ISSN 1982 - 0283
Saúde e Educação:
uma relação
possível e necessária
Ano XIX boletim 17 - Novembro/2009
Secretaria
de Educação a Distância
Ministério da
Educação
SUMÁRIO
Saúde e Educação:
uma relação possível e necessária
Aos professores e professoras.................................................................................... 3
Rosa Helena Mendonça
Apresentação da série Saúde e educação: uma relação possível e necessária........... 4
Regiane Rezende e Vera Lúcia de Azevedo Dantas
Texto 1 - Integração das Políticas de Saúde e Educação............................................10
Vera Lúcia de Azevedo Dantas, Regiane Rezende e José Ivo dos Santos Pedrosa
Texto 2 – Saúde e cotidiano escolar......................................................................... 23
A escola e a saúde
Ercília Maria Braga de Olinda
Texto 3 - Linguagens e Tecnologias.......................................................................... 38
Três histórias para um começo de conversa sobre arte e saúde
Ângela Maria Bessa Linhares
Texto complementar................................................................................................51
Ray Lima - Raimundo Félix de Lima
Saúde e Educação: uma relação possível
e necessária
Aos professores e professoras,
A sensibilidade, a cordialidade, o cuidado levados a todos os níveis, para com a natureza, nas
relações sociais e na vida cotidiana, podem fundar, junto com a razão, uma utopia que podemos tocar com as mãos porque imediatamente praticável (Leonardo Boff)1.
A integração de práticas nas áreas de saúde
ções de vida das comunidades. Destaca, em
e educação, considerando a perspectiva de
especial, o papel da escola que, por meio
formação permanente de educadores e edu-
de experiências que consideram visões de
candos, e a consequente troca de saberes
mundo e dimensões criadoras diversas,
que emerge nesse contexto, permitem res-
enseja vivências expressivas, utilizando
significar a relação que, historicamente, se
diferentes linguagens e recursos, visando
constituiu entre saúde e educação.
mudanças na sociedade e nas políticas públicas.
É com o objetivo de debater essa temática
que a TV Escola, por meio do programa Salto
Esperamos que a leitura dos textos desta
para o Futuro, apresenta a série Saúde e Edu-
publicação, que são complementares aos
cação: uma relação possível e necessária, que
programas televisivos, contribua para o de-
conta com a consultoria de Regiane Rezende
senvolvimento e a continuidade de projetos
e Vera Lúcia Dantas, da Secretaria Municipal
significativos na interface educação e saúde,
de Saúde de Fortaleza, Ceará.
transformando antigas utopias em novas realidades porque, no dizer de Leonardo Boff,
A série fundamenta-se na perspectiva de
tais utopias devem, de fato, se tornar ime-
que a integração entre as políticas desses
diatamente praticáveis.
dois setores possibilita reflexões e ações
voltadas para a transformação das condi-
1
É urgente rever os fundamentos (27/02/2008). In www.leonardoboff.com .
2
Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro.
Rosa Helena Mendonça2
3
APRESENTAÇÃO
SAÚDE E EDUCAÇÃO:
uma relação possível e necessária
Regiane Rezende1
Vera Lúcia de Azevedo Dantas2
Historicamente, saúde e educação têm vi-
atribuições e formas de financiamento tra-
venciado aproximações e distanciamentos,
çadas em âmbito nacional, com o intuito de
e destes têm surgido algumas experiências
promover a integração/interação entre os
que refletem encontros e desencontros, no
setores saúde e educação.
que diz respeito ao cumprimento das suas
missões e do seu papel social.
Nesta perspectiva, a interface entre ambos
os setores, no sentido de imprimir mudanças
Os diversos contextos históricos e as formas
significativas na relação saúde/educação;
como os diversos atores se inserem e com-
escola/comunidade; educador/educando, es­
põem esses contextos têm sido determinan-
pe­cial­mente no contexto dos territórios, é
tes na configuração desses movimentos.
ainda um devir.
Considerar a educação como processo emancipatório que propicia o diálogo e as aprendizagens mútuas que podem contribuir para
a compreensão e a abordagem da saúde em
um sentido amplo, assim como compreen-
Nesse sentido, torna-se pertinente abordar
a necessidade de integração das políticas
públicas, para além da implantação de programas, projetos e ações de saúde na escola,
buscando:
der os territórios com seus problemas e po-
• Compreender como as missões postas
tencialidades, como base para a organização
a ambas as políticas podem se com-
de processos intersetoriais e interdisciplina-
plementar;
res de trabalho, são algumas das situaçõeslimite a serem enfrentadas, mesmo com os
• Compreender a intrínseca relação en-
avanços atuais, na conformação de normas,
tre o biológico, social, psíquico, eco-
1
Assessora técnica do Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza, Ceará.
Consultora da série.
2
Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. Médica do Programa Saúde da Família da
Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série.
4
nômico, que influenciam os processos
da vida, considerando e valorizando a
de adoecimento e cura e precisam es-
diversidade criativa e seus recursos de
tar incluídos nos projetos políticos pe-
linguagem;
dagógicos e terapêuticos.
• Compreender que a integração entre
• Construir um processo de articulação
saúde e educação caracteriza-se como
que tenha como base a co-responsabi-
um processo de educação permanente.
lidade, a co-gestão, o compromisso, a
sustentabilidade e a participação;
Enfim, com base nessa compreensão, desenvolver as interfaces necessárias e possí-
• Incluir os estudantes como sujeitos legítimos da gestão escolar;
veis entre saúde e educação, respeitando a
experiência prévia e os saberes dos diversos
atores e atrizes envolvidos, o que não sig-
• Considerar a diversidade de saberes
e lugares que constituem o universo complexo da comunidade onde se
insere a escola, tendo como aspectos
fundantes a dialogicidade criativa e a
nifica limitar o ato educativo, mas dialogar
com ele, problematizá-lo, elaborar um saber
relacional, como síntese articuladora entre
os saberes apreendidos na escola da vida e
aqueles proclamados na vida da escola.
escuta sensível,
O território que a escola abrange deve ser
• Constituir espaços pedagógicos, utilizando outras linguagens, para além da
escrita e da palavra;
• Inserir a arte e a cultura, não como
temas, mas como dimensões da educação escolar, como possibilidade de
promover a ampliação da percepção
de seres humanos, enquanto sujeitos
criativos e afetivos, na perspectiva de
fomentar a participação popular e o
protagonismo infanto-juvenil na promoção da saúde e da vida;
compreendido como um lugar de vida,
onde são tecidas relações a partir de situações carregadas de historicidade. Daí a importância e a necessidade de se investir no
desenvolvimento de uma comunidade que
constrói e se envolve em um projeto educativo próprio, para educar-se a si mesma,
suas crianças, jovens e adultos, no marco de
um esforço cooperativo, solidário, baseado
em um diagnóstico não só de suas carências e debilidades mas, sobretudo, de suas
potências. Entre os grandes desafios postos
à articulação entre as duas políticas está a
• Fortalecer a todos os atores em suas
compreensão de que todos os movimentos
singularidades, enquanto experiência
descritos anteriormente têm inúmeras co-
pedagógica de promoção da saúde e
nexões com a saúde e a vida, e a ousadia de
5
assumir em conjunto a gestão e a responsabilidade sobre estes movimentos.
• Que linguagens são significativas para
crianças e jovens e como elas têm sido
incluídas e incorporadas nos proces-
SÉRIE SAÚDE E EDUCAÇÃO: UMA
RELAÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA
• As políticas de saúde e educação vêm
construindo aproximações, as quais
têm produzido experiências que refletem encontros e também desencontros. O que produz os encontros?
sos pedagógicos na escola e na saúde?
• Os processos pedagógicos se encerram nas paredes da escola? O que a
escola pode aprender com os saberes
da vida?
• Qual o papel da arte nos processos pedagógicos?
• Como ultrapassar a atitude de pensar
• Que outras possibilidades comunica-
para o outro, pensando com o outro a
tivas e pedagógicas poderíamos cons-
concretização das nossas missões?
truir para dar concretude a esta inte-
• Como construir caminhos para a cogestão?
• Como o que está pensado entre os
dois campos se concretiza no ambiente escolar?
gração?
Com o objetivo de buscar uma reflexão mais
ampla e aprofundada das questões colocadas acima, propusemos a organização da
série em três eixos, que orientaram a elaboração dos textos e dos programas:
• Como articular, neste processo de integração, as responsabilidades a serem assumidas, enquanto políticas
públicas, aos desejos e sonhos das pessoas que, no cotidiano, dão sentido a
essas políticas?
I -Integração entre as Políticas de Saúde e
Educação; II - A Escola e a Saúde; III - Linguagens e tecnologias (arte, narrativa, autoralidade, sistematização e produção coletiva do
conhecimento).
6
Textos da série Saúde e educação: uma relação possível
e necessária3
As políticas de saúde e educação vêm cons-
colar? Que linguagens são significativas para
truindo aproximações, as quais têm produzido
crianças e jovens e como elas têm sido incluí-
experiências que refletem encontros significa-
das e incorporadas nos processos pedagógicos
tivos nos dois campos. Como essas iniciativas
na escola e na saúde? Esses são alguns dos te-
se concretizam, em especial, no ambiente es-
mas apresentados e debatidos na série.
TEXTO 1 - INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE E EDUCAÇÃO
Historicamente, saúde e educação têm vi-
tos e ações de saúde na escola.
venciado aproximações e distanciamentos,
e produzido experiências que refletem en-
Compreendendo que as políticas se efetivam
contros e desencontros, no cumprimento
na realidade concreta, pelo envolvimento
das suas missões e do seu papel social.
dos seus diversos atores, pensar a caminhada e o processo de articulação das políticas
Frente a mais uma proposta de articula-
de saúde e educação nos remete a pensar
ção pautada pelo âmbito nacional, como
a integração entre dois campos que são tão
desafio a estados, municípios e equipes de
próximos no cotidiano, mas distantes na
saúde, equipes das escolas e população,
compreensão de um em relação ao outro, e
torna-se pertinente abordar a necessidade
também, a pensar formas de aproximação e
de integração das políticas públicas, para
encontro que desenvolvam a percepção das
além da implantação de programas, proje-
pessoas como sujeitos.
TEXTO 2 – SAÚDE E COTIDIANO ESCOLAR
A saúde tem sido associada historicamente
de saúde no Brasil e no mundo, desconsi-
ao surgimento de doenças, sua prevenção
derando a capacidade de as pessoas assu-
e cura. Isso reflete a hegemonia do modelo
mirem o cuidado e o controle sobre o corpo
biomédico que tem permeado durante lon-
e a vida, delegando-os aos profissionais de
go tempo o desenvolvimento das práticas
saúde.
3
Estes textos são complementares à série Saúde e educação: uma relação possível e necessária, que será
veiculada no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 09 a 13 de novembro de 2009.
7
Desta forma, a abordagem da saúde como
sociais, culturais, espirituais e também pe-
prerrogativa da área médica promoveu o
dagógicas.
distanciamento de outros setores e áreas do
conhecimento, imprescindíveis para a com-
A escola, a partir do seu compromisso com
preensão da saúde, tal como é concebida na
a formação humana e técnica, tem papel
atual Constituição brasileira, onde se insere
fundamental neste processo de transforma-
o Sistema Único de Saúde.
ção das concepções e práticas relacionadas
à saúde, ao propor um processo educativo
Neste aspecto, questões como participação,
que considere a historicidade, a intersetoria-
autonomia, criatividade, autoestima, iden-
lidade e a constituição de redes de proteção
tidade, espiritualidade, amorosidade, resili-
integral. Neste sentido a educação popular,
ência, assertividade, entre outras, aparecem
enquanto proposta dialógica e problemati-
descoladas do desenvolvimento da saúde,
zadora, incorporada a um processo perma-
quando abordadas nos processos pedagógi-
nente de aprendizagem, de forma sistemá-
cos e incluídas nos currículos.
tica e assumida também institucionalmente
por meio dos Projetos Políticos Pedagógicos,
Portanto, pensar a saúde e educação em
pode contribuir na interação entre saúde e
sua complexidade requer o olhar ampliado
educação. Este eixo abordará os vários as-
sobre os processos de adoecimento e a sin-
pectos da interação entre saúde e educação
gularidade das possibilidades terapêuticas
considerando a transversalidade deste tema,
que não estão necessariamente no plano
no cotidiano da escola, entendida como uma
da medicalização, conformando dimensões
comunidade de aprendizagem e de vida.
TEXTO 3 – LINGUAGENS E TECNOLOGIAS (ARTE, NARRATIVA,
AUTORALIDADE, SISTEMATIZAÇÃO E PRODUÇÃO COLETIVA DO
CONHECIMENTO)
Historicamente a forma como as temáti-
criativas, que possibilitam a expressão da
cas de saúde têm sido abordadas no espa-
subjetividade e identidade, tais como as
ço escolar tem se remetido a dimensões
diversas linguagens da arte, os jogos, as
prescritivas e normativas que evidenciam,
narrativas e até mesmo tecnologias virtu-
além da hegemonia biomédica no campo
ais, têm se configurado como propostas
da saúde, a hegemonia da pedagogia tra-
contra-hegemônicas que apontam novos
dicional no processo educativo. Por outro
caminhos, não apenas na abordagem das
lado, experiências envolvendo dimensões
temáticas de saúde, mas na configuração
8
do processo pedagógico. Este texto con-
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para
templará a discussão sobre linguagens e
o quarto programa, com entrevistas que refle-
tecnologias inclusivas e participativas,
tem sobre esta temática (Outros olhares sobre
como
pedagógico,
a Saúde e educação) e para as discussões do
que podem contribuir para ressignificar a
quinto e último programa da série (Saúde e
relação entre saúde e educação.
educação em debate).
instrumento/espaço
9
TEXTO 1
Integração das Políticas de Saúde e Educação
Vera Lúcia de Azevedo Dantas1
Regiane Rezende2
José Ivo dos Santos Pedrosa3
Ao colocar em cena a integração de políticas
compreensão de seus determinantes. Saúde e
de saúde e educação partimos de um olhar
doença, nessa perspectiva, não se constituem
sobre esses dois campos em uma perspectiva
conceitos opostos, já que ambos se referem à
ampla. Neste sentido, assumimos uma com-
produção da vida, estando inseridos em con-
preensão de educação como processo dialógi-
textos históricos, sociais, econômicos, políti-
co, problematizador, reflexivo e emancipató-
cos, éticos, ambientais e culturais.
rio. Educação que, no dizer de Freire (1979, p.
49), está “fundamentada sobre a criatividade e
Ao tratarmos do campo da saúde coletiva de-
estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras
paramo-nos com a inserção da saúde em uma
sobre a realidade, respondendo assim à voca-
realidade social complexa, daí a necessidade de
ção dos homens que não são seres autênticos
considerá-la como um campo interdisciplinar,
senão quando se comprometem na procura e
articulado a uma totalidade social permeada
na transformação criadoras”.
de contradições. A constituição de espaços dialógicos que possibilitem a interlocução de sa-
Ao mesmo tempo, saúde é concebida em uma
beres e práticas parece configurar-se como es-
perspectiva integral, como processo, que in-
tratégia de superação dessas situações-limite4
corpora aspectos das subjetividades e a no-
(DANTAS et al., 2008).
ção de direito, de qualidade de vida. Portanto,
conceber o processo saúde e doença em uma
Refletir sobre a caminhada e o processo de ar-
abordagem integral pressupõe, também, a
ticulação entre saúde e educação nos remete
1
Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. Médica do Programa Saúde da Família do
Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série.
2
Assessora técnica do Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza, Ceará.
Consultora da série.
3
Professor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Piauí.
4
Situações-limite são aquelas que exigem transformação no contexto local, por dificultarem a concretização
dos sonhos, desejos e necessidades coletivas das populações (DANTAS et al., 2008). (...) não devem ser tomadas como
10
a pensar as formas de integração entre dois
e os grandes problemas dos territórios como
campos que estão próximos no cotidiano, mas
base para a organização de processos de traba-
distantes na compreensão de um em relação
lho intersetoriais e interdisciplinares é uma das
ao outro.
situações-limite a serem enfrentadas. Partindo
da compreensão de que esses campos estão
Ao considerar essas concepções, o território
interconectados com a vida em sua complexi-
– entendido como território vivo, que inclui
dade e que as políticas se efetivam na realidade
os que nele vivem, com suas culturas, seus
concreta pelo envolvimento dos seus diversos
modos de ver e andar a vida (SANTOS, 2000)
atores, uma proposta de integração das políti-
– se constitui como base para a construção
cas de saúde e educação necessitaria incluir as
das
interfaces
necessárias
entre
escolas
e unidades de
saúde e aponta
para o respeito
à
experiência
prévia e os saberes dos diversos
atores
e
atri-
zes envolvidos.
Conceber saúde
e educação, ten-
percepções destes e a
No momento em que
as sociedades modernas
começam a conviver com
temas como democracia,
cidadania, participação e
controle social, a integralidade
e a intersetorialidade tornamse princípios e diretrizes
imperativos às políticas
públicas.
ousadia de assumir, em
conjunto, a gestão e a
responsabilidade sobre
estes movimentos.
As reflexões apresentadas sobre saúde e educação nos levam a considerar a escola como
uma comunidade de
aprendizagem
(LIMA,
2008), o que nos traz a
do como base
ideia de uma convivên-
o
cia carregada de histo-
território,
significa dialogar com ele, problematizá-lo,
ricidade. Historicamente, saúde e educação
elaborar um saber relacional, como síntese
têm vivenciado aproximações e distanciamen-
articuladora entre os saberes apreendidos na
tos, que são conformados por determinados
escola da vida e aqueles proclamados na vida
contextos, configurando movimentos e apren-
da escola (FREIRE, 2000).
dizagens.
Desta forma, considerar as potencialidades
No momento em que as sociedades moder-
barreiras insuperáveis, além das quais nada existisse. No momento mesmo em que os homens as apreendem como
freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se transformam em “percebidos destacados”
em sua “visão de fundo”. Revelam-se, com efeito, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma
dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens (...) (FREIRE, 1987, p.90).
11
nas começam a conviver com temas como
espaços de interlocução no sentido do pro-
democracia, cidadania, participação e con-
tagonismo social.
trole social, a integralidade e a intersetorialidade tornam-se princípios e diretrizes im-
O direito universal à saúde e à educação ad-
perativos às políticas públicas. A partir daí
quire um significado como direito de cidada-
estas temáticas passam a compor o nosso
nia quando reivindicado pela população, ga-
repertório e a integrar as agendas políticas
rantido na Constituição e operacionalizado
de gestores e da sociedade civil.
pelas políticas públicas com o objetivo de dar
concretude aos compromissos assumidos.
É, portanto, na emergência dos sujeitos portadores de direitos sociais em sociedades de-
É, portanto, nesta perspectiva que se justifi-
mocráticas e participativas que as políticas
ca a integralidade dessas políticas, ou seja,
públicas passam a significar instrumentos
uma compreensão de que saúde e educação
e processos que viabilizam as respostas do
como direitos de cidadania não podem ser
Estado, que tem como dever propiciar as
concebidos de forma fragmentada.
condições necessárias para a concretização
desses direitos.
Mas a educação e a saúde apresentam características que as fazem também políticas
Considerando que, no cotidiano, as neces-
de governo, as quais necessariamente não
sidades se apresentam em dimensões que
estão colocadas ao lado de e/ou comprome-
compreendem desde as relacionadas às con-
tidas com a população. E, nesse caso, as po-
dições dignas de sobrevivência, passando
líticas públicas podem servir de mecanismos
pela segurança, paz, tranquilidade e até mes-
de legitimação de governos autoritários, de
mo a necessidade de afetos, à medida que os
estratégia para satisfazer os interesses de
cidadãos conseguem cada vez mais vocalizar
determinados grupos da sociedade e como
suas necessidades, as respostas institucionais
dispositivo de dominação, submissão e con-
tendem a se apresentar de maneira articula-
trole.
da e integrada, na tentativa de se aproximar
dessas necessidades, tornando-se legítimas.
No Brasil autoritário, a educação e a saúde,
em lugar de significarem direitos de cidadania,
Os direitos de cidadania garantidos na Cons-
eram utilizadas como instrumentos e estraté-
tituição Brasileira são dinamicamente (re)
gias para obtenção de outros fins. A relação di-
significados e (re)dimensionados passo a
reta da educação, da formação e da qualifica-
passo com os movimentos que qualificam
ção das pessoas consideradas força de trabalho
a participação dos cidadãos, ampliando os
também representava uma necessidade para
12
a reprodução do modo como se organizam
dade, a educação da população, isto é, as
as bases materiais da sociedade. Educação e
práticas educativas voltadas para as classes
saúde, como campos sociais, também podem
subalternas, passa de estratégia essencial ao
representar estratégias de reprodução de um
projeto político de dominação das classes
modo de pensar, no qual saúde é mercadoria e
dominantes para dispositivo fundamental
a educação é recurso de poder.
na construção de projetos emancipadores,
libertários, que fortaleçam a autonomia e a
Tal concepção é radicalmente diferente da edu-
alteridade dos sujeitos e coletivos sociais.
cação básica, fundamental para o desabrochar
do desenvolvimento e da potencialidade de
A educação em saúde que conhecemos
todo ser humano, dever do Estado, formaliza-
emerge no projeto de consolidação das so-
do por políticas de caráter universal. Dizendo
ciedades disciplinares em um processo de
de outra forma, à medida que a sociedade civil
domesticação dos corpos sociais (Foucault,
participa da formulação das políticas trazendo
1989) em conjunto com outras estratégias
suas necessidades, e reivindicando os direitos
“modeladoras” de comportamentos nor-
conquistados, imprime direcionalidade aos
matizados, des-subjetivadores dos sujeitos
planos, programas e ações governamentais.
diante do fortalecimento do Estado Moderno, sob um paradigma que justificava a in-
Desde que saber cuidar do outro foi expro-
vasão da vida privada, da intimidade, crista-
priado da sociedade e configurado em deter-
lizado na disciplina Higiene.
minadas técnicas produzidas por determinados atores legalmente reconhecidos como
A referência inicial da educação em saúde
tais, exercidas em determinados lugares e
atual é a teoria da multicausalidade dos
acessíveis somente a alguns, a dinâmica da
processos de adoecimento, validada por sua
vida se reduziu a estar ou não doente e esta
importância no enfrentamento das doen-
situação definida com base em normas que
ças infecciosas, a partir da tríade ecológica,
determinam o que é normal e o que é pa-
na qual os homens e mulheres apresentam
tológico. E o agenciamento da saúde como
comportamentos e hábitos que fortalecem
ausência de doença e desta como sendo a
a ação do agente em um ambiente nocivo.
falta de algo para fazer a máquina humana
funcionar (o corpo) reproduz no imaginário
Esta referência sempre nos persegue quan-
popular a ideia de saúde restrita ao consu-
do se faz a crítica aos modelos biologicista e
mo de serviços e de medicamentos.
higienista ou quando acriticamente eles são
reproduzidos nas práticas de educação em
Em sua trajetória na história da humani-
saúde nos serviços.
13
Com a insuficiência da teoria multicausal de
Para superar este projeto higienizador e dis-
responder à permanência de doenças infec-
ciplinar, as práticas pedagógicas que acon-
to-contagiosas, os múltiplos fatores causais
tecem nas escolas, que se caracterizam pela
ganham ressonância nos indivíduos diante
transmissão de informações que muitas ve-
das inúmeras possibilidades de serem por-
zes não produzem nenhum significado para
tadores de padrões de comportamento ade-
o educador e o educando, necessitam de
quados para evitar o fortalecimento de de-
mudanças substanciais em seus conceitos,
terminado fator.
princípios e diretrizes políticas. Considerase, portanto, a possibilidade de uma edu-
As concepções acima definem como atores
cação que se constrói por meio de relações
dessa prática os educadores sanitários que
que se estabelecem no mundo da vida e que
têm por missão difundir normas de comporta-
também acontece na escola, à qual se atri-
mento ideal, mudar percepções e hábitos, cujo
bui o sentido de espaço onde convergem
processo de formação, de natureza técnica,
singularidades que compõem um coletivo
determina uma prática pedagógica prescritiva,
– a comunidade escolar – vivenciando pro-
autoritária e normativa, que utiliza estratégias
cessos constitutivos de identidades, de sub-
de coerção, inculcação e persuasão.
jetividades e de movimentos.
14
A higienização da sociedade encontra nas
As práticas interativas e relacionais entre
escolas, na infância, nos homens e mulhe-
as pessoas, como práticas pedagógicas (ou
res em formação a possibilidade de afirmar
educativas), ocorrem somente entre sujei-
e reproduzir a hegemonia de determinados
tos. Sem esta concepção existe tão somente
grupos que impõem à sociedade modos de
a transmissão de saberes “normais” que ten-
vida, de pensar, de ser. Nas sociedades mo-
dem à reprodução das condições sociais por
dernas, estes grupos também afirmam a su-
meio da domesticação da potência imanen-
premacia de gênero, de raça, etnia e outras
te constitutiva do ser humano (Chauí, 2003).
diferenças, que passam a ser consideradas
fator de desigualdades.
No Brasil a educação e a saúde passam a
fazer parte da agenda política nacional do
Para operar esse projeto higienizador, a edu-
governo na época de Vargas, operacionali-
cação e a saúde, como instituições sociais
zadas por meio das ações de saúde escolar.
que fazem parte dos aparelhos ideológicos
Nas escolas do ensino público existiam pe-
do Estado, passam a trabalhar de forma ar-
lotões de saúde, com o objetivo de vigiar e
ticulada, conjugando lugares (as escolas),
ensinar hábitos considerados adequados à
conhecimentos e tecnologias.
população.
A integração entre os dois setores resultou na
2. Parâmetros
Curriculares
Nacionais
criação do Departamento de Saúde no Minis-
voltados para a inclusão no currículo,
tério de Educação, que depois passou a ser
dos temas transversais – ética e cida-
denominado Ministério da Educação e Saúde.
dania, consumo e trabalho, multiculturalidade, meio ambiente, saúde e
Mais tarde, ao serem desmembrados, o Mi-
sexualidade.
nistério da Educação fica responsável pelos
programas e ações relativas à saúde escolar,
3. A Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
orientado pelos preceitos higienistas e bio-
ção, de dezembro de 1996, reforçou e
logicistas, atuando somente em cada indiví-
ampliou os deveres das instituições
duo, dissociando-o da escola e do território.
públicas com a Educação, basicamente com o ensino fundamental.
Na década de 90, com o fortalecimento da
democracia e a conquista da ampliação dos
4. Produção de material didático-infor-
direitos de cidadania no país, o trabalho
mativo, na perspectiva de contribuir
educativo em saúde, vivenciado na escola,
mais para a reflexão e para o resgate
tem avançado através da incorporação de
do protagonismo da escola e seu en-
novas concepções teóricas da educação e da
torno na produção da saúde.
saúde, assim como na diversificação de seu
campo de atuação.
Aliado a isso, o significado ampliado de saúde vem ao encontro destas concepções, uma
Este avanço possibilitou a incorporação das
vez que compreende a saúde como respon-
práticas educativas em saúde, no cotidiano
sabilidade de diferentes setores da socieda-
didático-pedagógico das escolas, além de
de, por meio de ações interdisciplinares e
contribuir para uma crescente consolidação
intersetoriais, envolvendo os vários setores
da cooperação técnica entre os Ministérios
do poder público, as organizações não-go-
da Saúde e da Educação. Deste modo, ape-
vernamentais, a iniciativa privada e a comu-
sar de a concepção microbiológica ainda
nidade, discutindo acerca da qualidade de
se mostrar hegemônica, pode-se identificar
vida.
acúmulos consideráveis que potencializam
a ação educativa em saúde nos espaços ins-
As práticas educativas em saúde nas escolas,
titucionais, tais como:
no sentido de incorporar a visão mais ampla
da saúde, de estar voltada para a reflexão crí-
1. Disseminação da proposta de promo-
tica da realidade e de fortalecer a autonomia
ção de saúde no ambiente escolar;
dos sujeitos e o exercício da cidadania, de-
15
vem estar coerentes com os princípios éticos
1. Integração das políticas públicas - Ela-
e políticos do Sistema Único de Saúde (SUS),
boração de política integrada de edu-
que defende a universalidade, equidade, inte-
cação em saúde nas escolas, articulan-
gralidade e controle social, bem como com as
do os setores de saúde e educação;
diretrizes curriculares do Ministério da Educação que norteiam a educação básica do país.
2. Conhecimento das intervenções institucionais - Realizar levantamento e
Este entendimento deu origem a um Grupo
sistematização das informações sobre
de Trabalho entre o Ministério da Educação
as ações que já vêm sendo desenvol-
e o da Saúde, instituído como Câmara Inter-
vidas pelas áreas de saúde e educação
setorial Educação em Saúde na Escola, pela
nas escolas;
Portaria Interministerial nº 749, de 13 de
maio de 2005, e adequada sob o nº 1.820, de
3. Intersetorialidade entre saúde e edu-
1º de agosto de 2006, assinada pelos Minis-
cação: Promover a articulação entre
tros da Saúde e da Educação, cujo objetivo
os setores saúde e educação, com vis-
central era elaborar diretrizes que subsidias-
tas a potencializar as ações de promo-
sem uma política de educação em saúde nas
ção da saúde na escola, de acordo com
escolas do ensino fundamental.
levantamento das necessidades. Essas
ações deverão ser direcionadas para
A Câmara Intersetorial Educação em Saúde
alunos, comunidade e profissionais de
na Escola teve sua reunião inaugural em 30
educação;
de novembro de 2006, com a participação
dos representantes do Ministério da Edu-
4. Processos de educação permanente
cação e Ministério da Saúde, na qual foram
com profissionais de educação e de
apresentadas as expectativas e resgatadas
saúde, para o desenvolvimento da te-
as propostas e iniciativas desenvolvidas pelo
mática educação em saúde na comu-
MEC; foram apresentados os projetos do MS
nidade escolar e entorno;
que têm interface com a escola, o plano de
trabalho a ser desenvolvido pela Câmara e,
5. Integração interinstitucional - Promo-
ainda, foi elaborada a agenda conjunta - MS/
ver a integração entre as diversas Se-
MEC.
cretarias de Educação e o Sistema Único de Saúde (SUS) para a assistência
Em 2007, a Câmara Intersetorial discutiu li-
à saúde dos profissionais de educação
nhas de ação necessárias a um política dessa
e alunos, incluindo acuidade visual e
natureza, tendo por base os seguintes eixos:
auditiva;
16
6. Participação social - Promover a parti-
desconstroem as bases do conhecimento car-
cipação da comunidade nas ações de
tesiano, autoritário, normativo e hegemônico
educação em saúde na escola.
e apresentam potencialidade em orientar o
processo de produção de saúde, reconstruin-
Estas recomendações são incorporadas no
do-o numa perspectiva libertadora, reflexiva,
Programa Saúde na Escola (PSE), instituído
criativa e transformadora, construindo coleti-
por Decreto presidencial nº. 6.286, de 5 de
vamente um saber que reflete a realidade vi-
dezembro de 2007, que resulta do trabalho
venciada, servindo de referência para a cons-
integrado entre o Ministério da Saúde e o
tituição de sujeitos sociais que assumem o
Ministério da Educação, na perspectiva de
protagonismo de sua saúde e de suas vidas.
ampliar as ações específicas de saúde aos
alunos e alunas da Rede Pública de Ensino:
A formulação de políticas em sociedades de-
Ensino Fundamental, Ensino Médio, Rede Fe-
mocráticas compreende um ciclo desenca-
deral de educação profissional e tecnológica,
deado pela construção da vontade política,
Educação de Jovens e Adultos (EJA), por meio
que preside a formalização de normas jurí-
de quatro componentes: avaliação das condi-
dicas necessárias para garantir legalmente
ções de saúde; promoção da saúde e preven-
a concretização da vontade política coleti-
ção; educação permanente e capacitação dos
vamente construída, que orienta arranjos
profissionais e de jovens; monitoramento e
institucionais e organizacionais capazes de
avaliação da saúde dos estudantes.
produzir as ações necessárias e o controle
da sociedade, avaliando e trazendo novas te-
A formulação e a operacionalização do PSE
máticas que irão compor novos elementos
têm por preceitos conceituais, metodoló-
para a sociedade que se manifesta e define a
gicos e instrumentais: a amplitude e com-
formulação de novas políticas.
plexidade do conceito de saúde; a discussão
acerca da qualidade de vida; o pressuposto
Nesse sentido, a vontade da sociedade por
de que a solução dos problemas está no po-
uma política que articule intersetorialmen-
tencial de mobilização e participação efetiva
te educação e saúde e integre suas ações
da sociedade; o princípio da autonomia dos
na perspectiva de promover ao cidadão o
indivíduos e das comunidades e o reforço do
direito à potencialidade da vida, remete a
planejamento e poder local.
questões concernentes à construção desta
vontade: quais os discursos, práticas e co-
Preceitos que orientam programas que dão
nhecimentos que fundamentam a saúde e
vida às experiências pedagógicas consideradas
a educação como direitos que se concreti-
como estratégias/ferramentas/suportes que
zam em instituições e organizações? Quais
17
argumentos são utilizados para construir
e subjetividades, no qual os sujeitos envol-
um novo significado que legitime a ideia da
vidos identificam-se, interagem, refletem a
escola como espaço de produção de saúde
respeito de suas vivências e constroem pro-
e cidadania? Que saberes e tecnologias são
jetos de vida mais saudável e cidadã; promo-
necessários para mudar uma cultura insti-
ver o protagonismo da escola como espaço
tucional ainda centrada em valores que for-
de produção de saúde em seu território exi-
talecem o paradigma biomédico que medi-
ge a discussão a respeito dos determinantes
caliza a atuação dos profissionais de saúde
sociais da saúde/doença nessa população, a
na escola e contribui para fragmentação de
mobilização em torno do direito à saúde, o
sujeitos, de espaços e de políticas?
fortalecimento da participação da comunidade escolar nos espaços de controle social
A necessidade do imperativo ético da articu-
e de gestão participativa do Sistema Único
lação entre integralidade das necessidades e
de Saúde.
intersetorialidade das políticas públicas ganha maior nitidez na fase de implementação,
considerando que nesta fase as políticas se
expressam na produção de ações condizentes
com seus pressupostos, diretrizes e objetivos.
É também na fase de implementação das políticas que a disputa entre os recursos de poder, sejam técnicos, burocráticos, financeiros
ou políticos, se evidencia claramente, explicitando objetivos não discursivos.
Caberia ainda perguntar:
• Como operacionalizar políticas públicas intersetoriais capazes de impactar
os determinantes e condicionantes de
saúde da população?
• O que produz bons encontros, os que
ativam potências, paixões alegres, no
dizer de Spinoza, entre os sujeitos da
saúde e da educação?
A integralidade entre saúde e educação e
a intersetorialidade entre as ações de res-
Neste sentido, uma proposta de integra-
ponsabilidade setoriais precisa fazer frente
ção precisa encontrar convergências entre
a outros desafios como: romper o caráter
concepções, princípios e valores, desde a
prescritivo, desarticulado e focalizado das
perspectiva individual e coletiva enquanto
ações desenvolvidas exige novos arranjos
dimensões instituintes e aqueles institu-
institucionais integrados, intersetorializa-
ídos pelas políticas de saúde e educação.
dos e participativos; transformar metodo-
A construção coletiva de novos conceitos
logias e técnicas pedagógicas tradicionais
contribui para a produção de sentidos com-
exige a ressignificação da escola enquanto
partilhados e para a co-responsabilização
espaço de construção de territorialidades
de todos.
18
Partir daquilo que está colocado como missão
de um desenho que ajude a fazer leitura am-
institucional dos setores Saúde e Educação e
pliada da realidade; identificar as situações-
buscar a construção de uma nova missão para
limite e potencialidades que se apresentam;
esse caminho integrado, tendo como base a
traçar estratégias; construir planos de ação,
complementaridade, se constitui como outro
monitoramento e avaliação, que respondam
desafio para a efetivação dessa idéia.
às necessidades evidenciadas e configurem
um processo de educação permanente.
Ademais, ao propor a articulação de políticas,
torna-se fundamental constituir movimen-
Organizar a atenção à saúde sob a ótica da in-
tos que considerem também a harmonização
tegralidade pressupõe a compreensão dos seus
organizacional e operacional. O que estamos
determinantes e condicionantes e o desenvol-
a nomear de harmonização organizacional
vimento de ações intersetoriais. Para tanto se
compreende o diálogo acerca dos aspectos
faz necessário aprofundar mecanismos que
históricos, princípios, diretrizes, organização
propiciem a horizontalidade dos processos de
sistêmica, bases e dispositivos legais de am-
gestão, constituam espaços de negociação e
bas as políticas, bem como das semelhanças,
proposições coletivas, promovam vínculos
convergências e complementaridades. Como
entre seus sujeitos e ampliem a participação
harmonização operacional, entendemos o pro-
social nas políticas.
cesso de reconhecimento e reflexão acerca dos
diversos instrumentos e estratégias utilizados
A co-responsabilização desses setores nos
para a operacionalização destas políticas.
remete a um modo de gerir as políticas que
inclui o pensar e o fazer coletivos, visando
A idéia de harmonização aqui colocada situa-
motivar e educar os trabalhadores e ampliar
se na perspectiva de superação da ótica ver-
sua capacidade de compreender e interferir
ticalizada, normativa e medicalizante que
sobre a realidade. Aqui recorremos a Andra-
tem caracterizado as ações desenvolvidas
de (2006) que define co-gestão como:
entre saúde e educação, buscando contribuir
para o reconhecimento do que tem sido fei-
“(...) espaços coletivos valiosos de mo-
to e incentivar o desenvolvimento de olhares
bilização e atuação de diferentes atores
críticos sobre este “fazer”, de forma que a
envolvidos no processo de produção da
integração das políticas de saúde e educação
saúde, num exercício de construção de
possa comprometer-se com a construção da
novas práticas e saberes entre sujeitos
autonomia e da qualidade de vida.
autônomos, com capacidade inventiva,
que se envolvem na responsabilização
Nessa perspectiva, urge pensar a concepção
do planejar, executar e avaliar da Polí-
19
tica de Saúde no Território-Cidade; nos
Portanto, nos caberia perguntar: como pen-
Territórios-Distritos de Saúde e nos Ter-
sar no cotidiano a interface entre essas políti-
ritórios-Unidades de Produção da Saú-
cas, buscando a superação do olhar fragmen-
de” (ANDRADE et al., 2006, p. 121).
tado, instrumental e reducionista na saúde e
na educação? Como construir com a comu-
Nessa perspectiva, o planejar de forma inte-
nidade escolar um olhar ampliado sobre os
grada as ações de saúde e educação no terri-
processos de adoecimento e as possibilida-
tório pode configurar um espaço instituinte
des de intervir a partir de dimensões sociais,
de exercício de poder compartilhado (PE-
culturais, espirituais e
DROSA,
também pedagógicas?
2008),
que busca o dialogismo
inter-
setorial, em um
recorte sincrônico que mostra
a saúde como
vida do lugar e a
educação como
lugar de superação das situações-limite que
se apresentam.
Entre os desafios
postos
à
Desenvolver estratégias que
considerem a diversidade
de saberes da comunidade
onde se insere a escola e a
unidade de saúde – tendo
como aspectos fundantes
a dialogicidade criativa e
a escuta sensível – pode
representar a possibilidade de
elaborar um saber relacional,
onde a cultura se constitui
dimensão fundamental.
Lima (2008) pontua
como a escola “para
compor sua legitimidade social necessita
articular os conhecimentos ali construídos pelos estudantes
ao ‘saber fazer, ao saber ser e ao saber viver juntos’, tomando
como referência três
dos quatro pilares da
educação do futuro
apresentados por De-
interação entre
lors (1999), com base
as duas políti-
no entendimento de
cas está a compreensão de que esses cam-
que capacidades e conhecimentos somente
pos estão interconectados com a vida em
têm sentido se tiverem ligação entre si”.
sua complexidade, e a ousadia de assumir,
em conjunto, a gestão e a responsabilidade
Acrescentamos, ainda, a necessidade de
sobre estes movimentos, que não estão ne-
centrar a discussão da escola como lugar de
cessariamente no plano da medicalização,
promoção da saúde, junto ao horizonte das
conformando dimensões sociais, culturais,
potências humanas a desenvolver - o que
espirituais e também pedagógicas.
nos remete ao diálogo com Spinoza. A po-
20
tência para Spinoza (1988) é a própria essên-
sada”. Ao trabalharmos com essa dimensão,
cia dos seres, seu poder de ação. A potência
é necessário ter claro que respeitar a cultura
das ideias que se conformam coletivamente,
não significa que não possamos nos mover
seguindo a lógica spinoziana, está na pos-
para transformá-la.
sibilidade dos encontros, das composições,
do poder de afetar e de ser afetado por eles.
Com Freire, vamos concluindo essas reflexões sobre a integração das políticas de
A discussão do direito à educação, que se in-
saúde e educação, cientes do inacabamento
terfacia com a do direito à saúde, pode ser
desse processo, mas certos da fecundidade
percebida ainda como devir, como algo a ser
que nele está contida.
conquistado e, nesse sentido, a integração
das políticas pode constituir-se campo fér-
“(…) só existe saber na invenção, na rein-
til de produção de novos movimentos que
venção, na busca inquieta, impaciente,
envolvam dimensões criativas e a configura-
permanente que os homens fazem no
ção de processos pedagógicos que apontem
mundo, com o mundo e com os outros”
para a superação do modelo da biomedicina
(FREIRE, 1987).
na saúde e da pedagogia da transmissão na
educação, promovendo a inclusão dos vários atores e atrizes que compõem a comu-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
nidade escolar como sujeitos protagonistas
ANDRADE, Luiz Odorico Monteiro de et al. Hu-
dessas ações.
manização e Cultura de Paz: um desafio para o
Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza. Saú-
Desenvolver estratégias que considerem a
de em Debate, v. 35, p. 115-127, 2006.
diversidade de saberes da comunidade onde
se insere a escola e a unidade de saúde – ten-
CHAUÍ, M. Política em Spinoza. São Paulo:
do como aspectos fundantes a dialogicidade
Com­panhia das Letras, 2003.
criativa e a escuta sensível – pode representar a possibilidade de elaborar um saber relacional, onde a cultura se constitui dimensão
fundamental. Ao mesmo tempo Freire (2000,
p.62) nos lembra que: “O mundo da cultura
que se alonga em um mundo da história é um
DANTAS, V. L. A.; LINHARES, A. M. B.; ANDRADE, L. O. M.; PORTO, T. C. A. Violência
como situação limite nas rodas das Cirandas
da Vida em Fortaleza, Ceará. Divulgação em
Saúde em Debate, v. 39, p. 68-81, 2007.
mundo de liberdade, de opção, de decisão,
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes
mundo de possibilidade em que a decência
necessários à prática educativa. São Paulo:
pode ser negada, a liberdade ofendida e recu-
Paz e Terra, 2000. (Coleção Leitura).
21
_______ Pedagogia do Oprimido. Rio de Janei-
PEDROSA, J. I. Educação Popular em Saúde e
ro: Paz e Terra, 17ª edição, 1987.
Gestão Participativa no Sistema Único de Saúde.
Revista APS, v. 11, n. 3, p. 303-313, jul./set. 2008.
_______ Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire (antologia). São Paulo:
SANTOS, M. Território e sociedade - entrevista
Loyola.
com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SPINOZA, B. Tratado Teológico-Político. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, In-
LIMA, R. Ideário de Política Educacional, Con-
trodução, tradução e notas de Diogo Pires
ceito de Escola Pública. In: Educação Demo-
Aurélio, 1988.
crática: experiências, desafios e perspectivas.
15ª IDEC. São Paulo, 2008.
22
TEXTO 2
Saúde e cotidiano escolar
A ESCOLA E A SAÚDE
Ercília Maria Braga de Olinda1
Partindo da constatação exposta na apre-
necessidades das pessoas que, no cotidiano,
sentação deste programa de que as políticas
dão sentido aos mesmos? Que elementos
de saúde e de educação vêm construindo,
teórico-metodológicos devem ser considera-
ao longo da história, aproximações e afas-
dos na formação dos profissionais da saúde
tamentos, os quais têm produzido experiên-
e da educação, a fim de incorporar concep-
cias que refletem encontros e desencontros,
ções educativas, no sentido de promover
passamos a refletir sobre o eixo “A Escola e a
uma educação em saúde que transcenda a
Saúde”, procurando entender os movimen-
ideia de educação como transmissão do co-
tos realizados na escola visando garantir
nhecimento e de saúde como ausência de
cada vez mais aproximações. Para tanto, de-
doença? Quais os desafios da universidade
senvolveremos o presente texto nos orien-
para aproximar saúde e educação no coti-
tando pelas seguintes questões: que carac-
diano escolar?
terísticas de nossa época estão a exigir a
integração das políticas e ações nos campos
da saúde e da educação? Que necessidades
formativas reclamam novas práticas e novas linguagens? Quais as características da
1) CONSTRUIR HABILIDADES
PARA A VIDA NUM MUNDO QUE
BANALIZOU A VIOLÊNCIA
educação necessárias à formação humana
No dia 18 de setembro de 2009, localizamos
para hoje e, nessa perspectiva, que aspec-
no site www.globo.com a seguinte notícia:
tos deveriam ser enfocados na abordagem
de saúde na escola? A transversalização do
“Um menino de 9 anos foi agredido na
tema saúde, proposta nos PCN, é uma reali-
saída da escola, em São Joaquim da Bar-
dade na escola? Como articular os diferen-
ra, a 382 km de São Paulo, por colegas
tes programas, projetos e ações existentes
de classe e teve de ser hospitalizado. Ele
na escola, respeitando os desejos, sonhos e
teve uma lesão na coluna cervical e vai
1
Professora da Universidade Federal do Ceará – UFC.
23
precisar de um colete ortopédico por al-
São Paulo; meninos negros e pobres execu-
guns dias. O garoto, que é gago, recebeu
tados em Salvador; adepto da Umbanda ape-
socos e pontapés na cabeça e nas cos-
drejado na periferia de Fortaleza, etc.
tas de pelo menos cinco meninos, todos
com menos de 12 anos [...] A Polícia Civil
Há, sem dúvida, um crescimento do fenô-
apura o caso. Segundo a delegada Soraia
meno da violência nas últimas décadas, o
Pinhone Ravagnani, os garotos aponta-
que levou a Organização Mundial da Saúde
dos como os autores da agressão deve-
(OMS)2, em 2002, a considerá-la como fenô-
rão comparecer com os pais na semana
meno de saúde pública. A violência mani-
que vem para prestar depoimento. Se for
festa-se no cotidiano de diferentes formas e
comprovada a participação dos meni-
em graus diversificados, comprometendo a
nos, eles poderão cumprir medidas so-
saúde física, mental e espiritual das pessoas
cioeducativas previstas no Estatuto da
e também pondo em risco a segurança do
Criança e do Adolescente (ECA). A escola
próprio planeta Terra. Entendemos que tal
estadual Adolfo Alfeu Ferrero também
fenômeno deve ser estudado na sua com-
vai chamar os responsáveis pelas crian-
plexidade, englobando os seguintes prismas:
ças para uma reunião. A delegada afir-
biopsicológico, sociológico, epidemiológico,
mou que há relatos de que o garoto, por
jurídico, histórico e espiritual. Os números
ter problemas na fala, vinha sofrendo
da violência e o impacto da insegurança na
humilhações, o que caracteriza a práti-
vida das pessoas apontam para a necessida-
ca conhecida como bullying (a violência
de de uma articulação entre saúde e educa-
física ou psicológica entre colegas de for-
ção, com vistas ao desenvolvimento pessoal
ma repetitiva)”.
e social, bem como à defesa e à promoção
dos direitos humanos. Importa compre-
Lembramos de tantos episódios passados
ender as motivações para a violência, suas
envolvendo jovens em ações intolerantes
raízes e as formas para a prevenção e rea-
e negadoras da vida: os da classe média de
bilitação da pessoa vitimada e do agressor,
Brasília que incendiaram o índio Pataxó; jo-
mas, sobretudo, temos a tarefa educativa de
vens do Rio de Janeiro que espancaram uma
promover uma cultura de paz.
empregada doméstica; neonazistas que mataram ou torturaram nordestinos e gays em
Nossa sociedade está doente e a educação
2
A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi fundada em 7 de abril de 1948. É a agência das Nações Unidas
(ONU) especializada nas questões globais e regionais de saúde. Sua Constituição aponta como objetivo da agência
“prover a todos os povos o mais alto nível de saúde”. Saúde é entendida como “um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.”
24
colabora com tal estado à medida que deixa
ção e da saúde. Por outro lado, não se resu-
de considerar os educandos na sua multidi-
me a isso, pois um conjunto de fatores que
mensionalidade, preocupando-se com índi-
se entrecruzam é que determina os resulta-
ces de rendimento deslocados dos índices de
dos da aprendizagem: redução da pobreza;
felicidade e de realização humana. A organi-
diminuição da concentração de renda e das
zação do trabalho pedagógico na escola atu-
desigualdades regionais. Em conjunto, mu-
al reclama ações coletivas para a garantia do
danças estruturais, conjunturais e culturais
“direito a aprender direito”, inseparável do
garantirão a efetivação dos direitos huma-
“direito a viver em plenitude e abundância”.
nos.
Não
podemos
mais
conviver
com a exclusão,
com a negação
de
identidades
singulares, com
a perda da autoestima e com
o
desperdício
dos
potenciais
de
crianças,
adolescentes e
jovens, que terminam se as-
A educação popular,
A educação popular,
enquanto práxis pedagógica
dialógica e problematizadora,
há muito incorporou um
sentido amplo para a ideia
de saúde, tal qual é definido
pela OMS, implementando
processos permanentes
de troca de saberes entre
universidade, escola básica e
comunidades.
enquanto práxis pedagógica dialógica e
problematizadora, há
muito incorporou um
sentido amplo para
a ideia de saúde, tal
qual é definido pela
OMS,
implementan-
do processos permanentes de troca de
saberes entre universidade, escola básica
e comunidades. Ins-
sumindo como
titucionalmente, por
causadores
meio
de
dos
Projetos
seu próprio “fracasso”. Precisamos garantir,
Políticos Pedagógicos, os diferentes sujeitos
na prática, não apenas o acesso (expansão
buscam contribuir na interação entre saúde
quantitativa), mas também a permanência
e educação. Princípios pedagógicos como:
exitosa (aspecto qualitativo) dos educandos
dignidade da pessoa humana; participação;
na escola. Entendemos que o desenvolvi-
igualdade de direitos; direito à diferença;
mento de programas e projetos que rever-
autonomia; criatividade; amorosidade e as-
tam tais indicadores não pode se separar de
sertividade não aparecem descolados do de-
uma política de formação permanente de
senvolvimento da saúde, pois esta é parte
professores e demais profissionais da educa-
da formação de seres humanos plenos e fe-
25
lizes. A práxis pedagógica popular considera
seus potenciais. A inserção crítica e ativa dos
a historicidade dos processos, a interseto-
educandos nas dinâmicas escolares e sociais
rialidade nas ações, a inter/transdisciplina-
depende, em grande parte, do combate sem
ridade no trato com os conteúdos escolares
trégua à autodesvalia a que estão submeti-
e a constituição de redes de proteção inte-
dos. Paulo Freire (1978, p.54), na sua infinita
gral dos direitos das crianças, adolescentes
amorosidade e crença no potencial humano,
e jovens. Na base de todos esses princípios
assim se expressou: “[...] de tanto ouvirem
e procedimentos está uma antropologia po-
de si mesmos que são incapazes, que não
sitiva, que reconhece no educando um ser
sabem nada, que são enfermos, indolentes,
inacabado e com “vocação ontológica de ser
que não produzem em virtude de tudo isso,
mais” (Freire, 1978). Crer e apostar no poten-
terminam por se convencer de sua incapaci-
cial infanto-juvenil, criando oportunidades
dade”. O desamor leva à rebeldia desenfre-
para que esses potenciais se desenvolvam,
ada, à violência, à negatividade. Quando o
transformando-se em atos criativos e cons-
potencial humano não é canalizado para fins
trutivos em resposta aos problemas locais,
criativos, ocorre o adoecimento. Assim, é
são ações afirmativas que substituem a no-
correto afirmar que uma educação bancária,
ção de problema vinculada a esse segmen-
castradora, produz doença e que uma educa-
to, pela noção de solução e protagonismo.
ção emancipadora promove saúde.
A participação autônoma e solidária gera
impactos positivos sobre a vida dos sujeitos
Reconhecemos a inegável importância da
e sobre sua comunidade, dando uma nova
escola, enquanto complexa instituição de
imagem social às crianças, aos adolescen-
socialização, ao mesmo tempo em que cons-
tes e aos jovens. Precisamos romper com
tatamos que a mesma tem se apresentado
as representações hegemônicas em nossa
como agência disciplinadora ou, quando
sociedade, que identificam nesses sujeitos,
muito, treinadora de habilidades básicas
ou um risco/perigo, ou um projeto para o
para a inserção a-crítica no mundo letrado
futuro. Hoje, aqui e agora eles precisam ter
e no reduzido e flutuante mercado de traba-
seus direitos garantidos para crescerem dig-
lho. A escola tem negligenciado a dimensão
namente. Quando isso ocorre, há uma res-
desejante e corpórea do ser e tem reduzido
posta positiva.
a dimensão cognitiva a uma simples capacidade de armazenar e repetir informações
Aprendemos que a maior proteção oferecida
sem significado. O ser humano tem sido sis-
a uma criança, adolescente ou jovem está na
tematicamente mutilado e negado em suas
garantia de espaços e de processos educa-
infinitas potencialidades. A capacidade cons-
tivos que permitam o desenvolvimento dos
trutiva do sujeito é negada através da forma
26
básica do ensino que é a recitação de peque-
líticas de Saúde e Educação – já vimos a
nas parcelas do conhecimento, sem relação
necessidade e urgência de abordar a inte-
com uma atitude investigativa frente às suas
gração das políticas públicas, para além da
necessidades individuais e coletivas.
implantação de programas, projetos e ações
de saúde na escola. A enxurrada de projetos
Na música “Estudo Errado”, Gabriel, o Pen-
especiais financiados pelas esferas dirigen-
sador capta o sentimento de uma criança
tes centrais – federal, estadual e municipal
que aprendeu a desenvolver estratégias para
– não tem colaborado para a alteração nos
se adaptar ao sistema escolar, fugindo do
indicadores de rendimentos escolares, nem
“fracasso”, para ser admirada pelos pais:
mesmo na conquista de maior integração
entre os diferentes segmentos que fazem a
“Mãe, tirei um dez na prova/ me dei bem, ti-
escola.
rei um cem, eu quero ver quem me reprova/
decorei toda lição/ não errei nenhuma ques-
Quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
tão/ não aprendi nada de bom, mas tirei dez/
ção Nacional determinou como atribuição
Ô filhão! Faço tudo que aprendi/ amanhã já
da escola a elaboração de forma participa-
esqueci/ decorei, recopiei, memorizei mas
tiva de seu projeto político pedagógico, in-
não entendi...”
dicou uma nova perspectiva para a gestão
e para o planejamento: a escola como cen-
Impulsionada e inspirada na educação po-
tro do processo educacional, ou seja, como
pular a escola é convidada a se repensar,
instância indicadora dos rumos das políticas
constituindo-se num espaço de reflexão e
educacionais. Vários mecanismos de des-
re-elaboração crítica da cultura. A escola
centralização foram criados nos sistemas
deve criar condições para que educandos,
para assegurar as condições materiais e ins-
educadores e comunitários, em interação,
titucionais para a sistematização de políti-
ponham-se em condição de sujeitos, trans-
cas com foco na escola. Albuquerque (2007,
formando-se, assim, numa comunidade de
p.113) mostra que a operacionalização dos
vida que continuamente reconstrói as expe-
diversos mecanismos encontrou obstáculos,
riências de cada sujeito com base no diálogo
não tendo sido suficiente para a promoção
e no respeito real às diferenças.
de condições que alterassem “a configuração do processo decisório”. Ao contrário,
2) A ESCOLA COMO PONTO DE
PARTIDA
houve fragmentação do planejamento com
No Texto I desta série – Integração das Po-
cessos verticalizados, a perspectiva de uma
perda de foco na escola, o que gerou superposição de ações. Na contramão de tais pro-
27
escola cidadã, entendida como uma comu-
define seus rumos, programa e avalia suas
nidade de aprendizagem e de vida, defende
ações com vistas à realização de sua missão,
que, de forma participativa, a escola iden-
definida coletivamente. A transformação da
tifique suas necessidades para, em seguida,
escola que temos exige mudanças paradig-
articular-se às macro-orientações emanadas
máticas em relação ao ser humano, ao co-
do centro do sistema, que, por sua vez, deve
nhecimento e aos rumos do planeta. Temos
lhe dar apoio técnico e financeiro.
que investir nas mentes e nos corações, articulando os fazeres cotidianos escolares aos
Concordando com Boaventura de Sousa San-
modos de vida dos seus sujeitos. A educação
tos (1999) defendemos em trabalho anterior
necessária à formação humana, para hoje e
(OLINDA, 2007) que os processos educativos
não para um futuro que não podemos deter-
devem se comprometer com a formação de
minar a priori, considera a integralidade do
uma “comunidade de intérpretes”. A socie-
ser humano, indo ao encontro da ideia de
dade da informação, do conhecimento e da
saúde que transcenda a concepção biomédi-
comunicação impõe à escola a tarefa de re-
ca, ou seja, que vá além da ideia de ausência
pensar-se, para que ela seja capaz de formar
de doenças e de enfermidades3.
sujeitos capazes não só de acessar informações, mas também de avaliá-las e de usá-las
A busca da conexão entre os setores da saú-
individual e coletivamente, transformando
de e da educação pode ser um caminho fér-
sua vida e a sociedade. As “comunidades de
til para a formação de sujeitos que amem
intérpretes” reconhecem diferentes formas
a vida, que se cuidem e se respeitem e, em
de saber além do científico, realizando um
consequência, amem, cuidem e respeitem o
confronto comunicativo entre os mesmos.
outro, incluindo seu próprio planeta. Uma
Nessa congregação dialógica os cidadãos
vida plena e abundante inclui a conscienti-
não são forçados a renunciar às suas formas
zação individual e coletiva com o bem-estar
de interpretação da realidade social e a aca-
físico, psicossocial e espiritual de todos.
demia se abre à noção de “equivalência de
saberes”.
Uma comunidade de aprendizagem e de
vida, formadora de intérpretes, conhece
seus sujeitos, identifica suas necessidades,
3) A SAÚDE COMO TEMA
TRANSVERSAL NA ESCOLA: ENTRE
O PROPOSTO E O REALIZADO
Os temas transversais foram incluídos nos
3
Apesar da definição ampla da Organização Mundial da Saúde (OMS), as políticas em saúde e a própria
formação dos profissionais sempre priorizaram o controle da morbidade e da mortalidade.
28
Parâmetros Curriculares Nacionais em 1996,
Assim, os conteúdos foram organizados em
como metodologia capaz de conectar as
três grandes categorias: conceituais, proce-
experiências dos alunos com os conheci-
dimentais e atitudinais.
mentos escolares, permitindo uma aprendizagem compreensiva que possibilitasse a
Os temas transversais, como “questões so-
reconstrução, tanto do conhecimento sis-
ciais cruciais para a compreensão e crítica
tematizado, quanto da experiência dos alu-
da realidade circundante” foram incluídos
nos. A transversalidade seria uma forma de
no Ensino Fundamental e Médio com os
intervenção didática capaz de propiciar a
seguintes objetivos: a) propiciar o conheci-
formação plena dos educandos, adequando-
mento de fatos e situações marcantes da re-
se, assim, às exigências formativas contem-
alidade brasileira, de informações e práticas
porâneas.
que possibilitam uma participação ativa e
construtiva nessa sociedade; e b) desenvol-
Na proposta para o Ensino Fundamental, o
ver a capacidade de eleger critérios de ação
conteúdo escolar foi organizado por áreas
pautados na justiça, detectando e rejeitando
– Língua Portuguesa, Matemática, Ciências
a injustiça quando ela se fizer presente, as-
Naturais, História, Geografia, Artes, Educa-
sim como criar formas não-violentas de atu-
ção Física e Ensino Religioso, que deveriam
ação nas diferentes situações da vida (PCN,
ser integradas pelo desenvolvimento de pro-
v. 08, p.55).
jetos de ensino. As questões sociais relevantes, que terminam não sendo tratadas ade-
A inserção dos temas transversais no cur-
quadamente nas áreas convencionais, foram
rículo justifica-se pelo fato de a sociedade
incorporadas como temas transversais.
contemporânea apresentar problemas estruturais e conjunturais graves, cujas solu-
De acordo com os PCN, os conteúdos esco-
ções estão na dependência da formação de
lares são considerados como meios para de-
sujeitos capazes de debatê-los, envolvendo-
senvolver capacidades de diferentes ordens.
se na busca de soluções.
Essa foi uma mudança de enfoque, uma vez
que nossa tradição pedagógica sedimentou
Os temas escolhidos para o Ensino Funda-
a noção de que a incorporação de conteú-
mental foram: orientação sexual, plurali-
dos é a finalidade essencial do ensino. A
dade cultural, meio ambiente, trabalho e
importância do conteúdo não é negada,
consumo, ética e saúde. Para favorecer o
mas ampliada de modo a incluir não ape-
debate em torno das especificidades de cada
nas conhecimentos (fatos e conceitos), mas
estado, região, centros urbanos e rurais, os
procedimentos, valores, normas e atitudes.
PCN propuseram, ainda, os temas locais. Os
29
critérios para a eleição desses temas foram:
o desenvolvimento curricular. Foi mantida
urgência social; abrangência nacional; pos-
a tradição nacional de realizar reformas à
sibilidade de ensino e de aprendizagem no
revelia dos sujeitos encarregados de torná-
Ensino Fundamental e sua potencialidade
la realidade. O Brasil oficial continuou des-
para favorecer a compreensão da realidade
considerando o Brasil real e empreendendo
e a participação social.
transplantes de modelos pensados para outra realidade. Logo após a divulgação dos
Dada a complexidade dos temas propostos,
PCN para o Ensino Fundamental, Moreira
nenhuma área seria capaz de abordá-los
(1996, p.20) considerou que os professo-
isoladamente. O adequado tratamento da
res simplesmente deveriam dizer não aos
problemática envolvida nos temas acima
mesmos, apesar de antever uma dura ba-
citados exige o diálogo com os diferentes
talha, pois “livros didáticos, materiais ins-
campos do conhecimento, nos remetendo
trucionais, ensino a distância, supervisão,
às discussões sobre inter e transdisciplina-
avaliação das escolas etc. buscarão colocar
ridade.
ao longo do tempo, o professor no ‘caminho certo’ e torná-lo, afinal, ‘competente’
No campo da educação popular não há dis-
e ‘produtivo’”. Depois de 13 anos da divul-
cordância em relação à necessidade de tra-
gação dos PCN, podemos afirmar que os
zer para a escola a discussão dos temas so-
professores seguiram o conselho do nos-
ciais, uma vez que, na tradição freireana que
so curriculista. Todos os temas propostos
a anima, os temas geradores emergem de
como transversais foram trabalhados, sim,
situações existenciais, muitas vezes indica-
não transversalmente, mas sob o impulso
doras de situações-limite que precisam ser
de programas, projetos e ações que chega-
superadas. Na nossa concepção a leitura da
ram à escola, muitas vezes sem que ela os
palavra é antecedida da leitura do mundo.
reivindicasse.
Porém, o que constatamos é a repetição da
prática centralizadora e homogeneizadora
Dessa forma, o tema saúde não foi trans-
nas reformas educacionais e curriculares,
versalizado, mas apareceu pontualmente
com a desconsideração dos saberes que já
a partir das ações de diferentes iniciativas
circulavam na escola.
governamentais, tais como: o Programa Escola Aberta, cujo compromisso é com uma
O processo de elaboração dos PCN gerou
cultura de paz, que realiza oficinas nos fi-
grande insatisfação nos meios acadêmicos
nais de semana nas escolas onde o índice de
e escolares, dado o inexistente ou pequeno
violência é mais alto; o Programa Escola que
nível de participação daqueles a quem cabe
Protege, que enfrenta as violências contra
30
crianças e adolescentes, entre tantos outros
voltados para diferentes temas, como educação ambiental, educação sexual, combate
4) EDUCAÇÃO PERMANENTE DOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE E DA
EDUCAÇÃO
ao uso de drogas etc.
Iniciaremos nossas reflexões sobre esse
A explicitação da educação para a saúde
ponto fazendo considerações em torno da
como tema do currículo é de extrema im-
formação de profissionais reflexivos. Não
portância, pois tira os educandos da posi-
esquecemos que as áreas de educação e de
ção de pacientes para a de protagonistas
saúde têm suas especificidades, exigindo,
capazes de desenvolver atitudes favoráveis
cada uma delas, pesquisas próprias sobre
em relação à
a formação dos seus
saúde. Tal cons-
profissionais.
tatação reforça
a iniciativa interministerial
que instituiu o
Programa Saúde
na
Escola
e que aponta
para novas formas de articulação entre as
equipes de saú-
A explicitação da educação
para a saúde como tema
do currículo é de extrema
importância, pois tira os
educandos da posição
de pacientes para a de
protagonistas capazes
de desenvolver atitudes
favoráveis em relação à
saúde.
de e o pessoal
da
Nesse
espaço, traremos elementos
teórico-me-
todológicos
sobre
a
comuns
formação
profissional, na intenção de aproximar os
processos formativos
das
concepções
de
educação popular que
apontam para uma
nova relação entre
saúde e educação.
educação
básica. Porém, é preciso integrar saúde
As pesquisas socioeducativas mais recentes
e educação em todos os níveis da prática
sobre a formação profissional indicam a re-
escolar. As Secretarias de Saúde e de Edu-
flexividade crítica e a solução de problemas
cação precisam construir coletivamente
reais como estratégias para a indissociabili-
referenciais conceituais e metodológicos,
dade entre formação profissional e forma-
de modo a inaugurar um novo tempo da
ção humana. O próprio conceito de profis-
busca de articulação entre suas políticas.
sionalidade aponta para ações realizadas de
Tal necessidade nos leva, necessariamente,
modo consciente e com incidência sobre o
ao tema da formação profissional, conside-
desenvolvimento pessoal. O bom profissio-
rada a seguir.
nal não inibe as dimensões simbólicas e afe-
31
tivas de sua prática; não é aquele que tem
ma que na ação reflexiva colocamos em xe-
“receitas”, mas o que analisa os contextos
que nosso fazer rotineiro, problematizando
diferenciados, se conhece, procura conhecer
a realidade, o que exige a integração de três
seus principais interlocutores e mobiliza di-
atitudes: abertura de espírito, responsabi-
ferentes saberes, para buscar, com autono-
lidade e empenhamento. Partindo de suas
mia, respostas para os desafios cotidianos.
formulações, Schön sistematizou estudos
Para Schön (2000, p.25), o talento artístico é
sobre a formação do profissional reflexivo,
parte do talento profissional, daí porque os
mostrando que a atual crise das profissões
estudantes devem aprender por meio do fa-
advém, em grande medida, do “modelo de
zer ou da performance na qual eles buscam
racionalidade técnica” hegemônico nas
tornarem-se especialistas:
universidades. Um currículo normativo
parte da premissa de que primeiro se apre-
“[...] Ao estudante, não se pode ensinar
sentam os fundamentos da ciência, depois
o que ele precisa saber, mas se pode
esses conhecimentos são relacionados às
instruir [...] Ele tem que enxergar, por
áreas específicas, para que, no final da for-
si próprio e à sua maneira as relações
mação, haja a prática. O profissional com-
entre meios e métodos empregados e re-
petente seria aquele que melhor aplicasse
sultados atingidos. Ninguém mais pode
os conhecimentos produzidos e transmiti-
ver por ele, e ele não poderá ver apenas
dos na academia. Schön apresenta o mo-
falando-se a ele, mesmo que o falar cor-
delo reflexivo como alternativa de forma-
reto possa guiar seu olhar e ajudá-lo a
ção. Este é centrado no saber profissional,
ver o que ele precisa ver”.
na reflexão sobre a ação realizada em meio
às incertezas, às singularidades e aos con-
No caso dos profissionais que atuam na es-
flitos da prática, através do tutoramento,
cola, sejam eles da área da educação ou da
mas, sobretudo, ampara-se na liberdade
saúde, ser reflexivo implica a capacidade de
para aprender;
“criticar e desenvolver suas próprias teorias sobre a prática ao refletirem, sozinhos
Liberdade para aprender através do fa-
ou em conjunto, na ação e sobre ela, assim
zer, em um ambiente de risco relativa-
como sobre as condições que a modelam”
mente baixo, com acesso a instrutores
(AMARAL, MOREIRA E RIBEIRO, 1998, p.100).
que iniciem os estudantes nas tradições
da vocação e os ajudem, através da fala
O termo reflexão é muito repetido, mas não
correta a ver por si próprios e à sua pró-
é entendido em toda a sua complexidade.
pria maneira o que eles mais precisam
Na obra Como Pensamos (1959), Dewey afir-
ver” (SCHÖN, 2000, p.25).
32
Para Schön, a reflexão realiza-se em diferen-
tuações para associar o saber escolar
tes dimensões:
(representação formal) às situações
vivenciais, contextualizadas (represen-
• fazer, que pressupõe conhecimentos
tações figurativas);
prévios ou o conhecimento na ação;
• procurando entender seu modo de ra• pensar no momento em que está fazendo, ajustando-se às novas situa-
ciocinar. Isso equivale a dar “razão ao
aluno” (p. 83).
ções (reflexão na ação);
• aprender a lidar com a incerteza e
• reconstruir mentalmente o que foi
com a confusão: “um professor reflexi-
feito (problematizar) e como resolveu
vo tem a tarefa de encorajar, reconhe-
os imprevistos (reflexão sobre a ação).
cer e mesmo dar valor à confusão dos
Descrições verbais ajudam nessa to-
seus alunos. Mas também faz parte de
mada de consciência;
suas incumbências encorajar e dar va-
• recriar ou desenvolver novas formas
lor à sua própria confusão” (p. 85).
de agir, com autonomia (reflexão so-
Quais seriam as estratégias de formação ade-
bre a reflexão na ação).
quadas ao paradigma reflexivo? Várias estra-
Para que a reflexão ocorra, faz-se necessário criar condições e instrumentos de apoio.
Schön apresenta as seguintes condições:
• considerar o conhecimento, a aprendizagem e o ensino de modo processual, o que implica o rompimento com
a epistemologia corrente, que toma o
saber escolar como certo (crença em
respostas exatas) e molecular (“feito
de peças isoladas que podem ser combinadas em sistemas cada vez mais
tégias podem ser usadas: as perguntas pedagógicas; problematização do próprio fazer, as
narrativas; a análise de casos; a observação;
trabalhos com projetos e investigação-ação.
As mesmas não são mutuamente exclusivas,
podendo ser conjugadas. Em todas elas está
presente, ou implícita, a “resolução de problemas”. Novais e Cruz (citados por Cardoso,
Peixoto, Serrano e Moreira, 1998, p.77) dizem
o que se deve entender por “problema”:
• algo de que não se conhece a solução;
elaborados de modo a formar um co-
• questão que necessita de uma ou de
nhecimento avançado”(1992. p. 81).
mais respostas que tenha(m) de ser
O professor, como um artista, deve
elaborada(s) pelo sujeito e não apenas
desenvolver a habilidade de criar si-
recordada(s);
33
• algo que exige criar um método para
descobrir a(s) resposta(s) (isto é, como
desenvolvimento pessoal e de dignificação
do trabalho.
se podem obter as respostas);
• um projeto pessoal.
A formação profissional tende, cada vez
mais, a se afastar de um conjunto de regras
Trabalhar situações problemáticas é en-
e de normas fixas a serem repassadas aos
trar numa “zona indeterminada da prática”
profissionais em cursos pontuais e massi-
(SCHÖN, 2000), o que exige improvisação, in-
vos, para se aproximar de um processo per-
venção, capacidade para desaprender (rever
manente e integrado, que traz à tona os pro-
critérios e capacidades existentes, saber agir
blemas colocados pela prática e, que através
coletiva e proativamente, testes de estraté-
de múltiplos olhares, tenta enfrentá-los,
gias situacionais. Em tudo isso a reflexão está
entendendo os complexos caminhos para
presente. De acordo com Zeichner, ser refle-
tornar-se um profissional reflexivo. Nesse
xivo é uma “forma de estar em educação”:
contexto, a pesquisa tem o caráter de princípio educativo, devendo ser realizada per-
A ação reflexiva é uma ação que implica
manentemente, num esforço de formação
uma consideração ativa, persistente e cui-
de profissionais prático-reflexivos.
34
dadosa daquilo em que se acredita ou que se
pratica, à luz dos motivos que a justificam
A Política Nacional de Educação Permanen-
e das consequências a que conduz (...) não
te em Saúde (PNEPS) é um instrumento in-
é, portanto, nenhum conjunto de técnicas
dispensável para a consolidação e o fortale-
que possa ser empacotado e ensinado aos
cimento do Sistema Único de Saúde – SUS,
professores (citado por Lalanda e Abrantes,
maior política de inclusão social brasileira.
1998, p.58).
Sabemos que as mudanças nas práticas, seja
na área de saúde, seja na área de educação,
O exercício autônomo de uma profissão
dependem não apenas de incentivos mate-
inclui riscos ligados ao processo reflexivo
riais, mas, sobretudo, de mudanças de ati-
sobre o trabalho cotidiano. Nessa pers-
tudes nos modos de orientar, cuidar, tratar e
pectiva, o formador jamais poderá dar as
acompanhar os brasileiros, pois
soluções, mas examinar, questionar e avaliar junto com os formandos, expressando
[...] não basta apenas transmitir novos
ideias, sugestões e opiniões que devem pas-
conhecimentos para os profissionais, pois
sar pelo crivo ou julgamento crítico de to-
o acúmulo de saberes técnicos é apenas
dos. A dinâmica ação-reflexão-ação é uma
um dos aspectos para a transformação
estratégia, tanto de formação, quanto de
das práticas e não o seu foco central. A
formação e o desenvolvimento dos traba-
mento das experiências. Elas nos formam à
lhadores também têm que envolver os as-
medida que “[...] articula, hierarquicamente
pectos pessoais, os valores e as idéias que
saber-fazer e conhecimentos, funcionalida-
cada profissional tem sobre o SUS.
de e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a opor-
O conceito de educação permanente expres-
tunidade de uma presença para si e para a
so na PNEPS reconhece o potencial educa-
situação, por meio da mobilização de vários
tivo da situação de trabalho, ao aproximar
registros” (JOSSO, 2004).
a educação da vida cotidiana. Assim, educação permanente é encarada como “apren-
De acordo com a PNEPS a educação perma-
dizagem no trabalho, onde o aprender e o
nente inverte a lógica da formação baseada
ensinar se incorporam ao cotidiano das or-
na racionalidade técnica do seguinte modo:
ganizações e ao trabalho” (PNEPS, p. 44).
Baseia-se na aprendizagem significativa e
na possibilidade de transformar as práticas
profissionais, pela reflexão sobre os problemas enfrentados na realidade.
• incorporando o ensino e o aprendizado à vida cotidiana das organizações e
às práticas sociais laborais, no contexto real em que ocorrem;
35
Ao vincular os processos de ensino e de
aprendizagem às ações e serviços do trabalho, criamos condições psicopedagógicas
para a aprendizagem significativa. Aquela
que acontece quando aprender uma novidade faz sentido para nós. Geralmente isso
ocorre quando a novidade responde a uma
pergunta nossa e/ou quando o conhecimento novo é construído a partir de um diálogo
• modificando substancialmente as estratégias educativas, a partir da prática como fonte de conhecimento e de
problemas;
• colocando as pessoas como atores reflexivos da prática e construtores do
conhecimento e de alternativas de
ação, ao invés de receptores;
com o que já sabíamos. Isso é o oposto da
• abordando a equipe e o grupo como
educação bancária, denunciada por Paulo
estrutura de interação, evitando a
Freire na Pedagogia do Oprimido. As apren-
fragmentação disciplinar;
dizagens significativas ressignificam nossas
experiências pessoais e nos instrumentali-
• ampliando os espaços educativos fora
zam para novos desafios. Novamente lem-
da aula e dentro das organizações, na
brando Dewey, a experiência é educativa
comunidade, em clubes e associações,
quando permite continuidade e aprofunda-
em ações comunitárias.
Acrescento, ainda, as seguintes necessida-
ALBUQUERQUE, Maria Gláucia M. Teixeira.
des:
O lugar da escola no planejamento educacional; contextos e conceitos necessários à
• Considerar o ser humano na sua mul-
competência da profissão docente. In: SA-
tidimensionalidade (ser espiritual com
LES, José Albio et al. (orgs). Formação e práti-
dimensões desejante, corpórea e cog-
ca docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007.
nitiva).
• Considerar o ser humano como sujeito que se interpreta, utilizando para
isso, fundamentalmente, formas narrativas (demanda maior atenção às
biografias).
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais.
Brasília/MEC, 1996. Vol. 01 e 08.
BRASIL. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília/DF: Ministério da
Saúde, 2006. (Série Pactos pela Saúde, v. 9).
• A vivência do diálogo intercultural.
CARDOSO, A. M.; PEIXOTO, A. M.; SERRANO,
Para finalizar, é importante lembrar o de-
M. C. e MOREIRA, P. O Movimento da Auto-
safio posto às universidades em três níveis:
nomia do Aluno – Repercussões a nível da
na formação dos profissionais de educação
Supervisão. In: ALARCÃO, Isabel (org.). For-
e de saúde; na produção do conhecimento
mação reflexiva dos professores: estratégias
que contemple as articulações entre saúde
de supervisão. Porto Editora, 1998.
e educação e na ação extensionista que viabilize ações intersetoriais. Vários passos fo-
DEWEY, John. Como Nós Pensamos. São Pau-
ram dados nesses sentidos, porém, a tarefa
lo: Companhia Editora Nacional, 1959.
é contínua e árdua, pois exige uma mudança
de paradigmas e não apenas de procedimen-
SALES, José Albio et al. (org.). Formação e
tos técnico-instrumentais.
prática docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
AMARAL, M. J.; MOREIRA, M. A; RIBEIRO, D.
O Papel do Supervisor no Desenvolvimento
JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação.
do Professor Reflexivo – Estratégias de Su-
São Paulo: Cortez Editora, 2004.
pervisão. In: ALARCÃO, Isabel (org.). Formação reflexiva dos professores: estratégias de
LALANDA, M. C. e ABRANTES, M. M. O Con-
supervisão. Porto Editora, 1998.
ceito de Reflexão em John Dewey. In: ALAR-
36
CÃO, Isabel (org.) Formação reflexiva dos
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de
professores: estratégias de supervisão. Porto
Alice: o social e o político na pós-modernida-
Editora, 1998.
de. 6.ed. São Paulo: Cortez, 1999.
MOREIRA, Antônio Flávio. Os Parâmetros
curriculares em questão. In: Educação e realidade, 1996.
SCHÖN, Donald. Formar Professores como
Profissionais Reflexivos. In: NÓVOA, Antônio
(coord.). Os Professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
NÓVOA, A. (org.) Profissão professor. 2ª ed.
SCHÖN, Donald. Educando o profissional re-
Porto Editora, 1992. (Coleção Ciências da
flexivo: um novo design para o ensino e a
Educação).
aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.
OLINDA, Ercília Maria Braga de. In: SALES,
SITES
José Albio et al. (orgs.). Formação e prática
www.globo.com – acessado em 18/09/2009 –
docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007.
21h.
37
TEXTO 3
Linguagens e Tecnologias
Ângela Maria Bessa Linhares1
TRÊS HISTÓRIAS PARA UM
COMEÇO DE CONVERSA SOBRE
ARTE E SAÚDE
Na verdade, meu amigo precisou, como me
disse depois, partir da leitura da experiência de cada um, dos vários grupos, com o
próprio território, seu lugar de morada e
PRIMEIRA HISTÓRIA
lutas comuns, para assim compreender seu
lugar de vida como espaço da produção de
Olhe, esta semana um amigo me disse que
saberes e práticas de saúde. Nessa leitura da
gostaria de trabalhar com teatro junto a um
experiência de cada grupo organizado no lu-
grupo de jovens de um maracatu cearense.
gar, observou que cada pessoa aportava com
Observava ele, por exemplo, que os jovens
sua diferença e, nesse caminho, tentava ver
vinham com cacoetes televisivos e que não
como o coletivo que se estava a construir
valorizavam a própria expressividade de sua
era rico por ter essa diversidade.
cultura familiar e comunitária, de ascendência negra. Esse amigo dizia que para fazer
Contando mais sobre sua tentativa de cons-
um trabalho de arte, com estes jovens, teria
truir possibilidades de promoção da saúde
de discutir esse “desvalor de si”. Para isso,
com juventudes, meu amigo observou que
oportunizaria, inclusive, que fizessem em
os jovens que ali estavam, logo que assu-
grupo leituras das próprias experiências de
miam tarefas coletivas e produziam refle-
vida que estes jovens traziam para o mara-
xões sobre essa experiência, pareciam pas-
catu. A seguir, teriam de tentar, juntos, (re)
sar a se portar como sujeitos da aventura
ler o próprio modo como se construía o ma-
de conviverem juntos, tecendo a linguagem
racatu – seus enredos e coreografias, orga-
da arte como motivo e ação comum. Pas-
nização e convívios. Poderíamos dizer, em
sar para esse lugar de sujeito e não objeto
linguagem outra, que meu amigo buscou a
das situações da vida pessoal e social, dizia
estrutura da experiência cultural dos sujei-
meu amigo, deveria ser algo a se perseguir
tos que estavam a construir uma atividade
conscientemente. Ele pensava que a ten-
artística.
são produzida pelo que cada um é, em sua
1
Professora da Universidade Federal do Ceará.
38
singularidade, e o que cada um poderia dar
Claro que se poderia, em algum momento,
para o grupo existir iria enlaçá-los e, dessa
fazer-se algo mais pontual, informativo ou
maneira, o grupo iria se construindo no fa-
com temáticas precisas, mas isso teria de se
zer arte, juntos.
dar como parte (se fosse o caso) de um percurso desejante dos sujeitos envolvidos. Chegar
Poderíamos partir de um ponto simples,
e anular todos os possíveis da história de um
agora, para impulsionar algumas reflexões:
grupo em construção seria impor uma visão
ajudar pessoas jovens, por exemplo, a se tor-
instrumental da arte e tornar as pessoas coisa.
narem sujeitos de sua expressividade implica viabilizar, com elas, um caminho para a
Em que essa meia estrada – essa meia his-
sua subjetivação? Quer dizer, os jovens vão
tória do meu amigo – seria uma metáfora
se dizendo no grupo e se sustentando como
importante para a nossa reflexão sobre saú-
sujeitos que trazem sua diferença, a partir
de e arte? Sabe-se que a vivência em grupos
dos signos que vão construindo com a arte
nos ajuda a construir conhecimentos e par-
e com o próprio convívio que permite expe-
tilhas, e a considerar princípios e sentimen-
rimentá-la?
tos; nos grupos se aprende sobre autonomia
e cooperação, limite e autogestão, história
Se pensarmos que a formatividade vivida no
social e poder democrático – e se pensa em
fazer arte também forma sujeitos, isso des-
liberdade interna também, em escolhas e
faz algumas comodidades: a de que há um
responsabilidades, bem como no preço que
caminho único para fazer arte, como tam-
se paga por elas. As experiências com redes
bém para pensá-la junto à saúde.
sociais, agora um âmbito da luta por saúde
recorrente em tantos desenhos de ação po-
Voltando à nossa conversa anterior, eu dizia
pular, ampliam essa experiência dentro do
que meu amigo foi tentado a pensar em arte
grupo para uma nova experiência que tam-
e saúde no território. E, assim, logo tomou
bém comporta o laço com outros grupos.
contato com a ideia (a cobrança) de que só
estaria trabalhando saúde se fizesse peças e
Temos aprendido, ainda, nos grupos e lutas
produtos com temas pontuais como DST-AIDS
da educação popular e saúde que há uma re-
ou Drogas e coisas assim. É evidente que
lação dialética entre as vivências no territó-
esse amigo percebeu logo que isso funcio-
rio e nosso mundo interno, que também ela-
nava como muletas para o grupo não seguir
bora os novos sentidos que damos às lutas
seu caminho singular, não esquadrinhar os
coletivas e os desenvolve, chamando outras
possíveis das suas diferenças e das suas es-
dimensões do ser a comparecer nesse dialo-
colhas, responsabilizando-se por elas.
gismo eu-outro-ambiente.
39
Pode-se avançar e dizer que um novo senti-
construção grupal. E o que parece estranho
do de história parece que está a tomar corpo
é que, desde muito cedo, ainda crianças, as
no tempo presente, um sentido de história
pessoas vão se sentindo descapacitadas para
que nos pede para pensarmos em termos de
experiências com o sensível, essa dimensão
uma história total, que comporte também
que a arte toca.
as dimensões subjetivas dos percursos históricos e suas razões.
Pode-se dizer, pois, que a arte vivida no âmbito do território ou do grupo atua de modo
Retomando a meada para prosseguir: arte
a reconhecer a impossibilidade de autossus-
se faz com grupos, coletivos, com pessoas
tentação individual fora de uma matriz cul-
que se unem a outras para fazê-la. Nesse ca-
tural. É porque o sujeito humano se constitui
minho, as aprendizagens das linguagens da
a partir do Outro com quem convive, que a
arte – linguagem das artes cênicas, musicais,
tarefa de se constituir como sujeito – sujeito
visuais, literárias, etc. – se fazem, ao mesmo
de saúde, quer dizer, de vida com os outros
tempo em que as pessoas aprendem, umas
– acontece na cultura. Possibilitar espaços
com as outras, a ser e a conviver. Isso é algo
sociais de pertencimento a uma cultura, ul-
inerente ao humano, pode-se dizer – mas
trapassando o individualismo, o isolamento
nem sempre a gente percebe esse valor fun-
e os modos a-sociais de conviver (para usar
dante da arte: trabalhar as obras de arte (o
uma expressão de Brecht, 1967), possibilita
que fazer da arte) em grupo, ao mesmo tem-
que as pessoas construam mais fortemen-
po em que se vai tecendo nesse fazer vida
te sentidos para suas vidas junto a outras
de grupo conscientemente e, nele, gestando
vidas, garantindo a tarefa de humanização
um saber de experiência feita, como chama-
das culturas. A arte tem esse colo – afinal, as
va o educador Paulo Freire.
crianças, jovens e adultos se constroem sujeitos de suas vidas nos espaços-tempos de
Retomando com meu amigo, ele me lembra-
seus encontros uns com os Outros.
va como as pessoas foram excluídas (e se excluíram), em muito, de vivenciar grupos ou
Vi muitas pessoas na vida que reduziram
comunidades educativas que lhes oportuni-
seus espaços de, por meio da arte, experi-
zassem com mais vigor sua expressividade e
mentar novos sentidos para viver e, assim,
inserção social. A produção e circulação de
foram restringindo também suas formas de
sentidos – bem como apropriação dos sig-
participação e atuação social, de convivên-
nificados que são eleitos como importantes
cia dentro de limites e também de exercícios
para si e seu grupo social – ficam compro-
de esperanças. Ao se tolherem quase que por
metidas, se as pessoas nunca vivenciam essa
completo, foram caindo mais facilmente em
40
processos de adoecimento (com o crack, as
pecto institucional do maracatu e em que as
depressões, os adoecimentos e os transtor-
suas participações juvenis no maracatu os
nos de natureza diversa, por exemplo).
ajudavam a viver e a conviver com os outros
no lugar. Também, se afoitaram em ampliar
Meu amigo, em sua experiência com os jo-
sua circulação social em outros grupos do
vens do maracatu, reparava que identidades
bairro e da cidade.
juvenis, que vivenciam sofrimentos pessoais
e sociais vão sendo mais e mais truncadas
O exercício de autoralidade (ser autor de sua
também porque se experimentam pouco
fala expressiva, de suas imagens e gestos
os novos lugares e espaços sociais de ser e
transmudados em um fazer estético) é vital
conviver – como os de ator, músico, artis-
na modernidade. Assim, se faz de imenso
ta visual, poeta, ensaiador de quadrilhas e
valor que as pessoas se autorizem a produ-
pastoris, cantor,
zir seus sentidos para
capoeirista, etc.
a vida, suas imagens,
Esses
ensaios
expressivos
e
de vinculação a
grupos,
como
também de circulação social,
conferem
sus-
O exercício de autoralidade
(ser autor de sua fala
expressiva, de suas imagens
e gestos transmudados em
um fazer estético) é vital na
modernidade.
histórias,
práticas
brincantes e artísticas, tateando sua própria
expressividade
em um movimento
de pertença ao socius.
Isso produz saúde.
tentações socioÉ certo que, nessas
afetivas dentro
da vida cultural onde se vive. Por outro lado,
andanças e experimentações no âmbito dos
a expansão das experiências artísticas pode
nossos mundos plurais, vamos tendo de
estimular as pessoas a se experimentarem
conviver com as diferenças – nelas e por elas
de outras formas e lugares, ampliando seu
também se distribui o poder de ser, viver e
campo de experiências de si.
pensar diferente, construindo saúde coletiva.
Ah, e o pessoal do maracatu? Continuou
seus ensaios. Discutiriam mais depois o que
A arte possibilita uma ponte do eu para a
se lhes travava a expressividade, o que lhes
compreensão das formas de sentimento ex-
facilitava e que caminhos percorriam os mo-
pressas nas obras (por nós e pelos outros),
dos de se fazer cultura no lugar; em que a
que fazem a diversidade das culturas huma-
expressividade de cada um alimentava o as-
nas e, desse modo, afirma que saúde cole-
41
tiva envolve a subjetividade (com suas di-
à dor que sentem – e sabe-se também que
mensões intra e interpsíquicas), e, por isso,
estes significados vividos e sentidos não po-
requer em suas práticas um diálogo entre as
dem ser ditos (de uma certa maneira) por
múltiplas dimensões que constituem o ser
outras linguagens como a científica, embora
biopsicossocial e espiritual que somos. Tro-
possam dialogar com ela. O modo de dizer
cando em miúdos: nem só o organismo vivo
da arte (essencialmente padrões do sentir
adoece ou produz saúde – seu corpo simbo-
sob formas significantes), assim, permite
lizado, seu universo afetivo e relacional, seu
que não nos sintamos “estrangeiros” em um
mundo ético-moral, sua alma também. Isso
mundo humano. E nos ajuda a fazer uma es-
nos traz a ideia de um sujeito multidimen-
cuta dos padrões de sentir de nossa cultura
sional das práticas de saúde.
– como se apercebia a menina que dizia estar se afastando de sentir.
Vendo assim, a arte provoca essa boniteza:
leva a saúde a ultrapassagens do modelo
Pausemos aqui: parece que a função huma-
monológico da biomedicina; leva à não re-
nizadora da arte pode ajudar a saúde a se
dução do sujeito ao seu organismo e, nessa
pensar. Há uma função humanizadora dos
perspectiva, pode possibilitar às dimensões
saberes e práticas de saúde também; ela nos
do ser dialogarem na produção da saúde
conduz à vida intuitiva, ao descobrimento
como bem comum.
de nossa amorosidade, espiritualidade, aos
aspectos brincantes da vida e a outras aqui-
A SEGUNDA HISTÓRIA
sições – chaves para a nossa humanidade.
Ver o corpo não apenas em sua dimensão
Nem é uma história – era uma queixa de
organísmica, mas em sua dimensão afeti-
uma menina já quase moça. Ela dizia: “es-
va, por exemplo, deve nos levar até mesmo
tava me afastando de sentir; estava como
a considerarmos outras matrizes de pensa-
aquele boneco de lata da história do Mágico
mento que consideram o sujeito humano
de Oz. E eu não sabia que a arte é um senti-
um ser que possui a dimensão artística e
mento que fala”. Vigotski, o educador russo,
que pode ser visto também como ser espiri-
já dizia ser a arte uma tecnologia do senti-
tual. É que, se a lógica da mercadoria impera
mento – como a menina apreendia.
no pensamento que rege a vida social (ainda que com transformações e resistências
Ora, sabe-se que a experiência artística traz
que modificam essa paisagem), nas cultu-
a representação simbólica dos sentidos que
ras populares pulsam expansões expressivas
as pessoas dão ao amor, à vida, aos afetos,
que não se deixam colonizar por completo
à espiritualidade, ao cuidado, ao desejo e
por essa redução ao organísmico. Pode-se
42
adentrar, assim, na admissão de concepções
de que se possa escutar o mundo plural dos
e práticas em que se mostram como as ne-
saberes e das práticas sociais que envolvem
cessidades humanas, como a de saúde, por
saúde.
exemplo, envolvem as várias dimensões do
ser múltiplo que somos.
O diálogo com as diferenças culturais exige, ainda, que a saúde deva ser tomada
Por outro lado, é bom que percebamos os
como uma rede interdisciplinar, articulada
movimentos sociais, por exemplo, como lu-
a um contexto social concreto (disso deri-
gares sociais de luta; muitas vezes, no en-
va a ideia da intersetorialidade como uma
tanto, reduzimos essa ideia do que seja uma
das formas de operar com isso). Nessa pers-
conquista de real valor. Tornamos opacos
pectiva multifacetada podemos constatar
os aprendizados
como ricas e plenas
sociais que não
de diversidade são as
são tão claros e
palpáveis como
os que se referem à dimensão
sociopolítica,
que facilmente
evidencia o valor de determinada conquista
A tensão permanente entre
o privado e o público não
pode mais ser escamoteada.
Deve ser enfrentada: saúde
não pode ser tomada pelas
políticas públicas como
mercadoria, mas como bem
social inalienável.
propostas de saúde
das populações – mas
isso não nos deve fazer esquecer que há
reclamos urgentes a
levar à frente; e que
as
condicionantes
sociais que negam a
saúde como a falta de
para o bairro
trabalho,
educação,
ou dada partici-
cultura, lazer, etc. de-
pação na construção das políticas públicas.
vem ser transformadas na direção da justiça
Como diziam os pescadores, redes de pesca
social e ambiental. Isso exige trabalho nessa
não se tecem só com pontos grandes – os
direção.
pequenos pontos formam uma malha segura e densa.
É desse modo, então, que pensar novas referências em saúde (novos paradigmas) deve
A saúde das populações se tece, como esta-
exigir de nós que se ouça a voz dos que são
mos a observar, em contextos sociais com-
excluídos nas culturas, o que deve implicar
plexos, em meio a matrizes culturais di-
uma construção emancipatória para todos.
versas – daí que a proposta sempre viva e
A tensão permanente entre o privado e o pú-
audível da educação popular em saúde é a
blico não pode mais ser escamoteada. Deve
43
ser enfrentada: saúde não pode ser tomada
de doenças, mas como promoção de saúde,
pelas políticas públicas como mercadoria,
estimulação e viabilização do que nas pesso-
mas como bem social inalienável. E se o sa-
as leva à alegria, à vontade de viver e convi-
ber biomédico dominante nas práticas de
ver com outros.
saúde possui seu inegável valor, não se pode
deixar de ver que ele tem se ocupado, em
A perspectiva popular na luta por saúde,
grande medida, com a manutenção dos pro-
também, nos tem ajudado a ver que o as-
cessos de privatização da medicina.
pecto dialógico da arte – essa conversa que a
gente faz com a gente e com os outros quan-
Já as práticas de educação popular em saú-
do vive ou faz arte – realiza uma assunção
de, ao abrirem espaços para paradigmas
da diferença como princípio da vida com os
emergentes e fazerem a crítica desse assu-
outros e ultrapassa fronteiras culturais, ao
jeitamento, podem ajudar a construirmos
possibilitar diálogos entre modos de ser e
novos valores e referenciais capazes de em-
de sentir, de viver e de sonhar a vida, que
basar transformações ou de sedimentar as
são tão diversos entre si! Esse diálogo com a
que se iniciaram. Um exemplo dessas trans-
gente mesmo e com os outros na produção
formações que se deve sedimentar são as
de sentidos para as nossas experiências, me-
que advêm da caminhada do movimento sa-
diado pela arte, é fundamental na formação
nitário que, na realização da VIII Conferên-
do ser que somos e da saúde como experi-
cia Nacional de Saúde, resultou por produzir
ência de convívio social solidário. Viabilizar
o referencial teórico para a constituição do
formas de convívio social solidário não seria
SUS (Sistema Único de Saúde), sem dúvida
um modo de promoção da saúde, em senti-
um avanço como concepção, que se deve
do largo?
tentar (e se tem tentado) tornar realidade a
cada passo.
Aprofundemos mais. O convívio comunitário não se faz sem uma ação ativa, capaz de
O SUS abraça, ainda, o que Gastão Campos
enfrentar a busca de respostas aos proble-
(2007) nomeia como clínica ampliada e que
mas comuns, mas também não se faz sem
envolve a consideração das formas terapêu-
alegrias, festas, celebrações da vida e dos
ticas complementares de saúde – como a
dramas que contam da natureza problemá-
massoterapia, a farmácia viva, a acupuntu-
tica da existência humana e que se dizem
ra, a arte terapia, etc. A arte aqui pode de-
também por meio das várias linguagens ar-
senvolver suas formas de compreensão da
tísticas.
saúde como manifestação da vida pujante
das culturas – não apenas como prevenção
Em seu dizer, então, tão vário, percebe-se
44
que a arte lida com uma extensa rede de sig-
da no âmbito das ações coletivas e da espe-
nificados sobre a vida, onde criação e tradi-
rança que nelas se gesta.
ção fazem contraponto e onde o novo que
medra no agora se ergue junto ao que se
Na modernidade, onde a experiência com a
puxa como memória das gentes.
mídia – Barbero (1997) a nomeia de experiência mediada – não nos autoriza a pensar
Ora, a tradição seria um modo de interrogar-
por nós mesmos ou a, pelo menos, dialogar
mos o passado sobre como a história deve
com a mídia, mas quase sempre a absoluti-
continuar – já dizia Walter Benjamin (1985).
zar o que a mídia diz ser a verdade – se faz
Ortega y Gasset, apud Zumhtor (1997), dizia
de imenso valor tatear sua própria expressi-
algo parecido: seria a tradição uma colabo-
vidade e sua pertença ao socius.
ração que pedimos ao nosso passado para
resolver nossos problemas do presente. As-
Parece valioso, portanto, que, nessas an-
sim, poderíamos admitir que a arte, como
danças e experimentações no âmbito dos
acúmulo de saberes e práticas de convívio
nossos mundos plurais, vividas por meio da
humano, onde se cria o novo no diálogo
valoração e da viabilização da artisticidade
com a tradição – não se cria em um vazio
de todas as pessoas, vamos tendo de ensaiar
cultural – pode ser vista também como um
nossas autorias no convívio com as diferen-
modo de valorarmos o desenvolvimento da
ças – nelas e por elas se constrói saúde co-
capacidade de interpretarmos nossas vivên-
letiva.
cias cotidianas do presente; importante tarefa da arte para a promoção da saúde.
TERCEIRA HISTÓRIA
O trabalho com a memória, berço da cria-
Também não seria uma história, mas várias
ção do novo, puxado pela mão das artes, e
– seria um clamor?
a sabedoria daí resultante parece dever ser,
assim, decantado para, então, a saúde das
Nestor Garcia Canclini (1984)
culturas se apoiarem no amor pelo que foi
que, na arte ocidental, se tem separado mui-
de valor no que se viveu. Essa reflexão que se
to as obras de arte (que se põem como ob-
faz sobre o tecido da experiência de vida co-
jetos de contemplação em um mercado de
munitária serviria de ancoragem para os tra-
arte) dos sujeitos que a fazem. Assim, vemos
balhos de promoção de saúde. Lembremos
em nosso país exposições com arte plumária
que outra aprendizagem da luta popular por
indígena, ao mesmo tempo em que se ex-
saúde resulta de que os movimentos sociais
pulsam e se escravizam os índios e os povos
são também uma construção analítica, teci-
das florestas; são feitos festivais com a arte
já observa
45
dos negros, ao mesmo tempo em que se ex-
à construção da diversidade biológica natu-
terminam os quilombolas (descendentes de
ral e cultural, representada pelos nativos. A
grupamentos negros), e isso se faz dentro de
crescente acumulação do capital, feita em
um modelo de desenvolvimento que expulsa
nível globalizado, que se expressa também
grupos comunitários com o objetivo de alo-
na desenfreada especulação imobiliária, vivi-
jar fábricas gigantescas, que causam impac-
da com formatos predatórios extremamente
to ambiental destruidor nas culturas e suas
perversos, nesse estágio de acumulação ca-
vidas. Temos visto que há racismo ambien-
pitalista em que nos encontramos, tem mo-
tal e isso deve mudar. O racismo ambiental
dificado as paisagens de viver. Assim é que
mostra que temos destruído ambientes dos
se tem expulsado as populações nativas que
pobres, negros,
trazem uma tradição
indígenas e ex-
de séculos de saberes
cluídos de origens
diversas.
Pensar a perspectiva da arte
na
promoção
da saúde, nesse
contexto, é lutar por justiça
ambiental – é
caminhar
na
direção de su-
Pesquisadores e estudiosos
da etnoconservação e da
agroecologia têm chamado a
atenção para o absurdo que é
a pouca ou nenhuma atenção
que os países têm dado à
construção da diversidade
biológica natural e cultural,
representada pelos nativos.
e cuidados (isso é saúde) em nome do que
se tem chamado desenvolvimento.
Sabe-se bem que as
populações das florestas, das ilhas, dos
mangues, litorais, ribeirinhas, por exemplo, têm construído
perar o racis-
a face tão complexa
mo ambiental.
e rica dos ambientes
Como fazer saúde junto às populações nati-
naturais e cuidado deles de um modo que
vas dos manguezais nordestinos, por exem-
se torna quase sempre invisível, já que seus
plo, se elas estão sendo expulsas pelas gran-
saberes e práticas de vida e saúde não são
des empresas do camarão e outras práticas
respeitados. Há um imensurável acervo de
predatórias do ecossistema local?
conhecimentos nessas práticas de cuidado:
consigo, com o outro e o ambiente. Já se tem
Pesquisadores e estudiosos da etnoconser-
conhecimento, por exemplo, por inúmeras
vação e da agroecologia têm chamado a
pesquisas, de que na floresta amazônica a
atenção para o absurdo que é a pouca ou
diversidade é muito pouco natural – foram
nenhuma atenção que os países têm dado
as diversas tribos e povos indígenas que,
46
com seus saberes diversos, conservaram o
populações tradicionais, que vivenciam de
que se tem de mais caro para dar ao mun-
modo mais marcado certo comunitarismo,
do em termos de biodiversidade. Quer dizer:
é uma expressão e momento da vida do lu-
para existir a biodiversidade, há uma etnodi-
gar – não se refere apenas a um mercado de
versidade (diversidade de culturas humanas)
bens simbólicos, como quer Bourdieu (1989).
que a mantém, recria e cuida.
As políticas de saúde têm dialogado em rodas de gestão com as políticas culturais, no
Outras janelas de olhar nos mostram como
sentido de valorar essa forma de viver a arte
as comunidades urbanas, em geral, não têm
na vida das culturas?
a mesma relação com a paisagem natural
como as que as comunidades rurais e as
É certo, por outro lado, que nestas práticas
indígenas, os povos do mar, da floresta, os
significantes de arte (escuta e fala coleti-
ribeirinhos, os ilhéus e os do mangue pos-
vas), em algum momento do trabalho analí-
suem e que tentam preservar, em alguma
tico, nos encontros dos grupos que as viven-
medida. As rotas de migrações levam enor-
ciam, pode-se ter, também, a expressividade
mes contingentes de pessoas às cidades.
artística se fazendo como produto cultural
Isso faz com que nas cidades se veja a con-
a ser divulgado e consumido por muitos. É
fluência de ampla diversidade de culturas,
bem verdade que pensar em arte nos reme-
que passam a construir de algum modo uma
te, sempre, a produtos artísticos e seus cir-
etnobiodiversidade – isto é, um conjunto no
cuitos de produção cultural; no entanto, a
qual participam os grupos humanos em sua
arte e a saúde, ao dialogarem, parecem con-
diversidade junto à natureza – o que consti-
siderar não apenas produtos (a obra feita) e
tui um complexo e rico mundo cultural. A
suas mostragens, mas deve-se pensar que,
arte junto à saúde tem lidado com essa do-
quando se escolhem processos de expressão
bradiça – ambiente e cultura – como pares
e construção em arte, socialização e consu-
finamente estruturados?
mo, também se está a produzir subjetividades. Em uma palavra: sujeitos.
Voltando ao que dizíamos, parece urgente pensarmos em termos mais amplos, na
Face ao processo de acumulação que se rea-
abordagem da arte em saúde – não se pode
liza agora em âmbito planetário, a exclusão
valorizar obras de arte matando-se as cul-
econômico-social e cultural adquire configu-
turas (as pessoas) que as fazem. Há que se
rações perversas, acentuando desigualdades
pensar, então, a arte e a saúde, sem esque-
entre uma pequena parcela da população
cer as comunidades que as expressam. Ainda
detentora de relativo poder político-econô-
há que se ver que a arte, para as chamadas
mico e uma imensa maioria da população
47
empobrecida. A luta popular pelo direito à
de superarmos a noção restrita de um mero
saúde e pela possibilidade de trazer concep-
espaço de poder a serviço da classe dominante
ções de saúde mais abertas, menos eivadas
e compreender que contradições e mudanças
dos interesses do capital mundializado, se
vigem nos vários espaços-tempos do corpo so-
faz, então, como forma de ultrapassagem
cial como um todo.
dessas condicionantes sociais.
A conquista de espaços políticos dentro dos
É evidente que o esforço de tantos setores da
órgãos estatais é importante, assim como
população, reiteramos, trouxe-nos conquis-
sua democratização; como vimos, porém,
tas legais inegáveis, como a Constituição
há um universo da ordem da cultura que
Brasileira (1988) e o Sistema Único de Saú-
não se reduz a esses aspectos e que mostra
de (SUS), uma conquista política e legal que
a saúde como fiadora da subjetivação das
veio junto a outras, sobretudo no universo
pessoas, trazendo dimensões como a afeti-
dos direitos civis e políticos. Claro que isso
vo-intuitiva, a ético-moral, a espiritual e a
tudo representa avanço sem par na realida-
artística para se dizerem. O campo social e a
de brasileira. A tarefa de colocar em prática
sustentação da ordem pública, há que consi-
aquilo que foi arduamente buscado, porém,
derar, respondem também pela manutenção
visto que existe uma grande distância entre
e criação de ideais para as novas gerações,
os textos constitucionais e a prática, aponta
sustentadores do que se pode pensar do hu-
um caminho desafiador para todos.
mano. A arte no campo da saúde traz essa
pergunta ‘inestancada’ pelo que ultrapassa
Os movimentos sociais e as lutas populares
a ideia de doença orgânica (embora conside-
por cidadania, nessa perspectiva, assumindo
re isso também) e nos empurra para a tarefa
seus papéis como sujeitos históricos, criam
de pensar um para além que comporte a es-
novas consciências e ações capazes de fazer
perança social e o devir das culturas como
vicejar novas formas de produção da saúde
lugar de vida e saúde.
no território e novos movimentos possíveis no
campo social e político. Não se pode esquecer
que essa conquista de espaços políticos e de
transformações concretas deve perpassar todos os lugares; o Estado, é bom lembrar, é uma
somatória da sociedade civil e da sociedade política, não se resumindo aos órgãos de poder
das esferas governamentais. Pensar em termos
de Estado ampliado, pois, leva à necessidade
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50
TEXTO COMPLEMENTAR
Um pouco mais de história não faz mal a ninguém
– vida que segue, história que continua...
Ray Lima – Raimundo Félix de Lima1
Ao ler, ouvir, sentir a Ângela dizendo tão lin-
levando-nos a estar de bem com nós mesmos
da e profundamente sobre as possibilidades
e com o outro, ajudando-nos a produzir feli-
de relação que podemos estabelecer entre
cidade, saúde. Ou por outro, pode fortalecer
arte e saúde, arte e vida de qualidade, sou
mazelas ou processos doentios que paradoxal-
impelido a querer contar outras histórias, a
mente desejaríamos combater.
retomar processos vividos que podem ilustrar ou fortalecer alguns conceitos por ela
A arte transita no terreno do desequilíbrio
apontados.
e equilíbrio do ser. Refiro-me a uma arte
orgânica, palpável e praticável por seres co-
Partimos ainda do princípio de que nem toda
muns, viva e dinâmica, que flui pelos canais
forma de produção artística é necessariamen-
do sensível/criativo no interior de cada ser
te saudável, tampouco certas racionalidades
para transumanizá-lo e devolvê-lo ao mun-
ou lógicas de produção e promoção geram
do, melhorado, potente, porém não doente;
efetivamente saúde. Muitas vezes o que pro-
mais sabedor e consciente de si, inclusive de
duz bem-estar não se acha na sofisticação das
suas limitações e “defeitos de fabricação”,
técnicas, no refinamento dos equipamentos e
como diria Tom Zé, voltando ao mundo pela
especialidades, mas na qualidade das relações
filtragem crítica e sensibilizadora da arte, re-
estabelecidas entre as pessoas e entre estas e
novado e transformador, pronto para se re-
o mundo em que vivemos; no tipo de socieda-
lacionar com a vida e o próprio mundo que
de que queremos construir ou nas crenças que
dele se utilizou, e por vezes o negou, o ado-
estão por trás de nossas práticas. Nesse senti-
eceu e depois o descartou ou excluiu. A arte
do, a arte – a que se propõe a isso, que tenha
que dá vida é a arte dos vínculos que pode-
essa clareza, desenvolva e assuma tal intencio-
mos encontrar no mais requintado processo
nalidade – por um lado, pode contribuir com
criativo de tradição ocidental ou oriental,
a geração de bem-estar, individual e coletivo,
mas também pode estar na simplicidade da:
1
Assessor pedagógico do Sistema Municipal Saúde/Escola (SMS), em Fortaleza, Ceará.
51
“língua do cantador
Todo mundo espiando para o céu repleto de
sanfona branca, baião;
estrelas, mas de ouvidos atentos nas histó-
na boca do meu amor
rias de cordel lidas por mamãe, que era uma
com a força boi barbatão,
das poucas letradas da comunidade naquela
nos passes desse folclore
época.
bumba-meu-boi já tá lá.”
Eram romances de príncipes e princesas,
Ou nas “coisas que ainda restam
histórias de aventuras como a do jovem va-
por conta do milharal,
queiro Zé Garcia, herói do sertão capaz de
de energia rapadura,
arriscar-se nas brenhas da caatinga atrás
com farinha, carne seca
de um boi selvagem, o temido e perseguido
plantados no meu quintal: me dá vida
barbatão. Essa luta incansável e destemida
que dá arte.”
tinha um só objetivo: demonstrar coragem e
destreza e com isto encantar a donzela filha
Me dá vida que dá arte ou arte que me dá
do coronel. Quem prendesse o animal tinha
saúde? Pois é. Minha história não tem co-
como recompensa a bela moça. Mas havia
meço nem fim. Por que será? Ora, porque
também os mistérios, a fantasia do Pavão
começou muito antes e certamente termi-
Misterioso:
nará muito depois de mim. É... De qualquer
modo, feliz de todo aquele que tem uma his-
“Eu vou contar uma história
tória para contar em vida. Não é não? Por
de um pavão misterioso
aqui me ponho a pensar em tanta coisa. Em
que levantou vôo na Grécia
meio a esse carrilhão de memórias, concei-
com um rapaz corajoso
tos e possibilidades trazidas pelas histórias
raptando uma condessa
da Ângela e seus amigos, vêm à tona as ima-
filha de um conde orgulhoso.
gens daquelas noites de lua, no terreiro lá de
casa, em Campo Verde. Será que esse conto
Residia na Turquia
tem a ver com a nossa conversa? Vamos ver.
Um viúvo capitalista
É conversando que a gente se entende.
Pai de dois filhos solteiros
O mais velho João Batista
Bem, falávamos das noites enluaradas de
Então o filho mais novo
Campo Verde. E era um campão verde mes-
Se chamava Evangelista.”
mo. Só durante o dia. Porque à noite era
colorido sob um fundo prata. Aquela gente
Assim a gente toda ficava até altas horas. Eu,
toda deitada nas esteiras de junco, no chão.
deitadinho no colo de mamãe, adormecia
52
sob os sussurros, os comentários desencon-
Lá na frente, já tarde da noite, quando a lua
trados, às vezes tristes, por vezes cheios de
pendia para o poente, alguém soltava uma
indignação, indicando que alguém tomara
frase para ver o efeito que sortia: conversa
partido da história em defesa dos seus heróis.
também dá fome, né menino. Aí o dono da
Opiniões, discussões em defesa ou contra. O
casa sentia o drama, percebia a pilhéria, sa-
certo é que isso dava uma apimentada na
bia que se tratava de uma jogada maliciosa
leitura, tornando-a mais viva, mais natural.
do vizinho, fazia tudo para não se chatear
É de se admirar que depois dessa falaceira
nem fazer feio, mostrava serviço. Aqui, no
medonha ainda sobrasse tempo para alguns
terreiro da minha casa, noutro pode ser,
desvios, por onde se engendravam o fantás-
mas no terreiro, no terreiro da minha casa
tico e o sobrenatural. Pausa para os contos
ninguém passa fome não: menino traz aí
de assombração – burra-de-padre – Deus do
café, pé-de-moleque, beiju-debaixo-da-fari-
céu! hoje não durmo – adiantavam os menos
nha, tapioca, beiju seco, ainda tem beiju de
corajosos. Cruzem os dedos, façam figa que
coco? Uma bacia de camarão torrado com
lá vem o lobisomem! Arreda, corre pra dentro
farinha picica. Traz do barbudo que rende
de casa que se aproxima a comade fulosinha
mais. É muita gente, só dá se for desse jeito.
com suas cachimbadas e a malvadeza que
O peixe seco deixa para a próxima semana...
lhe é peculiar de açoitar os bichos e as pes-
que lembrança saborosa.
soas por nadinha desse mundo. Um simples
pedaço de fumo negado pode ser um grande
De repente naquela animação sem par, um
motivo para se tomar dela uma boa surra de
grito fazia retomar ao cordel: Valdemar e
cipó-pau. Dizem que o batatão tem origem
Irene! Não. Essa já está manjada demais,
no menino que é enterrado pagão. Morreu
outro questionava da outra esteira. João
antes de se batizar, batatão na certa. Uma vez
da Cruz! – um dizia do outro lado. A che-
levei uma carreira dum. Bola de fogo veloz
gada de Lampião no Inferno! Coco Verde e
que muda de cor, mas normalmente é bem
Melancia! João de Calais!... parecia não ter
azulzinha ... cheiro esquisito danado, pareci-
fim o repertório da farta memória coletiva.
do com olho queimado. Vixe, Maria! Se cor-
Assim conheci o sertão, o Japão, a Euro-
rer é pior. O negócio é se agachar, rezar três
pa... tinha Os Doze Pares de França. Tantos
pais-nossos e três ave-marias e esperar ele ir
lugares, tantas histórias. E carrego comigo
embora... Conversa e mais conversa. Cada
toda essa influência dessas noites mágicas,
um quer demonstrar saber mais a respeito de
maravilhosas que me faziam viajar, sonhar,
cada lenda, de cada crendice ou superstição
dormir e acordar com uma vontade imensa
tidas como verdade verdadeira. Mundo mági-
de viver. Talvez um dos maiores benefícios
co religioso. Bonito. Inesquecível.
da arte para nossa saúde seja desenvolver
53
ou até em muitos casos, devolver, o gosto
integrativa e humanizadora nos terreiros da
pela vida. Dessas noites de profunda e in-
leitura de cordel de mamãe. A arte aí estaria
tensa produção social e promoção de saúde,
funcionando como lugar de encontro do ser
criamos de quebra o gosto pela leitura, pela
com suas múltiplas possibilidades criativo-
escrita, pela arte e a cultura popular. Uma
inventivas; de ensinar e aprender, refletir e
profusão de saberes. Aprendi que a arte e a
agir com e sobre o mundo? Talvez mais, de
leitura constroem cidadania, animando o
construção da sustentabilidade e longevida-
sujeito a fazer, através dela, histórias singu-
de do ser porque nos perpetua felizmente
lares e até revolução.
para além do tempo presente. Neste caso
a arte atua como forte dispositivo para a
Por isso, continuo assim como mamãe e Ân-
elaboração de ambientes saudáveis, de ni-
gela Linhares contando histórias, distribuin-
nhos vitais, propondo constituir relações
do poesia pelo mundo. Não mais no terreiro
de alta qualidade onde ninguém perde. Ou
de casa – não há mais terreiros nem campos
onde o grau de perda é insignificante em
tão verdes assim – mas nas ruas, nas praças,
relação aos ganhos dos que se relacionam
nas escolas, nas academias, nas praias, no
e aprendem uns com os outros – porque
sertão, nos centros urbanos e nas comuni-
estão unidos por uma causa, um desejo de
dades rurais. Não apenas inventando e con-
aprendizagem e enriquecimento mútuo de
tando minhas histórias, mas principalmen-
cooperatividade muito forte e não por um
te desenvolvendo cada dia a capacidade de
desejo de exploração, de sugação da energia,
escutar o mundo e facilitando que outras
do saber do outro, ou por um sentimento de
pessoas, outras crianças que, mesmo mui-
usura. A arte, é claro, não resolvendo por si
tas delas, sem o colo gostoso da mamãe,
só os problemas individuais e coletivos do
possam despertar para a vida, construir e
mundo, problematiza, discute, ajudando a
contar suas próprias, pequenas grandes his-
despertar no ser humano reflexões que reo-
tórias de vida.
rientem suas relações consigo mesmo e com
o outro e apontem caminhos de superação
Esta é ou não é uma “experiência de conví-
de suas próprias limitações de ser incomple-
vio social solidário?” Estaria essa gente pro-
to e inacabado, como diz Paulo Freire. Não
movendo ou não saúde, a partir de uma mo-
se trata de uma arte apenas engajada, mas
tivação artístico-comunitária, por meio de
almada, desarmada e livre, capaz de recons-
uma das mais antigas artes do mundo ibe-
tituir no ser dimensões ocultadas ou opri-
ro-americano, a poesia popular do cordel?
midas pelas lógicas desumanizantes e prag-
Havia ou não uma função pedagógica, de
matistas que confundem o viver bem com
participação intergeracional, socializante,
acúmulo de capital. A lógica viral do adoe-
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cimento em massa que substitui o ser pelo
constrói e solta pipas com maestria apoia-
ter, onde uns poucos conseguem ter sem ser
do em restritos espaços enfeitando, colo-
com segurança; e outros, a maioria, não tem
rindo a cidade; ou a mulher que pinta os
nem são com dignidade.
lábios, inventa belos penteados e se embeleza toda para ser admirada, todos sabem
Saúde seria o reflexo, um indicador im-
que seu feito, além de incluí-los no mundo
portante de qualidade de como nos rela-
com suas marcas identitárias, singulares,
cionamos, do nosso estar/ser no/com o
lhes faz muito bem. Porém, nem sempre
mundo? A arte de que falamos aqui seria
têm consciência de que estão produzindo
a expressão e modo pelo qual percebemos,
arte e saúde. Duas coisas levo comigo des-
sentimos, refletimos sobre tudo isso com
sa conversa: primeiro, é ao mesmo tempo
leveza e graça? Nesta perspectiva, se todo
belo e desafiante quando nos damos conta,
ser humano é capaz de produzir arte, na
tomamos consciência das coisas. O ponto
mesma medida pode promover ou produ-
da encruzilhada, de tomada de decisão, de
zir saúde. Creio que os sujeitos que, com
escolha do caminho a seguir ou do padeci-
toda autonomia, são capazes de criar um
mento na inércia mortal. É a partir daí que
boneco, improvisar uma história e brincar
assumimos ou negamos nossa missão no
de mamulengo são também capazes de
mundo, nossas responsabilidades histó-
produzir saúde; que o artesão que conce-
ricas. Segundo, uma pergunta: é possível
be e produz selas e arreios bordados com
criar ou produzir saúde e arte sem a auto-
perfeição para andar bonito em seu cavalo
nomia dos sujeitos implicados? É possível
e é por sua arte reconhecido pela vizinhan-
um sujeito ser saudável sem produzir ou
ça; que o mesmo menino ou menina que
promover sua própria saúde?
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Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação a Distância
Direção de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a Distância
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Machado Mello de Sousa
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Simone São Tiago
Coordenação de Utilização e Avaliação
Mônica Mufarrej
Fernanda Braga
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte
Consultoras especialmente convidadas
Regiane Rezende e Vera Lúcia de Azevedo Dantas
E-mail: [email protected]
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)
Novembro de 2009
56
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