ISSN 1982 - 0283 Saúde e Educação: uma relação possível e necessária Ano XIX boletim 17 - Novembro/2009 Secretaria de Educação a Distância Ministério da Educação SUMÁRIO Saúde e Educação: uma relação possível e necessária Aos professores e professoras.................................................................................... 3 Rosa Helena Mendonça Apresentação da série Saúde e educação: uma relação possível e necessária........... 4 Regiane Rezende e Vera Lúcia de Azevedo Dantas Texto 1 - Integração das Políticas de Saúde e Educação............................................10 Vera Lúcia de Azevedo Dantas, Regiane Rezende e José Ivo dos Santos Pedrosa Texto 2 – Saúde e cotidiano escolar......................................................................... 23 A escola e a saúde Ercília Maria Braga de Olinda Texto 3 - Linguagens e Tecnologias.......................................................................... 38 Três histórias para um começo de conversa sobre arte e saúde Ângela Maria Bessa Linhares Texto complementar................................................................................................51 Ray Lima - Raimundo Félix de Lima Saúde e Educação: uma relação possível e necessária Aos professores e professoras, A sensibilidade, a cordialidade, o cuidado levados a todos os níveis, para com a natureza, nas relações sociais e na vida cotidiana, podem fundar, junto com a razão, uma utopia que podemos tocar com as mãos porque imediatamente praticável (Leonardo Boff)1. A integração de práticas nas áreas de saúde ções de vida das comunidades. Destaca, em e educação, considerando a perspectiva de especial, o papel da escola que, por meio formação permanente de educadores e edu- de experiências que consideram visões de candos, e a consequente troca de saberes mundo e dimensões criadoras diversas, que emerge nesse contexto, permitem res- enseja vivências expressivas, utilizando significar a relação que, historicamente, se diferentes linguagens e recursos, visando constituiu entre saúde e educação. mudanças na sociedade e nas políticas públicas. É com o objetivo de debater essa temática que a TV Escola, por meio do programa Salto Esperamos que a leitura dos textos desta para o Futuro, apresenta a série Saúde e Edu- publicação, que são complementares aos cação: uma relação possível e necessária, que programas televisivos, contribua para o de- conta com a consultoria de Regiane Rezende senvolvimento e a continuidade de projetos e Vera Lúcia Dantas, da Secretaria Municipal significativos na interface educação e saúde, de Saúde de Fortaleza, Ceará. transformando antigas utopias em novas realidades porque, no dizer de Leonardo Boff, A série fundamenta-se na perspectiva de tais utopias devem, de fato, se tornar ime- que a integração entre as políticas desses diatamente praticáveis. dois setores possibilita reflexões e ações voltadas para a transformação das condi- 1 É urgente rever os fundamentos (27/02/2008). In www.leonardoboff.com . 2 Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro. Rosa Helena Mendonça2 3 APRESENTAÇÃO SAÚDE E EDUCAÇÃO: uma relação possível e necessária Regiane Rezende1 Vera Lúcia de Azevedo Dantas2 Historicamente, saúde e educação têm vi- atribuições e formas de financiamento tra- venciado aproximações e distanciamentos, çadas em âmbito nacional, com o intuito de e destes têm surgido algumas experiências promover a integração/interação entre os que refletem encontros e desencontros, no setores saúde e educação. que diz respeito ao cumprimento das suas missões e do seu papel social. Nesta perspectiva, a interface entre ambos os setores, no sentido de imprimir mudanças Os diversos contextos históricos e as formas significativas na relação saúde/educação; como os diversos atores se inserem e com- escola/comunidade; educador/educando, es põem esses contextos têm sido determinan- pecialmente no contexto dos territórios, é tes na configuração desses movimentos. ainda um devir. Considerar a educação como processo emancipatório que propicia o diálogo e as aprendizagens mútuas que podem contribuir para a compreensão e a abordagem da saúde em um sentido amplo, assim como compreen- Nesse sentido, torna-se pertinente abordar a necessidade de integração das políticas públicas, para além da implantação de programas, projetos e ações de saúde na escola, buscando: der os territórios com seus problemas e po- • Compreender como as missões postas tencialidades, como base para a organização a ambas as políticas podem se com- de processos intersetoriais e interdisciplina- plementar; res de trabalho, são algumas das situaçõeslimite a serem enfrentadas, mesmo com os • Compreender a intrínseca relação en- avanços atuais, na conformação de normas, tre o biológico, social, psíquico, eco- 1 Assessora técnica do Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série. 2 Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. Médica do Programa Saúde da Família da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série. 4 nômico, que influenciam os processos da vida, considerando e valorizando a de adoecimento e cura e precisam es- diversidade criativa e seus recursos de tar incluídos nos projetos políticos pe- linguagem; dagógicos e terapêuticos. • Compreender que a integração entre • Construir um processo de articulação saúde e educação caracteriza-se como que tenha como base a co-responsabi- um processo de educação permanente. lidade, a co-gestão, o compromisso, a sustentabilidade e a participação; Enfim, com base nessa compreensão, desenvolver as interfaces necessárias e possí- • Incluir os estudantes como sujeitos legítimos da gestão escolar; veis entre saúde e educação, respeitando a experiência prévia e os saberes dos diversos atores e atrizes envolvidos, o que não sig- • Considerar a diversidade de saberes e lugares que constituem o universo complexo da comunidade onde se insere a escola, tendo como aspectos fundantes a dialogicidade criativa e a nifica limitar o ato educativo, mas dialogar com ele, problematizá-lo, elaborar um saber relacional, como síntese articuladora entre os saberes apreendidos na escola da vida e aqueles proclamados na vida da escola. escuta sensível, O território que a escola abrange deve ser • Constituir espaços pedagógicos, utilizando outras linguagens, para além da escrita e da palavra; • Inserir a arte e a cultura, não como temas, mas como dimensões da educação escolar, como possibilidade de promover a ampliação da percepção de seres humanos, enquanto sujeitos criativos e afetivos, na perspectiva de fomentar a participação popular e o protagonismo infanto-juvenil na promoção da saúde e da vida; compreendido como um lugar de vida, onde são tecidas relações a partir de situações carregadas de historicidade. Daí a importância e a necessidade de se investir no desenvolvimento de uma comunidade que constrói e se envolve em um projeto educativo próprio, para educar-se a si mesma, suas crianças, jovens e adultos, no marco de um esforço cooperativo, solidário, baseado em um diagnóstico não só de suas carências e debilidades mas, sobretudo, de suas potências. Entre os grandes desafios postos à articulação entre as duas políticas está a • Fortalecer a todos os atores em suas compreensão de que todos os movimentos singularidades, enquanto experiência descritos anteriormente têm inúmeras co- pedagógica de promoção da saúde e nexões com a saúde e a vida, e a ousadia de 5 assumir em conjunto a gestão e a responsabilidade sobre estes movimentos. • Que linguagens são significativas para crianças e jovens e como elas têm sido incluídas e incorporadas nos proces- SÉRIE SAÚDE E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA • As políticas de saúde e educação vêm construindo aproximações, as quais têm produzido experiências que refletem encontros e também desencontros. O que produz os encontros? sos pedagógicos na escola e na saúde? • Os processos pedagógicos se encerram nas paredes da escola? O que a escola pode aprender com os saberes da vida? • Qual o papel da arte nos processos pedagógicos? • Como ultrapassar a atitude de pensar • Que outras possibilidades comunica- para o outro, pensando com o outro a tivas e pedagógicas poderíamos cons- concretização das nossas missões? truir para dar concretude a esta inte- • Como construir caminhos para a cogestão? • Como o que está pensado entre os dois campos se concretiza no ambiente escolar? gração? Com o objetivo de buscar uma reflexão mais ampla e aprofundada das questões colocadas acima, propusemos a organização da série em três eixos, que orientaram a elaboração dos textos e dos programas: • Como articular, neste processo de integração, as responsabilidades a serem assumidas, enquanto políticas públicas, aos desejos e sonhos das pessoas que, no cotidiano, dão sentido a essas políticas? I -Integração entre as Políticas de Saúde e Educação; II - A Escola e a Saúde; III - Linguagens e tecnologias (arte, narrativa, autoralidade, sistematização e produção coletiva do conhecimento). 6 Textos da série Saúde e educação: uma relação possível e necessária3 As políticas de saúde e educação vêm cons- colar? Que linguagens são significativas para truindo aproximações, as quais têm produzido crianças e jovens e como elas têm sido incluí- experiências que refletem encontros significa- das e incorporadas nos processos pedagógicos tivos nos dois campos. Como essas iniciativas na escola e na saúde? Esses são alguns dos te- se concretizam, em especial, no ambiente es- mas apresentados e debatidos na série. TEXTO 1 - INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE E EDUCAÇÃO Historicamente, saúde e educação têm vi- tos e ações de saúde na escola. venciado aproximações e distanciamentos, e produzido experiências que refletem en- Compreendendo que as políticas se efetivam contros e desencontros, no cumprimento na realidade concreta, pelo envolvimento das suas missões e do seu papel social. dos seus diversos atores, pensar a caminhada e o processo de articulação das políticas Frente a mais uma proposta de articula- de saúde e educação nos remete a pensar ção pautada pelo âmbito nacional, como a integração entre dois campos que são tão desafio a estados, municípios e equipes de próximos no cotidiano, mas distantes na saúde, equipes das escolas e população, compreensão de um em relação ao outro, e torna-se pertinente abordar a necessidade também, a pensar formas de aproximação e de integração das políticas públicas, para encontro que desenvolvam a percepção das além da implantação de programas, proje- pessoas como sujeitos. TEXTO 2 – SAÚDE E COTIDIANO ESCOLAR A saúde tem sido associada historicamente de saúde no Brasil e no mundo, desconsi- ao surgimento de doenças, sua prevenção derando a capacidade de as pessoas assu- e cura. Isso reflete a hegemonia do modelo mirem o cuidado e o controle sobre o corpo biomédico que tem permeado durante lon- e a vida, delegando-os aos profissionais de go tempo o desenvolvimento das práticas saúde. 3 Estes textos são complementares à série Saúde e educação: uma relação possível e necessária, que será veiculada no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 09 a 13 de novembro de 2009. 7 Desta forma, a abordagem da saúde como sociais, culturais, espirituais e também pe- prerrogativa da área médica promoveu o dagógicas. distanciamento de outros setores e áreas do conhecimento, imprescindíveis para a com- A escola, a partir do seu compromisso com preensão da saúde, tal como é concebida na a formação humana e técnica, tem papel atual Constituição brasileira, onde se insere fundamental neste processo de transforma- o Sistema Único de Saúde. ção das concepções e práticas relacionadas à saúde, ao propor um processo educativo Neste aspecto, questões como participação, que considere a historicidade, a intersetoria- autonomia, criatividade, autoestima, iden- lidade e a constituição de redes de proteção tidade, espiritualidade, amorosidade, resili- integral. Neste sentido a educação popular, ência, assertividade, entre outras, aparecem enquanto proposta dialógica e problemati- descoladas do desenvolvimento da saúde, zadora, incorporada a um processo perma- quando abordadas nos processos pedagógi- nente de aprendizagem, de forma sistemá- cos e incluídas nos currículos. tica e assumida também institucionalmente por meio dos Projetos Políticos Pedagógicos, Portanto, pensar a saúde e educação em pode contribuir na interação entre saúde e sua complexidade requer o olhar ampliado educação. Este eixo abordará os vários as- sobre os processos de adoecimento e a sin- pectos da interação entre saúde e educação gularidade das possibilidades terapêuticas considerando a transversalidade deste tema, que não estão necessariamente no plano no cotidiano da escola, entendida como uma da medicalização, conformando dimensões comunidade de aprendizagem e de vida. TEXTO 3 – LINGUAGENS E TECNOLOGIAS (ARTE, NARRATIVA, AUTORALIDADE, SISTEMATIZAÇÃO E PRODUÇÃO COLETIVA DO CONHECIMENTO) Historicamente a forma como as temáti- criativas, que possibilitam a expressão da cas de saúde têm sido abordadas no espa- subjetividade e identidade, tais como as ço escolar tem se remetido a dimensões diversas linguagens da arte, os jogos, as prescritivas e normativas que evidenciam, narrativas e até mesmo tecnologias virtu- além da hegemonia biomédica no campo ais, têm se configurado como propostas da saúde, a hegemonia da pedagogia tra- contra-hegemônicas que apontam novos dicional no processo educativo. Por outro caminhos, não apenas na abordagem das lado, experiências envolvendo dimensões temáticas de saúde, mas na configuração 8 do processo pedagógico. Este texto con- Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para templará a discussão sobre linguagens e o quarto programa, com entrevistas que refle- tecnologias inclusivas e participativas, tem sobre esta temática (Outros olhares sobre como pedagógico, a Saúde e educação) e para as discussões do que podem contribuir para ressignificar a quinto e último programa da série (Saúde e relação entre saúde e educação. educação em debate). instrumento/espaço 9 TEXTO 1 Integração das Políticas de Saúde e Educação Vera Lúcia de Azevedo Dantas1 Regiane Rezende2 José Ivo dos Santos Pedrosa3 Ao colocar em cena a integração de políticas compreensão de seus determinantes. Saúde e de saúde e educação partimos de um olhar doença, nessa perspectiva, não se constituem sobre esses dois campos em uma perspectiva conceitos opostos, já que ambos se referem à ampla. Neste sentido, assumimos uma com- produção da vida, estando inseridos em con- preensão de educação como processo dialógi- textos históricos, sociais, econômicos, políti- co, problematizador, reflexivo e emancipató- cos, éticos, ambientais e culturais. rio. Educação que, no dizer de Freire (1979, p. 49), está “fundamentada sobre a criatividade e Ao tratarmos do campo da saúde coletiva de- estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras paramo-nos com a inserção da saúde em uma sobre a realidade, respondendo assim à voca- realidade social complexa, daí a necessidade de ção dos homens que não são seres autênticos considerá-la como um campo interdisciplinar, senão quando se comprometem na procura e articulado a uma totalidade social permeada na transformação criadoras”. de contradições. A constituição de espaços dialógicos que possibilitem a interlocução de sa- Ao mesmo tempo, saúde é concebida em uma beres e práticas parece configurar-se como es- perspectiva integral, como processo, que in- tratégia de superação dessas situações-limite4 corpora aspectos das subjetividades e a no- (DANTAS et al., 2008). ção de direito, de qualidade de vida. Portanto, conceber o processo saúde e doença em uma Refletir sobre a caminhada e o processo de ar- abordagem integral pressupõe, também, a ticulação entre saúde e educação nos remete 1 Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. Médica do Programa Saúde da Família do Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série. 2 Assessora técnica do Sistema Municipal Saúde/Escola da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza, Ceará. Consultora da série. 3 Professor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Piauí. 4 Situações-limite são aquelas que exigem transformação no contexto local, por dificultarem a concretização dos sonhos, desejos e necessidades coletivas das populações (DANTAS et al., 2008). (...) não devem ser tomadas como 10 a pensar as formas de integração entre dois e os grandes problemas dos territórios como campos que estão próximos no cotidiano, mas base para a organização de processos de traba- distantes na compreensão de um em relação lho intersetoriais e interdisciplinares é uma das ao outro. situações-limite a serem enfrentadas. Partindo da compreensão de que esses campos estão Ao considerar essas concepções, o território interconectados com a vida em sua complexi- – entendido como território vivo, que inclui dade e que as políticas se efetivam na realidade os que nele vivem, com suas culturas, seus concreta pelo envolvimento dos seus diversos modos de ver e andar a vida (SANTOS, 2000) atores, uma proposta de integração das políti- – se constitui como base para a construção cas de saúde e educação necessitaria incluir as das interfaces necessárias entre escolas e unidades de saúde e aponta para o respeito à experiência prévia e os saberes dos diversos atores e atri- zes envolvidos. Conceber saúde e educação, ten- percepções destes e a No momento em que as sociedades modernas começam a conviver com temas como democracia, cidadania, participação e controle social, a integralidade e a intersetorialidade tornamse princípios e diretrizes imperativos às políticas públicas. ousadia de assumir, em conjunto, a gestão e a responsabilidade sobre estes movimentos. As reflexões apresentadas sobre saúde e educação nos levam a considerar a escola como uma comunidade de aprendizagem (LIMA, 2008), o que nos traz a do como base ideia de uma convivên- o cia carregada de histo- território, significa dialogar com ele, problematizá-lo, ricidade. Historicamente, saúde e educação elaborar um saber relacional, como síntese têm vivenciado aproximações e distanciamen- articuladora entre os saberes apreendidos na tos, que são conformados por determinados escola da vida e aqueles proclamados na vida contextos, configurando movimentos e apren- da escola (FREIRE, 2000). dizagens. Desta forma, considerar as potencialidades No momento em que as sociedades moder- barreiras insuperáveis, além das quais nada existisse. No momento mesmo em que os homens as apreendem como freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se transformam em “percebidos destacados” em sua “visão de fundo”. Revelam-se, com efeito, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens (...) (FREIRE, 1987, p.90). 11 nas começam a conviver com temas como espaços de interlocução no sentido do pro- democracia, cidadania, participação e con- tagonismo social. trole social, a integralidade e a intersetorialidade tornam-se princípios e diretrizes im- O direito universal à saúde e à educação ad- perativos às políticas públicas. A partir daí quire um significado como direito de cidada- estas temáticas passam a compor o nosso nia quando reivindicado pela população, ga- repertório e a integrar as agendas políticas rantido na Constituição e operacionalizado de gestores e da sociedade civil. pelas políticas públicas com o objetivo de dar concretude aos compromissos assumidos. É, portanto, na emergência dos sujeitos portadores de direitos sociais em sociedades de- É, portanto, nesta perspectiva que se justifi- mocráticas e participativas que as políticas ca a integralidade dessas políticas, ou seja, públicas passam a significar instrumentos uma compreensão de que saúde e educação e processos que viabilizam as respostas do como direitos de cidadania não podem ser Estado, que tem como dever propiciar as concebidos de forma fragmentada. condições necessárias para a concretização desses direitos. Mas a educação e a saúde apresentam características que as fazem também políticas Considerando que, no cotidiano, as neces- de governo, as quais necessariamente não sidades se apresentam em dimensões que estão colocadas ao lado de e/ou comprome- compreendem desde as relacionadas às con- tidas com a população. E, nesse caso, as po- dições dignas de sobrevivência, passando líticas públicas podem servir de mecanismos pela segurança, paz, tranquilidade e até mes- de legitimação de governos autoritários, de mo a necessidade de afetos, à medida que os estratégia para satisfazer os interesses de cidadãos conseguem cada vez mais vocalizar determinados grupos da sociedade e como suas necessidades, as respostas institucionais dispositivo de dominação, submissão e con- tendem a se apresentar de maneira articula- trole. da e integrada, na tentativa de se aproximar dessas necessidades, tornando-se legítimas. No Brasil autoritário, a educação e a saúde, em lugar de significarem direitos de cidadania, Os direitos de cidadania garantidos na Cons- eram utilizadas como instrumentos e estraté- tituição Brasileira são dinamicamente (re) gias para obtenção de outros fins. A relação di- significados e (re)dimensionados passo a reta da educação, da formação e da qualifica- passo com os movimentos que qualificam ção das pessoas consideradas força de trabalho a participação dos cidadãos, ampliando os também representava uma necessidade para 12 a reprodução do modo como se organizam dade, a educação da população, isto é, as as bases materiais da sociedade. Educação e práticas educativas voltadas para as classes saúde, como campos sociais, também podem subalternas, passa de estratégia essencial ao representar estratégias de reprodução de um projeto político de dominação das classes modo de pensar, no qual saúde é mercadoria e dominantes para dispositivo fundamental a educação é recurso de poder. na construção de projetos emancipadores, libertários, que fortaleçam a autonomia e a Tal concepção é radicalmente diferente da edu- alteridade dos sujeitos e coletivos sociais. cação básica, fundamental para o desabrochar do desenvolvimento e da potencialidade de A educação em saúde que conhecemos todo ser humano, dever do Estado, formaliza- emerge no projeto de consolidação das so- do por políticas de caráter universal. Dizendo ciedades disciplinares em um processo de de outra forma, à medida que a sociedade civil domesticação dos corpos sociais (Foucault, participa da formulação das políticas trazendo 1989) em conjunto com outras estratégias suas necessidades, e reivindicando os direitos “modeladoras” de comportamentos nor- conquistados, imprime direcionalidade aos matizados, des-subjetivadores dos sujeitos planos, programas e ações governamentais. diante do fortalecimento do Estado Moderno, sob um paradigma que justificava a in- Desde que saber cuidar do outro foi expro- vasão da vida privada, da intimidade, crista- priado da sociedade e configurado em deter- lizado na disciplina Higiene. minadas técnicas produzidas por determinados atores legalmente reconhecidos como A referência inicial da educação em saúde tais, exercidas em determinados lugares e atual é a teoria da multicausalidade dos acessíveis somente a alguns, a dinâmica da processos de adoecimento, validada por sua vida se reduziu a estar ou não doente e esta importância no enfrentamento das doen- situação definida com base em normas que ças infecciosas, a partir da tríade ecológica, determinam o que é normal e o que é pa- na qual os homens e mulheres apresentam tológico. E o agenciamento da saúde como comportamentos e hábitos que fortalecem ausência de doença e desta como sendo a a ação do agente em um ambiente nocivo. falta de algo para fazer a máquina humana funcionar (o corpo) reproduz no imaginário Esta referência sempre nos persegue quan- popular a ideia de saúde restrita ao consu- do se faz a crítica aos modelos biologicista e mo de serviços e de medicamentos. higienista ou quando acriticamente eles são reproduzidos nas práticas de educação em Em sua trajetória na história da humani- saúde nos serviços. 13 Com a insuficiência da teoria multicausal de Para superar este projeto higienizador e dis- responder à permanência de doenças infec- ciplinar, as práticas pedagógicas que acon- to-contagiosas, os múltiplos fatores causais tecem nas escolas, que se caracterizam pela ganham ressonância nos indivíduos diante transmissão de informações que muitas ve- das inúmeras possibilidades de serem por- zes não produzem nenhum significado para tadores de padrões de comportamento ade- o educador e o educando, necessitam de quados para evitar o fortalecimento de de- mudanças substanciais em seus conceitos, terminado fator. princípios e diretrizes políticas. Considerase, portanto, a possibilidade de uma edu- As concepções acima definem como atores cação que se constrói por meio de relações dessa prática os educadores sanitários que que se estabelecem no mundo da vida e que têm por missão difundir normas de comporta- também acontece na escola, à qual se atri- mento ideal, mudar percepções e hábitos, cujo bui o sentido de espaço onde convergem processo de formação, de natureza técnica, singularidades que compõem um coletivo determina uma prática pedagógica prescritiva, – a comunidade escolar – vivenciando pro- autoritária e normativa, que utiliza estratégias cessos constitutivos de identidades, de sub- de coerção, inculcação e persuasão. jetividades e de movimentos. 14 A higienização da sociedade encontra nas As práticas interativas e relacionais entre escolas, na infância, nos homens e mulhe- as pessoas, como práticas pedagógicas (ou res em formação a possibilidade de afirmar educativas), ocorrem somente entre sujei- e reproduzir a hegemonia de determinados tos. Sem esta concepção existe tão somente grupos que impõem à sociedade modos de a transmissão de saberes “normais” que ten- vida, de pensar, de ser. Nas sociedades mo- dem à reprodução das condições sociais por dernas, estes grupos também afirmam a su- meio da domesticação da potência imanen- premacia de gênero, de raça, etnia e outras te constitutiva do ser humano (Chauí, 2003). diferenças, que passam a ser consideradas fator de desigualdades. No Brasil a educação e a saúde passam a fazer parte da agenda política nacional do Para operar esse projeto higienizador, a edu- governo na época de Vargas, operacionali- cação e a saúde, como instituições sociais zadas por meio das ações de saúde escolar. que fazem parte dos aparelhos ideológicos Nas escolas do ensino público existiam pe- do Estado, passam a trabalhar de forma ar- lotões de saúde, com o objetivo de vigiar e ticulada, conjugando lugares (as escolas), ensinar hábitos considerados adequados à conhecimentos e tecnologias. população. A integração entre os dois setores resultou na 2. Parâmetros Curriculares Nacionais criação do Departamento de Saúde no Minis- voltados para a inclusão no currículo, tério de Educação, que depois passou a ser dos temas transversais – ética e cida- denominado Ministério da Educação e Saúde. dania, consumo e trabalho, multiculturalidade, meio ambiente, saúde e Mais tarde, ao serem desmembrados, o Mi- sexualidade. nistério da Educação fica responsável pelos programas e ações relativas à saúde escolar, 3. A Lei de Diretrizes e Bases da Educa- orientado pelos preceitos higienistas e bio- ção, de dezembro de 1996, reforçou e logicistas, atuando somente em cada indiví- ampliou os deveres das instituições duo, dissociando-o da escola e do território. públicas com a Educação, basicamente com o ensino fundamental. Na década de 90, com o fortalecimento da democracia e a conquista da ampliação dos 4. Produção de material didático-infor- direitos de cidadania no país, o trabalho mativo, na perspectiva de contribuir educativo em saúde, vivenciado na escola, mais para a reflexão e para o resgate tem avançado através da incorporação de do protagonismo da escola e seu en- novas concepções teóricas da educação e da torno na produção da saúde. saúde, assim como na diversificação de seu campo de atuação. Aliado a isso, o significado ampliado de saúde vem ao encontro destas concepções, uma Este avanço possibilitou a incorporação das vez que compreende a saúde como respon- práticas educativas em saúde, no cotidiano sabilidade de diferentes setores da socieda- didático-pedagógico das escolas, além de de, por meio de ações interdisciplinares e contribuir para uma crescente consolidação intersetoriais, envolvendo os vários setores da cooperação técnica entre os Ministérios do poder público, as organizações não-go- da Saúde e da Educação. Deste modo, ape- vernamentais, a iniciativa privada e a comu- sar de a concepção microbiológica ainda nidade, discutindo acerca da qualidade de se mostrar hegemônica, pode-se identificar vida. acúmulos consideráveis que potencializam a ação educativa em saúde nos espaços ins- As práticas educativas em saúde nas escolas, titucionais, tais como: no sentido de incorporar a visão mais ampla da saúde, de estar voltada para a reflexão crí- 1. Disseminação da proposta de promo- tica da realidade e de fortalecer a autonomia ção de saúde no ambiente escolar; dos sujeitos e o exercício da cidadania, de- 15 vem estar coerentes com os princípios éticos 1. Integração das políticas públicas - Ela- e políticos do Sistema Único de Saúde (SUS), boração de política integrada de edu- que defende a universalidade, equidade, inte- cação em saúde nas escolas, articulan- gralidade e controle social, bem como com as do os setores de saúde e educação; diretrizes curriculares do Ministério da Educação que norteiam a educação básica do país. 2. Conhecimento das intervenções institucionais - Realizar levantamento e Este entendimento deu origem a um Grupo sistematização das informações sobre de Trabalho entre o Ministério da Educação as ações que já vêm sendo desenvol- e o da Saúde, instituído como Câmara Inter- vidas pelas áreas de saúde e educação setorial Educação em Saúde na Escola, pela nas escolas; Portaria Interministerial nº 749, de 13 de maio de 2005, e adequada sob o nº 1.820, de 3. Intersetorialidade entre saúde e edu- 1º de agosto de 2006, assinada pelos Minis- cação: Promover a articulação entre tros da Saúde e da Educação, cujo objetivo os setores saúde e educação, com vis- central era elaborar diretrizes que subsidias- tas a potencializar as ações de promo- sem uma política de educação em saúde nas ção da saúde na escola, de acordo com escolas do ensino fundamental. levantamento das necessidades. Essas ações deverão ser direcionadas para A Câmara Intersetorial Educação em Saúde alunos, comunidade e profissionais de na Escola teve sua reunião inaugural em 30 educação; de novembro de 2006, com a participação dos representantes do Ministério da Edu- 4. Processos de educação permanente cação e Ministério da Saúde, na qual foram com profissionais de educação e de apresentadas as expectativas e resgatadas saúde, para o desenvolvimento da te- as propostas e iniciativas desenvolvidas pelo mática educação em saúde na comu- MEC; foram apresentados os projetos do MS nidade escolar e entorno; que têm interface com a escola, o plano de trabalho a ser desenvolvido pela Câmara e, 5. Integração interinstitucional - Promo- ainda, foi elaborada a agenda conjunta - MS/ ver a integração entre as diversas Se- MEC. cretarias de Educação e o Sistema Único de Saúde (SUS) para a assistência Em 2007, a Câmara Intersetorial discutiu li- à saúde dos profissionais de educação nhas de ação necessárias a um política dessa e alunos, incluindo acuidade visual e natureza, tendo por base os seguintes eixos: auditiva; 16 6. Participação social - Promover a parti- desconstroem as bases do conhecimento car- cipação da comunidade nas ações de tesiano, autoritário, normativo e hegemônico educação em saúde na escola. e apresentam potencialidade em orientar o processo de produção de saúde, reconstruin- Estas recomendações são incorporadas no do-o numa perspectiva libertadora, reflexiva, Programa Saúde na Escola (PSE), instituído criativa e transformadora, construindo coleti- por Decreto presidencial nº. 6.286, de 5 de vamente um saber que reflete a realidade vi- dezembro de 2007, que resulta do trabalho venciada, servindo de referência para a cons- integrado entre o Ministério da Saúde e o tituição de sujeitos sociais que assumem o Ministério da Educação, na perspectiva de protagonismo de sua saúde e de suas vidas. ampliar as ações específicas de saúde aos alunos e alunas da Rede Pública de Ensino: A formulação de políticas em sociedades de- Ensino Fundamental, Ensino Médio, Rede Fe- mocráticas compreende um ciclo desenca- deral de educação profissional e tecnológica, deado pela construção da vontade política, Educação de Jovens e Adultos (EJA), por meio que preside a formalização de normas jurí- de quatro componentes: avaliação das condi- dicas necessárias para garantir legalmente ções de saúde; promoção da saúde e preven- a concretização da vontade política coleti- ção; educação permanente e capacitação dos vamente construída, que orienta arranjos profissionais e de jovens; monitoramento e institucionais e organizacionais capazes de avaliação da saúde dos estudantes. produzir as ações necessárias e o controle da sociedade, avaliando e trazendo novas te- A formulação e a operacionalização do PSE máticas que irão compor novos elementos têm por preceitos conceituais, metodoló- para a sociedade que se manifesta e define a gicos e instrumentais: a amplitude e com- formulação de novas políticas. plexidade do conceito de saúde; a discussão acerca da qualidade de vida; o pressuposto Nesse sentido, a vontade da sociedade por de que a solução dos problemas está no po- uma política que articule intersetorialmen- tencial de mobilização e participação efetiva te educação e saúde e integre suas ações da sociedade; o princípio da autonomia dos na perspectiva de promover ao cidadão o indivíduos e das comunidades e o reforço do direito à potencialidade da vida, remete a planejamento e poder local. questões concernentes à construção desta vontade: quais os discursos, práticas e co- Preceitos que orientam programas que dão nhecimentos que fundamentam a saúde e vida às experiências pedagógicas consideradas a educação como direitos que se concreti- como estratégias/ferramentas/suportes que zam em instituições e organizações? Quais 17 argumentos são utilizados para construir e subjetividades, no qual os sujeitos envol- um novo significado que legitime a ideia da vidos identificam-se, interagem, refletem a escola como espaço de produção de saúde respeito de suas vivências e constroem pro- e cidadania? Que saberes e tecnologias são jetos de vida mais saudável e cidadã; promo- necessários para mudar uma cultura insti- ver o protagonismo da escola como espaço tucional ainda centrada em valores que for- de produção de saúde em seu território exi- talecem o paradigma biomédico que medi- ge a discussão a respeito dos determinantes caliza a atuação dos profissionais de saúde sociais da saúde/doença nessa população, a na escola e contribui para fragmentação de mobilização em torno do direito à saúde, o sujeitos, de espaços e de políticas? fortalecimento da participação da comunidade escolar nos espaços de controle social A necessidade do imperativo ético da articu- e de gestão participativa do Sistema Único lação entre integralidade das necessidades e de Saúde. intersetorialidade das políticas públicas ganha maior nitidez na fase de implementação, considerando que nesta fase as políticas se expressam na produção de ações condizentes com seus pressupostos, diretrizes e objetivos. É também na fase de implementação das políticas que a disputa entre os recursos de poder, sejam técnicos, burocráticos, financeiros ou políticos, se evidencia claramente, explicitando objetivos não discursivos. Caberia ainda perguntar: • Como operacionalizar políticas públicas intersetoriais capazes de impactar os determinantes e condicionantes de saúde da população? • O que produz bons encontros, os que ativam potências, paixões alegres, no dizer de Spinoza, entre os sujeitos da saúde e da educação? A integralidade entre saúde e educação e a intersetorialidade entre as ações de res- Neste sentido, uma proposta de integra- ponsabilidade setoriais precisa fazer frente ção precisa encontrar convergências entre a outros desafios como: romper o caráter concepções, princípios e valores, desde a prescritivo, desarticulado e focalizado das perspectiva individual e coletiva enquanto ações desenvolvidas exige novos arranjos dimensões instituintes e aqueles institu- institucionais integrados, intersetorializa- ídos pelas políticas de saúde e educação. dos e participativos; transformar metodo- A construção coletiva de novos conceitos logias e técnicas pedagógicas tradicionais contribui para a produção de sentidos com- exige a ressignificação da escola enquanto partilhados e para a co-responsabilização espaço de construção de territorialidades de todos. 18 Partir daquilo que está colocado como missão de um desenho que ajude a fazer leitura am- institucional dos setores Saúde e Educação e pliada da realidade; identificar as situações- buscar a construção de uma nova missão para limite e potencialidades que se apresentam; esse caminho integrado, tendo como base a traçar estratégias; construir planos de ação, complementaridade, se constitui como outro monitoramento e avaliação, que respondam desafio para a efetivação dessa idéia. às necessidades evidenciadas e configurem um processo de educação permanente. Ademais, ao propor a articulação de políticas, torna-se fundamental constituir movimen- Organizar a atenção à saúde sob a ótica da in- tos que considerem também a harmonização tegralidade pressupõe a compreensão dos seus organizacional e operacional. O que estamos determinantes e condicionantes e o desenvol- a nomear de harmonização organizacional vimento de ações intersetoriais. Para tanto se compreende o diálogo acerca dos aspectos faz necessário aprofundar mecanismos que históricos, princípios, diretrizes, organização propiciem a horizontalidade dos processos de sistêmica, bases e dispositivos legais de am- gestão, constituam espaços de negociação e bas as políticas, bem como das semelhanças, proposições coletivas, promovam vínculos convergências e complementaridades. Como entre seus sujeitos e ampliem a participação harmonização operacional, entendemos o pro- social nas políticas. cesso de reconhecimento e reflexão acerca dos diversos instrumentos e estratégias utilizados A co-responsabilização desses setores nos para a operacionalização destas políticas. remete a um modo de gerir as políticas que inclui o pensar e o fazer coletivos, visando A idéia de harmonização aqui colocada situa- motivar e educar os trabalhadores e ampliar se na perspectiva de superação da ótica ver- sua capacidade de compreender e interferir ticalizada, normativa e medicalizante que sobre a realidade. Aqui recorremos a Andra- tem caracterizado as ações desenvolvidas de (2006) que define co-gestão como: entre saúde e educação, buscando contribuir para o reconhecimento do que tem sido fei- “(...) espaços coletivos valiosos de mo- to e incentivar o desenvolvimento de olhares bilização e atuação de diferentes atores críticos sobre este “fazer”, de forma que a envolvidos no processo de produção da integração das políticas de saúde e educação saúde, num exercício de construção de possa comprometer-se com a construção da novas práticas e saberes entre sujeitos autonomia e da qualidade de vida. autônomos, com capacidade inventiva, que se envolvem na responsabilização Nessa perspectiva, urge pensar a concepção do planejar, executar e avaliar da Polí- 19 tica de Saúde no Território-Cidade; nos Portanto, nos caberia perguntar: como pen- Territórios-Distritos de Saúde e nos Ter- sar no cotidiano a interface entre essas políti- ritórios-Unidades de Produção da Saú- cas, buscando a superação do olhar fragmen- de” (ANDRADE et al., 2006, p. 121). tado, instrumental e reducionista na saúde e na educação? Como construir com a comu- Nessa perspectiva, o planejar de forma inte- nidade escolar um olhar ampliado sobre os grada as ações de saúde e educação no terri- processos de adoecimento e as possibilida- tório pode configurar um espaço instituinte des de intervir a partir de dimensões sociais, de exercício de poder compartilhado (PE- culturais, espirituais e DROSA, também pedagógicas? 2008), que busca o dialogismo inter- setorial, em um recorte sincrônico que mostra a saúde como vida do lugar e a educação como lugar de superação das situações-limite que se apresentam. Entre os desafios postos à Desenvolver estratégias que considerem a diversidade de saberes da comunidade onde se insere a escola e a unidade de saúde – tendo como aspectos fundantes a dialogicidade criativa e a escuta sensível – pode representar a possibilidade de elaborar um saber relacional, onde a cultura se constitui dimensão fundamental. Lima (2008) pontua como a escola “para compor sua legitimidade social necessita articular os conhecimentos ali construídos pelos estudantes ao ‘saber fazer, ao saber ser e ao saber viver juntos’, tomando como referência três dos quatro pilares da educação do futuro apresentados por De- interação entre lors (1999), com base as duas políti- no entendimento de cas está a compreensão de que esses cam- que capacidades e conhecimentos somente pos estão interconectados com a vida em têm sentido se tiverem ligação entre si”. sua complexidade, e a ousadia de assumir, em conjunto, a gestão e a responsabilidade Acrescentamos, ainda, a necessidade de sobre estes movimentos, que não estão ne- centrar a discussão da escola como lugar de cessariamente no plano da medicalização, promoção da saúde, junto ao horizonte das conformando dimensões sociais, culturais, potências humanas a desenvolver - o que espirituais e também pedagógicas. nos remete ao diálogo com Spinoza. A po- 20 tência para Spinoza (1988) é a própria essên- sada”. Ao trabalharmos com essa dimensão, cia dos seres, seu poder de ação. A potência é necessário ter claro que respeitar a cultura das ideias que se conformam coletivamente, não significa que não possamos nos mover seguindo a lógica spinoziana, está na pos- para transformá-la. sibilidade dos encontros, das composições, do poder de afetar e de ser afetado por eles. Com Freire, vamos concluindo essas reflexões sobre a integração das políticas de A discussão do direito à educação, que se in- saúde e educação, cientes do inacabamento terfacia com a do direito à saúde, pode ser desse processo, mas certos da fecundidade percebida ainda como devir, como algo a ser que nele está contida. conquistado e, nesse sentido, a integração das políticas pode constituir-se campo fér- “(…) só existe saber na invenção, na rein- til de produção de novos movimentos que venção, na busca inquieta, impaciente, envolvam dimensões criativas e a configura- permanente que os homens fazem no ção de processos pedagógicos que apontem mundo, com o mundo e com os outros” para a superação do modelo da biomedicina (FREIRE, 1987). na saúde e da pedagogia da transmissão na educação, promovendo a inclusão dos vários atores e atrizes que compõem a comu- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS nidade escolar como sujeitos protagonistas ANDRADE, Luiz Odorico Monteiro de et al. Hu- dessas ações. manização e Cultura de Paz: um desafio para o Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza. Saú- Desenvolver estratégias que considerem a de em Debate, v. 35, p. 115-127, 2006. diversidade de saberes da comunidade onde se insere a escola e a unidade de saúde – ten- CHAUÍ, M. Política em Spinoza. São Paulo: do como aspectos fundantes a dialogicidade Companhia das Letras, 2003. criativa e a escuta sensível – pode representar a possibilidade de elaborar um saber relacional, onde a cultura se constitui dimensão fundamental. Ao mesmo tempo Freire (2000, p.62) nos lembra que: “O mundo da cultura que se alonga em um mundo da história é um DANTAS, V. L. A.; LINHARES, A. M. B.; ANDRADE, L. O. M.; PORTO, T. C. A. Violência como situação limite nas rodas das Cirandas da Vida em Fortaleza, Ceará. Divulgação em Saúde em Debate, v. 39, p. 68-81, 2007. mundo de liberdade, de opção, de decisão, FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes mundo de possibilidade em que a decência necessários à prática educativa. São Paulo: pode ser negada, a liberdade ofendida e recu- Paz e Terra, 2000. (Coleção Leitura). 21 _______ Pedagogia do Oprimido. Rio de Janei- PEDROSA, J. I. Educação Popular em Saúde e ro: Paz e Terra, 17ª edição, 1987. Gestão Participativa no Sistema Único de Saúde. Revista APS, v. 11, n. 3, p. 303-313, jul./set. 2008. _______ Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire (antologia). São Paulo: SANTOS, M. Território e sociedade - entrevista Loyola. com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. SPINOZA, B. Tratado Teológico-Político. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, In- LIMA, R. Ideário de Política Educacional, Con- trodução, tradução e notas de Diogo Pires ceito de Escola Pública. In: Educação Demo- Aurélio, 1988. crática: experiências, desafios e perspectivas. 15ª IDEC. São Paulo, 2008. 22 TEXTO 2 Saúde e cotidiano escolar A ESCOLA E A SAÚDE Ercília Maria Braga de Olinda1 Partindo da constatação exposta na apre- necessidades das pessoas que, no cotidiano, sentação deste programa de que as políticas dão sentido aos mesmos? Que elementos de saúde e de educação vêm construindo, teórico-metodológicos devem ser considera- ao longo da história, aproximações e afas- dos na formação dos profissionais da saúde tamentos, os quais têm produzido experiên- e da educação, a fim de incorporar concep- cias que refletem encontros e desencontros, ções educativas, no sentido de promover passamos a refletir sobre o eixo “A Escola e a uma educação em saúde que transcenda a Saúde”, procurando entender os movimen- ideia de educação como transmissão do co- tos realizados na escola visando garantir nhecimento e de saúde como ausência de cada vez mais aproximações. Para tanto, de- doença? Quais os desafios da universidade senvolveremos o presente texto nos orien- para aproximar saúde e educação no coti- tando pelas seguintes questões: que carac- diano escolar? terísticas de nossa época estão a exigir a integração das políticas e ações nos campos da saúde e da educação? Que necessidades formativas reclamam novas práticas e novas linguagens? Quais as características da 1) CONSTRUIR HABILIDADES PARA A VIDA NUM MUNDO QUE BANALIZOU A VIOLÊNCIA educação necessárias à formação humana No dia 18 de setembro de 2009, localizamos para hoje e, nessa perspectiva, que aspec- no site www.globo.com a seguinte notícia: tos deveriam ser enfocados na abordagem de saúde na escola? A transversalização do “Um menino de 9 anos foi agredido na tema saúde, proposta nos PCN, é uma reali- saída da escola, em São Joaquim da Bar- dade na escola? Como articular os diferen- ra, a 382 km de São Paulo, por colegas tes programas, projetos e ações existentes de classe e teve de ser hospitalizado. Ele na escola, respeitando os desejos, sonhos e teve uma lesão na coluna cervical e vai 1 Professora da Universidade Federal do Ceará – UFC. 23 precisar de um colete ortopédico por al- São Paulo; meninos negros e pobres execu- guns dias. O garoto, que é gago, recebeu tados em Salvador; adepto da Umbanda ape- socos e pontapés na cabeça e nas cos- drejado na periferia de Fortaleza, etc. tas de pelo menos cinco meninos, todos com menos de 12 anos [...] A Polícia Civil Há, sem dúvida, um crescimento do fenô- apura o caso. Segundo a delegada Soraia meno da violência nas últimas décadas, o Pinhone Ravagnani, os garotos aponta- que levou a Organização Mundial da Saúde dos como os autores da agressão deve- (OMS)2, em 2002, a considerá-la como fenô- rão comparecer com os pais na semana meno de saúde pública. A violência mani- que vem para prestar depoimento. Se for festa-se no cotidiano de diferentes formas e comprovada a participação dos meni- em graus diversificados, comprometendo a nos, eles poderão cumprir medidas so- saúde física, mental e espiritual das pessoas cioeducativas previstas no Estatuto da e também pondo em risco a segurança do Criança e do Adolescente (ECA). A escola próprio planeta Terra. Entendemos que tal estadual Adolfo Alfeu Ferrero também fenômeno deve ser estudado na sua com- vai chamar os responsáveis pelas crian- plexidade, englobando os seguintes prismas: ças para uma reunião. A delegada afir- biopsicológico, sociológico, epidemiológico, mou que há relatos de que o garoto, por jurídico, histórico e espiritual. Os números ter problemas na fala, vinha sofrendo da violência e o impacto da insegurança na humilhações, o que caracteriza a práti- vida das pessoas apontam para a necessida- ca conhecida como bullying (a violência de de uma articulação entre saúde e educa- física ou psicológica entre colegas de for- ção, com vistas ao desenvolvimento pessoal ma repetitiva)”. e social, bem como à defesa e à promoção dos direitos humanos. Importa compre- Lembramos de tantos episódios passados ender as motivações para a violência, suas envolvendo jovens em ações intolerantes raízes e as formas para a prevenção e rea- e negadoras da vida: os da classe média de bilitação da pessoa vitimada e do agressor, Brasília que incendiaram o índio Pataxó; jo- mas, sobretudo, temos a tarefa educativa de vens do Rio de Janeiro que espancaram uma promover uma cultura de paz. empregada doméstica; neonazistas que mataram ou torturaram nordestinos e gays em Nossa sociedade está doente e a educação 2 A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi fundada em 7 de abril de 1948. É a agência das Nações Unidas (ONU) especializada nas questões globais e regionais de saúde. Sua Constituição aponta como objetivo da agência “prover a todos os povos o mais alto nível de saúde”. Saúde é entendida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” 24 colabora com tal estado à medida que deixa ção e da saúde. Por outro lado, não se resu- de considerar os educandos na sua multidi- me a isso, pois um conjunto de fatores que mensionalidade, preocupando-se com índi- se entrecruzam é que determina os resulta- ces de rendimento deslocados dos índices de dos da aprendizagem: redução da pobreza; felicidade e de realização humana. A organi- diminuição da concentração de renda e das zação do trabalho pedagógico na escola atu- desigualdades regionais. Em conjunto, mu- al reclama ações coletivas para a garantia do danças estruturais, conjunturais e culturais “direito a aprender direito”, inseparável do garantirão a efetivação dos direitos huma- “direito a viver em plenitude e abundância”. nos. Não podemos mais conviver com a exclusão, com a negação de identidades singulares, com a perda da autoestima e com o desperdício dos potenciais de crianças, adolescentes e jovens, que terminam se as- A educação popular, A educação popular, enquanto práxis pedagógica dialógica e problematizadora, há muito incorporou um sentido amplo para a ideia de saúde, tal qual é definido pela OMS, implementando processos permanentes de troca de saberes entre universidade, escola básica e comunidades. enquanto práxis pedagógica dialógica e problematizadora, há muito incorporou um sentido amplo para a ideia de saúde, tal qual é definido pela OMS, implementan- do processos permanentes de troca de saberes entre universidade, escola básica e comunidades. Ins- sumindo como titucionalmente, por causadores meio de dos Projetos seu próprio “fracasso”. Precisamos garantir, Políticos Pedagógicos, os diferentes sujeitos na prática, não apenas o acesso (expansão buscam contribuir na interação entre saúde quantitativa), mas também a permanência e educação. Princípios pedagógicos como: exitosa (aspecto qualitativo) dos educandos dignidade da pessoa humana; participação; na escola. Entendemos que o desenvolvi- igualdade de direitos; direito à diferença; mento de programas e projetos que rever- autonomia; criatividade; amorosidade e as- tam tais indicadores não pode se separar de sertividade não aparecem descolados do de- uma política de formação permanente de senvolvimento da saúde, pois esta é parte professores e demais profissionais da educa- da formação de seres humanos plenos e fe- 25 lizes. A práxis pedagógica popular considera seus potenciais. A inserção crítica e ativa dos a historicidade dos processos, a interseto- educandos nas dinâmicas escolares e sociais rialidade nas ações, a inter/transdisciplina- depende, em grande parte, do combate sem ridade no trato com os conteúdos escolares trégua à autodesvalia a que estão submeti- e a constituição de redes de proteção inte- dos. Paulo Freire (1978, p.54), na sua infinita gral dos direitos das crianças, adolescentes amorosidade e crença no potencial humano, e jovens. Na base de todos esses princípios assim se expressou: “[...] de tanto ouvirem e procedimentos está uma antropologia po- de si mesmos que são incapazes, que não sitiva, que reconhece no educando um ser sabem nada, que são enfermos, indolentes, inacabado e com “vocação ontológica de ser que não produzem em virtude de tudo isso, mais” (Freire, 1978). Crer e apostar no poten- terminam por se convencer de sua incapaci- cial infanto-juvenil, criando oportunidades dade”. O desamor leva à rebeldia desenfre- para que esses potenciais se desenvolvam, ada, à violência, à negatividade. Quando o transformando-se em atos criativos e cons- potencial humano não é canalizado para fins trutivos em resposta aos problemas locais, criativos, ocorre o adoecimento. Assim, é são ações afirmativas que substituem a no- correto afirmar que uma educação bancária, ção de problema vinculada a esse segmen- castradora, produz doença e que uma educa- to, pela noção de solução e protagonismo. ção emancipadora promove saúde. A participação autônoma e solidária gera impactos positivos sobre a vida dos sujeitos Reconhecemos a inegável importância da e sobre sua comunidade, dando uma nova escola, enquanto complexa instituição de imagem social às crianças, aos adolescen- socialização, ao mesmo tempo em que cons- tes e aos jovens. Precisamos romper com tatamos que a mesma tem se apresentado as representações hegemônicas em nossa como agência disciplinadora ou, quando sociedade, que identificam nesses sujeitos, muito, treinadora de habilidades básicas ou um risco/perigo, ou um projeto para o para a inserção a-crítica no mundo letrado futuro. Hoje, aqui e agora eles precisam ter e no reduzido e flutuante mercado de traba- seus direitos garantidos para crescerem dig- lho. A escola tem negligenciado a dimensão namente. Quando isso ocorre, há uma res- desejante e corpórea do ser e tem reduzido posta positiva. a dimensão cognitiva a uma simples capacidade de armazenar e repetir informações Aprendemos que a maior proteção oferecida sem significado. O ser humano tem sido sis- a uma criança, adolescente ou jovem está na tematicamente mutilado e negado em suas garantia de espaços e de processos educa- infinitas potencialidades. A capacidade cons- tivos que permitam o desenvolvimento dos trutiva do sujeito é negada através da forma 26 básica do ensino que é a recitação de peque- líticas de Saúde e Educação – já vimos a nas parcelas do conhecimento, sem relação necessidade e urgência de abordar a inte- com uma atitude investigativa frente às suas gração das políticas públicas, para além da necessidades individuais e coletivas. implantação de programas, projetos e ações de saúde na escola. A enxurrada de projetos Na música “Estudo Errado”, Gabriel, o Pen- especiais financiados pelas esferas dirigen- sador capta o sentimento de uma criança tes centrais – federal, estadual e municipal que aprendeu a desenvolver estratégias para – não tem colaborado para a alteração nos se adaptar ao sistema escolar, fugindo do indicadores de rendimentos escolares, nem “fracasso”, para ser admirada pelos pais: mesmo na conquista de maior integração entre os diferentes segmentos que fazem a “Mãe, tirei um dez na prova/ me dei bem, ti- escola. rei um cem, eu quero ver quem me reprova/ decorei toda lição/ não errei nenhuma ques- Quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educa- tão/ não aprendi nada de bom, mas tirei dez/ ção Nacional determinou como atribuição Ô filhão! Faço tudo que aprendi/ amanhã já da escola a elaboração de forma participa- esqueci/ decorei, recopiei, memorizei mas tiva de seu projeto político pedagógico, in- não entendi...” dicou uma nova perspectiva para a gestão e para o planejamento: a escola como cen- Impulsionada e inspirada na educação po- tro do processo educacional, ou seja, como pular a escola é convidada a se repensar, instância indicadora dos rumos das políticas constituindo-se num espaço de reflexão e educacionais. Vários mecanismos de des- re-elaboração crítica da cultura. A escola centralização foram criados nos sistemas deve criar condições para que educandos, para assegurar as condições materiais e ins- educadores e comunitários, em interação, titucionais para a sistematização de políti- ponham-se em condição de sujeitos, trans- cas com foco na escola. Albuquerque (2007, formando-se, assim, numa comunidade de p.113) mostra que a operacionalização dos vida que continuamente reconstrói as expe- diversos mecanismos encontrou obstáculos, riências de cada sujeito com base no diálogo não tendo sido suficiente para a promoção e no respeito real às diferenças. de condições que alterassem “a configuração do processo decisório”. Ao contrário, 2) A ESCOLA COMO PONTO DE PARTIDA houve fragmentação do planejamento com No Texto I desta série – Integração das Po- cessos verticalizados, a perspectiva de uma perda de foco na escola, o que gerou superposição de ações. Na contramão de tais pro- 27 escola cidadã, entendida como uma comu- define seus rumos, programa e avalia suas nidade de aprendizagem e de vida, defende ações com vistas à realização de sua missão, que, de forma participativa, a escola iden- definida coletivamente. A transformação da tifique suas necessidades para, em seguida, escola que temos exige mudanças paradig- articular-se às macro-orientações emanadas máticas em relação ao ser humano, ao co- do centro do sistema, que, por sua vez, deve nhecimento e aos rumos do planeta. Temos lhe dar apoio técnico e financeiro. que investir nas mentes e nos corações, articulando os fazeres cotidianos escolares aos Concordando com Boaventura de Sousa San- modos de vida dos seus sujeitos. A educação tos (1999) defendemos em trabalho anterior necessária à formação humana, para hoje e (OLINDA, 2007) que os processos educativos não para um futuro que não podemos deter- devem se comprometer com a formação de minar a priori, considera a integralidade do uma “comunidade de intérpretes”. A socie- ser humano, indo ao encontro da ideia de dade da informação, do conhecimento e da saúde que transcenda a concepção biomédi- comunicação impõe à escola a tarefa de re- ca, ou seja, que vá além da ideia de ausência pensar-se, para que ela seja capaz de formar de doenças e de enfermidades3. sujeitos capazes não só de acessar informações, mas também de avaliá-las e de usá-las A busca da conexão entre os setores da saú- individual e coletivamente, transformando de e da educação pode ser um caminho fér- sua vida e a sociedade. As “comunidades de til para a formação de sujeitos que amem intérpretes” reconhecem diferentes formas a vida, que se cuidem e se respeitem e, em de saber além do científico, realizando um consequência, amem, cuidem e respeitem o confronto comunicativo entre os mesmos. outro, incluindo seu próprio planeta. Uma Nessa congregação dialógica os cidadãos vida plena e abundante inclui a conscienti- não são forçados a renunciar às suas formas zação individual e coletiva com o bem-estar de interpretação da realidade social e a aca- físico, psicossocial e espiritual de todos. demia se abre à noção de “equivalência de saberes”. Uma comunidade de aprendizagem e de vida, formadora de intérpretes, conhece seus sujeitos, identifica suas necessidades, 3) A SAÚDE COMO TEMA TRANSVERSAL NA ESCOLA: ENTRE O PROPOSTO E O REALIZADO Os temas transversais foram incluídos nos 3 Apesar da definição ampla da Organização Mundial da Saúde (OMS), as políticas em saúde e a própria formação dos profissionais sempre priorizaram o controle da morbidade e da mortalidade. 28 Parâmetros Curriculares Nacionais em 1996, Assim, os conteúdos foram organizados em como metodologia capaz de conectar as três grandes categorias: conceituais, proce- experiências dos alunos com os conheci- dimentais e atitudinais. mentos escolares, permitindo uma aprendizagem compreensiva que possibilitasse a Os temas transversais, como “questões so- reconstrução, tanto do conhecimento sis- ciais cruciais para a compreensão e crítica tematizado, quanto da experiência dos alu- da realidade circundante” foram incluídos nos. A transversalidade seria uma forma de no Ensino Fundamental e Médio com os intervenção didática capaz de propiciar a seguintes objetivos: a) propiciar o conheci- formação plena dos educandos, adequando- mento de fatos e situações marcantes da re- se, assim, às exigências formativas contem- alidade brasileira, de informações e práticas porâneas. que possibilitam uma participação ativa e construtiva nessa sociedade; e b) desenvol- Na proposta para o Ensino Fundamental, o ver a capacidade de eleger critérios de ação conteúdo escolar foi organizado por áreas pautados na justiça, detectando e rejeitando – Língua Portuguesa, Matemática, Ciências a injustiça quando ela se fizer presente, as- Naturais, História, Geografia, Artes, Educa- sim como criar formas não-violentas de atu- ção Física e Ensino Religioso, que deveriam ação nas diferentes situações da vida (PCN, ser integradas pelo desenvolvimento de pro- v. 08, p.55). jetos de ensino. As questões sociais relevantes, que terminam não sendo tratadas ade- A inserção dos temas transversais no cur- quadamente nas áreas convencionais, foram rículo justifica-se pelo fato de a sociedade incorporadas como temas transversais. contemporânea apresentar problemas estruturais e conjunturais graves, cujas solu- De acordo com os PCN, os conteúdos esco- ções estão na dependência da formação de lares são considerados como meios para de- sujeitos capazes de debatê-los, envolvendo- senvolver capacidades de diferentes ordens. se na busca de soluções. Essa foi uma mudança de enfoque, uma vez que nossa tradição pedagógica sedimentou Os temas escolhidos para o Ensino Funda- a noção de que a incorporação de conteú- mental foram: orientação sexual, plurali- dos é a finalidade essencial do ensino. A dade cultural, meio ambiente, trabalho e importância do conteúdo não é negada, consumo, ética e saúde. Para favorecer o mas ampliada de modo a incluir não ape- debate em torno das especificidades de cada nas conhecimentos (fatos e conceitos), mas estado, região, centros urbanos e rurais, os procedimentos, valores, normas e atitudes. PCN propuseram, ainda, os temas locais. Os 29 critérios para a eleição desses temas foram: o desenvolvimento curricular. Foi mantida urgência social; abrangência nacional; pos- a tradição nacional de realizar reformas à sibilidade de ensino e de aprendizagem no revelia dos sujeitos encarregados de torná- Ensino Fundamental e sua potencialidade la realidade. O Brasil oficial continuou des- para favorecer a compreensão da realidade considerando o Brasil real e empreendendo e a participação social. transplantes de modelos pensados para outra realidade. Logo após a divulgação dos Dada a complexidade dos temas propostos, PCN para o Ensino Fundamental, Moreira nenhuma área seria capaz de abordá-los (1996, p.20) considerou que os professo- isoladamente. O adequado tratamento da res simplesmente deveriam dizer não aos problemática envolvida nos temas acima mesmos, apesar de antever uma dura ba- citados exige o diálogo com os diferentes talha, pois “livros didáticos, materiais ins- campos do conhecimento, nos remetendo trucionais, ensino a distância, supervisão, às discussões sobre inter e transdisciplina- avaliação das escolas etc. buscarão colocar ridade. ao longo do tempo, o professor no ‘caminho certo’ e torná-lo, afinal, ‘competente’ No campo da educação popular não há dis- e ‘produtivo’”. Depois de 13 anos da divul- cordância em relação à necessidade de tra- gação dos PCN, podemos afirmar que os zer para a escola a discussão dos temas so- professores seguiram o conselho do nos- ciais, uma vez que, na tradição freireana que so curriculista. Todos os temas propostos a anima, os temas geradores emergem de como transversais foram trabalhados, sim, situações existenciais, muitas vezes indica- não transversalmente, mas sob o impulso doras de situações-limite que precisam ser de programas, projetos e ações que chega- superadas. Na nossa concepção a leitura da ram à escola, muitas vezes sem que ela os palavra é antecedida da leitura do mundo. reivindicasse. Porém, o que constatamos é a repetição da prática centralizadora e homogeneizadora Dessa forma, o tema saúde não foi trans- nas reformas educacionais e curriculares, versalizado, mas apareceu pontualmente com a desconsideração dos saberes que já a partir das ações de diferentes iniciativas circulavam na escola. governamentais, tais como: o Programa Escola Aberta, cujo compromisso é com uma O processo de elaboração dos PCN gerou cultura de paz, que realiza oficinas nos fi- grande insatisfação nos meios acadêmicos nais de semana nas escolas onde o índice de e escolares, dado o inexistente ou pequeno violência é mais alto; o Programa Escola que nível de participação daqueles a quem cabe Protege, que enfrenta as violências contra 30 crianças e adolescentes, entre tantos outros voltados para diferentes temas, como educação ambiental, educação sexual, combate 4) EDUCAÇÃO PERMANENTE DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE E DA EDUCAÇÃO ao uso de drogas etc. Iniciaremos nossas reflexões sobre esse A explicitação da educação para a saúde ponto fazendo considerações em torno da como tema do currículo é de extrema im- formação de profissionais reflexivos. Não portância, pois tira os educandos da posi- esquecemos que as áreas de educação e de ção de pacientes para a de protagonistas saúde têm suas especificidades, exigindo, capazes de desenvolver atitudes favoráveis cada uma delas, pesquisas próprias sobre em relação à a formação dos seus saúde. Tal cons- profissionais. tatação reforça a iniciativa interministerial que instituiu o Programa Saúde na Escola e que aponta para novas formas de articulação entre as equipes de saú- A explicitação da educação para a saúde como tema do currículo é de extrema importância, pois tira os educandos da posição de pacientes para a de protagonistas capazes de desenvolver atitudes favoráveis em relação à saúde. de e o pessoal da Nesse espaço, traremos elementos teórico-me- todológicos sobre a comuns formação profissional, na intenção de aproximar os processos formativos das concepções de educação popular que apontam para uma nova relação entre saúde e educação. educação básica. Porém, é preciso integrar saúde As pesquisas socioeducativas mais recentes e educação em todos os níveis da prática sobre a formação profissional indicam a re- escolar. As Secretarias de Saúde e de Edu- flexividade crítica e a solução de problemas cação precisam construir coletivamente reais como estratégias para a indissociabili- referenciais conceituais e metodológicos, dade entre formação profissional e forma- de modo a inaugurar um novo tempo da ção humana. O próprio conceito de profis- busca de articulação entre suas políticas. sionalidade aponta para ações realizadas de Tal necessidade nos leva, necessariamente, modo consciente e com incidência sobre o ao tema da formação profissional, conside- desenvolvimento pessoal. O bom profissio- rada a seguir. nal não inibe as dimensões simbólicas e afe- 31 tivas de sua prática; não é aquele que tem ma que na ação reflexiva colocamos em xe- “receitas”, mas o que analisa os contextos que nosso fazer rotineiro, problematizando diferenciados, se conhece, procura conhecer a realidade, o que exige a integração de três seus principais interlocutores e mobiliza di- atitudes: abertura de espírito, responsabi- ferentes saberes, para buscar, com autono- lidade e empenhamento. Partindo de suas mia, respostas para os desafios cotidianos. formulações, Schön sistematizou estudos Para Schön (2000, p.25), o talento artístico é sobre a formação do profissional reflexivo, parte do talento profissional, daí porque os mostrando que a atual crise das profissões estudantes devem aprender por meio do fa- advém, em grande medida, do “modelo de zer ou da performance na qual eles buscam racionalidade técnica” hegemônico nas tornarem-se especialistas: universidades. Um currículo normativo parte da premissa de que primeiro se apre- “[...] Ao estudante, não se pode ensinar sentam os fundamentos da ciência, depois o que ele precisa saber, mas se pode esses conhecimentos são relacionados às instruir [...] Ele tem que enxergar, por áreas específicas, para que, no final da for- si próprio e à sua maneira as relações mação, haja a prática. O profissional com- entre meios e métodos empregados e re- petente seria aquele que melhor aplicasse sultados atingidos. Ninguém mais pode os conhecimentos produzidos e transmiti- ver por ele, e ele não poderá ver apenas dos na academia. Schön apresenta o mo- falando-se a ele, mesmo que o falar cor- delo reflexivo como alternativa de forma- reto possa guiar seu olhar e ajudá-lo a ção. Este é centrado no saber profissional, ver o que ele precisa ver”. na reflexão sobre a ação realizada em meio às incertezas, às singularidades e aos con- No caso dos profissionais que atuam na es- flitos da prática, através do tutoramento, cola, sejam eles da área da educação ou da mas, sobretudo, ampara-se na liberdade saúde, ser reflexivo implica a capacidade de para aprender; “criticar e desenvolver suas próprias teorias sobre a prática ao refletirem, sozinhos Liberdade para aprender através do fa- ou em conjunto, na ação e sobre ela, assim zer, em um ambiente de risco relativa- como sobre as condições que a modelam” mente baixo, com acesso a instrutores (AMARAL, MOREIRA E RIBEIRO, 1998, p.100). que iniciem os estudantes nas tradições da vocação e os ajudem, através da fala O termo reflexão é muito repetido, mas não correta a ver por si próprios e à sua pró- é entendido em toda a sua complexidade. pria maneira o que eles mais precisam Na obra Como Pensamos (1959), Dewey afir- ver” (SCHÖN, 2000, p.25). 32 Para Schön, a reflexão realiza-se em diferen- tuações para associar o saber escolar tes dimensões: (representação formal) às situações vivenciais, contextualizadas (represen- • fazer, que pressupõe conhecimentos tações figurativas); prévios ou o conhecimento na ação; • procurando entender seu modo de ra• pensar no momento em que está fazendo, ajustando-se às novas situa- ciocinar. Isso equivale a dar “razão ao aluno” (p. 83). ções (reflexão na ação); • aprender a lidar com a incerteza e • reconstruir mentalmente o que foi com a confusão: “um professor reflexi- feito (problematizar) e como resolveu vo tem a tarefa de encorajar, reconhe- os imprevistos (reflexão sobre a ação). cer e mesmo dar valor à confusão dos Descrições verbais ajudam nessa to- seus alunos. Mas também faz parte de mada de consciência; suas incumbências encorajar e dar va- • recriar ou desenvolver novas formas lor à sua própria confusão” (p. 85). de agir, com autonomia (reflexão so- Quais seriam as estratégias de formação ade- bre a reflexão na ação). quadas ao paradigma reflexivo? Várias estra- Para que a reflexão ocorra, faz-se necessário criar condições e instrumentos de apoio. Schön apresenta as seguintes condições: • considerar o conhecimento, a aprendizagem e o ensino de modo processual, o que implica o rompimento com a epistemologia corrente, que toma o saber escolar como certo (crença em respostas exatas) e molecular (“feito de peças isoladas que podem ser combinadas em sistemas cada vez mais tégias podem ser usadas: as perguntas pedagógicas; problematização do próprio fazer, as narrativas; a análise de casos; a observação; trabalhos com projetos e investigação-ação. As mesmas não são mutuamente exclusivas, podendo ser conjugadas. Em todas elas está presente, ou implícita, a “resolução de problemas”. Novais e Cruz (citados por Cardoso, Peixoto, Serrano e Moreira, 1998, p.77) dizem o que se deve entender por “problema”: • algo de que não se conhece a solução; elaborados de modo a formar um co- • questão que necessita de uma ou de nhecimento avançado”(1992. p. 81). mais respostas que tenha(m) de ser O professor, como um artista, deve elaborada(s) pelo sujeito e não apenas desenvolver a habilidade de criar si- recordada(s); 33 • algo que exige criar um método para descobrir a(s) resposta(s) (isto é, como desenvolvimento pessoal e de dignificação do trabalho. se podem obter as respostas); • um projeto pessoal. A formação profissional tende, cada vez mais, a se afastar de um conjunto de regras Trabalhar situações problemáticas é en- e de normas fixas a serem repassadas aos trar numa “zona indeterminada da prática” profissionais em cursos pontuais e massi- (SCHÖN, 2000), o que exige improvisação, in- vos, para se aproximar de um processo per- venção, capacidade para desaprender (rever manente e integrado, que traz à tona os pro- critérios e capacidades existentes, saber agir blemas colocados pela prática e, que através coletiva e proativamente, testes de estraté- de múltiplos olhares, tenta enfrentá-los, gias situacionais. Em tudo isso a reflexão está entendendo os complexos caminhos para presente. De acordo com Zeichner, ser refle- tornar-se um profissional reflexivo. Nesse xivo é uma “forma de estar em educação”: contexto, a pesquisa tem o caráter de princípio educativo, devendo ser realizada per- A ação reflexiva é uma ação que implica manentemente, num esforço de formação uma consideração ativa, persistente e cui- de profissionais prático-reflexivos. 34 dadosa daquilo em que se acredita ou que se pratica, à luz dos motivos que a justificam A Política Nacional de Educação Permanen- e das consequências a que conduz (...) não te em Saúde (PNEPS) é um instrumento in- é, portanto, nenhum conjunto de técnicas dispensável para a consolidação e o fortale- que possa ser empacotado e ensinado aos cimento do Sistema Único de Saúde – SUS, professores (citado por Lalanda e Abrantes, maior política de inclusão social brasileira. 1998, p.58). Sabemos que as mudanças nas práticas, seja na área de saúde, seja na área de educação, O exercício autônomo de uma profissão dependem não apenas de incentivos mate- inclui riscos ligados ao processo reflexivo riais, mas, sobretudo, de mudanças de ati- sobre o trabalho cotidiano. Nessa pers- tudes nos modos de orientar, cuidar, tratar e pectiva, o formador jamais poderá dar as acompanhar os brasileiros, pois soluções, mas examinar, questionar e avaliar junto com os formandos, expressando [...] não basta apenas transmitir novos ideias, sugestões e opiniões que devem pas- conhecimentos para os profissionais, pois sar pelo crivo ou julgamento crítico de to- o acúmulo de saberes técnicos é apenas dos. A dinâmica ação-reflexão-ação é uma um dos aspectos para a transformação estratégia, tanto de formação, quanto de das práticas e não o seu foco central. A formação e o desenvolvimento dos traba- mento das experiências. Elas nos formam à lhadores também têm que envolver os as- medida que “[...] articula, hierarquicamente pectos pessoais, os valores e as idéias que saber-fazer e conhecimentos, funcionalida- cada profissional tem sobre o SUS. de e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a opor- O conceito de educação permanente expres- tunidade de uma presença para si e para a so na PNEPS reconhece o potencial educa- situação, por meio da mobilização de vários tivo da situação de trabalho, ao aproximar registros” (JOSSO, 2004). a educação da vida cotidiana. Assim, educação permanente é encarada como “apren- De acordo com a PNEPS a educação perma- dizagem no trabalho, onde o aprender e o nente inverte a lógica da formação baseada ensinar se incorporam ao cotidiano das or- na racionalidade técnica do seguinte modo: ganizações e ao trabalho” (PNEPS, p. 44). Baseia-se na aprendizagem significativa e na possibilidade de transformar as práticas profissionais, pela reflexão sobre os problemas enfrentados na realidade. • incorporando o ensino e o aprendizado à vida cotidiana das organizações e às práticas sociais laborais, no contexto real em que ocorrem; 35 Ao vincular os processos de ensino e de aprendizagem às ações e serviços do trabalho, criamos condições psicopedagógicas para a aprendizagem significativa. Aquela que acontece quando aprender uma novidade faz sentido para nós. Geralmente isso ocorre quando a novidade responde a uma pergunta nossa e/ou quando o conhecimento novo é construído a partir de um diálogo • modificando substancialmente as estratégias educativas, a partir da prática como fonte de conhecimento e de problemas; • colocando as pessoas como atores reflexivos da prática e construtores do conhecimento e de alternativas de ação, ao invés de receptores; com o que já sabíamos. Isso é o oposto da • abordando a equipe e o grupo como educação bancária, denunciada por Paulo estrutura de interação, evitando a Freire na Pedagogia do Oprimido. As apren- fragmentação disciplinar; dizagens significativas ressignificam nossas experiências pessoais e nos instrumentali- • ampliando os espaços educativos fora zam para novos desafios. Novamente lem- da aula e dentro das organizações, na brando Dewey, a experiência é educativa comunidade, em clubes e associações, quando permite continuidade e aprofunda- em ações comunitárias. Acrescento, ainda, as seguintes necessida- ALBUQUERQUE, Maria Gláucia M. Teixeira. des: O lugar da escola no planejamento educacional; contextos e conceitos necessários à • Considerar o ser humano na sua mul- competência da profissão docente. In: SA- tidimensionalidade (ser espiritual com LES, José Albio et al. (orgs). Formação e práti- dimensões desejante, corpórea e cog- ca docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007. nitiva). • Considerar o ser humano como sujeito que se interpreta, utilizando para isso, fundamentalmente, formas narrativas (demanda maior atenção às biografias). BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília/MEC, 1996. Vol. 01 e 08. BRASIL. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2006. (Série Pactos pela Saúde, v. 9). • A vivência do diálogo intercultural. CARDOSO, A. M.; PEIXOTO, A. M.; SERRANO, Para finalizar, é importante lembrar o de- M. C. e MOREIRA, P. O Movimento da Auto- safio posto às universidades em três níveis: nomia do Aluno – Repercussões a nível da na formação dos profissionais de educação Supervisão. In: ALARCÃO, Isabel (org.). For- e de saúde; na produção do conhecimento mação reflexiva dos professores: estratégias que contemple as articulações entre saúde de supervisão. Porto Editora, 1998. e educação e na ação extensionista que viabilize ações intersetoriais. Vários passos fo- DEWEY, John. Como Nós Pensamos. São Pau- ram dados nesses sentidos, porém, a tarefa lo: Companhia Editora Nacional, 1959. é contínua e árdua, pois exige uma mudança de paradigmas e não apenas de procedimen- SALES, José Albio et al. (org.). Formação e tos técnico-instrumentais. prática docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. AMARAL, M. J.; MOREIRA, M. A; RIBEIRO, D. O Papel do Supervisor no Desenvolvimento JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. do Professor Reflexivo – Estratégias de Su- São Paulo: Cortez Editora, 2004. pervisão. In: ALARCÃO, Isabel (org.). Formação reflexiva dos professores: estratégias de LALANDA, M. C. e ABRANTES, M. M. O Con- supervisão. Porto Editora, 1998. ceito de Reflexão em John Dewey. In: ALAR- 36 CÃO, Isabel (org.) Formação reflexiva dos SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de professores: estratégias de supervisão. Porto Alice: o social e o político na pós-modernida- Editora, 1998. de. 6.ed. São Paulo: Cortez, 1999. MOREIRA, Antônio Flávio. Os Parâmetros curriculares em questão. In: Educação e realidade, 1996. SCHÖN, Donald. Formar Professores como Profissionais Reflexivos. In: NÓVOA, Antônio (coord.). Os Professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. NÓVOA, A. (org.) Profissão professor. 2ª ed. SCHÖN, Donald. Educando o profissional re- Porto Editora, 1992. (Coleção Ciências da flexivo: um novo design para o ensino e a Educação). aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000. OLINDA, Ercília Maria Braga de. In: SALES, SITES José Albio et al. (orgs.). Formação e prática www.globo.com – acessado em 18/09/2009 – docentes. Fortaleza: Ed. UECE, 2007. 21h. 37 TEXTO 3 Linguagens e Tecnologias Ângela Maria Bessa Linhares1 TRÊS HISTÓRIAS PARA UM COMEÇO DE CONVERSA SOBRE ARTE E SAÚDE Na verdade, meu amigo precisou, como me disse depois, partir da leitura da experiência de cada um, dos vários grupos, com o próprio território, seu lugar de morada e PRIMEIRA HISTÓRIA lutas comuns, para assim compreender seu lugar de vida como espaço da produção de Olhe, esta semana um amigo me disse que saberes e práticas de saúde. Nessa leitura da gostaria de trabalhar com teatro junto a um experiência de cada grupo organizado no lu- grupo de jovens de um maracatu cearense. gar, observou que cada pessoa aportava com Observava ele, por exemplo, que os jovens sua diferença e, nesse caminho, tentava ver vinham com cacoetes televisivos e que não como o coletivo que se estava a construir valorizavam a própria expressividade de sua era rico por ter essa diversidade. cultura familiar e comunitária, de ascendência negra. Esse amigo dizia que para fazer Contando mais sobre sua tentativa de cons- um trabalho de arte, com estes jovens, teria truir possibilidades de promoção da saúde de discutir esse “desvalor de si”. Para isso, com juventudes, meu amigo observou que oportunizaria, inclusive, que fizessem em os jovens que ali estavam, logo que assu- grupo leituras das próprias experiências de miam tarefas coletivas e produziam refle- vida que estes jovens traziam para o mara- xões sobre essa experiência, pareciam pas- catu. A seguir, teriam de tentar, juntos, (re) sar a se portar como sujeitos da aventura ler o próprio modo como se construía o ma- de conviverem juntos, tecendo a linguagem racatu – seus enredos e coreografias, orga- da arte como motivo e ação comum. Pas- nização e convívios. Poderíamos dizer, em sar para esse lugar de sujeito e não objeto linguagem outra, que meu amigo buscou a das situações da vida pessoal e social, dizia estrutura da experiência cultural dos sujei- meu amigo, deveria ser algo a se perseguir tos que estavam a construir uma atividade conscientemente. Ele pensava que a ten- artística. são produzida pelo que cada um é, em sua 1 Professora da Universidade Federal do Ceará. 38 singularidade, e o que cada um poderia dar Claro que se poderia, em algum momento, para o grupo existir iria enlaçá-los e, dessa fazer-se algo mais pontual, informativo ou maneira, o grupo iria se construindo no fa- com temáticas precisas, mas isso teria de se zer arte, juntos. dar como parte (se fosse o caso) de um percurso desejante dos sujeitos envolvidos. Chegar Poderíamos partir de um ponto simples, e anular todos os possíveis da história de um agora, para impulsionar algumas reflexões: grupo em construção seria impor uma visão ajudar pessoas jovens, por exemplo, a se tor- instrumental da arte e tornar as pessoas coisa. narem sujeitos de sua expressividade implica viabilizar, com elas, um caminho para a Em que essa meia estrada – essa meia his- sua subjetivação? Quer dizer, os jovens vão tória do meu amigo – seria uma metáfora se dizendo no grupo e se sustentando como importante para a nossa reflexão sobre saú- sujeitos que trazem sua diferença, a partir de e arte? Sabe-se que a vivência em grupos dos signos que vão construindo com a arte nos ajuda a construir conhecimentos e par- e com o próprio convívio que permite expe- tilhas, e a considerar princípios e sentimen- rimentá-la? tos; nos grupos se aprende sobre autonomia e cooperação, limite e autogestão, história Se pensarmos que a formatividade vivida no social e poder democrático – e se pensa em fazer arte também forma sujeitos, isso des- liberdade interna também, em escolhas e faz algumas comodidades: a de que há um responsabilidades, bem como no preço que caminho único para fazer arte, como tam- se paga por elas. As experiências com redes bém para pensá-la junto à saúde. sociais, agora um âmbito da luta por saúde recorrente em tantos desenhos de ação po- Voltando à nossa conversa anterior, eu dizia pular, ampliam essa experiência dentro do que meu amigo foi tentado a pensar em arte grupo para uma nova experiência que tam- e saúde no território. E, assim, logo tomou bém comporta o laço com outros grupos. contato com a ideia (a cobrança) de que só estaria trabalhando saúde se fizesse peças e Temos aprendido, ainda, nos grupos e lutas produtos com temas pontuais como DST-AIDS da educação popular e saúde que há uma re- ou Drogas e coisas assim. É evidente que lação dialética entre as vivências no territó- esse amigo percebeu logo que isso funcio- rio e nosso mundo interno, que também ela- nava como muletas para o grupo não seguir bora os novos sentidos que damos às lutas seu caminho singular, não esquadrinhar os coletivas e os desenvolve, chamando outras possíveis das suas diferenças e das suas es- dimensões do ser a comparecer nesse dialo- colhas, responsabilizando-se por elas. gismo eu-outro-ambiente. 39 Pode-se avançar e dizer que um novo senti- construção grupal. E o que parece estranho do de história parece que está a tomar corpo é que, desde muito cedo, ainda crianças, as no tempo presente, um sentido de história pessoas vão se sentindo descapacitadas para que nos pede para pensarmos em termos de experiências com o sensível, essa dimensão uma história total, que comporte também que a arte toca. as dimensões subjetivas dos percursos históricos e suas razões. Pode-se dizer, pois, que a arte vivida no âmbito do território ou do grupo atua de modo Retomando a meada para prosseguir: arte a reconhecer a impossibilidade de autossus- se faz com grupos, coletivos, com pessoas tentação individual fora de uma matriz cul- que se unem a outras para fazê-la. Nesse ca- tural. É porque o sujeito humano se constitui minho, as aprendizagens das linguagens da a partir do Outro com quem convive, que a arte – linguagem das artes cênicas, musicais, tarefa de se constituir como sujeito – sujeito visuais, literárias, etc. – se fazem, ao mesmo de saúde, quer dizer, de vida com os outros tempo em que as pessoas aprendem, umas – acontece na cultura. Possibilitar espaços com as outras, a ser e a conviver. Isso é algo sociais de pertencimento a uma cultura, ul- inerente ao humano, pode-se dizer – mas trapassando o individualismo, o isolamento nem sempre a gente percebe esse valor fun- e os modos a-sociais de conviver (para usar dante da arte: trabalhar as obras de arte (o uma expressão de Brecht, 1967), possibilita que fazer da arte) em grupo, ao mesmo tem- que as pessoas construam mais fortemen- po em que se vai tecendo nesse fazer vida te sentidos para suas vidas junto a outras de grupo conscientemente e, nele, gestando vidas, garantindo a tarefa de humanização um saber de experiência feita, como chama- das culturas. A arte tem esse colo – afinal, as va o educador Paulo Freire. crianças, jovens e adultos se constroem sujeitos de suas vidas nos espaços-tempos de Retomando com meu amigo, ele me lembra- seus encontros uns com os Outros. va como as pessoas foram excluídas (e se excluíram), em muito, de vivenciar grupos ou Vi muitas pessoas na vida que reduziram comunidades educativas que lhes oportuni- seus espaços de, por meio da arte, experi- zassem com mais vigor sua expressividade e mentar novos sentidos para viver e, assim, inserção social. A produção e circulação de foram restringindo também suas formas de sentidos – bem como apropriação dos sig- participação e atuação social, de convivên- nificados que são eleitos como importantes cia dentro de limites e também de exercícios para si e seu grupo social – ficam compro- de esperanças. Ao se tolherem quase que por metidas, se as pessoas nunca vivenciam essa completo, foram caindo mais facilmente em 40 processos de adoecimento (com o crack, as pecto institucional do maracatu e em que as depressões, os adoecimentos e os transtor- suas participações juvenis no maracatu os nos de natureza diversa, por exemplo). ajudavam a viver e a conviver com os outros no lugar. Também, se afoitaram em ampliar Meu amigo, em sua experiência com os jo- sua circulação social em outros grupos do vens do maracatu, reparava que identidades bairro e da cidade. juvenis, que vivenciam sofrimentos pessoais e sociais vão sendo mais e mais truncadas O exercício de autoralidade (ser autor de sua também porque se experimentam pouco fala expressiva, de suas imagens e gestos os novos lugares e espaços sociais de ser e transmudados em um fazer estético) é vital conviver – como os de ator, músico, artis- na modernidade. Assim, se faz de imenso ta visual, poeta, ensaiador de quadrilhas e valor que as pessoas se autorizem a produ- pastoris, cantor, zir seus sentidos para capoeirista, etc. a vida, suas imagens, Esses ensaios expressivos e de vinculação a grupos, como também de circulação social, conferem sus- O exercício de autoralidade (ser autor de sua fala expressiva, de suas imagens e gestos transmudados em um fazer estético) é vital na modernidade. histórias, práticas brincantes e artísticas, tateando sua própria expressividade em um movimento de pertença ao socius. Isso produz saúde. tentações socioÉ certo que, nessas afetivas dentro da vida cultural onde se vive. Por outro lado, andanças e experimentações no âmbito dos a expansão das experiências artísticas pode nossos mundos plurais, vamos tendo de estimular as pessoas a se experimentarem conviver com as diferenças – nelas e por elas de outras formas e lugares, ampliando seu também se distribui o poder de ser, viver e campo de experiências de si. pensar diferente, construindo saúde coletiva. Ah, e o pessoal do maracatu? Continuou seus ensaios. Discutiriam mais depois o que A arte possibilita uma ponte do eu para a se lhes travava a expressividade, o que lhes compreensão das formas de sentimento ex- facilitava e que caminhos percorriam os mo- pressas nas obras (por nós e pelos outros), dos de se fazer cultura no lugar; em que a que fazem a diversidade das culturas huma- expressividade de cada um alimentava o as- nas e, desse modo, afirma que saúde cole- 41 tiva envolve a subjetividade (com suas di- à dor que sentem – e sabe-se também que mensões intra e interpsíquicas), e, por isso, estes significados vividos e sentidos não po- requer em suas práticas um diálogo entre as dem ser ditos (de uma certa maneira) por múltiplas dimensões que constituem o ser outras linguagens como a científica, embora biopsicossocial e espiritual que somos. Tro- possam dialogar com ela. O modo de dizer cando em miúdos: nem só o organismo vivo da arte (essencialmente padrões do sentir adoece ou produz saúde – seu corpo simbo- sob formas significantes), assim, permite lizado, seu universo afetivo e relacional, seu que não nos sintamos “estrangeiros” em um mundo ético-moral, sua alma também. Isso mundo humano. E nos ajuda a fazer uma es- nos traz a ideia de um sujeito multidimen- cuta dos padrões de sentir de nossa cultura sional das práticas de saúde. – como se apercebia a menina que dizia estar se afastando de sentir. Vendo assim, a arte provoca essa boniteza: leva a saúde a ultrapassagens do modelo Pausemos aqui: parece que a função huma- monológico da biomedicina; leva à não re- nizadora da arte pode ajudar a saúde a se dução do sujeito ao seu organismo e, nessa pensar. Há uma função humanizadora dos perspectiva, pode possibilitar às dimensões saberes e práticas de saúde também; ela nos do ser dialogarem na produção da saúde conduz à vida intuitiva, ao descobrimento como bem comum. de nossa amorosidade, espiritualidade, aos aspectos brincantes da vida e a outras aqui- A SEGUNDA HISTÓRIA sições – chaves para a nossa humanidade. Ver o corpo não apenas em sua dimensão Nem é uma história – era uma queixa de organísmica, mas em sua dimensão afeti- uma menina já quase moça. Ela dizia: “es- va, por exemplo, deve nos levar até mesmo tava me afastando de sentir; estava como a considerarmos outras matrizes de pensa- aquele boneco de lata da história do Mágico mento que consideram o sujeito humano de Oz. E eu não sabia que a arte é um senti- um ser que possui a dimensão artística e mento que fala”. Vigotski, o educador russo, que pode ser visto também como ser espiri- já dizia ser a arte uma tecnologia do senti- tual. É que, se a lógica da mercadoria impera mento – como a menina apreendia. no pensamento que rege a vida social (ainda que com transformações e resistências Ora, sabe-se que a experiência artística traz que modificam essa paisagem), nas cultu- a representação simbólica dos sentidos que ras populares pulsam expansões expressivas as pessoas dão ao amor, à vida, aos afetos, que não se deixam colonizar por completo à espiritualidade, ao cuidado, ao desejo e por essa redução ao organísmico. Pode-se 42 adentrar, assim, na admissão de concepções de que se possa escutar o mundo plural dos e práticas em que se mostram como as ne- saberes e das práticas sociais que envolvem cessidades humanas, como a de saúde, por saúde. exemplo, envolvem as várias dimensões do ser múltiplo que somos. O diálogo com as diferenças culturais exige, ainda, que a saúde deva ser tomada Por outro lado, é bom que percebamos os como uma rede interdisciplinar, articulada movimentos sociais, por exemplo, como lu- a um contexto social concreto (disso deri- gares sociais de luta; muitas vezes, no en- va a ideia da intersetorialidade como uma tanto, reduzimos essa ideia do que seja uma das formas de operar com isso). Nessa pers- conquista de real valor. Tornamos opacos pectiva multifacetada podemos constatar os aprendizados como ricas e plenas sociais que não de diversidade são as são tão claros e palpáveis como os que se referem à dimensão sociopolítica, que facilmente evidencia o valor de determinada conquista A tensão permanente entre o privado e o público não pode mais ser escamoteada. Deve ser enfrentada: saúde não pode ser tomada pelas políticas públicas como mercadoria, mas como bem social inalienável. propostas de saúde das populações – mas isso não nos deve fazer esquecer que há reclamos urgentes a levar à frente; e que as condicionantes sociais que negam a saúde como a falta de para o bairro trabalho, educação, ou dada partici- cultura, lazer, etc. de- pação na construção das políticas públicas. vem ser transformadas na direção da justiça Como diziam os pescadores, redes de pesca social e ambiental. Isso exige trabalho nessa não se tecem só com pontos grandes – os direção. pequenos pontos formam uma malha segura e densa. É desse modo, então, que pensar novas referências em saúde (novos paradigmas) deve A saúde das populações se tece, como esta- exigir de nós que se ouça a voz dos que são mos a observar, em contextos sociais com- excluídos nas culturas, o que deve implicar plexos, em meio a matrizes culturais di- uma construção emancipatória para todos. versas – daí que a proposta sempre viva e A tensão permanente entre o privado e o pú- audível da educação popular em saúde é a blico não pode mais ser escamoteada. Deve 43 ser enfrentada: saúde não pode ser tomada de doenças, mas como promoção de saúde, pelas políticas públicas como mercadoria, estimulação e viabilização do que nas pesso- mas como bem social inalienável. E se o sa- as leva à alegria, à vontade de viver e convi- ber biomédico dominante nas práticas de ver com outros. saúde possui seu inegável valor, não se pode deixar de ver que ele tem se ocupado, em A perspectiva popular na luta por saúde, grande medida, com a manutenção dos pro- também, nos tem ajudado a ver que o as- cessos de privatização da medicina. pecto dialógico da arte – essa conversa que a gente faz com a gente e com os outros quan- Já as práticas de educação popular em saú- do vive ou faz arte – realiza uma assunção de, ao abrirem espaços para paradigmas da diferença como princípio da vida com os emergentes e fazerem a crítica desse assu- outros e ultrapassa fronteiras culturais, ao jeitamento, podem ajudar a construirmos possibilitar diálogos entre modos de ser e novos valores e referenciais capazes de em- de sentir, de viver e de sonhar a vida, que basar transformações ou de sedimentar as são tão diversos entre si! Esse diálogo com a que se iniciaram. Um exemplo dessas trans- gente mesmo e com os outros na produção formações que se deve sedimentar são as de sentidos para as nossas experiências, me- que advêm da caminhada do movimento sa- diado pela arte, é fundamental na formação nitário que, na realização da VIII Conferên- do ser que somos e da saúde como experi- cia Nacional de Saúde, resultou por produzir ência de convívio social solidário. Viabilizar o referencial teórico para a constituição do formas de convívio social solidário não seria SUS (Sistema Único de Saúde), sem dúvida um modo de promoção da saúde, em senti- um avanço como concepção, que se deve do largo? tentar (e se tem tentado) tornar realidade a cada passo. Aprofundemos mais. O convívio comunitário não se faz sem uma ação ativa, capaz de O SUS abraça, ainda, o que Gastão Campos enfrentar a busca de respostas aos proble- (2007) nomeia como clínica ampliada e que mas comuns, mas também não se faz sem envolve a consideração das formas terapêu- alegrias, festas, celebrações da vida e dos ticas complementares de saúde – como a dramas que contam da natureza problemá- massoterapia, a farmácia viva, a acupuntu- tica da existência humana e que se dizem ra, a arte terapia, etc. A arte aqui pode de- também por meio das várias linguagens ar- senvolver suas formas de compreensão da tísticas. saúde como manifestação da vida pujante das culturas – não apenas como prevenção Em seu dizer, então, tão vário, percebe-se 44 que a arte lida com uma extensa rede de sig- da no âmbito das ações coletivas e da espe- nificados sobre a vida, onde criação e tradi- rança que nelas se gesta. ção fazem contraponto e onde o novo que medra no agora se ergue junto ao que se Na modernidade, onde a experiência com a puxa como memória das gentes. mídia – Barbero (1997) a nomeia de experiência mediada – não nos autoriza a pensar Ora, a tradição seria um modo de interrogar- por nós mesmos ou a, pelo menos, dialogar mos o passado sobre como a história deve com a mídia, mas quase sempre a absoluti- continuar – já dizia Walter Benjamin (1985). zar o que a mídia diz ser a verdade – se faz Ortega y Gasset, apud Zumhtor (1997), dizia de imenso valor tatear sua própria expressi- algo parecido: seria a tradição uma colabo- vidade e sua pertença ao socius. ração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas do presente. As- Parece valioso, portanto, que, nessas an- sim, poderíamos admitir que a arte, como danças e experimentações no âmbito dos acúmulo de saberes e práticas de convívio nossos mundos plurais, vividas por meio da humano, onde se cria o novo no diálogo valoração e da viabilização da artisticidade com a tradição – não se cria em um vazio de todas as pessoas, vamos tendo de ensaiar cultural – pode ser vista também como um nossas autorias no convívio com as diferen- modo de valorarmos o desenvolvimento da ças – nelas e por elas se constrói saúde co- capacidade de interpretarmos nossas vivên- letiva. cias cotidianas do presente; importante tarefa da arte para a promoção da saúde. TERCEIRA HISTÓRIA O trabalho com a memória, berço da cria- Também não seria uma história, mas várias ção do novo, puxado pela mão das artes, e – seria um clamor? a sabedoria daí resultante parece dever ser, assim, decantado para, então, a saúde das Nestor Garcia Canclini (1984) culturas se apoiarem no amor pelo que foi que, na arte ocidental, se tem separado mui- de valor no que se viveu. Essa reflexão que se to as obras de arte (que se põem como ob- faz sobre o tecido da experiência de vida co- jetos de contemplação em um mercado de munitária serviria de ancoragem para os tra- arte) dos sujeitos que a fazem. Assim, vemos balhos de promoção de saúde. Lembremos em nosso país exposições com arte plumária que outra aprendizagem da luta popular por indígena, ao mesmo tempo em que se ex- saúde resulta de que os movimentos sociais pulsam e se escravizam os índios e os povos são também uma construção analítica, teci- das florestas; são feitos festivais com a arte já observa 45 dos negros, ao mesmo tempo em que se ex- à construção da diversidade biológica natu- terminam os quilombolas (descendentes de ral e cultural, representada pelos nativos. A grupamentos negros), e isso se faz dentro de crescente acumulação do capital, feita em um modelo de desenvolvimento que expulsa nível globalizado, que se expressa também grupos comunitários com o objetivo de alo- na desenfreada especulação imobiliária, vivi- jar fábricas gigantescas, que causam impac- da com formatos predatórios extremamente to ambiental destruidor nas culturas e suas perversos, nesse estágio de acumulação ca- vidas. Temos visto que há racismo ambien- pitalista em que nos encontramos, tem mo- tal e isso deve mudar. O racismo ambiental dificado as paisagens de viver. Assim é que mostra que temos destruído ambientes dos se tem expulsado as populações nativas que pobres, negros, trazem uma tradição indígenas e ex- de séculos de saberes cluídos de origens diversas. Pensar a perspectiva da arte na promoção da saúde, nesse contexto, é lutar por justiça ambiental – é caminhar na direção de su- Pesquisadores e estudiosos da etnoconservação e da agroecologia têm chamado a atenção para o absurdo que é a pouca ou nenhuma atenção que os países têm dado à construção da diversidade biológica natural e cultural, representada pelos nativos. e cuidados (isso é saúde) em nome do que se tem chamado desenvolvimento. Sabe-se bem que as populações das florestas, das ilhas, dos mangues, litorais, ribeirinhas, por exemplo, têm construído perar o racis- a face tão complexa mo ambiental. e rica dos ambientes Como fazer saúde junto às populações nati- naturais e cuidado deles de um modo que vas dos manguezais nordestinos, por exem- se torna quase sempre invisível, já que seus plo, se elas estão sendo expulsas pelas gran- saberes e práticas de vida e saúde não são des empresas do camarão e outras práticas respeitados. Há um imensurável acervo de predatórias do ecossistema local? conhecimentos nessas práticas de cuidado: consigo, com o outro e o ambiente. Já se tem Pesquisadores e estudiosos da etnoconser- conhecimento, por exemplo, por inúmeras vação e da agroecologia têm chamado a pesquisas, de que na floresta amazônica a atenção para o absurdo que é a pouca ou diversidade é muito pouco natural – foram nenhuma atenção que os países têm dado as diversas tribos e povos indígenas que, 46 com seus saberes diversos, conservaram o populações tradicionais, que vivenciam de que se tem de mais caro para dar ao mun- modo mais marcado certo comunitarismo, do em termos de biodiversidade. Quer dizer: é uma expressão e momento da vida do lu- para existir a biodiversidade, há uma etnodi- gar – não se refere apenas a um mercado de versidade (diversidade de culturas humanas) bens simbólicos, como quer Bourdieu (1989). que a mantém, recria e cuida. As políticas de saúde têm dialogado em rodas de gestão com as políticas culturais, no Outras janelas de olhar nos mostram como sentido de valorar essa forma de viver a arte as comunidades urbanas, em geral, não têm na vida das culturas? a mesma relação com a paisagem natural como as que as comunidades rurais e as É certo, por outro lado, que nestas práticas indígenas, os povos do mar, da floresta, os significantes de arte (escuta e fala coleti- ribeirinhos, os ilhéus e os do mangue pos- vas), em algum momento do trabalho analí- suem e que tentam preservar, em alguma tico, nos encontros dos grupos que as viven- medida. As rotas de migrações levam enor- ciam, pode-se ter, também, a expressividade mes contingentes de pessoas às cidades. artística se fazendo como produto cultural Isso faz com que nas cidades se veja a con- a ser divulgado e consumido por muitos. É fluência de ampla diversidade de culturas, bem verdade que pensar em arte nos reme- que passam a construir de algum modo uma te, sempre, a produtos artísticos e seus cir- etnobiodiversidade – isto é, um conjunto no cuitos de produção cultural; no entanto, a qual participam os grupos humanos em sua arte e a saúde, ao dialogarem, parecem con- diversidade junto à natureza – o que consti- siderar não apenas produtos (a obra feita) e tui um complexo e rico mundo cultural. A suas mostragens, mas deve-se pensar que, arte junto à saúde tem lidado com essa do- quando se escolhem processos de expressão bradiça – ambiente e cultura – como pares e construção em arte, socialização e consu- finamente estruturados? mo, também se está a produzir subjetividades. Em uma palavra: sujeitos. Voltando ao que dizíamos, parece urgente pensarmos em termos mais amplos, na Face ao processo de acumulação que se rea- abordagem da arte em saúde – não se pode liza agora em âmbito planetário, a exclusão valorizar obras de arte matando-se as cul- econômico-social e cultural adquire configu- turas (as pessoas) que as fazem. Há que se rações perversas, acentuando desigualdades pensar, então, a arte e a saúde, sem esque- entre uma pequena parcela da população cer as comunidades que as expressam. Ainda detentora de relativo poder político-econô- há que se ver que a arte, para as chamadas mico e uma imensa maioria da população 47 empobrecida. A luta popular pelo direito à de superarmos a noção restrita de um mero saúde e pela possibilidade de trazer concep- espaço de poder a serviço da classe dominante ções de saúde mais abertas, menos eivadas e compreender que contradições e mudanças dos interesses do capital mundializado, se vigem nos vários espaços-tempos do corpo so- faz, então, como forma de ultrapassagem cial como um todo. dessas condicionantes sociais. A conquista de espaços políticos dentro dos É evidente que o esforço de tantos setores da órgãos estatais é importante, assim como população, reiteramos, trouxe-nos conquis- sua democratização; como vimos, porém, tas legais inegáveis, como a Constituição há um universo da ordem da cultura que Brasileira (1988) e o Sistema Único de Saú- não se reduz a esses aspectos e que mostra de (SUS), uma conquista política e legal que a saúde como fiadora da subjetivação das veio junto a outras, sobretudo no universo pessoas, trazendo dimensões como a afeti- dos direitos civis e políticos. Claro que isso vo-intuitiva, a ético-moral, a espiritual e a tudo representa avanço sem par na realida- artística para se dizerem. O campo social e a de brasileira. A tarefa de colocar em prática sustentação da ordem pública, há que consi- aquilo que foi arduamente buscado, porém, derar, respondem também pela manutenção visto que existe uma grande distância entre e criação de ideais para as novas gerações, os textos constitucionais e a prática, aponta sustentadores do que se pode pensar do hu- um caminho desafiador para todos. mano. A arte no campo da saúde traz essa pergunta ‘inestancada’ pelo que ultrapassa Os movimentos sociais e as lutas populares a ideia de doença orgânica (embora conside- por cidadania, nessa perspectiva, assumindo re isso também) e nos empurra para a tarefa seus papéis como sujeitos históricos, criam de pensar um para além que comporte a es- novas consciências e ações capazes de fazer perança social e o devir das culturas como vicejar novas formas de produção da saúde lugar de vida e saúde. no território e novos movimentos possíveis no campo social e político. Não se pode esquecer que essa conquista de espaços políticos e de transformações concretas deve perpassar todos os lugares; o Estado, é bom lembrar, é uma somatória da sociedade civil e da sociedade política, não se resumindo aos órgãos de poder das esferas governamentais. Pensar em termos de Estado ampliado, pois, leva à necessidade BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E REFERENCIADA ARDOINO, J. Abordagem multirreferencial (plural) das situações educativas e formativas. In: BARBOSA, J. Gonçalves (org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 24-41 48 BARRETO, I. C. H. C.; ANDRADE, L. O. M.; (orgs.). Promoção da Saúde: reflexões, con- Loiola, F. ; Paula, J.B.; SILVA, A. M.; GOYA, N. ceitos, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, A Educação Permanente e a Construção de 2003, v. , p. 39-53. Sistemas Municipais de Saúde-Escola: o caso de Fortaleza (CE). Divulgação em Saúde para DANTAS, V. L. A. 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Ray Lima – Raimundo Félix de Lima1 Ao ler, ouvir, sentir a Ângela dizendo tão lin- levando-nos a estar de bem com nós mesmos da e profundamente sobre as possibilidades e com o outro, ajudando-nos a produzir feli- de relação que podemos estabelecer entre cidade, saúde. Ou por outro, pode fortalecer arte e saúde, arte e vida de qualidade, sou mazelas ou processos doentios que paradoxal- impelido a querer contar outras histórias, a mente desejaríamos combater. retomar processos vividos que podem ilustrar ou fortalecer alguns conceitos por ela A arte transita no terreno do desequilíbrio apontados. e equilíbrio do ser. Refiro-me a uma arte orgânica, palpável e praticável por seres co- Partimos ainda do princípio de que nem toda muns, viva e dinâmica, que flui pelos canais forma de produção artística é necessariamen- do sensível/criativo no interior de cada ser te saudável, tampouco certas racionalidades para transumanizá-lo e devolvê-lo ao mun- ou lógicas de produção e promoção geram do, melhorado, potente, porém não doente; efetivamente saúde. Muitas vezes o que pro- mais sabedor e consciente de si, inclusive de duz bem-estar não se acha na sofisticação das suas limitações e “defeitos de fabricação”, técnicas, no refinamento dos equipamentos e como diria Tom Zé, voltando ao mundo pela especialidades, mas na qualidade das relações filtragem crítica e sensibilizadora da arte, re- estabelecidas entre as pessoas e entre estas e novado e transformador, pronto para se re- o mundo em que vivemos; no tipo de socieda- lacionar com a vida e o próprio mundo que de que queremos construir ou nas crenças que dele se utilizou, e por vezes o negou, o ado- estão por trás de nossas práticas. Nesse senti- eceu e depois o descartou ou excluiu. A arte do, a arte – a que se propõe a isso, que tenha que dá vida é a arte dos vínculos que pode- essa clareza, desenvolva e assuma tal intencio- mos encontrar no mais requintado processo nalidade – por um lado, pode contribuir com criativo de tradição ocidental ou oriental, a geração de bem-estar, individual e coletivo, mas também pode estar na simplicidade da: 1 Assessor pedagógico do Sistema Municipal Saúde/Escola (SMS), em Fortaleza, Ceará. 51 “língua do cantador Todo mundo espiando para o céu repleto de sanfona branca, baião; estrelas, mas de ouvidos atentos nas histó- na boca do meu amor rias de cordel lidas por mamãe, que era uma com a força boi barbatão, das poucas letradas da comunidade naquela nos passes desse folclore época. bumba-meu-boi já tá lá.” Eram romances de príncipes e princesas, Ou nas “coisas que ainda restam histórias de aventuras como a do jovem va- por conta do milharal, queiro Zé Garcia, herói do sertão capaz de de energia rapadura, arriscar-se nas brenhas da caatinga atrás com farinha, carne seca de um boi selvagem, o temido e perseguido plantados no meu quintal: me dá vida barbatão. Essa luta incansável e destemida que dá arte.” tinha um só objetivo: demonstrar coragem e destreza e com isto encantar a donzela filha Me dá vida que dá arte ou arte que me dá do coronel. Quem prendesse o animal tinha saúde? Pois é. Minha história não tem co- como recompensa a bela moça. Mas havia meço nem fim. Por que será? Ora, porque também os mistérios, a fantasia do Pavão começou muito antes e certamente termi- Misterioso: nará muito depois de mim. É... De qualquer modo, feliz de todo aquele que tem uma his- “Eu vou contar uma história tória para contar em vida. Não é não? Por de um pavão misterioso aqui me ponho a pensar em tanta coisa. Em que levantou vôo na Grécia meio a esse carrilhão de memórias, concei- com um rapaz corajoso tos e possibilidades trazidas pelas histórias raptando uma condessa da Ângela e seus amigos, vêm à tona as ima- filha de um conde orgulhoso. gens daquelas noites de lua, no terreiro lá de casa, em Campo Verde. Será que esse conto Residia na Turquia tem a ver com a nossa conversa? Vamos ver. Um viúvo capitalista É conversando que a gente se entende. Pai de dois filhos solteiros O mais velho João Batista Bem, falávamos das noites enluaradas de Então o filho mais novo Campo Verde. E era um campão verde mes- Se chamava Evangelista.” mo. Só durante o dia. Porque à noite era colorido sob um fundo prata. Aquela gente Assim a gente toda ficava até altas horas. Eu, toda deitada nas esteiras de junco, no chão. deitadinho no colo de mamãe, adormecia 52 sob os sussurros, os comentários desencon- Lá na frente, já tarde da noite, quando a lua trados, às vezes tristes, por vezes cheios de pendia para o poente, alguém soltava uma indignação, indicando que alguém tomara frase para ver o efeito que sortia: conversa partido da história em defesa dos seus heróis. também dá fome, né menino. Aí o dono da Opiniões, discussões em defesa ou contra. O casa sentia o drama, percebia a pilhéria, sa- certo é que isso dava uma apimentada na bia que se tratava de uma jogada maliciosa leitura, tornando-a mais viva, mais natural. do vizinho, fazia tudo para não se chatear É de se admirar que depois dessa falaceira nem fazer feio, mostrava serviço. Aqui, no medonha ainda sobrasse tempo para alguns terreiro da minha casa, noutro pode ser, desvios, por onde se engendravam o fantás- mas no terreiro, no terreiro da minha casa tico e o sobrenatural. Pausa para os contos ninguém passa fome não: menino traz aí de assombração – burra-de-padre – Deus do café, pé-de-moleque, beiju-debaixo-da-fari- céu! hoje não durmo – adiantavam os menos nha, tapioca, beiju seco, ainda tem beiju de corajosos. Cruzem os dedos, façam figa que coco? Uma bacia de camarão torrado com lá vem o lobisomem! Arreda, corre pra dentro farinha picica. Traz do barbudo que rende de casa que se aproxima a comade fulosinha mais. É muita gente, só dá se for desse jeito. com suas cachimbadas e a malvadeza que O peixe seco deixa para a próxima semana... lhe é peculiar de açoitar os bichos e as pes- que lembrança saborosa. soas por nadinha desse mundo. Um simples pedaço de fumo negado pode ser um grande De repente naquela animação sem par, um motivo para se tomar dela uma boa surra de grito fazia retomar ao cordel: Valdemar e cipó-pau. Dizem que o batatão tem origem Irene! Não. Essa já está manjada demais, no menino que é enterrado pagão. Morreu outro questionava da outra esteira. João antes de se batizar, batatão na certa. Uma vez da Cruz! – um dizia do outro lado. A che- levei uma carreira dum. Bola de fogo veloz gada de Lampião no Inferno! Coco Verde e que muda de cor, mas normalmente é bem Melancia! João de Calais!... parecia não ter azulzinha ... cheiro esquisito danado, pareci- fim o repertório da farta memória coletiva. do com olho queimado. Vixe, Maria! Se cor- Assim conheci o sertão, o Japão, a Euro- rer é pior. O negócio é se agachar, rezar três pa... tinha Os Doze Pares de França. Tantos pais-nossos e três ave-marias e esperar ele ir lugares, tantas histórias. E carrego comigo embora... Conversa e mais conversa. Cada toda essa influência dessas noites mágicas, um quer demonstrar saber mais a respeito de maravilhosas que me faziam viajar, sonhar, cada lenda, de cada crendice ou superstição dormir e acordar com uma vontade imensa tidas como verdade verdadeira. Mundo mági- de viver. Talvez um dos maiores benefícios co religioso. Bonito. Inesquecível. da arte para nossa saúde seja desenvolver 53 ou até em muitos casos, devolver, o gosto integrativa e humanizadora nos terreiros da pela vida. Dessas noites de profunda e in- leitura de cordel de mamãe. A arte aí estaria tensa produção social e promoção de saúde, funcionando como lugar de encontro do ser criamos de quebra o gosto pela leitura, pela com suas múltiplas possibilidades criativo- escrita, pela arte e a cultura popular. Uma inventivas; de ensinar e aprender, refletir e profusão de saberes. Aprendi que a arte e a agir com e sobre o mundo? Talvez mais, de leitura constroem cidadania, animando o construção da sustentabilidade e longevida- sujeito a fazer, através dela, histórias singu- de do ser porque nos perpetua felizmente lares e até revolução. para além do tempo presente. Neste caso a arte atua como forte dispositivo para a Por isso, continuo assim como mamãe e Ân- elaboração de ambientes saudáveis, de ni- gela Linhares contando histórias, distribuin- nhos vitais, propondo constituir relações do poesia pelo mundo. Não mais no terreiro de alta qualidade onde ninguém perde. Ou de casa – não há mais terreiros nem campos onde o grau de perda é insignificante em tão verdes assim – mas nas ruas, nas praças, relação aos ganhos dos que se relacionam nas escolas, nas academias, nas praias, no e aprendem uns com os outros – porque sertão, nos centros urbanos e nas comuni- estão unidos por uma causa, um desejo de dades rurais. Não apenas inventando e con- aprendizagem e enriquecimento mútuo de tando minhas histórias, mas principalmen- cooperatividade muito forte e não por um te desenvolvendo cada dia a capacidade de desejo de exploração, de sugação da energia, escutar o mundo e facilitando que outras do saber do outro, ou por um sentimento de pessoas, outras crianças que, mesmo mui- usura. A arte, é claro, não resolvendo por si tas delas, sem o colo gostoso da mamãe, só os problemas individuais e coletivos do possam despertar para a vida, construir e mundo, problematiza, discute, ajudando a contar suas próprias, pequenas grandes his- despertar no ser humano reflexões que reo- tórias de vida. rientem suas relações consigo mesmo e com o outro e apontem caminhos de superação Esta é ou não é uma “experiência de conví- de suas próprias limitações de ser incomple- vio social solidário?” Estaria essa gente pro- to e inacabado, como diz Paulo Freire. Não movendo ou não saúde, a partir de uma mo- se trata de uma arte apenas engajada, mas tivação artístico-comunitária, por meio de almada, desarmada e livre, capaz de recons- uma das mais antigas artes do mundo ibe- tituir no ser dimensões ocultadas ou opri- ro-americano, a poesia popular do cordel? midas pelas lógicas desumanizantes e prag- Havia ou não uma função pedagógica, de matistas que confundem o viver bem com participação intergeracional, socializante, acúmulo de capital. A lógica viral do adoe- 54 cimento em massa que substitui o ser pelo constrói e solta pipas com maestria apoia- ter, onde uns poucos conseguem ter sem ser do em restritos espaços enfeitando, colo- com segurança; e outros, a maioria, não tem rindo a cidade; ou a mulher que pinta os nem são com dignidade. lábios, inventa belos penteados e se embeleza toda para ser admirada, todos sabem Saúde seria o reflexo, um indicador im- que seu feito, além de incluí-los no mundo portante de qualidade de como nos rela- com suas marcas identitárias, singulares, cionamos, do nosso estar/ser no/com o lhes faz muito bem. Porém, nem sempre mundo? A arte de que falamos aqui seria têm consciência de que estão produzindo a expressão e modo pelo qual percebemos, arte e saúde. Duas coisas levo comigo des- sentimos, refletimos sobre tudo isso com sa conversa: primeiro, é ao mesmo tempo leveza e graça? Nesta perspectiva, se todo belo e desafiante quando nos damos conta, ser humano é capaz de produzir arte, na tomamos consciência das coisas. O ponto mesma medida pode promover ou produ- da encruzilhada, de tomada de decisão, de zir saúde. Creio que os sujeitos que, com escolha do caminho a seguir ou do padeci- toda autonomia, são capazes de criar um mento na inércia mortal. É a partir daí que boneco, improvisar uma história e brincar assumimos ou negamos nossa missão no de mamulengo são também capazes de mundo, nossas responsabilidades histó- produzir saúde; que o artesão que conce- ricas. Segundo, uma pergunta: é possível be e produz selas e arreios bordados com criar ou produzir saúde e arte sem a auto- perfeição para andar bonito em seu cavalo nomia dos sujeitos implicados? É possível e é por sua arte reconhecido pela vizinhan- um sujeito ser saudável sem produzir ou ça; que o mesmo menino ou menina que promover sua própria saúde? 55 Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação a Distância Direção de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a Distância TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Coordenação-geral da TV Escola Érico da Silveira Coordenação Pedagógica Maria Carolina Machado Mello de Sousa Supervisão Pedagógica Rosa Helena Mendonça Acompanhamento Pedagógico Simone São Tiago Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej Fernanda Braga Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Diagramação e Editoração Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte Consultoras especialmente convidadas Regiane Rezende e Vera Lúcia de Azevedo Dantas E-mail: [email protected] Home page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro. 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