1 MARXISMO E FEMINISMO – A ANÁLISE DE UMA RELAÇÃO TENSIONADA Ludson Rocha Martins1 RESUMO A presente comunicação tem por finalidade realizar uma abordagem sumária acerca do enfrentamento contemporâneo entre a teoria feminista e as principais tendências do marxismo. Para analisar a referida problemática foram brevemente trabalhadas as questões que envolvem o feminismo, o conceito de gênero e os embates desse campo do conhecimento com as investigações tributárias de Marx. Após isso realizamos uma pequena incursão ao debate sobre as respostas do marxismo ás indagações e problemáticas suscitadas pela moderna teoria feminista. Palavras-chave: Teoria feminista; marxismo; movimentos sociais. 1 Bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário Una, Mestrando em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 2 INTRODUÇÃO A presente comunicação objetiva abordar de maneira sintética os dilemas que, na atualidade envolvem as teorizações marxista e feminista. Adiante-se desde já que essas duas vertentes teóricas, apesar de suas convergências, possuem múltiplos pontos de enfrentamento e discordância, elaborando diversas polêmicas, principalmente entre as relações e interações que demarcam os campos da cultura e das estruturas econômicas. Para analisar a referida problemática abordaremos brevemente as questões que envolvem o feminismo, o conceito de gênero e os embates desse campo do conhecimento com as investigações tributárias de Marx. Após isso faremos uma pequena incursão ao debate sobre as respostas do marxismo ás indagações e problemáticas suscitadas pelo feminismo. 1 O FEMINISMO E MARXISMO – UMA RELAÇÃO TENSA NA TEORIA SOCIAL O século XX se consolidou, em termos históricos, como um período de amplas transformações sociais e econômicas (HOBSBAWN, 1999). Nele foram realizados projetos políticos, colocados em prática diversas teorias e ramos analíticos da ciência, além de revolucionados, de forma ampla e profunda, um conjunto extenso de parâmetros culturais. Sem sombra de dúvida uma das mais importantes mudanças ocorridas se refere à emergência dos chamados novos movimentos sociais, mais especificamente a consolidação do protagonista mais influente desse grupo, o Movimento Feminista. De acordo com Montaño & Duriguetto (2010), os movimentos sociais se caracterizam como organizações com relativo grau de estabilidade e formalidade, centradas na ação coletiva de sujeitos portadores de uma identidade/necessidade/reivindicação e pertencimento de classe. São grandes estruturas políticas e culturais que mobilizam a ação dos sujeitos em torno de questões especificas. No que tange ao Movimento Feminista, pode-se dizer que este se singularizou por problematizar a noção hegemônica de gênero, bem como os processos de dominação masculina. 3 Conforme estudiosas como Thayer (2001) e Louro (1997), o Feminismo nasce no século XIX (primeira onda), quando as manifestações contra a discriminação das mulheres adquiriram expressividade e voz pública por meio do chamado “Sufragismo” – movimento que reivindicava a igualdade entre homens e mulheres e se mobilizava na luta por direitos políticos. Guimarães (2010), afirma que será no desdobramento da década de 1960, já no século XX, com a chamada “segunda onda”, que o feminismo irá se voltar à construção de um debate teórico, tendo como objeto de análise a exploração da mulher em todos os seus âmbitos (político, econômico e social), além da problematização do conceito de gênero. Para Keller (2006, p. 15), o feminismo, nesse período, amplia as noções de modernidade e liberdade, redefinindo a identidade feminina. De acordo com a autora supracitada, a “segunda onda” se conformou como um acontecimento político. Com base em seu projeto de mudança social, surge um projeto intelectual e acadêmico, materializado na teoria feminista, [...] entendida por suas primeiras formuladoras, como em si mesma uma forma de política, isto é, como “política por outros meios”. Uma maneira de propiciar transformações no território da vida cotidiana, analisando e expondo o papel que as ideologias de gênero desempenham no esquema abstrato subjacente aos modos de organização social. No final dos anos 1990 e início do século XXI, surge o chamado Feminismo de “Terceira Onda”, uma corrente política e teórica claramente inspirada nas teorias pósmodernas, [...] essa linha crítica centra-se na construção genderizada do projeto da ciência moderna. [...] Nas palavras de Donna Haraway, Com o reconhecimento, tão arduamente conquistado, da sua constituição histórica e social, o gênero, a raça e a classe não podem constituir a base para a crença na unidade ‘essencial’. Não existe nada no fato de ser ‘fêmea’ que vincule naturalmente as mulheres. Não existe sequer o estado de ‘ser’ fêmea, uma categoria em si mesma altamente complexa, construída em contestados discursos científico-sexuais e outras práticas sociais. É, pois, partindo desse pressuposto, dessa miríade de realidades que se escondem atrás da homogeneização categorial, que eclodiram os feminismos mais localizados, como sejam o feminismo negro, o feminismo lésbico, entre outros, e mesmo feminismos que cruzam essas várias categorias, problematizando gênero, ‘raça’ e orientação sexual. São também esses feminismos que contribuem para a problematização que o(s) feminismo(s) pós- Estudos Feministas, moderno(s) vêm a fazer dessa categoria, que passa a ser entendida como uma construção social e ideológica, inserida nas grandes narrativas de legitimação. O gênero é uma relação, não uma categoria pré- formada de seres ou algo que alguém possa ter na sua posse [...]. O gênero é a relação entre categorias de homens e de mulheres, constituídas de forma variada e diferenciada por nação, geração, classe, linhagem, cor e muito mais. Essa relação entre feminismo e pós-modernismo é tensa, como evidencia Conceição 4 Nogueira, recorrendo às controvérsias entre adeptas e contestatárias dessa relação, pois o caráter relativista do pós-modernismo e a sua crítica às metanarrativas de legitimação podem inclusivamente pôr em causa o próprio movimento, dado que desconstrói o seu sujeito histórico: a mulher (OLIVEIRA; AMÂNCIO, 2006, p. 599). A teoria feminista, como se percebe, sobretudo a partir da “Terceira Onda” realizou uma série de rupturas epistemológicas com os paradigmas teóricos tradicionais. A adoção da cultura e da política discursiva como categorias centrais para análise da problemática de gênero confrontou as análises macrossociais, baseadas na investigação dos processos econômicos e no estudo da política institucional (MÃN, 2002). A “Terceira Onda” evidenciou na investigação feminista a diversidade e pluralidade de vivências da identidade de gênero, materializando-se nesses parâmetros a ideia de que existem múltiplas masculinidades, feminilidades e homossexualidades. Essas noções apontam para historicidade e variabilidade das experiências humanas, desconstruindo a suposta unidade da consciência e das experiências dos sujeitos sociais e realizando um questionamento ontológico do ser homem e do ser mulher. Butler (2007), por exemplo, propõem a desconstrução da própria ideia de sexo, para ela uma construção social, tanto quanto o conceito de gênero. Nessa ótica o corpo em si não possuiria nenhum significado, sofrendo um processo de socialização de matriz cultural onde o discurso e a disciplina, operariam como os elementos básicos de criação das identidades e da coesão social. Tais construções teóricas, obviamente, se inserem em um forte debate de natureza contraditória, recebendo e realizando diversas críticas aos esquemas sociológicos clássicos. Nesse sentido um dos embates mais importantes que foram e tem sido travados se refere à relação entre a Teoria Feminista e o Marxismo. A grande polêmica entre essas duas vertentes analíticas se refere ao lugar da luta feminista frente às questões de classe, bem como as determinações que envolvem a relação ente gênero e os fatores econômicos. Nessa linha de pensamento, a teoria feminista contemporânea em geral afirma que as formulações marxistas, ao construírem análises globalizantes da vida social baseadas na ideia de classe e exploração econômica incorporam, inconscientemente, noções androcêntricas obscurecendo o estudo da dominação masculina e relegando a ideia de gênero e das identidades sexuais a um lugar inferior (MARTINS, 1998). 5 Interessante notar que geralmente as tentativas das investigações marxistas sobre gênero, [...] falhavam ao continuar operando no interior do paradigma da produção. Isso levava, no caso da história das mulheres, a uma lógica do suplemento, isto é, à escrita de uma história na qual as mulheres eram adicionadas ao conjunto dos grandes acontecimentos ou das estruturas. No máximo, o marxismo podia ser ampliado para dar guarida a outros temas como a ideologia, a cultura e a “questão da mulher”, mas as explicações e a ênfase das pesquisas continuavam a ser as relações de produção (MARTINS, 1998, p.138). Em resposta a essas questões a crítica marxista, por sua vez, formulou um extenso conjunto de investigações que procuraram mapear as interações entre a história das mulheres, a dominação masculina e a exploração de classe, sobretudo por meio dos trabalhos de Thompson (1987) e de outros historiadores britânicos como E. Hobsbawm (1999). Essa abordagem político-cultural das relações sociais foi bem recebida pela história das mulheres: tratava-se de uma história que resgatava a ação e a palavra das mulheres, que fornecia provas não somente da opressão, mas das estratégias de luta e resistência para sobreviver aos sistemas opressores. Foi à sombra das reflexões thompsonianas sobre o caráter político das relações de classe que se produziu, então, a história social das mulheres nos anos 80, com ênfase no trabalho feminino e na participação política das mulheres nas sociedades em processo de transformação da ordem pré-capitalista para a ordem capitalista, de uma cultura rural para uma cultura urbana (MARTINS, 1998, p.141). Como se percebe existe uma tensa relação entre o paradigma teórico marxista e o feminismo, que se desdobra em múltiplas questões. Para continuarmos nosso percurso na análise dessas problemáticas, prosseguiremos na próxima seção, abordando as formas como o marxismo reagiu e construiu respostas às críticas e indagações propostas pela teoria feminista. 2 RESPOSTAS AO CONFLITO MARXISMO/FEMINISMO: INDAGAÇÕES POSSÍVEIS Como exposto anteriormente, à questão de gênero na moderna teoria marxista se coloca como um dos problemas teóricos mais complexos e controversos. O grande ponto de discussão para as análises que se baseiam em Marx (1986) reside em como preservar e compreender a especificidade dos processos de dominação masculina e de (des) construção das identidades gendradas sem perder de vista a realidade maior na qual elas se inserem. 6 Em outros termos: como apreender as relações de gênero incorporando as conquistas da teoria feminista no campo da cultura e da micropolítica de forma a articularalas aos pressupostos fundamentais do pensamento de Marx (1986), quais sejam, o lugar de destaque do econômico e as relações de classe? Dentro desse contexto os diversos autores que seguem as diretrizes do pensamento marxista trilharam basicamente três caminhos na construção de respostas as problemáticas feministas. No primeiro deles, se destacam as formulações que reconhecem a especificidade e a legitimidade da luta e da discussão teórica feminista. Antunes (2009), por exemplo, entende que a causa feminista obedece a parâmetros próprios. A própria dominação masculina seria um fenômeno anterior ao modo de produção capitalista, podendo, inclusive ser posterior a ele. O papel da política de inspiração marxista, nesse caso, seria o de se coligar as intervenções feministas, uma vez que ambas se potencializariam. Cabe mencionar que a perspectiva acima descrita baseia-se nos estudos de Poulantzas (1986), mais especificamente nas suas ideias acerca da autonomia e do peso relativo da superestrutura (o conjunto de disposições ideológicas, culturais e jurídicopolíticas de uma determinada ordem social) frente às estruturas societárias (a base econômica e material da vida coletiva). Em termos bastante genéricos, podemos dizer que, para esse autor, a prática econômica, política e ideológica de classe e os limites de ação dos agentes sociais constituem efeitos estruturais. Assim sendo, os limites da intervenção das práticas sobre as estruturas são também definidos objetivamente na e pelas estruturas. Deve-se dizer que também o conceito de interesses de classe é compreendido como um efeito estrutural (PERISSINOTO, 2007). Os interesses de classe, dentro dessa visão, se estabelecem como metas objetivas que estão acopladas a um tipo de zona estrutural. Assim, se a classe é o efeito das forças econômicas sobre os atores e se as práticas de classe fazem parte dos limites dessas estruturas, o interesse de classe tem de representar esses limites à ação de classe, ou seja, “a extensão do campo de ação de uma classe definido pelo seu lugar objetivo no conjunto das estruturas sociais” (POULANTZAS apud PERISSINOTTO, 2007, p. 90). Uma das vantagens da abordagem poulatziana, reconhecida inclusive pelos seus críticos, reside na importância atribuída às dimensões não-econômicas das classes 7 sociais. Desse modo, as classes e a luta de classes não poderiam ser compreendias sem referências ao político e ao ideológico. Por essa razão, Poulantzas desenvolveu, com base nos textos históricos e políticos de Marx, conceitos propriamente políticos para pensar a luta política entre as classes, tais como “frações de classe”, “bloco no poder”, “fração autônoma de classe”, “efeito pertinente”, “classe reinante”, “classe detentora”, “fração hegemônica” e “categoria social” (PERISSINOTTO, 2007, p. 90). Uma das limitações das abordagens de cariz poulatziano, tal como as desenvolvidas por investigadores como Antunes (2009), é que elas ainda não se mostraram capazes de explicitar as interações mantidas entre as estruturas produtivas e socioeconômicas e a questão de gênero. Limitando-se apenas a reconhecer a legitimidade das discussões acerca da dominação androcêntrica. Em virtude disso, uma segunda vertente explicativa foi proposta pelos estudiosos marxistas da polêmica Revista Exit!, sob a liderança de Robert Kurz (1994) e Roswitha Scholz (2011). Esses teóricos apontam que o capital, enquanto relação social fundamental do mundo contemporâneo, não se constitui como uma categoria neutra. Ao invés disso Kurz (1994) observa que a reprodução das relações capitalistas é também uma das principais formas produção e difusão dos fundamentos da dominação androcêntrica na sociedade. Dessa forma não seria por acaso que o padrão de sexualidade hegemônico – homens e mulheres brancos heterossexuais – seria sempre acompanhado do adjetivo burguês. Isso ocorre porque a difusão e transversalidade da produção capitalista atingiria todas as expressões da vida social, consolidando nas estruturas ideológicas que regem a sociedade das mercadorias (elas próprias reproduzidas e incorporadas pelos sujeitos) os padrões básicos da dominação masculina. Em semelhante historicização "auto-referencial" também não pode permanecer oculto que a dicotomia sujeito-objeto (constituída pelo fetiche) de um determinado estágio evolutivo refere-se a uma ocupação em termos sexuais. Se nas sociedades não-europeias (e também nas sociedades agrárias da antiguidade europeia) a estrutura sexual da relação sujeito-objeto ainda é difusa, nos surtos desiguais de desenvolvimento da sociedade de mercadorias ocidental ela é elaborada desde a antiguidade grega com crescente nitidez [...] Na constituição ocidental do fetiche presente na forma-mercadoria, o sexo masculino desempenhou o papel histórico de sujeito, ao passo que os momentos da sensibilidade que não se resolviam na formamercadoria (criação dos filhos, dádiva emocional, atividade doméstica, etc. ) foram cada vez mais delegados à mulher como "ser doméstico". A mulher em si é portanto degradada a objeto de maneira estrutural pelo homem em si. [...] A terceira definição do sujeito, só plenamente revelada na sociedade mercantil ocidental, seria a seguinte: Um sujeito é um ator determinado estruturalmente pelo sexo masculino. A partir das definições avançadas até agora, é possível reformular o próprio conceito de dominação. A ausência de sujeito da dominação é a ausência de sujeito da forma 8 do sujeito, que constitui uma relação de ação e percepção objetivada e compulsória. [...] Podemos então formular uma quarta definição do sujeito: um sujeito é um ator que se torna mundo externo para si mesmo e assim objetiva a si próprio.[...] O conceito de dominação recobra desse modo a sua dimensão crítica. Em suas elaboradas configurações, as teorias subjetivas da dominação, entre elas também o marxismo e o feminismo, há muito descreveram em termos fenomenológicos os diversos planos e as formas fenomênicas da dominação e tentaram captá-las em seu contexto, sem no entanto poder avançar em um conceito de tais manifestações. Se as antigas teorias subjetivas da dominação permaneciam aferradas a uma brusca separação dicotômica entre "dominantes" e "dominados", sendo que, do ponto de vista dos "dominados" (povo, classe trabalhadora, nações oprimidas, mulheres, etc. ), a "dominação" parecia como algo externo e palpável, os projetos mais recentes e elaborados levam em conta o fato de que os próprios "dominados" contribuem para a dominação, exercendo até funções de dominação para consigo próprios (KURZ, 1994, p.10). Tal interpretação se assenta, fundamentalmente, nas noções de dissociação e valor, consideradas pelos estudiosos em tela, como os dois polos essenciais da sociabilidade capitalista (SCHOLZ, 2011). Nessa acepção o valor é o signo de uma relação social fetichista, onde, num mercado de produtores anônimos, os membros do corpo social não são capazes de utilizar seus recursos de forma otimizada, isto é, para a conveniente reprodução da sua vida (SCHOLZ, 2011). Assim os diversos sujeitos produzem mercadorias de forma isolada, sendo que estas últimas, só ganham um traço social quando trocadas no âmbito do mercado (CODATO, 2005) e mediadas pela lógica do trabalho abstrato (passam assim a representar “trabalho passado” – dispêndio de energia humana destituída de seus determinantes concretos). A relação social arranjada por esta forma põe de pernas para o ar o relacionamento entre as pessoas e os produtos materiais: os membros da sociedade, sendo pessoas, aparecem como associais, como simples produtores privados e indivíduos sem relações; o relacionamento social, pelo contrário, apresenta-se como relação de objetos, de coisas mortas, postas em relação entre si na base da quantidade abstrata de valor que representam. As pessoas são objetivadas e as coisas quase que personificadas. Cria-se uma alienação recíproca dos membros da sociedade, que não utilizam os seus recursos de acordo com decisões comuns conscientes, mas submetem-se a uma relação cega entre coisas mortas – os seus próprios produtos – comandada pela forma dinheiro (SCHOLZ, 2011, p. 13). Conexa à mediação do “valor” existem as atividades dissociadas que representam o reverso do trabalho abstrato, sendo marcadas por uma dimensão político-econômica, uma dimensão cultural-simbólica e uma dimensão psicossocial. Estas, de acordo com Scholz (2011), são caracterizadas pelo afeto, a assistência, os cuidados aos doentes e incapazes, o erotismo, a sexualidade e o "amor", além dos 9 sentimentos, emoções e as posturas contrapostas à racionalidade empresarial, conformado um eixo universal necessário a produção e reprodução da vida social, fator imprescindível para a manutenção do capitalismo e da dominação masculina. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Tratam-se, ambos, dos momentos centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e fragmentária, que devem ser compreendidos no mesmo alto nível de abstração. O que não pode ser compreendido no valor, é, portanto, por ele dissociado [...] (SCHOLZ, 2011, p. 17) A terceira vertente do marxismo que procurou enfrentar os problemas levantados pela Teoria Feminista é tributária das ideias de autores como Thompson (1987), Hobsbawm (2011), e mais recentemente Žižek (210). Hobsbawm (2011), afirma que não se pode estabelecer uma relação automática e de causa/efeito entre gênero, economia e classe. Contudo isso não significa que não exista interação entre essas instâncias. A própria gênese do Movimento Feminista só pode ser explicada, segundo ele, devido à formação da esfera pública no capitalismo e aos processos de assalariamento e aburguesamento das mulheres de classe média. De acordo com Hobsbawm (2011), foi à concentração dos determinantes sociais nas relações de produção e consumo, operada pelo modo de produção capitalista, que possibilitou a emergências de contradições antes ausentes do mundo político como as questões de gênero, raça e identidade nacional. Contudo, para o autor a questão de gênero não pode ser reduzida as determinações estruturais. Para cada vitória do movimento de mulheres no terreno econômico, faz-se necessário que se travem novas lutas no campo das identidades e dos valores culturais. Enriquecendo as considerações de Hobsbawm (1999), Žižek (210) assinala que não se pode confundir a especificidade da questão de gênero, com a falta de necessidade de formulações teóricas gerais para potencialização da ação coletiva. [...] a proposta do marxismo é que existe um antagonismo (“luta de classes”) que sobredetermina todos os outros e, com tal, é o universal concreto do campo todo. O termo sobredeterminar é usado aqui em um sentido estrito: não significa que a “luta de classes” seja o referente principal e o horizonte de significado de todas as outras lutas; significa que a luta de classes é o princípio estruturador que nos permite explicar a própria pluralidade “inconsistente” dos modos como os outros antagonismos podem se articular em “encadeamentos de equivalências”. A luta feminista, por exemplo, pode ser articulada num encadeamento com a luta progressista pela emancipação ou pode servir (e de fato serve) de ferramenta 10 ideológica usada pela classe média alta para afirmar sua superioridade sobre as classes inferiores “patriarcais e intolerantes”. E a questão aqui não é apenas que a luta feminista possa ser articulada de várias formas com o antagonismo de classes, mas que o antagonismo de classes, por assim dizer, inscreve-se duplamente aqui: é a constelação especifica da própria luta de classes que explica por que a luta feminista foi apropriada pelas classes superiores (o mesmo acontece com o racismo: é a própria dinâmica da luta de classes que explica por que o racismo declarado é forte entre os trabalhadores brancos de classe baixa). Aqui a luta de classes é o “universal concreto” no sentido hegeliano estrito: ao relacionar-se com a sua alteridade (outros antagonismos), ela se relaciona consigo mesma, ou seja, (sobre) determina a maneira como se relaciona com as outras lutas (ŽIŽEK, 210, p. 471). As considerações de Žižek (210) deixam claras as necessidades de confluência e organicidade das reivindicações populares especificas entre si (como o feminismo por exemplo) e com a mobilização da classe trabalhadora como um todo. O avesso disso, de acordo com o autor, correria sérios riscos de ser refuncionalizado pelo modo de produção capitalista, ganhando contornos até mesmo conservadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisamos aqui, de maneira bastante sucinta, a complexa e tensa relação entre marxismo e Teoria Feminista. Obviamente não foi possível construir uma problematização extensa que fosse suficientemente ampla para abarcar toda gama de variáveis que envolvem o assunto. Contudo, podemos dizer que ainda existe um longo caminho a ser percorrido até que se estabeleça um diálogo verdadeiramente frutífero entre a investigação de gênero e a tradição marxista. Pesem-se aqui os avanços obtidos a partir das recentes formulações de pesquisadores como Kurz (1994), Žižek (210) e Hobsbawm (2011). Obstante isso, o fato é que ainda faltam estudos (sobretudo empíricos) que avaliem melhor as relações que envolvem a dominação masculina, a cultura e a economia e que sejam capazes de realmente criar convergências entre esses dois campos do pensamento. 11 REFERÊNCIAS ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. CODATO, Adriano Nervo. O 18 Brumário, política e pós-modernismo. In: Lua Nova, São Paulo: CEDEC, nº.64, 2005. GUIMARÃES, Letícia de Castro. Relações de gênero e sexualidade: estudo sobre as relações de gênero e as contribuições da prática docente para a desmistificação de diferenças e preconceitos em relação ao sexo (sexismo) em sala de aula. Monografia (Graduação), Universidade Federal do Maranhão, Centro de Ciências Sociais, Faculdade de Pedagogia, São Luís, 2010. HOBSBAWM, Eric. 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