
1988
1987
1986
1985
1984
1983
1982
1981
1980
1979
1978
até 1978
-
Figura 5.6 – Área acumulada dos projetos de assentamento e extensão do desflorestamento na
Amazônia Legal (Fonte: Prodes/Inpe, 2002; Divisão de Assentamentos/Incra, 2000.)
31 Essa fragmentação florestal põe em perigo a biodiversidade, uma vez que as árvores situadas na borda das áreas
desmatadas têm sua vitalidade reduzida em grandes proporções. A floresta localizada num raio de cem metros em
volta das áreas desmatadas perde, nos dez a vinte anos que se seguem, até 36% de sua biomassa. Esse “efeito de
borda”, que se caracteriza por uma elevação da mortalidade das árvores, é causado essencialmente pelas mudanças
microclimáticas e pelo aumento da força dos ventos, provocados pelo desmatamento (Bouamrane e Pasquis, no
prelo).
59
Pela figura anterior, podemos perceber que, no que concerne a Amazônia Legal como um
todo, existe uma certa relação entre o aumento do desmatamento e a criação de novos projetos.
Todavia, quando analisamos os mesmos dados numa escala maior, ou seja, em termos estaduais,
essa relação deixa de ser tão evidente. De um lado encontram-se estados que, por possuir uma
política conservacionista, pautada pelos preceitos de desenvolvimento sustentável e caracterizada
por atividades extrativistas, e onde foram implantadas diferentes modalidades de projetos de
assentamento – como é o caso do Amapá e do Acre –, apresentam reduzidas taxas de
desmatamento. Do outro, temos os casos de Rondônia e Mato Grosso, onde o desmatamento
apresenta um ritmo de crescimento que vai além da criação de assentamentos de reforma agrária.
Tal situação leva-nos, pois, a pensar que o desmatamento nesses estados não está vinculado aos
pequenos colonos simplesmente, mas também a outros fatores e atores, possivelmente grandes
fazendas e projetos agropecuários, que são típicos nesses estados (Figura 5.7), o que reforça os
resultados obtidos por Fearnside (1995; 1997), já apresentados em páginas anteriores.
Acre
Amapá
14
14
D esflorestam ento bruto (acum ulado)
12
12
Á rea dos assentam entos (acum ulada)
Á rea dos assentam entos (acum ulada)
10
10
8
8
6
6
4
4
2
2
até 1978
1980
1983
1986
1989
D esflorestam ento bruto (acum ulado)
1992
1995
1998
até 1978
1980
1983
Mato Grosso
1986
1989
1992
1995
1998
1992
1995
1998
Rondônia
14
14
D esflorestam ento bruto (acum ulado)
12
12
10
10
8
8
6
6
4
4
2
2
até 1978
1980
1983
1986
1989
D esflorestam ento bruto (acum ulado)
Á rea dos assentam entos (acum ulada)
Á rea dos assentam entos (acum ulada)
1992
1995
1998
até 1978
1980
1983
1986
1989
Figura 5.7 – Área acumulada dos projetos de assentamento criados e extensão do
desflorestamento bruto nos estados de Acre, Amapá, Mato Grosso e Rondônia, 1978-2000
(Fonte: Prodes/Inpe, 2002; Divisão de Assentamentos/Incra, 2000.)
Para o caso específico do Tocantins, os dados apresentados para a última década levamnos a crer que exista uma relação direta entre o aumento da extensão do desflorestamento bruto e
a criação de projetos de assentamento. No entanto, a distância existente entre as duas curvas
(Figura 5.8) também nos leva a refletir sobre a existência de outros fatores que podem ser
responsáveis, juntamente com os projetos de assentamento, pelo desmatamento no estado.
60
Outrossim, ao se observar a curva de número de projetos criados (Figura 5.9), sobretudo nos
últimos anos, percebe-se que não há relação direta entre o aumento do número de assentamentos
e o desflorestamento nesse estado.
Tocantins
14
Desflorestamento bruto (acumulado)
Área dos assentamentos (acumulada)
área (milhões de ha)
12
10
8
6
4
2
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
1989
1988
1987
-
Figura 5.8 – Extensão do desflorestamento bruto e área dos projetos de assentamento criados no
estado do Tocantins – dados cumulativos
(Fonte: Prodes/Inpe, 2002; Divisão de Assentamentos/Incra, 2000.)
Tocantins
14
250
Desflorestamento bruto (acumulado)
Número de projetos (acumulado)
200
10
8
150
6
100
4
Num projetos
área (milhões ha)
12
50
2
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
1989
1988
1987
-
Figura 5.9 – Extensão do desflorestamento bruto e número de projetos de assentamento criados
no estado do Tocantins – dados cumulativos (Fonte: Divisão de Assentamentos/ Incra, 2000.)
Todavia, essa análise deve necessariamente considerar o tipo de vegetação existente. Isso
porque grande parte do estado do Tocantins é caracterizada por cerrado e zonas de transição,
também denominadas ecótonos. Como os dados apresentados para o desflorestamento (Inpe)
referem-se apenas ao incremento das taxas de remoção da cobertura vegetal de florestas primárias,
faz-se mister, antes de qualquer avaliação, um levantamento da superfície do estado originalmente
coberta por floresta primária, tema que será abordado mais adiante, na descrição da cobertura
vegetal do estado.
61
Por outro lado, deve-se considerar que, por trás das atividades desenvolvidas, tanto por
pequenos colonos como por grandes proprietários de terra, existe sempre uma situação
conjuntural ou uma política governamental incentivando a destruição. Ao se observar as taxas
anuais de desmatamento da Amazônia nos últimos anos, fica evidenciado que não há uma
tendência de incremento constante, mas oscilações que ocorrem por diferentes motivos, os quais
serão discutidos mais detalhadamente para o estado do Tocantins. No caso dos pequenos
produtores, podemos citar a política de implantação de projetos de assentamento do Incra, com
todos os seus desvios e falhas (localização geográfica inadequada, falta de assistência técnica e
serviços, meios para produção, etc.), além do incentivo ao desmatamento para a garantia da posse,
dando à terra um caráter “produtivo”; para os médios e grandes, os motivos remontam à questão
da especulação fundiária e da grilagem de terras, além da concessão de incentivos fiscais e
subsídios para o desenvolvimento da agropecuária e a disponibilidade de terras a baixo custo.
5.3.3. Outros fatores relacionados ao desmatamento
A taxa de desmatamento de uma região também pode estar relacionada às políticas
econômicas vigentes em um dado momento, para as quais o mercado da terra e a especulação
fundiária, entre outras, podem ser variáveis condicionantes (Figura 5.10). Para Kaimowitz e
Angelsen (1998), algumas dessas variáveis podem ser classificadas em três níveis: i) fontes de
desmatamento ou variáveis de escolha dos agentes (uso da terra, alocação de mão-de-obra e outros
insumos, decisões tecnológicas e gerenciais); ii) causas imediatas ou parâmetros exógenos de decisão
(preços, acessibilidade, risco, regimes de propriedade, condições ambientais); e, iii) causas
subjacentes ou políticas e variáveis macroeconômicas (demografia, mercados mundiais, tendências
macroeconômicas, tecnologias disponíveis).
No caso amazônico, deve-se frisar ainda que, em conseqüência dos grandes incentivos e
subsídios governamentais, a demanda por terra aumentou sobremaneira em alguns estados, nas
décadas de 1980 e 1990, elevando o preço das terras na região (Becker et al., 2000). Além disso, as
terras “trabalhadas” (lavouras e pastagens) adquirem um valor para venda invariavelmente
superior a áreas de vegetação natural (campo ou mata), não só nos estados amazônicos, como
também no resto do Brasil (Tabela 5.3).
62
Tabela 5.3 – Preço médio de venda de terras na Amazônia Legal – 1o semestre de 1998
Estados
Acre
Amapá
Amazonas
Maranhão
Mato Grosso
Pará
Rondônia
Roraima
Tocantins
Brasil
Lavouras
381,44
240,00
616,87
189,15
559,36
266,18
415,56
243,75
244,03
1.286,23
Venda de Terras (R$/ha)
Pastagens
Matas
267,67
99,01
109,77
61,67
552,76
88,68
246,51
135,74
436,56
228,52
219,71
119,90
268,77
169,42
262,89
80,00
230,32
118,30
632,11
261,19
Campos
122,20
100,77
213,48
83,62
230,29
90,55
133,33
63,33
66,39
409,37
Fonte: IBGE, 1998.
Esses dados têm ainda maior importância quando são consideradas as políticas de
incentivo ao desenvolvimento de atividades produtivas por meio da concessão de créditos e linhas
de financiamento. O Relatório de Informação Trimestral sobre Atividade Agropecuária,
supervisionado pela Superintendência do Tocantins, do Banco da Amazônia S.A., responsável
pela administração dos recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte – FNO,
adotou os seguintes valores para o cálculo do valor da terra, necessário à liberação de créditos do
Programa Nacional de Agricultura Familiar – Pronaf e dos demais programas de financiamentos32:
Tabela 5.4 – Valor da terra de acordo com sua cobertura vegetal
Especificação
Terra nua
Mata com incidência de madeira de lei
Campo/cerradão
Capoeira/capoeirão
Pastagens artificiais consolidadas
Pastagens artificiais consolidadas com curva de nível/terraço
Área mecanizada
Varjão
Área sistematizada em várzea
Variação R$
20,00 a 100,00
20,00 a 80,00
10,00 a 40,00
10,00 a 40,00
150,00 a 400,00
150,00 a 500,00
100,00 a 250,00
100,00 a 300,00
600,00 a 1.150,00
Observações: 1. Os valores anteriormente discriminados deverão ser obedecidos rigorosamente pelos
escritórios de planejamento e principalmente pelos avaliadores. Para efeito de valorização de imóveis, deverão
atentar para alguns aspectos, como: localização (distância do município-sede), acesso, aguadas, fertilidade,
topografia, benfeitorias, etc.; 2. Os valores máximos e mínimos da tabela não deverão ser usados
aleatoriamente pelos avaliadores, e sim as variações de acordo com os aspectos anteriormente retratados, de
maneira que a avaliação exprima o valor venal do imóvel; 3. Os preços relativos à "Terra nua" podem ser
majorados, desde que tal prática mereça e seja devidamente justificada. Fonte: BASA/RIT, 2001.
32 Além do Pronaf, o FNO possui outros programas de financiamento que visam a contribuir para o desenvolvimento
econômico e social dos sete estados da Região Norte, quais sejam Programa de Apoio ao Desenvolvimento do
Extrativismo – Prodex, Programa de Apoio à Pequena Produção Familiar Rural Organizada – Prorural, Programa de
Desenvolvimento Rural – Proderur, e Programa de Apoio ao Desenvolvimento Florestal – Profloresta.
63
Por essas e outras razões, o acesso à terra pelo segmento mais pobre da população tornouse inviável, motivo pelo qual esse contingente é forçado a uma vida itinerante, ocupando terras
devolutas ou privadas como forma de pressão para a obtenção da posse (Nascimento, 1998;
Ceccon e Miramontes, 1999). Resultam desse processo inúmeros conflitos sociais que acabam
culminando no surgimento de vários grupos organizados pela defesa de seus direitos (extrativistas,
“sem-terra”, indígenas, ribeirinhos, etc.).
A taxa de desmatamento também apresenta uma relação direta com o aumento da
densidade populacional (Figura 5.10). A população humana na região cresceu de 7,5 para 16
milhões de habitantes entre 1970 e 1991, e muitas famílias foram assentadas33.
60
50
População (milhões hab)
Desflorestamento (milhões ha)
40
30
20
10
0
1960 1970 1975 1980 1985 1991 1996 1999 2000
Figura 5.10 – Evolução da taxa de desflorestamento bruto e do aumento da população na
Amazônia Legal entre 1960 e 2000 (Fonte: IBGE, 1999; Prodes/Inpe, 2001.)
Entretanto, essa evolução deu-se em um contexto em que a maior parte das terras estava,
e ainda está, concentrada nas mãos de poucos latifundiários que, por causa do tipo de agricultura
desenvolvida, empregam apenas uma pequena parcela da mão-de-obra disponível. A conseqüência
desse quadro é uma população rural carente, que, sem ter nenhuma fonte de renda, ocupa regiões
de fronteira, exercendo uma constante pressão sobre os recursos naturais, principalmente a
madeira, visto que sua extração poderá “financiar” o desenvolvimento de atividades agrícolas.
Dessa forma, cortam e queimam a floresta para a implantação da agricultura de subsistência.
Entretanto, visto que a maioria dos solos amazônicos apresenta baixa fertilidade, tal atividade só
se mantém por um período não superior a três anos, após o que essas populações são obrigadas a
abandonar as terras (ou vendê-las para produtores mais abastados), avançando floresta adentro,
num círculo vicioso.
Muito embora o número exato de famílias assentadas seja difícil de estimar, os projetos criados na Amazônia Legal
até o final de 1999 tinham capacidade para receber quase 400 mil famílias (Divisão de Asssentamentos/Incra, 2001).
33
64
Para muitos autores, outro fator de grande importância no que tange o desmatamento na
Amazônia tem sido promovido pela indústria madeireira, que se instalou em certas partes da
região no final da década de 1970 e início dos anos 1980, beneficiando-se da infra-estrutura já
existente (estradas, telecomunicações e energia) e da disponibilidade de mão-de-obra de baixo
custo (Mahar, 1989, Repetto, 1990, Nepstad et al., 1991). Com efeito, levantamentos recentes
realizados pelo Inpe indicam que o desmatamento na Região Amazônica voltou a aumentar entre
1997 e 1998, apresentando um incremento de cerca de 27% somente nesse período. Os
desmatamentos mais expressivos aconteceram em propriedades acima de mil hectares, sendo os
tipos de vegetação mais afetados a floresta densa e estacional e o cerradão, nos quais predominam
as atividades de exploração madeireira.
Em 1976 a indústria madeireira da Amazônia era responsável por apenas 14% do total de
madeira em tora consumida pelo Brasil. Em 1997 esse percentual subiu para aproximadamente
90%, revelando a pressão crescente do mercado consumidor de madeira sobre a floresta
(BRASIL, 1998). A tendência apresentada pelas indústrias madeireiras que se instalaram na
Amazônia, em sua maioria asiáticas, é de crescimento (Brasil, 1998). O motivo é a desvalorização
da moeda brasileira – o real – e a recuperação econômica da Ásia, que possibilita uma retomada
de investimentos das indústrias asiáticas na extração de madeira brasileira. De acordo com Paulo
Adário, coordenador do Programa Amazônia, do Greenpeace, “este cenário é bastante
preocupante e pode se agravar com a redução da intervenção do Estado na vigilância das
empresas34”.
Além da retirada da madeira em si, que já provoca graves danos ambientais (queda de
árvores adjacentes, empobrecimento da floresta, aumento da susceptibilidade da floresta ao fogo
acidental, etc.), a atividade madeireira estimula o desflorestamento na medida em que promove
acesso e ocupação de novas áreas. Esse processo induz à implantação de assentamentos não
planejados, reforçando o atual padrão de uso da terra e provocando mais queimadas nessas
florestas, já bastante vulneráveis (Cochrane, 2000).
Sobre esse tema, vale mencionar um caso verificado em Rondônia, onde pólos
madeireiros promovem o surgimento de verdadeiros núcleos urbanos em um curto espaço de
tempo – normalmente não mais que dois ou três anos. Esses núcleos surgem em função da
instalação de serrarias em uma determinada região, que, por sua vez. atraem também pequenos
colonos em busca de novas terras, dando continuidade a um ciclo bastante conhecido na região:
madeireiras → projetos de assentamento e regularização fundiária → pecuária → concentração de
34
Em entrevista publicada na Gazeta Mercantil, setembro de 1999.
65
terras... Entretanto, após a fase exploratória, a economia desses centros urbanos entra em um
processo de decadência, restando apenas os efeitos da degradação ambiental35. Esse é o caso, por
exemplo, de Cerejeiras, que foi grande pólo madeireiro em meados de 1980, e Buritis, atualmente
em plena atividade (Le Tourneau et al., 2001).
No entanto, para Nascimento (1990), a atividade madeireira, em razão de sua natureza de
exploração florestal seletiva de um reduzido número de espécies, não implicando corte raso de
superfícies significativas, não se constitui em atividade de peso no que tange à questão do
desflorestamento da Região Amazônica. Ocorre, porém, que estimativas divulgadas em estudo
elaborado pelas organizações WHRC e Ipam apontam que essa atividade é, hoje, responsável pelo
empobrecimento anual de 10-15 mil km2 de florestas primárias (Nepstad et al., 2000). Esses dados,
contudo, não são computados pelo Prodes/Inpe por envolver superfícies inferiores a 6,25
hectares, as quais não são identificadas nas imagens de satélite utilizadas para o levantamento.
5.4. Impactos do desflorestamento: uma questão de escala
Muito embora não haja consenso acerca do que é o desflorestamento, sua amplitude e a
forma mais adequada para o seu monitoramento, alguns de seus efeitos e impactos já são
conhecidos. A importância das funções ecológicas desempenhadas pelo ecossistema amazônico,
seja global, regional ou localmente, é ponto pacífico. Hoje, o fato de que o desflorestamento está
na origem da maciça extinção de inúmeras espécies vegetais e animais36 é reconhecido no mundo
inteiro (Pasquis, 1999).
Um estudo sobre o impacto do desflorestamento provocado pelo desenvolvimento das
atividades produtivas realizadas na Amazônia deve, necessariamente, considerar a questão da
escala espacial. Nesse ponto, pesquisas localizadas são cada vez mais pertinentes. Outro requisito
para a avaliação do impacto do desflorestamento na Amazônia é a delimitação da escala temporal.
A complexidade dos ecossistemas e seu funcionamento tornam difícil a realização de avaliações
do impacto do desflorestamento a longo prazo.
Embora existam algumas medidas pontuais das alterações provocadas nos diferentes
níveis (ambiental, social, econômico,...), os resultados sobre a extensão espacial desses valores
ainda são escassos. Ainda mais raros são aqueles sobre a variação decorrente do tipo de atividade
humana desenvolvida. É necessário, portanto, efetuar algumas avaliações econômicas e biológicas
35 Esse cenário, também conhecido como “boom-colapso” (Schneider et al., 2000), já foi tema de vários estudos
realizados no estado do Pará por pesquisadores do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia – Imazon.
36 Sobre o tema, ver Relatório Planeta Vivo, lançado pelo WWF, em 1999 (disponível em http://www.wwf.org.br)
66
de impacto no tempo e no espaço, posto que as primeiras permitirão comparar as diversas
atividades produtivas antes e depois da floresta e prever a evolução das dinâmicas observadas;
enquanto que as seguintes trarão os elementos necessários para uma simulação, permitindo a
avaliação das diversas ações de conservação ou de desenvolvimento em meio florestal ou pósflorestal. Se a questão envolve a sustentabilidade dessas práticas, deve-se levar em conta também
as condições sociais e de qualidade de vida das populações afetadas.
5.4.1. O desmatamento e a biodiversidade
De acordo com a IUCN, 20% de todas as espécies existentes desaparecerão em dez anos e
há um ritmo de perda anual de cerca de seis mil espécies (WRI, 1992). Essa perda mantém estreita
relação com a remoção da cobertura vegetal e depende de inúmeros fatores, alguns deles já
conhecidos, outros não – extensão, duração, especulações que substituem a floresta, etc. –, que
certamente influenciarão de forma mais ou menos intensa, de acordo com a escala considerada
(Pomel e Salomon, 1998).
Ocorre, porém, que a maior parte das pesquisas realizadas na Amazônia até hoje não
estabelece uma correlação entre desmatamento e biodiversidade, ou aborda esta última de forma
indireta. Na verdade, as pesquisas que vêm sendo desenvolvidas na região têm outros objetivos,
como o de avaliar o impacto do desflorestamento sobre a fertilidade dos solos ou o impacto da
exploração florestal sobre a capacidade de regeneração dos maciços florestais, com o intuito, em
ambos os casos, de pesquisar sistemas de produção sustentáveis. Além disso, esses estudos
limitam-se, grosso modo, à floresta de terra firme e são, na maioria dos casos, realizados localmente.
São poucas as pesquisas que ousam ir além ou testar seus resultados em outros lugares para
verificar a existência de um “modelo generalizável”. Os projetos realizados em escala regional
utilizam, geralmente, o sensoriamento remoto e são orientados para a produção de indicadores,
tais como o “Diagnóstico Ambiental da Amazônia”, do IBGE. Por meio de sistemas de
informação geográfica, avaliam as mudanças de utilização das terras, as grandes dinâmicas
espaciais, etc., sendo possível deduzir, dessa forma, o desaparecimento de espécies características
dessas formações ou endêmicas. Permitem ainda a identificação de áreas prioritárias para a
realização de trabalhos de campo. Por outro lado, é muito difícil, nessa escala, identificar quais
espécies foram atingidas e em que proporção (Bouamrane e Pasquis, no prelo).
De uma forma geral, as pesquisas atuais interessam-se, sobretudo, pela evolução dos
modos de ocupação do espaço e pelo seu impacto ambiental e agrícola. Este, aliás, pode servir
67
como um bom indicador para a elaboração de recomendações destinadas a limitar os efeitos
nocivos ou a recuperar as terras alteradas.
O principal problema é que ainda se sabe muito pouco sobre o que a Floresta Amazônica
contém, não existindo, portanto, uma base referencial para avaliar o impacto do desflorestamento
sobre a biodiversidade. A grande diversidade de espécies e o conhecimento ainda limitado da
dinâmica das florestas naturais permitem apenas suposições, embora existam certos indícios. Os
resultados obtidos em um lugar determinado diferem, muitas vezes, dos obtidos em outros.
Enfim, os inventários florísticos ou faunísticos apresentam muitos vieses, uma vez que, por
comodidade, costumam ser realizados ao longo dos eixos de comunicação.
Apesar de tudo, a destruição dos habitats permanece, certamente, como uma das principais
causas da extinção das espécies. O desflorestamento está em primeiro lugar no banco dos réus.
Existe, de fato, uma relação direta entre a vida e o ambiente abiótico, e qualquer mudança neste
tem repercussões sobre aquele sistema acoplado (Lévêque, 1997).
É, aliás, essa, a evidência que provoca o amálgama, muitas vezes precipitado, entre
desflorestamento e perda de biodiversidade. Além disso, o desflorestamento não é ruim em si, se
ele permite a implementação de sistemas de produção sustentáveis a longo prazo, que
proporcionam condições de subsistência a várias populações. Seu impacto depende não apenas de
sua amplitude, ritmo e tipo de vegetação afetado, como também, e principalmente, do tipo de uso
dos espaços pós-florestais. Conforme o caso, os novos sistemas de produção podem permitir a
reconstituição de uma biomassa importante e de uma nova biodiversidade (Pasquis e Bouamrane,
no prelo).
Em suma, o impacto do desflorestamento sobre o meio ambiente e a biodiversidade pode
ser direto e indireto: direto, fazendo desaparecer a cobertura florestal, o que provoca
transformações importantes no conjunto de elementos do ecossistema (vegetação, fauna, flora,
microclima); e indireto, por intermédio do uso posterior das terras, interferindo na cultura e
expulsando as populações indígenas, que, ao perder suas práticas e seus conhecimentos sobre as
espécies, fazem estas cair no esquecimento e, conseqüentemente, favorecem o seu
desaparecimento.
5.4.2. Outros efeitos do desmatamento
A Floresta Amazônica intervém de forma bastante relevante nos ciclos da água e do
carbono. Grande parte das chuvas que caem sobre a região é provocada pela evapotranspiração da
68
biomassa vegetal existente. Assim, sua destruição pode induzir climas regionais mais áridos,
podendo chegar a uma diminuição de 30 a 50% do nível médio de pluviometria (Lévêque, 1997).
Essa diminuição de chuvas, por sua vez, leva a um ressecamento do clima e à conseqüente
modificação da flora e da fauna e ao favorecimento da ocorrência de incêndios (Salati, 1987).
De acordo com estudos realizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia –
Inpa, a substituição da floresta tropical por florestas menos altas, com predominância de
herbáceas, com volume e biomassa reduzidos, pode contribuir indiretamente para o aumento do
nível de gases de efeito estufa. Assim, à medida que aumentam as áreas com pastagens, diminui a
evapotranspiração, generaliza-se a erosão hídrica dos solos e eleva-se a probabilidade de
inundações.
A remoção da cobertura vegetal provoca ainda um aumento dos raios solares que incidem
nos solos amazônicos, transformando radicalmente suas condições de vida microbiana. A
multiplicação rápida de desmatamentos localizados – típicos da exploração seletiva e da
agricultura itinerante – provoca um empobrecimento da cobertura florestal, que é seguido de
fragmentação e redução drástica de habitats. Estudos conduzidos pelo Programa Alternative to Slash
and Burn (A.S.B.) demonstraram que a destruição da floresta provoca uma rápida queda da
biodiversidade existente nos solos, que, por sua vez, induz a uma considerável perda de fertilidade
(A.S.B., 1998).
69
6. O TOCANTINS NA AMAZÔNIA
6.1. O desmembramento de Goiás e a criação do Tocantins
A idéia de criação do estado do Tocantins remonta ao século XIX, quando o norte de
Goiás “nutria um ressentimento contido, mas permanente, contra o governo e os homens de Vila
Boa de Goiás. Oprimido pelo fiscalismo colonial, os benefícios do governo incidiam muito mais
sobre o sul, cujos homens – próximos à administração – iam se transformando em burocratas... A
forte taxação que incidia sobre o gado exportado e o fato de grande parte dos homens livres da
capital serem funcionários sustentados pelos impostos, arrecadados sobre seu trabalho, tornava os
homens do norte conscientes da opressão que pesava sobre eles. Além do ressentimento, a
predominância da pecuária – em confronto com a agricultura predominante no sul – identificavaos mais com os estados do norte...” (Silva, 1997). Ainda segundo o autor, para atenuar os reclames
do norte, depois de muitas delongas, o Príncipe Regente D. João resolveu-se pela instalação da
Comarca do Norte, em alvará redigido no Rio de Janeiro, em 25 de fevereiro de 1814. Era o início
de tudo.
Não obstante a promulgação de vários decretos e a elaboração de ofícios, projetos e
anteprojetos de lei, a criação do estado do Tocantins (ou Comarca de Palma) nunca foi aceita nas
Constituintes e Constituições anteriores. Ainda assim, a luta pelo desmembramento do estado
continuou, tendo se intensificado na década de 1930, com a vitória da Revolução e a conseqüente
campanha nacionalista em prol da formulação do problema espacial brasileiro. E é com a
Constituição de 1937 que fica estabelecido que a “União poderá criar, no interesse da defesa
nacional, com partes desmembradas dos estados, territórios federais, cuja administração será
regulada em lei especial”. Data desse período a criação dos territórios de Fernando de Noronha,
Guaporé, Rio Branco, Amapá, Ponta Porã e Iguaçu.
A partir daí as iniciativas pró-criação do Território Federal do Tocantins, intensas nas
décadas de 1940 e 1950, seguem com a criação de comitês, movimentos e manifestos, até a última
e vitoriosa campanha pela criação do estado do Tocantins. O resultado dessa campanha foi a
aceitação, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987, do demembramento do estado de Goiás
para a criação do estado do Tocantins, efetivada, no ano seguinte, pela promulgação da
Constituição Federal (v. quadro a seguir). Fica então criado o novo estado, que integra a Região
Norte do Brasil, perfazendo uma superfície de 278.421 km2. Além de Goiás, limita-se também
com os estados do Piauí, Maranhão, Pará, Mato Grosso e da Bahia (Constituição Federal, art. 13
ADCT).
70
Dentre as inúmeras razões sócioeconômicas e políticas que inspiraram o movimento determinante pela emancipação do norte de
Goiás, devem-se destacar:
1. Identificação regional do sentimento separatista ao norte de Goiás;
2. Gestão local do vale Araguaia-Tocantins, potencialmente apto a suprir as necessidades de grãos do país;
3. Adequar os espaços amazônicos como alternativa para a migração da onda colonizadora do sul-sudeste e para o oeste do
país, alentando os investimentos privados pelo esforço na estrutura de apoio dos programas nacionais e internacionais
destinados à área do vale Araguaia-Tocantins;
4. Serenar a comoção social pela questão fundiária;
5. Aproveitar eficientemente as condições infra-estruturais de uma região central do país, com vocação para ser o eixo nodal
de circulação econômica nacional;
6. Redistribuir espacialmente o desenvolvimento nacional, contrapondo-se aos latifúndios políticos reinantes na Amazônia;
7. Impulsionar as potencialidades de uma região capaz de colocar-se, a curto prazo, em níveis de desenvolvimento superiores
a uma dezena de unidades federadas, em termos de renda, população e produção;
8. Reverter o processo de centralização da economia, permitindo maior integração regional com a superação das dificuldades
e disparidades existentes entre regiões ricas e periféricas;
9. Criar oportunidades de emprego produtivo, estimulando uma política adequada de distribuição de renda;
10. Propiciar uma expansão acelerada da oferta interna e externa de produtos básicos, em especial de alimentos;
11. Atrair investimentos nacionais e internacionais para construção de usinas hidrelétricas no alto e médio Tocantins, com
eclusas para hidrovia, a fim de suprir o consumo energético futuro do estado, além de atender os mercados consumidores de
Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal e Bahia;
12. A diversidade mineral local vai exercer papel indutor de investimentos nacionais e do exterior no novo estado;
13. Com o novo estado teremos um parque industrial moderno, priorizando a agroindustrialização;
14. Maior conteúdo social no processo de desenvolvimento local-regional;
15. Criar alternativas, a curto prazo, de produção e aumento da renda nacional;
16. A Ferrovia Norte-Sul, também chamada “Ferrovia do Grão”, vai cortar o solo tocantinense de norte a sul, além de ser
reativada a hidrovia Araguaia-Tocantins;
17. A criação do novo estado evitará o êxodo de nortenses;
18. Os programas especiais de desenvolvimento do vale Araguaia-Tocantins atrairão pequenos, médios e grandes
investimentos de iniciativa privada, do Brasil e do exterior;
19. Com a proteção das fronteiras fiscais, a arrecadação de impostos aumentará substancialmente e o dinheiro arrecadado
circulará exclusivamente no novo estado, deixando de existir as Guias de Transferência Fiscal do ICM do norte para o
sul, como ocorria com os grãos e o gado;
20. O pagamento de dívida da Nação só seria possível com trabalho, muito trabalho. Não se paga dívida sem produção, seja
de capital, seja de bens. Araguaína tinha a quarta arrecadação do estado de Goiás, seguindo-se o pólo industrial de
Formoso e o município de Gurupi;
21. O novo estado abrir-se-á para a exploração de seu potencial turístico, com a Ilha do Bananal, podendo-se transformar em
patrimônio ecológico da humanidade;
22. Os recursos para a implantação do novo estado serão encarados como investimentos de retorno a curto e médio prazos,
pois voltarão aos cofres da União pela forma de impostos e riquezas nacionais e internacionais circulantes.
Fonte: Silva, 1997.
6.2. O Tocantins como fronteira de recursos: ocupação do espaço e uso dos recursos
naturais
O processo de ocupação e colonização do território do atual estado do Tocantins é
complexo e as informações variam segundo a bibliografia consultada. De acordo com dados
apresentados no Diagnóstico e Áreas Prioritárias para a Agenda Positiva do Estado de Tocantins, o
desbravamento inicial do então estado de Goiás deveu-se, basicamente, a duas correntes humanas:
os bandeirantes, ao sul, e os missionários, ao norte. Todavia, devido às dificuldades de acesso e
71
penetração, as bandeiras pouco contribuíram para a colonização do antigo norte de Goiás e havia
maior concentração no sul do estado, até a altura do médio Tocantins (NAPIAm/SCA/MMA,
1999).
Para Silva (1997), a ocupação do estado deu-se principalmente pelo “ciclo da criação de
gado pelo homem do Nordeste brasileiro”, sobretudo de Maranhão e Piauí. Segundo o autor,
foram os “curraleiros” do Tocantins que deram os primeiros sinais de independência do norte de
Goiás, com a criação da comarca de Palmas, em 1809. E escreve:
Os homens do Norte, impelidos pela busca das riquezas interiores da terra tida por opulenta, penetravam o
vale com cautela, garantindo o seu avanço com uma retaguarda reforçada pelos currais e ranchos de
vaqueiros. Plantando currais pelo vale adentro, os bandeirantes do Norte avançavam lentamente, mas ainda
assim chegaram a atingir, no seu vagar, as regiões mineiras do Tocantins e Minas Gerais (Silva, 1997,
p.35).
Com a descoberta de promissoras minas e veios de ouro na região (São Félix, hoje
Minaçu-GO, Chapada e Natividade) em meados do século XVIII, vários mineradores foram
atraídos para o estado, que já se encontrava repleto de gado37. A partir de então, a região das
Terras Novas passa a ser o “eldorado” para inúmeros vaqueiros, donos de currais, comerciantes
aventureiros e donos de engenho do Pará e do Maranhão (Anuário do Tocantins, 2000). Esse
processo teve como resultado a formação de núcleos mineradores de composição étnica variada
(brancos, negros, índios, mulatos e mamelucos) e tipicamente urbana, que mais tarde se
transformaram nas cidades hoje conhecidas como Almas, Arraias, Conceição, Monte do Carmo e
Natividade (Silva, 1997).
Com a queda do ciclo da mineração, em meados do século XVIII, o Tocantins volta a
desenvolver a agricultura e a pecuária. Nessa época, as sesmarias, concessões de terras para a
implantação de atividade agrária ou pastoril, eram o principal instrumento de ocupação e
colonização de novos espaços. Convém ressaltar que, já nesse período, as concessões de terra para
as fazendas de criação de gado eram medidas em léguas e geralmente abrangiam maior extensão
territorial do que no sul.
No final do século XVIII e durante todo o século XIX, o Tocantins assiste a uma
formidável multiplicação de fazendas de gado, que foi reforçada por uma frente pecuarista
proveniente do Maranhão, de onde se deslocaram, no sentido oeste, pequenos criadores de gado à
procura de melhores pastagens. Isso pode ser ilustrado com as referências de antigos viajantes que
passaram pela região nesse período:
A pecuária foi introduzida inicialmente, na região, como atividade complementar à mineração, servindo como meio
de transporte, alimentação e vestuário.
37
72
Criação de gado é quase a única ocupação dos sertanejos do norte de Goiás. Eles despacham anualmente
para a Bahia um considerável número de gado vacum e cavalos, sendo estes últimos os melhores produtos de
Goiás. Somente o trânsito do comércio entre Baía, Pernambuco e o interior da província anima este vale
retirado... Ou então, usando o transporte fluvial pelo rio Tocantins, chega-se à cidade do Pará, em 15-16
dias de canoa. (Spix e Martius, 1938, p.227).
Os pastos são os melhores que se podem desejar, porque o gado vacum que fiz conduzir para aquela
povoação [São Pedro de Alcântara, atual Carolina], sendo de esperar que estranhassem a mudança dos
pastos de onde saíram e em que se criaram, pelo contrário, tomaram melhor nutrimento do que dantes
tinham nos pastos em que nasceram. (memória de Francisco José Pinto Magalhães, fundador de São Pedro
de Alcântara, oferecida ao governador Fernando Delgado em Janeiro de 1813 – Silva, 1997, p.72).
Simultaneamente, uma frente agrícola maranhense propagava-se no sentido norte do
Tocantins, em progressivo movimento em direção ao Pará. De modo efetivo foi-se intensificando
a ocupação do norte desse território, recoberto, à época, pela mata de babaçu e mogno, além de
grandes manchas de floresta, características das zonas de tensão ecológica da pré-Amazônia. Aí se
desenvolveu, em pequenos sítios, uma produção fundamentalmente de subsistência, que tinha na
rizicultura e no extrativismo da madeira e do babaçu seu suporte comercial (Seplan, 1997). As
culturas de algodão e fumo também tiveram seu lugar, sobretudo nos mercados europeus, para
onde eram exportadas, via Belém. Da mesma forma, o quartzo, também chamado de cristal de
rocha e considerado matéria-prima preciosa na indústria bélica, passa a ter importância estratégica,
fazendo renascer a mineração em várias regiões do Tocantins. Assim, durante o período
pombalino, frotas de canoas e botes desciam e subiam o rio Tocantins, fazendo surgir em suas
margens novos modelos de povoamento.
Com a extinção da Companhia de Comércio Pará–Maranhão, criada ainda no período
pombalino, o transporte de produtos fica comprometido. Em vista disso, o ouvidor Theotônio
Segurado luta pela navegação mercantil do rio Tocantins, seguido por Couto Magalhães, criador
de uma companhia de navegação a vapor no rio Araguaia. Os negócios com a praça de Belém são
então retomados, fazendo com que as municipalidades de Paranã, Peixe, Natividade, Porto
Nacional e Carmo, entre outras, despontassem em termos de desenvolvimento econômico, ainda
no século XIX.
Todavia, foi somente a partir de 1940 que o rio Tocantins voltou a ser, de fato, um vale de
prosperidade econômica, com os barcos a motor transportando passageiros e cargas entre o alto,
médio e baixo Tocantins (Silva, 1997). Mas essa fase da navegação mercantil fluvial não logrou
êxito por muito tempo e entrou novamente em decadência com a construção da rodovia Belém–
Brasília.
73
Atividade
Criação de gado
Mineração de ouro
Lavoura de algodão e fumo
Borracha da mangabeira
(caucho)
Mineração de cristal de rocha
Agropecuária
Data/Período
Século XVII, prolongando-se até a
terceira década do séc. XVIII
1730 a 1800
A partir da segunda metade do século
XVIII
Comentários
Expansão de fazendas de criação dos
sertões da Bahia, Pernambuco, Piauí
Início do século XX
Colonização do vale do Araguaia
Incentivada pela coroa portuguesa,
com a praça de Belém
Antes da construção da Belém–Brasília
Após a construção da Belém–Brasília
Quadro 6.1 – Ciclos históricos da economia do Tocantins
6.3. A ocupação mais recente e o surgimento de conflitos fundiários
Passados quase quinze anos da criação oficial do estado, pode-se dizer que a organização
espacial do Tocantins, hoje, é a síntese de um movimento histórico de incorporação da região ao
território nacional como fronteira de recursos, que sempre esteve dominada por atividades
difusas. Como área de expansão e acesso aos recursos amazônicos, o Tocantins sempre esteve às
margens do processo de modernização agrícola que dinamizou grande parte do território goiano
nas últimas décadas, constituindo-se em um grande “bolsão de miséria”, deslocado e distante dos
principais centros de desenvolvimento do país.
A interiorização da capital federal trouxe profundas mudanças para a realidade
socioeconômica da região Araguaia–Tocantins . O fluxo migratório torna-se intenso, provocado
pelo acesso a novas terras a um custo bastante baixo. Além disso, o vale do Araguaia–Tocantins
começa a mostrar-se dotado de extraordinárias potencialidades – terra, água, minério, fauna e
flora –, que atraíram migrantes fugidos das terras secas de Piauí, Ceará e Maranhão, que foram os
responsáveis pela construção de pequenos assentamentos, aos quais deram seu próprio nome:
Centro do Firmino, Centro dos Mulatos (hoje em vias de se tornar novo município), entre outros.
Nas palavras de Binka Le Breton,
estes primeiros colonos abriam as clareiras na floresta e estabeleciam suas roças de mandioca, arroz, feijão e
milho; mudavam os locais de plantio a cada ano ou a cada dois anos, pois havia terra suficiente para todos.
Palmeiras de babaçu cresciam em profusão, e as mulheres extraíam dos cocos um delicioso óleo de cozinha,
das folhas faziam cestos, e das cascas produziam carvão. Havia peixes nos rios e a caça na floresta. A terra
oferecia uma vida boa para aqueles que não precisassem planejar muito adiante... (Le Breton, 2000,
p.34).
Esse período corresponde também à fase de abertura da região sob o processo de
acumulação primitiva, caracterizando-se por unidades de produção e padrões de interação de
pequena escala, representados por pequenas posses, com lavouras de subsistência
(particularmente arroz) e fazendas de gado. A abertura da Belém–Brasília e de alguns de seus
74
acessos transversais redirecionam e incentivam a movimentação do excedente de mão-de-obra
nordestina, notadamente maranhense, no sentido da fronteira amazônica, impondo um novo
ritmo aos movimentos populacionais até então verificados. Também provoca a vinda de
fazendeiros de outras regiões (sobretudo Minas Gerais e sul de Goiás), que começam a migrar
com o objetivo de ampliar suas terras no centro-sul, que entravam em franco processo de
valorização. Esses novos atores apropriavam-se das terras onde implantavam pastagens,
preparadas após dois ou três anos de cultivo pelos pequenos colonos. Como a terra não tinha
valor e não era demarcada, o fazendeiro, em geral, não possuía título de propriedade. Todavia,
como os lavradores eram em sua maioria analfabetos e nada entendiam sobre seus direitos ou
sobre o conceito de propriedade e tampouco tinham recursos para cercar suas posses. era fácil
removê-los dali. Isso acontecia em troca de bens de consumo, de um bocado de dinheiro ou,
ainda pior, sob ameaças e violência. Os “novos donos” cercavam suas terras, proibindo a entrada
de terceiros, inclusive o acesso às palmeiras de babaçu (Orbignya sp.).
Um outro mecanismo de apropriação do espaço, bastante comum no então norte goiano,
era o registro paroquial, que alguns fazendeiros e empresários conseguiam efetuar junto ao vigário
local. Eram registros de grandes extensões, que não correspondiam à área utilizada, além de se
superporem, não havendo coincidência entre espaço econômico e jurídico (Becker, 1982). E toda
essa apropriação capitalista da fronteira por intermédio da expansão da pecuária foi
particularmente intensificada pela implantação dos sucessivos programas oficiais de valorização
do espaço e de sua integração à economia nacional: Programa de Pólos Agropecuários e
Agrominerais da Amazônia – Polamazônia, Programa de Desenvolvimento do Cerrado –
Polocentro, Programa Grande Carajás – PGC, além dos já citados PIN e Proterra, e ainda pela
implantação de grandes projetos incentivados pela Sudam e pelo movimento de arrecadação de
terras, promovido pelo Grupo Executivo de Terras do Araguaia–Tocantins – Getat38, que
acabaram por criar uma situação de conflitos latentes com as formas tradicionais de produção ali
existentes.
A frágil estrutura socioeconômica então vigente começa a ser alterada, alteração esta
provocada pelo avanço da fronteira econômica, que por sua vez afetava a composição da mão-deobra empregada, absorvendo inovações diversas, introduzidas por empreendimentos públicos e
privados voltados para mercados extra-regionais já consolidados. Os antigos sistemas de produção
foram sendo desmantelados pela dinâmica capitalista no campo, projetando a incorporação
Criado juntamente com Gebam, para atuar nas áreas de conflitos e conter a influência da Igreja, que vinha
assistindo os posseiros em litígio nessas regiões (Morissawa, 2001).
38
75
privada da terra, pela expansão de grandes estabelecimentos rurais, e a adoção do trabalho
assalariado em substituição às formas tradicionais de relação de trabalho.
Para o caso particular da região norte do estado, o processo de incorporação mais recente
da fronteira ocorreu em áreas cuja ocupação havia sido iniciada anteriormente dentro de um
sistema produtivo que, conforme já mencionado, utilizava a terra sem demarcar a propriedade.
Além disso, a falta de articulação da economia camponesa, baseada em sistemas de subsistência e
assentada na exploração extrativista de mogno e babaçu e na lavoura de arroz e milho, provocou
uma certa resistência, gerando fortes conflitos e tensões sociais.
O caráter indutor da Belém–Brasília e dos programas governamentais possibilitou a
implantação e o crescimento de inúmeros núcleos urbanos ao longo de seu traçado e
fundamentou a estruturação daquela que mais tarde viria a ser a rede urbana do estado do
Tocantins (Seplan, 1997). Vem daí o surgimento de várias vilas e povoados, especialmente na
região do extremo norte tocantinense, o Bico do Papagaio.
Outro caso típico é o da região de Araguaína, formada pelo grande, porém desordenado e
sem planejamento, crescimento do antigo povoado “Livra-nos Deus39”. Segundo Gurgel (1998),
tal crescimento deveu-se, quase que exclusivamente, à construção da rodovia Belém–Brasília (BR153), que facilitou a locomoção e trouxe para a região cearenses, piauienses, maranhenses,
baianos, mineiros, sulistas, enfim, brasileiros de todos os cantos, que passaram a se dedicar
totalmente à tarefa de desenvolver a região, que hoje é conhecida como a “Capital do Boi
Gordo”.
Diante de tantas mudanças e transformações na estrutura socioeconômica da região, não é
de estranhar que esse novo cenário, com diferentes atores e atuações, tenha sido responsável pelo
surgimento de vários conflitos entre os diferentes segmentos envolvidos. O norte goiano tornouse, durante anos, palco de inúmeras batalhas e lutas pela posse da terra, que envolveram um semnúmero de mortes, sobretudo no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Figura marcante na
região nessa época foi a de Padre Josimo Moraes Tavares, membro da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) e um dos maiores incentivadores da organização social dos trabalhadores rurais, conhecido
nacional e internacionalmente pelo seu engajamento na luta pela justiça social no campo e pela
posse da terra.
Nome dado ao povoado no final do século XIX, graças às constantes ameaças de ataque de índios e animais
selvagens que existiam na região. Posteriormente passou a se chamar Lontra.
39
76
6.4. O vai-e-vem das posses: concentração, distribuição e reconcentração de terras
Da mesma forma que nos outros estados amazônicos, o processo de ocupação do estado
do Tocantins foi promovido em grande medida pela abertura da Belém–Brasília , planejada para
incorporar novas áreas à fronteira de recursos do país nos idos de 1950 e 1960. Nesse contexto, o
Tocantins aparece como espaço de expansão pioneira. Entrementes, sua inserção histórica no
movimento de ocupação do interior do território brasileiro ocorreu tardiamente quando
comparado a outros estados amazônicos, e de forma descontínua e marginal (Seplan, 1997).
Para Silva (1997), a construção da rodovia trouxe “vantagens” para a região, em
decorrência dos fluxos migratórios que se adensaram nos distantes sertões, onde a convivência
com antigos moradores foi alterando modos de vida ali presentes. A derrubada indiscriminada da
floresta e a expulsão de antigos moradores – chamados de “posseiros” – também alteraram o
ritual de vida dos sertanejos, que antes tinham na caça, pesca e no extrativismo vegetal o seu
trabalho diário. Estes, por sua vez, deixam suas terras, deslocando-se para as margens da estrada,
onde começam a se formar os novos núcleos urbanos da Belém–Brasília. As pequenas posses são
então convertidas em grandes áreas de pastagens artificiais financiadas pelo governo com linhas
de crédito e incentivos fiscais. Além disso, a política de distribuição e venda de lotes foi, em
muitas regiões – entre elas Araguaína – direcionada para vários membros de uma mesma família,
favorecendo, mais uma vez, a reconcentração das terras em benefício de poucos.
A característica de descontinuidade dessa expansão “modernista” tornou evidente tãosomente que os investimentos governamentais e a política de créditos privilegiavam, num mesmo
espaço, a polarização de recursos em terras mais propícias ao cultivo ou à formação de pastagens,
agravando a situação de desenvolvimento regional. Uma manifestação concreta dessa
descontinuidade pode ser expressa pela posição privilegiada do município de Araguaína em
relação aos demais, explicada pelo fato de constituir-se ele na base para o estabelecimento de
capitais comercial, industrial e financeiro, no sentido de ser um ponto de acumulação que
facilitasse o avanço do capitalismo em termos de incorporação de novas áreas. Com esse fim,
Araguaína recebeu o maior número de projetos financiados pela Sudam em todo o estado, entre
os anos 1970-1980 (Aguiar, 1986).
Nesse período, portanto, a estrutura fundiária do estado reproduz o padrão de
concentração de terras característico do Centro-Oeste e norte do país, mas com diferenciações
intra-regionais relevantes quanto ao peso numérico da pequena produção. Nesse contexto,
destaque há que ser dado à região extremo-norte do Tocantins, onde os pequenos
estabelecimentos tiveram uma representatividade significativa, e os estabelecimentos inferiores a
77
200 hectares chegaram a representar, em certos municípios, mais de 85% do número total de
estabelecimentos rurais (Seplan, 1997), tornando aí a problemática fundiária ainda mais complexa,
particularmente numa área de expansão da fronteira pecuária, caracterizada por grandes
propriedades. De fato, a implantação de projetos voltados para a pecuária reforçou a valorização
desse espaço, recrudescendo os conflitos e a disputa pela posse da terra.
Vários desses conflitos, que envolviam pistoleiros, grileiros, fazendeiros, posseiros, povos
da floresta e população local, já foram descritos na historiografia da região e em relatóriosdenúncia produzidos por entidades de defesa dos direitos humanos, como a CPT, e não cabe,
aqui, discorrer sobre o tema. Todavia, como bem lembra Menezes (2000), esses conflitos tiveram
início quando o país passava por um período histórico de grande repressão, com profundos
reflexos na região. As oligarquias políticas eram as maiores detentoras de terras na região, mesmo
sem ter o poder econômico, detinham o poder político e ditavam as regras políticas ideológicas –
eram os chamados “coronéis do norte de Goiás”. Não interessava a essas oligarquias a apuração
de fatos para a solução dos conflitos pela posse e pelo uso da terra, pelo contrário, davam apoio
aos desmandos dos grileiros de terras, não considerando os direitos da população campesina que
explorava a área.
Buscando minimizar os impactos dos conflitos de terra deflagrados em várias regiões do
país, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) criou a CPT40, que tinha naquele
momento o objetivo de conter ou levar a público e à sociedade civil os conflitos no campo e as
arbitrariedades cometidas principalmente pela classe política. Essas ações fizeram com que o
governo brasileiro sofresse pressões internas e externas em favor de uma política de reforma
agrária mais ágil e justa. Dessa forma, a questão da reforma agrária volta à tona em meados da
década de 1980 e culmina na elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária, que, conforme já
apresentado (v. Capítulo 4), acabou sendo totalmente desfigurado pelos latifundiários,
inviabilizando a implantação da tão esperada reforma agrária.
As constantes denúncias e pressões, e ainda a morte (anunciada) de Padre Josimo, a qual
teve repercussão internacional, obrigaram o governo a tomar, mesmo a contragosto, algumas
medidas para diminuir a violência no campo e dar títulos de propriedade a algumas famílias de
posseiros. Para o caso específico do Tocantins, é importante mencionar que esse processo teve
Criada pela Igreja Católica em 1975, a CPT, juntamente com paróquias das periferias das cidades e das
comunidades rurais, passou a dar assistência aos camponeses durante o Regime Militar. No início esteve voltada à luta
dos posseiros do Centro-Oeste e Norte e tornou-se, mais tarde, com a eclosão de conflitos pela terra em todo o país,
uma instituição de alcance nacional. No Tocantins, a atuação da CPT teve início com a chegada, em 1979, do frei
francês Henri des Roziers, padre dominicano e advogado, que andava pelas comunidades ouvindo suas queixas e
40
78
como resultado a determinação, pelo governo federal, em 1987, de desapropriação de oito
fazendas localizadas na região do Bico do Papagaio, para fins de criação de projetos de
assentamento e reforma agrária (Menezes, 2000). Tem-se assim o início da atuação do Incra no
estado, por meio da criação, ainda no mesmo ano, dos Projetos de Assentamento Amarrio, São
João, Cachoeiras, Camarão, Montes Altos, Alegre, Fazenda São Pedro e Grotão, com capacidade
para abrigar cerca de 340 famílias em uma área de quase 22 mil hectares.
6.5. O Incra e a criação de projetos de assentamento no Tocantins
Diferentemente dos outros estados amazônicos, a fase de colonização oficial iniciada pelo
Incra na década de 1970 não atingiu o Tocantins. Conforme já mencionado, o referido órgão só
começou o processo de assentamento de famílias em lotes rurais no final dos anos 1980, como
resposta aos conflitos desencadeados ainda na década anterior. Essa atuação tardia pode ser
explicada pelo controle militar exercido na região até recentemente. Primeiramente a presença
militar na região deveu-se à instalação de um grupo de guerrilheiros do Partido Comunista do
Brasil nas margens do rio Araguaia, na região de Xambioá, fato que ficou conhecido como A
Guerrilha do Araguaia. Esse grupo tinha como objetivo o estabelecimento de relações com os
camponeses locais para conscientizá-los da necessidade da luta armada contra os latifundiários e o
governo da burguesia. Embora os guerrilheiros nunca fossem mais do que uma centena, eles
causaram uma agitação suficiente para mobilizar uma força de milhares de soldados durante mais
de dois anos. Essa inesperada resistência nas fronteiras da civilização fez com que o governo
federal decidisse tomar o controle da área e invocasse a lei de Segurança Nacional, designando
uma força-tarefa para monitorar a situação das terras na região: o Getat.
A “militarização” da questão agrária na região até meados dos anos 1980 explica, talvez, a
existência de apenas uma modalidade de projeto de reforma agrária no estado: o Projeto de
Assentamento (PA). Outros estados, como Rondônia e Pará, onde a colonização oficial foi
marcante na década de 1970, possuem diferentes tipos de projeto, como os Projetos de Integração
e Colonização (PIC), que recebiam assistência técnica e empréstimos em dinheiro por parte do
Incra; Projetos de Assentamento Rápido (PAR), que eram implantados em áreas de tensão social,
mas que só existiram até 1986; Projeto de Assentamento Dirigido (PAD), destinado a assentados
com maior grau de conhecimento das formas de produção e recursos financeiros próprios;
Projeto Agroextrativista (PAE), que beneficia agricultores que também são extrativistas; etc.
aconselhando-as sobre seus direitos legais, juntamente com três freiras francesas. Em 1983 chega à região Padre
Josimo, que assume a paróquia de São Sebastião do Tocantins (Le Breton, 2000; Morissawa, 2001).
79
Da mesma forma, a presença de grupos militares no norte do estado também pode ter
sido responsável pelo controle do fluxo migratório ocorrido na década de 1970. Mesmo com a
construção da BR–153, as correntes migratórias foram muito menos intensas no Tocantins do
que nas regiões da BR–364 (Rondônia) ou da Transamazônica (Pará). O Incra e os serviços de
terras estaduais de Goiás e Pará (Idago e Iterpa, respectivamente) são nessa fase as instituições
estatais de apoio para acelerar a articulação regional em nome da regularização das terras e, não
necessariamente, da justiça social. Nesse processo, era comum o pequeno posseiro perder suas
terras por não ter condições de informação e de dinheiro para regularizá-las (Becker, 1982).
Independentemente das explicações, o fato é que, a partir de 1987, as famílias de posseiros
do Tocantins que conseguiram resistir a esse processo de apropriação indevida da terra começam
a ter seus direitos de propriedade reconhecidos com a criação dos projetos de assentamento. Hoje
o estado é detentor de mais de 200 projetos de assentamento, que estão sob a responsabilidade do
Incra, os quais têm capacidade para acolher cerca de 18 mil famílias em uma superfície total de
mais de 800 mil hectares (Tabela 6.1). Essa superfície, quando comparada à dos demais estados
amazônicos, pode ser considerada pequena, representando apenas 2,35% da área destinada a
todos os projetos de assentamento criados na Amazônia Legal, e 3% do estado, que, conforme já
discutido, ainda é dominado por um cenário de concentração de terras. Nesse contexto, voltamos
a fazer referência à região do Bico do Papagaio, que teve sua estrutura fundiária bastante alterada
nos últimos anos, abrigando, atualmente, 60% dos projetos de assentamento existentes em todo o
estado.
Tabela 6.1 – Número total de projetos de assentamento criados pelo Incra, nos estados da
Amazônia Legal até julho de 2001
Estado
Capacidade de famílias
Número de projetos
Área total (ha)
Acre
Amapá
Amazonas
Maranhão
Mato Grosso
Pará
Rondônia
Roraima
Tocantins
19.243 (4,57%)
9.012 (2,14%)
24.448 (5,80%)
72.508 (17,21%)
67.210 (15,95%)
126.700 (30,07%)
57.363 (13,61%)
27.063 (6,42%)
17.783 (4,22%)
63 (3,89%)
27 (1,66%)
36 (2,22%)
438 (27,07%)
307 (18,97%)
397 (24,54%)
113 (6,98%)
33 (2,04%)
204 (12,61%)
1.578.894,08 (4,57%)
1.381.902,79 (4,00%)
2.176.660,91 (6,31%)
2.428.574,64 (7,04%)
4.437.293,28 (12,86%)
13.476.828,07 (39,05%)
4.614.991,86 (13,37%)
3.607.686,00 (10,45%)
812.793,13 (2,35%)
Amazônia Legal
421.330 (100%)
1.618 (100%)
34.515.624,76 (100%)
Fonte: Diretoria de Assentamento/Incra, 2001.
80
Além da criação de projetos de assentamento, o Incra também tem competência para
regularização fundiária das áreas da União e cadastro de imóveis rurais. Todavia, com a meta
federal de assentamento de famílias no campo – prioridade do governo Fernando Henrique
Cardoso desde 1995 –, o Incra passou a concentrar seus esforços nesta, relegando as outras
atividades a segundo plano. Ciente dessa situação e disposto a interferir, no sentido de dar
encaminhamento ao processo de regularização fundiária no estado, o Instituto de Terras do
Tocantins (Itertins) firmou convênio com aquela instituição, ficando responsável pelas questões
relativas aos processos de regularização, demarcação e emissão de títulos definitivos para imóveis
e propriedades rurais incidentes em áreas anteriormente destinadas à União, tais como as terras
situadas nas faixas de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo das rodovias.
Em outras palavras, pode-se dizer que a atuação do Incra no estado do Tocantins tem-se
resumido à criação e implantação de projetos de assentamento, enquanto ao Itertins coube a
missão, por meio de convênio Incra/Itertins, de regularização fundiária dos imóveis rurais
incidentes no estado.
6.6. O estado hoje: caracterização geral e atividades produtivas desenvolvidas
Com o intuito de contextualizar melhor a área de estudo, faremos aqui uma breve
descrição das características ambientais e socioeconômicas do estado do Tocantins, indicando
dados sobre as condições físicas da região – hidrografia, clima, temperatura, solos e vegetação –, a
população atual e as principais atividades econômicas desenvolvidas, o uso atual da terra e um
cenário de desenvolvimento político-econômico previsto pelo governo estadual.
6.6.1. Condições físicas favoráveis ao desenvolvimento de atividades agropecuárias
O estado do Tocantins é dividido longitudinalmente por um divisor, orientado no sentido
sul–norte, dos sistemas hidrográficos do Araguaia e do Tocantins. Assim, abrange
aproximadamente dois terços da área da bacia hidrográfica do rio Tocantins e um terço da do rio
Araguaia, além de várias sub-bacias importantes (NAPIAm/SCA/MMA, 1999). Essa
característica faz com que o Tocantins seja um dos estados brasileiros mais ricos em recursos
hídricos, os quais vêm sendo aproveitados para irrigação, geração de energia, empreendimentos
relacionados ao turismo ecológico e construção de hidrovias.
A regionalização climática do estado evidencia um gradiente de umidade no sentido oeste–
leste, variando entre clima úmido com pouca deficiência hídrica na região da Ilha do Bananal, com
81
precipitação anual de mais de 2.000 mm, e clima sub-úmido seco, com moderada deficiência
hídrica na região limite dos estados de Goiás e Bahia, com precipitações inferiores a 1.300 mm. A
região do Bico do Papagaio apresenta um clima próprio, úmido/sub-úmido, com pequena
deficiência hídrica. As temperaturas médias anuais variam entre 24 e 28o C no período das chuvas
(outubro–março) e 28 e 35o C na estação seca.
Com relação ao relevo, o estado exibe uma variada gama de feições morfológicas,
resultantes da evolução de fatores climáticos e/ou adaptações às diversidades litológicas e
condicionantes
estruturais,
que
foram
compartimentalizados
em
quatro
unidades
geomorfológicas: planaltos da bacia sedimentar do rio São Francisco, depressões do Araguaia–
Tocantins, planície do Bananal e planaltos residuais do interflúvio Araguaia-Tocantins. É
importante ressaltar que algumas dessas classes oferecem condições naturais propícias para o
desenvolvimento de atividades agropecuárias, como é o caso da planície do Bananal que, por estar
coberta por pastagens naturais, favorece a pecuária extensiva. Além disso, essa mesma região, em
virtude de suas características topográficas, pluvi e fluviométricas, conforma uma das regiões
brasileiras mais aptas para o desenvolvimento da agricultura irrigada por gravidade (Seplan, 1998).
De acordo com levantamentos realizados pelo Projeto Radambrasil e pelo Zoneamento
Ecológico-Econômico, os solos compreendidos no estado podem ser divididos em onze classes
predominantes. Latossolos roxos, terras roxas estruturadas, latossolos vermelho-amarelo,
vermelho-amarelo escuro e solos aluviais cobrem 35,4% do estado e apresentam as melhores
alternativas para o uso agrícola intensivo. As demais classes apresentam restrições em vários níveis
de aplicação de tecnologias e não respondem satisfatoriamente à intensificação de capital. Solos
Gley, lateritas hidromórficas e cambissolos (17%), embora não recomendáveis para a agricultura,
são favoráveis à implantação de pastagens cultivadas. Somente as areias quartzosas, que
representam 13% do estado, apresentam fortes restrições em termos de atividades agropecuárias e
são recomendadas para a silvicultura ou para o aproveitamento de pastagens naturais
(NAPIAm/SCA/MMA, 1999).
Em termos fitoecológicos, o Tocantins representa uma zona de transição entre dois
grandes biomas brasileiros: o Cerrado e a Amazônia. Assim sendo, o estado tem grande parte de
seu território caracterizado por áreas de tensão ecológica (ecótonos) entre cerrado e floresta
tropical úmida, que, em virtude das as condições geomorfológicas e climáticas, foram
configurando diferentes tipos vegetacionais. Originalmente, sua cobertura vegetal era composta
por terrenos cobertos com vegetação florestal e campestre, característicos das zonas fitoecológicas
denominadas Floresta Ombrófila Densa (4,3%) e Aberta (5,4%), Floresta Estacional Decidual
(0,6%) e Semidecidual (1,9%) e Cerrado (87,8%). Atualmente os agrupamentos florestais
82
primários, com pouca intervenção, ou secundários fragmentados e vegetação campestre natural
encontram-se bastante reduzidos em razão do avanço da fronteira agrícola, que tem como reflexo
o aumento nas taxas de desflorestamento observadas no estado nas últimas décadas.
6.6.2. Crescimento populacional: dinamismo e desigualdades regionais
A uma taxa média de crescimento de 4% ao ano (o dobro da média nacional), a população
do estado, estimada em 1950 em pouco mais de 200 mil habitantes, passa, em 1970, para 520 mil,
chegando a quase 740 mil em 1980 e mais de 1.150 mil em 2000 (Tabela 6.2). É interessante notar
que esse crescimento não se deu de maneira uniforme. Até meados de 1950 a população era
predominantemente rural. Todavia, após a construção da Belém–Brasília e a conseqüente
expulsão dos posseiros de suas terras, o estado começa a apresentar taxas negativas de
crescimento da população rural (-1,22% entre 1980 e 1991 e -4,67% entre 1991 e 1996), contra
elevadas taxas de incremento urbano (5,53% e 7,03%, respectivamente), configurando um
processo importante de urbanização, iniciado ainda na década de 1970: em 30 anos a
concentração urbana passou de 25 para 75% (Tabela 6.2, Figura 6.1).
Tabela 6.2 – Tocantins: população (urbana e rural), taxa de crescimento e densidade demográfica
Ano
1950*
1960*
1970*
1980*
1991
1996
2000
Taxa anual
(%)
204.041
328.486
521.211
738.884
4,20
919.863
2,01
1.048.642
2,70
1.157.098
2,61
Total
Urbana (%)
26.297 (12,90)
57.935 (17,64)
128.860 (24,72)
293.442 (39,71)
530.636 (57,69)
741.009 (71,50)
859.961 (74,32)
Taxa anual
(%)
5,53
7,03
-
Rural (%)
177.744 (87,10)
270.551 (82,36)
392.351 (75,28)
445.442 (60,29)
389.227 (42,31)
307.633 (28,50)
297.137 (25,68)
Taxa anual
(%)
1,28
(-) 1,22
(-) 4,67
-
Hab./km2
0,77
1,18
1,82
2,58
3,30
3,77
4,17
* Dados referentes às décadas de 1950 a 1980 foram desagregados do estado de Goiás, de acordo com os municípios
que passaram a integrar o estado do Tocantins. Fonte: IBGE, 1998; 2001.
População residente no Tocantins
Milhares de habitantes
1.500
Total
Urbana
Rural
1.000
500
0
1950
1960
1970
1980
1991
1996
2000
Figura 6.1 – População residente no estado do Tocantins, 1950-2000 (Fonte: IBGE, 1998; 2001.)
83
A distribuição espacial da população também merece atenção, em decorrência da
diferenciação apresentada entre os municípios que compõem o estado. Municípios com densidade
demográfica elevada avizinham-se de outros cuja densidade ainda é baixa, como Araguaína, com
28,53 hab./km2, e Muricilândia, com 2,57 hab./km2. Casos extremos como os de Axixá, com mais
de 90 hab./km2, e Mateiros, com 0,29 hab./km2, também são verificados no estado.
Outro fator que denota a desigualdade do crescimento populacional no estado é a taxa
média anual de 29% em Palmas, entre 1991 e 1996, contra apenas 2,7% quando consideramos o
estado em sua totalidade.
Por fim, e como reflexo da intensificação das atividades produtivas e de ocupação do
espaço, tem-se uma grande multiplicação das regiões administrativas. A partir da desagregação dos
dados existentes para o estado de Goiás, verifica-se que a superfície do atual estado do Tocantins
contava, em 1950, com apenas 14 municípios. Hoje a situação é um pouco diferente e há dez
vezes mais municípios, ou seja, nada menos que 139 municípios, agrupados em nove áreasprograma e 18 regiões administrativas (Seplan, 1999).
6.6.3. Uso atual e distribuição das terras no estado
De acordo com dados apresentados no Atlas do Tocantins, o uso atual da terra pode ser
classificado em formações florestais (que cobrem cerca de 13,1% da área total do estado);
pastagens naturais ou plantadas (26,9%), terras agriculturadas (1%), vegetação de cerrado –
campo, campo cerrado e cerradão (56,6%); rios, lagos, represas e açudes (2,3%); e outras formas
de uso, tais como áreas destinadas à mineração ou comprometidas com o uso urbano (0,1%)
(Seplan, 1999).
Em termos de distribuição das terras, o estado apresenta cerca de 20% de sua superfície
em áreas de uso restrito, destinadas à conservação ambiental e à proteção de comunidades
indígenas administradas pelos governos federal e estadual. Outras áreas potenciais para
preservação do meio ambiente já foram identificadas pela Seplan/TO e representam outros 4,5%
do estado a serem conservados, mas sua implementação ainda não foi efetivada.
Os projetos de assentamento criados pelo Incra e as áreas regularizadas pelo Incra e
Itertins somam sete milhões de hectares, representando 25% da superfície total do estado,
conforme mostra a tabela a seguir.
84
Tabela 6.3 – Distribuição das terras no estado do Tocantins
Destinação da área
UC de uso sustentável (estaduais e federais)
UC de proteção integral (estaduais e federais)
Terras indígenas
Projetos de assentamento Incra
Regularização fundiária Incra
Regularização fundiária Itertins
Total
Superficie total
(ha)
2.227.154
1.447.611
2.170.948
812.000
3.688.000
2.500.000
12.845.713
% com relação à
área do estado
7,98
5,16
7,80
2,92
13,25
8,98
46,10
Fonte: Jica, 1998; Seplan, 2001.
Quanto à propriedade da terra, 63% da extensão territorial do Tocantins encontra-se
matriculada em nome de pessoas físicas ou jurídicas, incluindo áreas ocupadas por invasores.
Conforme pode ser observado na tabela a seguir, as propriedades privadas representam a maior
parte, com uma área média de 435 hectares. A área média ocupada por invasores também é
relativamente grande quando comparada às áreas públicas: 152 hectares por família, contra 15,33
hectares por estabelecimento, em média.
Tabela 6.4 – Situação da propriedade da terra no Tocantins
Categoria
Proprietários
Arrendatários
Parceiros
Ocupantes
Áreas públicas
Total
Área total em
hectares
15.882.000
83.000
39.000
1.350.000
688.706
18.042.706
Número de
propriedades
36.522
1.379
527
8.892
44.913
47.320
Área/propriedade
(ha)
434,9
60,2
74,0
151,8
15,33
366,7
Fonte: JICA, 1998.
O estado apresenta um alto grau de concentração de terras, com índice de Gini41 em torno
de 0,7 e elevado número de propriedades com mais de cem hectares. Todavia, a criação de
projetos de assentamento nos últimos anos, principalmente na região do Bico do Papagaio, reflete
uma mudança na estrutura fundiária vigente até então, que era baseada na concentração de
extensas porções de terras em mãos de alguns poucos fazendeiros. Essa mudança também pode
ser confirmada pela evolução do número de estabelecimentos rurais de acordo com suas
respectivas classes de tamanho. Conforme pode ser observado na Figura 6.2, entre 1985 e 1995
O índice de Gini, que varia de 0 a 1, é um atributo utilizado para medir o grau de concentração de terras; quanto
mais próximo de 1 – concentração absoluta –, maior é a concentração.
41
85
houve um modesto incremento no número de propriedades com área entre dez e cem hectares,
contra uma pequena redução nos imóveis entre cem e mil hectares.
Número de estabelecimentos rurais - Tocantins, 1985-1995
o
N de estabelecimentos (%)
50
1985
1995
40
30
20
10
0
menos de 10
10 - 100
100 - 1.000
1.000 - 10.000
10.000 e mais
Classes (ha)
Figura 6.2 – Número (classes) de estabelecimentos rurais no Tocantins, 1985-1995
Fonte: Censo Agropecuário IBGE, 1996.
6.6.4. Cenário político-econômico para o desenvolvimento do “estado da iniciativa privada e da justiça social”
Após o desmembramento do estado de Goiás, o Tocantins vem se empenhando para
fazer valer sua independência política e econômica, por meio de diferentes planos e programas de
desenvolvimento do estado. Para impulsionar um crescimento econômico, a primeira grande
medida foi a construção da capital definitiva, na margem direita do rio Tocantins. Tal medida
provocou adensamento e melhoria significativa da malha de transportes e fornecimento de
energia elétrica para a porção oriental do estado, que, em 1996, já concentrava quase 30% da
população e aproximadamente 35% da atividade econômica do Tocantins.
Constituindo a atividade econômica fundamental na redefinição da ocupação do espaço
rural do Tocantins, a pecuária de corte é um elemento básico para a compreensão da forma de
inserção de seus municípios na economia de mercado. Com o apoio do governo, por meio da
implantação de infra-estrutura e concessão de incentivos fiscais e créditos subsidiados, a pecuária
extensiva passou de atividade de subsistência para a produção capitalista.
Além de uma vocação agrícola indiscutível e de uma posição estratégica que aproxima o
Tocantins dos mercados das regiões Centro-Oeste, Nordeste e da Amazônia, as políticas adotadas
no estado convergem para o aumento da produção de grãos e o aumento do rebanho bovino.
Exemplos desse esforço traduzem-se na implantação de grandes projetos agropecuários, como:
86
Javaés, região cujas características, por ser localizada no sudoeste do estado, favorecem a
produção de grãos e a agropecuária; Prodecer III, ou Programa de Cooperação Nipo-Brasileira
para o Desenvolvimento do Cerrado, localizado no município de Pedro Afonso e que tem como
meta o estabelecimento de um sistema de produção agrícola por meio de desenvolvimento,
aplicação e aperfeiçoamento de técnicas, como diversificação de culturas e implantação de
sistemas de irrigação; Campos Lindos, em região tida como a mais recente fronteira agrícola do
estado, voltada para a produção de grãos (soja, arroz e milho) e frutas tropicais, com alto padrão
tecnológico; Sampaio, destinado ao cultivo de arroz irrigado, em consórcio com soja e milho, e
ao desenvolvimento da fruticultura na região do Bico do Papagaio; Jalapão, localizado em uma
área de vegetação de cerrado pouco densa, com incidência de solos arenosos suscetíveis à
degradação, mas com extensa rede hidrográfica e elevado potencial para ecoturismo e silvicultura
(produção de carvão vegetal e pasta de celulose) (Sepro, 2000).
Evidentemente, todas essas potencialidades só poderiam ser desenvolvidas se o estado
dispusesse de uma infra-estrutura de transportes e de energia que tornasse viável a ocupação
econômica de seu território. Vêm daí os investimentos em hidrovias e hidrelétricas, estaduais e
federais, que, mais uma vez, aproveitam-se das condições naturais – as grandes bacias
hidrográficas dos rios Araguaia e Tocantins – para desenvolver a economia do estado.
Ocorre, porém, que esses projetos nem sempre levam em conta aspectos ecológicos,
desconsiderando o passivo socioambiental advindo da implantação de projetos de tal natureza.
Prova disso é a não-aprovação, em forma de lei, por parte dos órgãos competentes, de projetos
como a hidrovia Araguaia-Tocantins e Sampaio, que foram inviabilizados por falta de estudos que
comprovassem a inexistência de impactos ou, ao menos, propusessem medidas mitigadoras para
minimizar os impactos sociais e ambientais advindos da implantação dessas obras.
Em termos de políticas agrárias, mais exatamente aquelas voltadas para a implantação de
projetos de assentamento, ressalta-se que o estabelecimento de metas federais muitas vezes impõe
aos governos estaduais a adoção de medidas desarticuladas com os demais setores e níveis de
governo. Decorrem daí os inúmeros casos de sobreposição espacial entre projetos de
assentamento, unidades de conservação, terras indígenas, etc.
87
7. A GRANDE REGIÃO DE ARAGUAÍNA E O CASO DE BARREIRA
BRANCA: ENTRE O DESENVOLVIMENTO E A CONSERVAÇÃO
Quando da sua criação e instalação, em 1958, o município de Araguaína ocupava uma área
de 9.098 km2. Atualmente, no entanto, sua superfície está reduzida a pouco mais de um terço
daquela área, graças à emancipação de cinco dos seus mais importantes e ricos distritos:
Aragominas, Araguanã, Carmolândia, Muricilândia e Santa Fé do Araguaia.
Pela sua localização geográfica, pode-se considerar que essa região se encontra em uma
posição privilegiada, não apenas no estado do Tocantins, como em toda a Região Amazônica.
Situada entre o rio Araguaia e a BR–153, localiza-se numa rica área de terras entre os rios Lontra e
Andorinha, afluentes daquele rio. Em termos vegetacionais, a região abrange, em sua extensão,
diferentes classes fitoecológicas, que vão do cerrado à floresta ombrófila densa, passando pela
floresta ombrófila aberta, características que lhe conferem uma notável riqueza em termos de
recursos naturais e biodiversidade.
Talvez seja por isso mesmo que suas terras sempre têm sido motivo de interesse e cobiça
por parte de diferentes atores que lá chegaram, sobretudo grandes fazendeiros e criadores de
gado. Isso porque sua classificação, em termos de uso, indica uma grande potencialidade para o
desenvolvimento de atividades intensivas, sejam elas relacionadas a culturas de ciclo longo, curto,
ou pecuária. É justamente nesse contexto que está inserida a chamada região de Barreira Branca,
considerada o último remanescente do bioma amazônico no Tocantins, e objeto do nosso estudo
de caso.
7.1. As terras em Barreira Branca: desenvolvimento ou conservação?
Embora o cenário traçado para a região de Barreira Branca seja de desenvolvimento de
atividades agropecuárias e, portanto, de conversão de grandes áreas em culturas e pastagens, ela
esteve, por muito tempo, à margem dos grandes desmatamentos que caracterizam o restante do
estado. Por esse motivo, vem sendo considerada, desde meados da década de 1990, uma área
prioritária para conservação da diversidade biológica. Todavia, a história de ocupação da região
mostra que essa riqueza já está bastante ameaçada.
Levantamentos realizados no município de Aragominas e entorno permitem-nos supor
que os “primeiros donos” das terras localizadas na região de Barreira Branca tenham sido
reconhecidos no âmbito das políticas de ocupação e integração da Amazônia, implementadas a
88
partir dos anos 1950, que no Tocantins foram impulsionadas com a construção da Belém–Brasília.
Data dessa época a criação dos já mencionados loteamentos Rio Lontra e Andorinha e Barra do
Ribeirão Muricizal, que subdividiu uma área de mais de 300 mil hectares em glebas destinadas à
instalação de projetos agropecuários (Figura 7.1a). Sob a égide da dinamização das atividades de
produção e exploração econômica, as glebas então existentes deveriam ser “distribuídas” entre
diferentes proprietários, cabendo a cada um deles um, e não mais que um lote. Entretanto,
analisando os documentos cartoriais existentes e acessíveis, percebe-se que muitos deles haviam
sido registrados em nome de diferentes pessoas, mas várias delas pertencentes a uma mesma
família (Figura 7.1b). Ao longo das décadas de 1970 e 1980, essa mesma documentação mostra
um franco processo de reconcentração fundiária e de formação de grandes latifúndios, muitas
vezes improdutivos ou sub-utilizados (Figura 7.1c).
a) 1950-1960
“Loteamento Rio
lontra e Andorinha”
b) 1970
c) 1980
Loteamento Barra do
Ribeirão Muricizal
Figura 7.1 – Cadeia dominial das terras da grande região de Araguaína – loteamentos Lontra e
Andorinha e Barra do Ribeirão Muricizal: cores iguais representam lotes de uma mesma família
(adaptado de Le Tourneau, em preparação.)
Como forma de garantir a posse dessas terras e minimizar a incidência de impostos (por
exemplo, ITR) sobre as áreas “não-trabalhadas”, os proprietários converteram grandes extensões
de floresta em áreas de pastagens artificiais para a criação de gado em sistema extensivo42.
Todavia, essas áreas convertidas não integravam toda a propriedade, que, por ser bastante extensa,
42 De acordo com dados do PGAI/TO, a capacidade suporte dessa região foi estimada em 1 cabeça/5 hectares, ou
0,2 cab./ha, produtividade considerada extremamente baixa e de alto custo ambiental. Apenas para contrapor esses
dados, é importante frisar que a carga média da pecuária amazônica é de 0,7 cab./ha – que já é considerada baixa – e,
das demais regiões brasileiras, de 1,3 cab./ha (Veríssimo et al., 2000).
89
permitia a manutenção dos 50% de área de reserva legal exigidos por lei até então43. Tem-se assim
um mosaico formado por grandes áreas desflorestadas e superfícies cobertas por floresta
ombrófila praticamente intacta ou pouco alterada por ações antrópicas, situação que foi mantida
até meados da década de 1990 (Figura 7.2).
Fazenda Vitória Régia
Fazenda Pontal
Fazenda Barreira Branca
Fazenda Santa Marina
Fazenda São Manoel I
Fazenda São Manoel II
Fazenda
São Sebastião
Fazenda
São Manoel
Fazenda Baviera
Fazenda São Gabriel
Fazenda Dois Corações
Fazenda Cheyenne
Fazenda Barra
do Mogno
Fazenda Malasca
aprox. 5 km
Figura 7.2 – Fazendas existentes na região de Barreira Branca: um mosaico de áreas
desflorestadas (em tons de rosa e verde claro) e superfícies cobertas por floresta ombrófila (verde
escuro)
A existência de grandes superfícies florestais nesse ambiente despertou o interesse do
órgão estadual de meio ambiente, que passou a considerá-lo como área de grande potencial para a
conservação da biota e demais atributos naturais ali existentes. Dessa forma, após levantamentos
realizados na área, esse interesse foi traduzido na elaboração de uma proposta, por parte da Seplan
e sua Coordenação de Zoneamento Ecológico-Econômico, para a criação de uma unidade de
conservação. Essa proposta previa a criação de uma reserva biológica44 – a Reserva Biológica
Barreira Branca – em uma área de aproximadamente 60 mil hectares.
Art. 16, b da Lei no 4.771, de 1965 – o Código Florestal – que com a Medida Provisória 1.956-48, aumentou esse
percentual para 80%.
44 As reservas biológicas (ReBio) pertencem ao grupo de unidades de conservação de proteção integral e estão
destinadas à preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência
humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e
43
90
Ocorre, porém, que, dentro do programa de governo vigente naquela época – Programa
Brasil em Ação –, estava previsto também o assentamento de milhares de famílias nos diversos
estados brasileiros, não se excluindo o Tocantins desse processo.
Ciente da situação de improdutividade e/ou sub-utilização dessas terras, o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais (STR) da região organizou frentes de ocupação, reivindicando essas áreas
para a implantação de projetos de assentamento. Em vista disso, a partir de 1995/1996, a região
começa a ser ocupada por centenas de famílias, que vão se instalando nas áreas de floresta
remanescentes, implantando aí seus sistemas tradicionais de cultivo – como a agricultura de corte
e queima – e explorando os recursos florestais ainda existentes, o que começa a comprometer a
integridade da área proposta para a criação da reserva biológica.
A opção pela ocupação em áreas florestais justifica-se pelo fato de que nessas áreas o
controle, por parte de seus proprietários – ou “gerentes” encarregados pela administração das
fazendas –, é mais difícil, possibilitando a instalação das famílias sem maiores enfrentamentos e
conflitos. De fato, conforme mencionado no 14o Relatório do Grupo Consultivo Internacional –
IAG45 –, que avalia a atuação do PPG-7, a invasão atual de grandes fazendas por agricultores sem
terra organizados ocorre quase exclusivamente nas áreas de floresta das propriedades. Isso se deve
parcialmente, sem dúvida, à reação armada dos proprietários, quando as áreas de pastagem das
propriedades são invadidas. Além disso, grande parte dos posseiros e ocupantes é originária de
regiões vizinhas – do Maranhão ou do próprio estado – e já estão acostumados às adversidades
impostas pela vida na floresta.
Diante do cenário que se desenha e ainda sob pressão do sindicato e das metas federais de
realização da reforma agrária e assentamento de famílias, o Incra não vê outra alternativa senão
adquirir as fazendas para a instalação dessas famílias, contrariando a proposta de criação da ReBio
Barreira Branca. Esse processo tem início ainda em 1996, quando é criado o Projeto de
Assentamento Baviera, por meio da compra de fazenda de mesmo nome, com capacidade para
abrigar 142 famílias em uma área de 5 mil hectares. A partir daí, cinco outros projetos foram
criados nos anos que se seguiram, somando, no final de 2001, mais de 40 mil hectares, onde
foram assentadas cerca de mil famílias (Tabela 7.1).
as ações de manejo necessárias à recuperação e preservação do equilíbrio natural, da diversidade biológica e dos
processos ecológicos naturais, conforme determinado em seu plano de manejo.
45 International Advisory Group
91
Tabela 7.1 – Projetos de assentamento criados pelo Incra no município de Aragominas
Nome do projeto
Baviera
Dois Corações
Reunidas
Mogno
Vitória Régia
São Gabriel
Total
Área (ha)
5.000,00
3.049,72
17.810,19
5.131,11
6.208,10
4.434,77
42.633,89
Capacidade de famílias Média/lote (ha) Ano da criação
142
35,2
1996
62
49,2
1997
402
44,3
1998
132
38,9
1998
158
39,3
1998
107
41,4
2001
1.003
-
Fonte: Divisão de Assentamentos/Incra, 2001.
A forma de aquisição dessas terras, contudo, foi a desapropriação, justificada pelo nãocumprimento da sua função social. Em outras palavras, essas terras estavam sendo sub-utilizadas,
com taxas de aproveitamento, em alguns casos, inferiores a 5% da área total aproveitável.
Outrossim, quase todas as fazendas desapropriadas contavam com uma superfície de mais de
1.000 hectares ou estavam registradas em nome de uma mesma pessoa, o que justificava, mais
uma vez, sua desapropriação (Tabela 7.2).
Tabela 7.2 – Situação de alguns imóveis comprados/desapropriados pelo Incra
Projeto de
Assentamento
Baviera
Mogno
Reunidas
Imóvel/
Fazenda
Pastagens
cultivadas (ha)
Outros/Preservação
permanente (ha)
Áreas inaproveitáveis (ha)
Áreas aproveitáveis,
não utilizadas (ha)
TOTAL
Baviera
Boa Esperança
Santa Marina
Barra do Mogno
Pontal
São Sebastião
São Manoel
São Manoel I
São Manoel II
Barreira Branca
2.512,00
2.505,00
34,00
150,00
15,00
964,00
1.319,00
845,00
361,00
-
108,24
227,56
20,00
141,27
86,21
124,60
126,36
123,90
99,80
38,00
1,00
29,00
5,00
5,00
10,00
25,00
25,00
25,00
25,00
10,00
2.378,76
2.369,55
441,00
2.629,20
1.812,99
1.878,40
1.556,77
1.984,10
2.010,20
919,00
5.000,00
5.131,11
500,00
2.925,47
1.924,20
2.992,00
3.027,13
2.978,00
2.496,00
967,00
Fonte: Unidade Avançada de Araguaína/Incra.
7.2. Caracterização dos projetos de assentamento
7.2.1. Características gerais da área
A área de estudo, caracterizada pela existência de um “complexo de assentamentos”,
encontra-se em uma zona de transição climática, onde predomina o clima de tipo tropical úmido
(Am, segundo classificação de Köeppen), com temperatura média anual entre 25 e 27o C e
92
precipitação pluviométrica que varia entre 1.300 e 1.900 mm ao ano. Apresenta ainda dois
períodos bem distintos: um chuvoso (entre outubro e maio) e outro seco (de junho a setembro),
no qual a precipitação pode chegar a 100 mm. A umidade relativa do ar mantém-se em torno de
75–80%.
A cobertura original da área era formada por uma vegetação primitiva, do tipo floresta, e
possuía ainda trechos de mata de transição com espécies representativas do ponto de vista
econômico, como mogno (Swietenia macrophylla), jatobá (Hymenaea courbaril), sucupira (Pterodon
emarginatus), aroeira (Myracrodruon urundeuva), louro (Cordia spp.), ipê (Tabebuia spp.), entre outras.
Por estar localizada às margens do rio Araguaia, a região é considerada de boa drenagem e
merecem destaque as redes hidrográficas formadas pelo rio Muricizal e o ribeirão Barreira Branca.
O relevo é acentuado nas porções nordeste e sudeste da região, suavizando no sentido oeste, na
bacia do rio Araguaia, onde predominam áreas de embasamento plano a suavemente ondulado.
A maioria dos solos é do tipo latossolo vermelho-amarelo e podzólico e apresenta boas
condições para culturas de subsistência, culturas permanentes e pastagens. Refletem um nível
tecnológico médio para o manejo e o melhoramento das condições de solo e lavouras, o que
geralmente é realizado por meio de mecanização agrícola. Todavia, apresentam algumas restrições
quanto à fertilidade natural. Em vista disso, caso sejam utilizados sem práticas de manejo, podem
apresentar baixa produtividade para culturas de ciclo curto e para a maioria das culturas de ciclo
longo e são mais recomendados para pastagem e silvicultura.
Situações de conflito social não foram identificadas no momento da vistoria e avaliação
dos imóveis indicados para ser desapropriados. Todavia, as famílias hoje assentadas já ocupavam a
área na época da criação dos projetos de assentamento, situação esta que contou com forte
influência do STR. Dessa forma, não é exagero afirmar que a ação do Incra nessa região foi
meramente “regularizadora” de ocupações anteriores, não tendo havido nenhum planejamento,
por parte desse órgão, em termos de aprovação da localização, concepção e viabilidade do
assentamento, requisito indispensável para seu licenciamento, previsto em lei desde 1986
(Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama – nos 001/86 e 237/97).
7.2.2. Infra-estrutura e serviços existentes
Ainda pelo fato de a área já estar ocupada no momento da criação dos projetos, o desenho
do projeto e a divisão dos lotes tiveram de ser submetidos à realidade já existente, não tendo
havido nem mesmo um processo de seleção das famílias beneficiárias. À exceção do Projeto
93
Baviera, o primeiro a ser criado, a ocupação desordenada impossibilitou o estabelecimento da área
de reserva legal em bloco e a implantação de agrovila, como aconteceu em outros assentamentos
do estado. Dessa forma, com uma superfície que varia entre 35 e 50 hectares/lote, coube a cada
família a definição das áreas de habitação, produção e reserva legal em seu respectivo lote. No
momento da visita de campo, alguns projetos (como São Gabriel e Vitória Régia) ainda estavam
em fase de implementação e demarcação dos lotes, de acordo com seus atuais ocupantes.
Muito embora os créditos para eletrificação e construção de outras obras de infra-estrutura
(captação de água e estradas internas) já tivessem sido liberados pelo governo federal, os projetos
implantados e demarcados ainda não contavam com tais serviços, em razão da demora na
contratação, por parte da prefeitura municipal, de empresas especializadas. Afora os beneficiários
do Projeto Baviera, os demais assentados também não foram contemplados com os créditos
iniciais de custeio (alimentação e fomento) e habitação. Dessa forma, a maioria das casas ainda
apresentava o padrão típico das ocupações, tendo sido construídas com madeiras e palhas obtidas
nas matas locais (Figura 7.3).
Fotos: L. Machado, julho/2001
Figura 7.3 – Habitações típicas do Projeto de Assentamento Vitória Régia
Atualmente os serviços de educação são prestados pela prefeitura municipal de
Aragominas, que oferece escolas rurais de 1o grau e escolas municipais e estaduais de 1o e 2o
graus. Além disso, existem ainda as chamadas extensões municipais e estaduais, que funcionam
com professores locais treinados em Araguanã. Esses serviços, no entanto, só são aproveitados
pelas crianças, e a grande maioria dos adultos e chefes de família é formada por analfabetos.
Convém ressaltar, no entanto, que, pelo menos um dos projetos, o P. A. Vitória Régia, já recebeu
os benefícios do Projeto ABC da Cidadania, de alfabetização de adultos no campo, dentro do
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera. Mas infelizmente esse benefício
94
só foi concedido durante o ano de 2000, muito embora a demanda e a expectativa pelo seu
retorno ainda sejam grandes.
Com relação à saúde, a prefeitura municipal de Aragominas proporciona atendimento
médico-hospitalar em quase todas as cidades. O transporte coletivo atende várias localidades da
região. Contudo, as condições precárias de algumas estradas que levam aos projetos, às vezes,
tornam esse serviço inviável.
7.2.3. Perfil socioeconômico dos assentados
Com base nos dados levantados nos P. A. Vitória Régia e Reunidas e que, de acordo com
os técnicos do Incra, podem ser estendidos para os demais projetos da região, a origem dos
assentados é majoritariamente nordestina, num total de 50% dos assentados provenientes dos
estados do Maranhão, Piauí e Ceará. No entanto, uma quantidade considerável de assentados
nasceu no próprio estado (35%). Esse fato remete-nos à ponderação de que na região de
Araguaína o processo de expansão da fronteira agrícola está sendo desenvolvido por uma
“segunda geração” de migrantes, isto é, filhos de migrantes vindos de outras regiões do país, mas
que já nasceram no estado do Tocantins. Essa assertiva adquire maior respaldo quando se
considera a localização da região de estudo nas proximidades da área do Programa Grande
Carajás, tido como pólo de forte atração de migrantes nas décadas 1970 e 1980.
Por outro lado, mesmo em se tratando de uma região considerada rica e bem desenvolvida
em relação ao restante do estado, os rendimentos alcançados pelos assentados com a produção
agrícola é bastante reduzido. 77% das famílias declararam ter renda anual inferior a R$ 500,00;
15%, entre R$ 500,00 e 1.000,00; 5%, acima de R$ 1.000,00 e 3% afirmaram não ter renda alguma.
Num total de 65 famílias pesquisadas, 60% obtêm sua renda com o desenvolvimento de
atividades outras que não a agricultura e a pecuária (provavelmente pelo recebimento de diárias
por serviços prestados nas redondezas) e 8% têm membros na família recebendo pelo trabalho
assalariado.
Esse quadro reflete a baixa importância desses projetos em termos de desenvolvimento
local. Uma explicação para esse fato, dada por técnicos do Incra, está relacionada à idade do
assentamento, que ainda não permite a formação de um sistema de produção estabilizado e com
retorno satisfatório para os assentados. Muito embora a região seja dominada pelo sistema de
produção baseado na pecuária de corte e leite (inclusive nos projetos de assentamento), grande
parte das famílias assentadas desenvolve atividades relacionadas ao cultivo de pequenas roças,
destinadas exclusivamente ao sustento familiar.
95
Todos os projetos são o resultado de desapropriações de antigas fazendas existentes na
região, onde dominava, desde tempos remotos – e ainda domina naquelas que não foram
desapropriadas –, a atividade pecuária, tida na região como símbolo de progresso. Tanto assim
que o slogan da cidade mais próxima é: “Santa Fé do Araguaia, a cidade do boi gordo (onde o
progresso continua)” – Figura 7.4. Um outro indicador da importância dessa atividade na região é
a existência de uma segunda moeda, que é a arroba de boi, cotada em julho de 2001 entre
R$ 36,00 e R$ 42,00.
Foto: L. Machado, julho/2001
Figura 7.4 – Propaganda da cidade de Santa Fé do Araguaia, “a capital do boi gordo!”
Outra característica peculiar dos assentados é o interesse bastante difuso com relação às
atividades a serem desenvolvidas em cada parcela. Marcadas pela produção individual – ou
familiar –, algumas famílias optam pelo tradicional sistema de pecuária extensiva, associado com a
criação de pequenos animais (porco e galinha) e a implantação de culturas de subsistência ou
lavouras brancas (milho, arroz e feijão). Essas atividades, por sua vez, são responsáveis pela
mudança no padrão de desflorestamento observado entre os anos 1996 e 1999 e que será
discutido mais adiante.
Outros gostariam de desenvolver atividades mais voltadas à manutenção da floresta e
preservação de seus recursos, tais como sistemas agroflorestais e projetos de fruticultura e
reflorestamento. No entanto, a falta de mais informações e a deficiência de serviços de assistência
técnica e acompanhamento são considerados fatores que inviabilizam o bom desenvolvimento
dessas atividades.
Por estarem localizados nas margens do rio Araguaia e, conseqüentemente, próximos a
praias que se formam com a diminuição do nível das águas e que são bastante freqüentadas pelos
96
turistas no verão, esses projetos oferecem a alguns de seus assentados a possibilidade de usufruir
uma fonte adicional de renda. Essa renda é obtida com a venda de pescado aos comerciantes que
montam as barracas naquelas praias para atender os turistas ali acampados (Figura 7.5). Essas
barracas são também construídas pelos próprios assentados, utilizando como matéria-prima
palhas de diferentes palmeiras que ocorrem em abundância na região. A importância recebida pelo
peixe varia de R$ 2,50 a R$ 3,00/quilo; enquanto que, pelas barracas, recebem R$ 200,00/barraca.
Foto: L. Machado, julho/2001
Figura 7.5 – Ribeirinho assentado no P. A. Vitória Régia, preparando peixe para ser vendido na
Praia do Escapole (rio Araguaia)
7.2.4. Aspectos institucionais do assentamento
As famílias dos projetos de assentamento estão organizadas, via de regra, em associações
de produtores rurais ou assentados, criadas não apenas para a obtenção de créditos, mas também
para melhorar a qualidade de vida de seus associados. Grosso modo, pode-se dizer que essa função
vem sendo desenvolvida com eficiência e empenho por parte dos representantes eleitos. Um
exemplo disso foi a implantação do Pronera no P. A. Vitória Régia. Conforme mencionado, esse
programa só funcionou durante o ano de 2000, mas esforços estavam sendo despendidos pela
associação, na pessoa de seu presidente e do empreendedor do Incra, para tentar trazer de volta esse
benefício.
Por intermédio das associações, algumas famílias já estão recebendo recursos do Programa
Bolsa-Escola. Esse programa, administrado pela prefeitura, concede a elas R$ 15,00 por criança
colocada na escola, num máximo de três crianças por família. A abrangência do programa ainda é
bastante limitada, atendendo apenas nove famílias do Projeto Vitória Régia, as quais tiveram de
passar por um processo de seleção, realizado por funcionários da prefeitura.
97
Na época da seca, as associações também têm um papel importante, qual seja a
organização dos assentados em mutirões de controle e combate a incêndios e queimadas,
decorrentes do uso do fogo para limpeza de áreas de cultura e renovação de pastagens. Outras
atividades referem-se à coordenação de atividades de lazer, como torneios de futebol e almoços
comunitários.
Em termos regionais, deve-se ressaltar mais uma vez a atuação do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais na organização das ocupações, fato que resultou na criação dos projetos de
assentamento hoje existentes na região. Por outro lado, a atuação da CPT na região, e mais
especificamente no município de Aragominas, ainda é bastante modesta. De grande influência na
região do Bico do Papagaio, a CPT passou a atuar na região de Araguaína há pouco tempo, com a
vinda de alguns representantes que se instalaram na cidade de Araguaína.
7.2.5. Condições ambientais e desflorestamento nos projetos de assentamento
Em razão da localização e da situação do imóvel no momento da criação dos
assentamentos, alguns projetos ainda mantêm boa parte da cobertura vegetal original, tipicamente
florestal (e.g. P. A. Vitória Régia). Todavia, a análise multitemporal das imagens de satélite que
cobrem a região mostra claramente uma mudança no padrão de desmatamento, provocada pela
abertura de pequenas áreas destinadas ao desenvolvimento da agricultura familiar de subsistência.
É importante destacar que a implantação dessa atividade se dá, via de regra, em áreas de
floresta, haja vista a dificuldade em se plantar culturas anuais em áreas de pastagens, uma tarefa
que, com a utilização de ferramentas manuais, seria hercúlea, mesmo para os assentados mais
fortes. Outrossim, como destacado no 14o Relatório do IAG, a falta de assistência técnica e
extensão rural – principal problema dos assentamentos visitados – força a dependência do colono
quanto às “lavouras brancas” e isso contribui significativamente para o aumento do uso do fogo,
com conseqüências negativas adicionais e significativas em termos de desflorestamento.
Para Fearnside (1997), a intensidade do desmatamento é inversamente proporcional ao
tamanho da propriedade: a intensidade de derrubada de árvores em áreas ocupadas por pequenos
agricultores é bem maior do que nas médias e grandes propriedades. Dessa forma, se as grandes
fazendas fossem redistribuídas em pequenas glebas, o desmatamento certamente aumentaria. De
fato, a análise visual de algumas imagens disponíveis mostra a ocorrência de pequenos
desflorestamentos, típicos de atividades desenvolvidas pela pequena agricultura, ocorridos entre
1996 e 1999, portanto, após a criação dos projetos de assentamento. Entretanto, embora não se
disponha de dados numéricos acerca das taxas de desflorestamento bruto, em escala municipal,
98
essas mesmas imagens colocam em evidência um incremento significativo das áreas desflorestadas
entre os anos 1992 e 1996 – isto é, antes da criação dos projetos de assentamento –, refletindo,
muito provavelmente, um aumento das áreas de pastagens e a expansão da atividade pecuária
praticada pelos antigos fazendeiros.
Por outro lado, um estudo mais abrangente sobre a região de Barreira Branca indica que
aquelas assertivas podem se tornar verdadeiras, em razão do descompasso entre políticas federais
e estaduais, de desenvolvimento e conservação, que estão sendo ali implementadas por seus
respectivos agentes governamentais. Se for verdade que os pequenos – ou assentados – desmatam
e degradam o ambiente, também é fato que o fazem por não terem outra alternativa, em face da
exploração e da espoliação a que estão sujeitos. A pressão econômica e social impede-os de
realizar investimentos e benfeitorias, tais como culturas permanentes, que seriam mais indicadas
em termos ecológicos do que a abertura constante de novos roçados (Sawyer, 1995). O
desenvolvimento de culturas perenes e sistemas agroflorestais, além de proporcionar vantagens
econômicas e sociais, contribuiria também para que o uso do fogo fosse evitado.
Quanto à preservação ambiental, é importante ressaltar que alguns projetos (P. A.
Reunidas e Vitória Régia) têm como um dos seus limites o rio Araguaia que, por suas dimensões,
exige a preservação permanente de uma faixa de, no mínimo, 500 m de largura ao longo de cada
margem (art. 2o, Lei no 4.771, de 1965). Ocorre, porém, que, no momento da criação do projeto,
constatou-se a presença de algumas famílias de ribeirinhos que já viviam nas margens do referido
rio muito antes do processo de ocupação promovido pelo STR. Diante dessa situação e em nome
da manutenção dos costumes tradicionais dessas famílias (pesca, caça e roças de subsistência), os
técnicos do Incra responsáveis pelo acompanhamento do projeto decidiram mantê-las em suas
respectivas áreas, com a condição de, terminada a colheita da roça já plantada, essa fosse
abandonada e transferida para áreas “legalmente” destinadas a esse fim, ou seja, fora da área de
preservação permanente.
7.3. A conservação das florestas em Barreira Branca: que alternativas?
A não-implementação da proposta inicial de criação da Reserva Biológica Barreira Branca
e ainda o fato de já ter sido criado um “complexo de assentamentos” fizeram com que a área
destinada à conservação dos recursos naturais ali existentes ficasse bastante comprometida.
Atualmente, a proposta da Seplan é bem mais modesta e abrange cerca de 10 mil hectares em
áreas que ainda não foram destinadas a projetos de reforma agrária e que se constituem em duas
fazendas particulares (Três Ilhas e Barreira Branca). Além disso, o órgão pretende propor ao
99
proprietário da Fazenda Malasca, especializada na criação de novilhas precoces, a criação de uma
Reserva Particular do Patrimônio Natural na área do imóvel mantida como reserva legal (cerca de
15 mil hectares), assegurando, dessa forma, a preservação de parte dos recursos ainda existentes
na região (Figura 7.6). Em termos concretos e relativos à criação da ReBio Barreira Branca, esse é
o cenário que se apresenta para a região.
Área destinada à criação da
ReBio Barreira Branca em 2001
– limites aproximados
P. A. Vitória
Régia
P. A. Baviera
P. A. Reunidas
P. A. São Gabriel
P. A. Dois Corações
Proposta inicial da ReBio
Barreira Branca
P. A. Mogno
Fazenda Malasca
(perímetro aproximado)
Fazenda
Cheyenne
Área potencial para a criação de
uma Reserva Particular de
Patrimônio Natural
aprox. 10 km
Figura 7.6 – Síntese da ocupação em Barreira Branca: projetos de assentamento criados com a
desapropriação de antigas fazendas, áreas propostas para a criação da ReBio Barreira Branca e
Reserva Particular da Fazenda Malasca
Por outro lado, ainda que pequenos desmatamentos, típicos do desenvolvimento de
atividades relacionadas à pequena agricultura, já tenham seu lugar na região, esse processo poderia
ser revertido, caso houvesse políticas de incentivo à manutenção da floresta. Em outras palavras, a
prática de atividades que implicam a remoção da floresta por parte dos assentados se dá, em
grande medida, pela falta de alternativas para o desenvolvimento sustentável do assentamento.
100
Por exemplo, a falta de capacitação dos agentes responsáveis pela extensão rural e de
transferência de tecnologia para pequenos e médios produtores rurais é um fator limitante ao
desenvolvimento de atividades sustentáveis. Isso refere-se não apenas aos técnicos do órgão
estadual de extensão rural – Ruraltins, como também àqueles que prestam serviços ao Incra, na
qualidade de agentes facilitadores.
Problemas orçamentários, escassa possibilidade de ação operativa, falta de treinamento do
quadro atual e baixa incorporação de novos quadros técnicos são algumas manifestações da crise
em que se encontra o processo de extensão rural no país. É nesse sentido que Guanziroli e
colaboradores (2001) escrevem que o sistema de extensão rural brasileiro como um todo enfrenta
uma crise que se manifesta com a perda da legitimidade pública da extensão rural diante da classe
política e da sociedade civil, além da crise dos paradigmas que tradicionalmente a orientam, que
têm sua origem na crescente globalização da economia internacional, nas transformações
ocorridas nos setores agrícola e rural e nos papéis que, nesse contexto, são atribuídos aos
organismos privados e ao aparelho do Estado.
A percepção de que os modelos tradicionais de assistência técnica e extensão rural
vigentes no país desde a década de 1950 estão esgotados e de que é necessária uma nova visão
para adaptá-los às grandes transformações que acontecem na agricultura e na economia mundial
está provocando debates nas Câmaras Técnicas do Conselho de Desenvolvimento Rural
Sustentável (CNDRS), que conta, entre outros, com a participação dos movimentos sociais, por
meio da Contag. Todavia, os reflexos dessas mudanças ainda não foram sentidos, pelo menos não
nos assentamentos da região de Barreira Branca, que, quando assistidos, contam com um serviço
baseado em pacotes tecnológicos não adaptados à realidade local ou em “receitas” que incluem a
aquisição de “dez matrizes e um boi”. Dessa forma, mesmo que haja diferentes linhas de
financiamento, as quais levam em conta a manutenção da floresta – Prodex, Proderur, Profloresta,
etc. –, os projetos apresentados pelos técnicos responsáveis, uma das exigências para o
financiamento, consideram apenas o desenvolvimento de atividades relacionadas à agricultura de
pequena escala ou pecuária bovina.
É importante ressaltar, contudo, que os solos amazônicos não sustentam uma
produtividade satisfatória por mais de dois ou três anos sem investimentos em insumos e
fertilização. Além disso, as elevadas umidade e temperatura da região fazem com que o
surgimento de pragas e o crescimento de ervas daninhas seja inevitável. Vem daí a característica
itinerante dessas atividades. Nesse contexto, a agricultura orgânica, o sistema de policultivo com
rotação de culturas e os sistemas agroflorestais ou agrossilvopastoris podem ser alternativas
101
viáveis, com aumento da produtividade, a redução de investimentos em correção dos solos e
agrotóxicos e, por conseguinte, a não-abertura de novas áreas para a implantação de culturas
anuais.
Nos projetos visitados, foi possível perceber que essas alternativas, se bem orientadas,
podem ser implementadas com grandes chances de sucesso. Da mesma forma, o manejo florestal,
assim com as demais atividades relacionadas à exploração florestal, uma vez valorizados, também
podem ser uma alternativa bastante interessante para os assentados, não apenas no que tange à
preservação dos recursos ainda disponíveis, como também em relação ao interesse manifesto de
algumas famílias pelo desenvolvimento de atividades voltadas à conservação da natureza e de seus
recursos. Todavia, a falta de conhecimento e informação sobre as tecnologias disponíveis, aliada à
falta de estudos de mercado para viabilizar a comercialização de produtos florestais, faz com que
atividades dessa natureza não tenham peso no contexto local e, menos ainda, estadual.
Em suma, a percepção da Amazônia rural precisa se tornar mais combinatória e menos
compartimentalizada (Sawyer, 1995). Na fronteira amazônica, os produtores não se distinguem
em categorias estanques de “agricultor”, “pecuarista” ou “extrativista”; eles extraem produtos da
floresta para sua subsistência e para o mercado, quando este existe, plantam suas culturas de
subsistência e criam o seu gado, nem que seja para o leite de todo dia, ou para vender queijo na
feira. Ainda segundo aquele autor, essa mistura de atividades é bastante adequada aos pequenos
produtores e agricultores familiares, por exigir alto grau de motivação, que não é encontrado no
trabalhador assalariado; além de ser altamente sensível a mudanças imprevisíveis, inadmissíveis a
empresas capitalistas.
Uma outra limitação à preservação e manutenção das florestas em pé relaciona-se ao
monitoramento das atividades desenvolvidas nos projetos criados. A falta de recursos humanos e
financeiros limita o acompanhamento de atividades de médio e longo prazo, como é o caso das
atividades de base florestal. Sobre esse tema vale mencionar que, para suprir a crescente demanda
por serviços de extensão rural e assistência técnica, o Incra firmou um convênio com
organizações não-governamentais e cooperativas de técnicos do extinto Projeto Lumiar, que foi
uma experiência de assistência técnica criada em 1997 para atender os assentados da reforma
agrária. Todavia, esses convênios têm sido estabelecidos por um período máximo de seis meses,
após o que podem ou não ser renovados, ou ainda redirecionados a outros projetos,
inviabilizando o desenvolvimento de atividades de uso sustentável da floresta.
102
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO
Os projetos de assentamento e reforma agrária implantados pelo Incra na Amazônia nos
últimos 30 anos têm sido motivo de intensos debates, não só entre os segmentos diretamente
envolvidos com a questão fundiária no Brasil, como também por parte da sociedade civil em
geral, pesquisadores e cientistas e também pelos diferentes órgãos de governo, em seus diferentes
níveis. Grosso modo, o tema figura nos debates como uma das principais causas das alterações que a
região vem sofrendo, sobretudo em termos de aumento do desflorestamento.
Todavia, a reforma agrária, em seu sentido estrito, nunca aconteceu de fato na Amazônia.
Nessa região prevaleceu, por muitos anos, uma política de colonização e ocupação de “espaços
vazios”, que, ao mesmo tempo em que buscava aliviar as tensões surgidas em outras regiões – seja
por causa da seca no Nordeste ou da modernização da agricultura e êxodo rural no Sul –
propunha-se a integrar a Amazônia ao resto do país. Em tempos mais recentes, essas ações vêm
sendo substituídas por uma política de distribuição de terras – mas não necessariamente de
democratização do seu acesso –, implementada por meio da desapropriação de grandes imóveis
rurais e latifúndios improdutivos. Nesse sentido, o governo de Fernando Henrique, iniciado em
1995, figura como um caso exemplar.
Por outro lado, no que tange às questões de justiça social e melhoria da qualidade de vida
das populações rurais, as políticas agrárias ainda deixam muito a desejar. Muito embora os debates
continuem, culminando com algumas ações conjuntas, em termos concretos, a política agrária
vem se desenvolvendo de maneira isolada das demais políticas governamentais. Nesse contexto,
não dispõe de mecanismos suficientes e capazes de manter as famílias assentadas no campo e
tampouco de promover o seu desenvolvimento de forma adequada e sustentável. Os resultados
dessas ações traduzem-se, em muito casos, na derrubada da floresta, mesmo para a população
assentada em áreas já desmatadas. Esta, por sua vez, passa a intervir em áreas de reserva legal ou
invade outras florestas, públicas ou particulares, em busca de produtos – em geral madeireiros –
que possam representar uma forma de substituir os créditos agrícolas, que normalmente chegam
ao colono em uma fase posterior.
Essa falta de interação e articulação entre as políticas – sobretudo ambientais e agrárias –
pôde ser claramente evidenciada na região estudada, onde projetos de assentamento continuam
sendo implantados em áreas de floresta primária, atestando a ineficácia na implementação de
medidas que visam a preservar o patrimônio natural do país, tais como a edição da
Portaria/MEPF/no 88/99. Mesmo que tal dispositivo legal tenha previsto uma exceção à regra
103
para o caso dos projetos de assentamento agroextrativistas, esta não é a condição do último
projeto criado na área, em outubro de 2001, o Projeto de Assentamento São Gabriel.
Agravando ainda mais a situação, a criação desse projeto em área já ocupada pelas famílias
hoje assentadas também fere o disposto no art. 4o, §6o, da Medida Provisória no 2.109-52, também
de 2001, que determina que o imóvel rural de domínio público ou particular, objeto de invasão
motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não será vistoriado, avaliado ou
desapropriado nos dois anos seguintes a sua desocupação.
Os resultados mostraram também que o fato de os projetos de assentamento terem sido
criados em áreas de antigas fazendas destinadas à pecuária intensiva, muito antes de se constituir
em causa de aumento das taxas de desflorestamento verificadas, implica, na verdade, uma
mudança no padrão de desflorestamento. Muito embora não existam dados quantitativos que
reforcem essa premissa, as imagens de satélite analisadas mostram que os desflorestamentos
ocorridos na região de Barreira Branca após a criação dos projetos de assentamento envolvem
áreas esparsas e pequenas, típicas da prática da agricultura itinerante.
Mas o fato mais grave que tem sido verificado no estado do Tocantins, não só na região
de Barreira Branca, como também no Bico do Papagaio, é que, a despeito do empenho de alguns
órgãos estaduais – em especial a Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente – na elaboração do
Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) para o estado, o qual conta com apoio integral do
PPG-7, por meio dos recursos aplicados pelo PGAI, as políticas setoriais continuam sendo
elaboradas de forma desconcertada e sem levar em conta a complexidade do ambiente natural em
que se inserem, qual seja, uma área de transição entre dois importantes biomas brasileiros. Mesmo
após a seleção de áreas prioritárias para a conservação dos recursos naturais pelo ZEE, seleção
esta amplamente divulgada em publicações da Seplan e de outros órgãos estaduais, o Incra, no
cumprimento de metas federais, continua atuando nessas áreas, promovendo sua ocupação por
meio da criação de projetos de assentamento que não contam com planos de desenvolvimento e
tampouco de infra-estrutura adequados às condições da região, bastante rica em biodiversidade.
Em face de tais condições, não é exagero propor uma indagação acerca da aplicabilidade
de instrumentos de comando e controle, tais como o ZEE, em fase final de elaboração no estado
e para o qual foi dispensada importante soma em recursos financeiros e humanos. Até que ponto
esse instrumento de gestão do território, elaborado com base em levantamentos de campo e
participação de diferentes segmentos da sociedade – procedimento também adotado na definição
da Agenda Positiva da Amazônia, que teve como um dos resultados a publicação das portarias
mencionadas anteriormente –, não será mais um conjunto de normas que, em virtude da
104
inoperância dos serviços de fiscalização e monitoramento, simplesmente deixam de ser
cumpridas?
Da mesma forma, fica bastante difícil pensar o desenvolvimento de atividades sustentáveis
em um estado que vem investindo pesadamente no desenvolvimento de grandes projetos
agropecuários, mesmo que isso implique perda da cobertura florestal remanescente. Em outras
palavras, para reverter o quadro do desflorestamento hoje observado no Tocantins e, em
particular, na região de Barreira Branca, seria necessário vencer a concorrência imposta pelas
atividades agropecuárias, com a implementação de políticas públicas eficientes e eficazes de
valorização dos espaços florestais e conservação da biodiversidade, ou com a aplicação de
instrumentos econômicos e de comando e controle. E isso é válido não somente para os projetos
de assentamento, como também para as outras formas de ocupação e exploração dos recursos
naturais que impliquem a derrubada da floresta.
Na atual conjuntura econômica, política e institucional, as ações a serem implementadas
para o controle do processo de desflorestamento na Amazônia devem caminhar no sentido de
aumentar a tributação sobre terras improdutivas ou ociosas, valorizando aquelas em que se
desenvolvam atividades relacionadas à manutenção da cobertura florestal; além de direcionar a
criação de novos assentamentos para áreas estratégicas, com infra-estrutura mínima de acesso e
mercado capaz de absorver a produção local. Também devem implicar capacitação e melhoria dos
quadros institucionais envolvidos com a questão da produção agrícola familiar, oferecendo
alternativas tecnológicas que tragam retorno econômico, mas com custos ambientais reduzidos.
105
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REFORMA AGRÁRIA E DESFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA