A gênese da crise A crise econômica que contamina o mundo inteiro desde agosto de 2007 teve início nos Estados Unidos. É difícil indicar precisamente a data de início das práticas que levaram a essa situação. Há mais de quatro anos já se falava em uma “bolha imobiliária” naquele país. Mas a irresponsabilidade ultrapassou o segmento imobiliário e a fórmula perversa contou com a utilização de instrumentos do mercado de capitais que multiplicaram o tamanho do estrago. Mas como foi criada essa “bolha imobiliária”? A partir de um período de juros reais muito baixos e de expansão da liquidez monetária, alguns agentes perceberam a possibilidade de oferecer crédito imobiliário sem se preocuparem com a verificação da capacidade de pagamento dos devedores. A valorização dos imóveis seria maior que o crescimento do saldo devedor, mesmo em caso de inadimplência. Bastaria a revenda do imóvel alguns anos depois do financiamento original e o montante obtido seria suficiente para quitar a dívida, os juros e ainda sobrar algum dinheiro. Perfeito, não? Quase. A nova pergunta é: quem seria o comprador do imóvel valorizado? Alguém contemplado com um novo empréstimo, mas não necessariamente capaz de pagá-lo, contando novamente com a continuidade da valorização do imóvel. E por que os imóveis continuaram se valorizando acima da inflação e acima dos juros? Porque o crédito fácil, mas principalmente irresponsável, estava à disposição para a repetição da operação. Então as pessoas não se preocuparam em saber se estavam comprando algo caro, mas contaram apenas que poderiam vender por um preço ainda mais alto. E em alguns casos, os próprios fornecedores do crédito foram os intermediários da revenda e concederam financiamento para o próximo proprietário devedor. E de onde vinha o dinheiro para financiar essa “festa” (parafraseando Nancy Pelosi – presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos)? Aí entraram os instrumentos do mercado de capitais, inicialmente na forma de adiantamentos dos recebíveis. Na linguagem financeira, significa dizer que os movimentos passaram para o mercado de securitização. Investidores antecipavam os recursos para os agentes financiadores do crédito imobiliário, e receberiam uma remuneração por esse adiantamento. Então passaram a ser formatados produtos financeiros lastreados nas dívidas imobiliárias para captação de mais recursos. E não satisfeitos com essa remuneração, foram criados produtos para antecipar o pagamento dos produtos lastreados nas dívidas, que obviamente, também precisavam receber alguma remuneração. E na seqüência foram criados fundos para captar recursos para comprar cotas dos fundos que eram proprietários das dívidas originais. E mais produtos para antecipar os recursos para outros produtos, cada vez mais complexos, entrando inclusive na seara dos derivativos, e cada vez mais distantes do lastro original. Qual era mesmo o lastro? Ah, sim, os créditos imobiliários daquelas casas que sempre se valorizariam. E por que os investidores compraram esses produtos? Provavelmente devido à expectativa de um ganho fácil, e com uma importante contribuição de agências classificadoras de risco, as chamadas agências de rating, que concederam notas de até AAA (baixíssima probabilidade de não ocorrência dos pagamentos) para esses sofisticados produtos. E por que fizeram isso? Talvez porque os produtos tinham origem no mercado Norte Americano. Ou porque os créditos eram pulverizados e as margens suficientes para serem pagos mesmo que alguns devedores não honrassem seus pagamentos. Ou porque confiaram que as financeiras sempre conseguiriam revender e/ou refinanciar os imóveis por um preço maior e sempre conseguiriam captar recursos para esses novos empréstimos (contando, inclusive, com as notas das próprias agências de rating). Esperamos que um dia nos expliquem. Com a palavra, as agências de rating. Antes de seguirmos nossa linha de raciocínio é necessária uma importante e enfática ressalva: o crédito imobiliário, a antecipação de recebíveis e os instrumentos de derivativos não são “agentes do mal”. Desde que devidamente regulados, lastreados no valor real dos ativos, em concessões de crédito criteriosas e com a devida transparência sobre seu grau de risco, são veículos de canalização dos investimentos para o setor produtivo e contribuem para o desenvolvimento e crescimento da economia. Voltando à história da crise, quem foram os investidores que compraram aqueles produtos? E porque o estouro da bolha contaminou em proporções tão alarmantes o sistema financeiro internacional? A resposta à primeira pergunta será também a resposta à segunda. Retornemos, então, a agosto de 2007. Quando a bolha finalmente estourou todos se perguntavam qual a extensão dos seus desdobramentos e quem seriam os atingidos. Ninguém sabia, e daí o início de um período de tamanha desconfiança e aversão ao risco. E não era possível saber (e hoje ainda é difícil) devido à forte desregulamentação do mercado de capitais Norte Americano. Inicialmente ficaram evidenciados os agentes financeiros do mercado imobiliário dos Estados Unidos e vários fundos de investimentos com forte captação de clientes nos Estados Unidos e Europa. Se esses clientes fossem meros investidores, seria “apenas” uma questão de descobrir o tamanho das perdas e quanto essas perdas poderiam afetar novas rodadas de investimentos que ajudaram a alimentar (juntamente com vários outros fatores) o recente ciclo de crescimento econômico mundial. A pior notícia só pôde ser percebida muitos meses depois. Vários bancos de investimentos e bancos comerciais haviam adquirido para suas próprias tesourarias as cotas dos tais fundos de investimentos. A divulgação de suas perdas gerou uma corrida de investidores e correntistas. E como sabemos, um dos principais pilares do sistema financeiro é a confiança, pois se todos os credores, investidores e correntistas resolverem sacar seus recursos ao mesmo tempo, mesmo em momentos de normalidade dos mercados e das instituições, não haverá disponibilidade financeira para tal. Afinal, o papel dos bancos é ampliar a base monetária para financiar o desenvolvimento. Com a notícia de que cederam à tentação dos ganhos fáceis e desviaram-se dos seus objetivos, instalou-se a crise mundial. Demósthenes Marques Diretor de Investimentos da FUNCEF 06 de outubro de 2008