Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Uma volta pela casa de mil salas paralelas: colagem e surrealismo em Poliedro, de Murilo Mendes Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa∗ RESUMO: Baseada na produtividade quase infinita da prática do deslocamento, a colagem surrealista é a estética que privilegia como motor de sua prática os “efeitos de estranhamento sistemático”, próprio da surrealidade, conforme André Breton. Este trabalho tem como objetivo ler o livro Poliedro (1966), de Murilo Mendes, sob a ótica da prática da colagem e de sua recepção crítica do movimento surrealista. Palavras-Chave: Colagem, Murilo Mendes, surrealismo ABSTRACT: Based on the almost infinite productivity of the practice of displacement, the surrealistic collage is the aesthetic that privileges the “systematic defamiliarization effect” which characterizes the surreality, according to André Breton, as a motor of its practice. This work aims to read the book Poliedro (1966), by Murilo Mendes, in the optic of the practice of collage and its critical reception of the surrealistic movement. Key-Words: Collage, Murilo Mendes, surrealism O temporal ao mesmo tempo mostra oculta a realidade. É bem deste mundo mas desvendanos um ângulo outro. Quem é no temporal, quem está? O verbo desarticula-se, o som. Inquietante pensar que o invisível adverte. • Nenhum Dubuffet consegue pintar a matéria do temporal. Serão fluidas todas as coisas? Talvez todas as coisas sejam através (MENDES, 1994: p.1016). Escolho minha porta de entrada nesta “casa de mil salas paralelas” que é Poliedro (1966), de Murilo Mendes. Dentre a oferta numerosa, tomo a que nos entrega seu segredo, “ser através”. Desautomatizando a percepção da nossa lente, os códigos culturais que condicionam nosso olhar para o mundo, “ser através” é a chave que nos abre a porta desta casa, é a oportunidade do olhar que ensaia um outro ângulo de aproximação. Mestranda em Estudos Literários – Literaturas Hispânicas pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista do CNPq. ∗ Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Na heterogeneidade dos fragmentos que manipula, Murilo nos desvenda outras perspectivas; desarticula, seguindo o conselho de Rimbaud. Poliedro é uma colagem de textos divididos em setores: o “Setor Microzoo”, um zoológico insólito, o “Setor Microlições das Coisas”, dedicado a objetos que o olho do poeta corta da realidade e carrega de significados, o “Setor A Palavra Circular”, que trata de temas diversos, entre cartas e textos críticos, humorísticos e violentos. Fecha (?) o livro o “Setor Texto Délfico”, série de enigmáticos aforismas de tom oracular. Estas divisões obedecem a uma certa ordem construtiva, que divide e dá uma configuração ao texto. Entretanto, a organização empregada está longe de ser de cunho lógico; se trata, antes, de uma ordem fragmentária e insólita cujo objetivo consistiria, através do “desregramento de todos os sentidos”, no desenvolvimento das faculdades visionárias. Na verdade, cada texto é uma face desta figura poliédrica cujo vislumbre só pode ser dado na entrevisão dos espaços de corte, na tangência gerada por este mesmo espaço, marcado graficamente pelo ponto preto tão presente como forma de separação e ponto de contato. “Ser através” serve para nossa leitura também como os pontos pretos que marcam o texto, lugar de contato e separação entre duas polaridades que o atravessam: a visibilidade e a invisibilidade. É também possibilidade de acesso e passagem entre as fronteiras do real e do irreal, aquele ponto em que se instala o “não-reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade” de que Murilo nos fala como um dos fatores pelos que se sente compelido ao trabalho literário. Será este o caminho de exploração do cotidiano. De entrada, em “Setor Microzoo” e “Setor Microlições das Coisas”, o olhar logo se diverte na observação dos seres, na inquietação pelas coisas. Neste primeiro setor, assistimos ao desfile de animais murilianos que despontam sempre em seu poder de imagem, evocam experiências Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 antigas, revelam, reúnem-se para “através” descortinar faces da realidade até então ocultas. A escolha dos animais aparece segundo um critério afetivo, a catalogação é a daqueles animais que estiveram presentes na vida de Murilo, à maneira de um bestiário pessoal. Segundo Serra, O objectivo fundamental do bestiário era expor o mundo natural, mais do que documentá-lo ou explicar o seu funcionamento. Outro dos objectivos era a instrução do homem. Os seus autores sabiam que tudo na Criação tinha uma função e o seu Criador tinha uma intenção, que consistia na edificação do homem pecador. Através da natureza e hábitos dos animais, o homem poderia ver a humanidade reflectida e aprender o caminho para a redenção. Cada criatura assume assim uma mensagem de redenção. Procurava-se também atribuir a cada animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Isto não era simples, pois um ser poderia representar o bem e o mal simultaneamente; deste modo, os escritos optavam por atribuir uma dualidade a alguns animais. (...) Mais tarde, com o desenvolvimento científico, estes tratados vão perder a sua importância e passar-se-á a dar um maior relevo à observação e à experiência. Contudo, os bestiários tiveram uma grande influência na Literatura (nomeadamente através das fábulas e das alegorias), na Arte (pelo seu valor pictórico) e até na Biologia (na enumeração e estudo das espécies) (SERRA, 2009: p.1). Recuperando esta noção didática dos bestiários, em Poliedro os animais funcionam simbolicamente como portadores de alguma lição: “A preguiça foi encarregada pelos deuses didáticos de, não digo destruir, mas corrigir a noção de tempo que eu possuía do infinito” (MENDES, 1994: p.991). Entretanto, se o bestiário é a catalogação de seres reais e imaginários, o inventário muriliano apresenta-nos retratos de “seres reais” transfigurados pelo olhar do autor, em que está em jogo o próprio estatuto do real. A atitude do visionário é aquela de perceber a relatividade e reversibilidade destas categorias, como grande mote que percorre todo o livro, o visível é também o invisível. A intervenção paródica da classificação científica que Murilo insere em seu discurso sobre a lição dada pelo bicho-preguiça acusa a inversão de valores que o escritor estabelece. O homem da racionalidade-para-os-fins, detentor dos conhecimentos Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 científicos, se aproxima ao animal como objeto de estudo com um esforço objetivo: conhecê-lo através do exame, da categorização. Murilo inverte os fatores desta relação, o homem está disponível ao conhecimento, é ele quem aprende com o animal, é o animal quem o ensina: Muito cedo descobri, naturalmente, o bicho-preguiça, maravilhando-me com seus ademanes. Foi mais tarde, em plena juventude, que revisitando a preguiça no Jardim Zoológico do Rio tive a revelação de sua importância: deu-me de repente, mal sabe ela, a idéia do nosso limite no tempo e no espaço. (...) O conceito de finito, vivido praticamente pela preguiça, mamífero xenartro da família dos Bradipodídeos, o conceito de finito, digo, aplicado por exemplo à literatura implica uma “situação” da palavra que funciona para designar determinada coisa. Idéia, portanto, de limite, não menos fecunda do que a romântica, de infinito (MENDES, 1994: p.991). Brincando com tais descrições científicas, Murilo não só não opta pela descrição dos animais no decorrer do seu texto, senão que as usa parodicamente, como um instrumento de crítica ao saber enciclopédico. O mesmo se passa com a observação das coisas: é ilustrativa, neste sentido, a lição dada ao poeta pelo queijo. Um dos ícones mais fortes da “mineirilidade”, o queijo aparece em Poliedro como a primeira ideia de eternidade que recebe Murilo ainda em sua terra natal: “A eternidade nasceu pois para mim redonda e branca, vinda da forma do queijo de Minas que despontara na mesa ainda fresco (...)” (MENDES, 1994: p.1009). A cotidianeidade da brancura e forma do queijo aparece aqui explorada em uma relação direta com o conceito abstrato de eternidade. Neste contexto, subtrai-se a funcionalidade das coisas, própria do discurso científico, para projetá-las num espaço antifuncional, pessoal e revelador. Na contramão da classificação enciclopédica, Murilo joga com o discurso técnico-científico, esvaziando de sentido as descrições latinas usadas nas classificações, aproveitando delas apenas sua matéria sonora: “Segundo registro civil a lagosta é um crustáceo macruro (de Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 cauda longa), antenas cilíndricas, originário da família dos Palinurídeos, portanto, piloto, nauta, guia” (MENDES, 1994: p.993), “A baleia é um cetáceo da dinastia dos Balenídeos de forma quadradoredonda, cor de burro quando foge” (MENDES, 1994: p.996). Se Murilo ri da classificação cientificamente organizada, é sobre seu avesso que compõe uma outra ordem, na qual cada fragmento desponta uma face do que trata. Através dos processos de colagem, o poeta superpõe camadas de significado que só se multiplicam: “O infinito peixe. Alfa e ômega dos bichos. O peixe finito. O peixe fluvial. O peixe marítimo. O peixe redondo. O peixe estilete. O peixe oblongo. O peixe lírico. O peixe dramático. O peixe épico, assaltador de homens e navios” (MENDES, 1994: p.987). Numa escrita sempre justaposta, acumulativa, as imagens dos bichos se formam na colagem de suas múltiplas facetas: “O tigre é belo. Inadiável. Sibilino. Calmo. Intransferível.” (MENDES, 1994: p.981), “A baleia: auto-suficiente, melvilleana, inexpugnável” (MENDES, 1994: p.983). O texto se desdobra como “a casa de mil salas paralelas” onde o poeta diz estar: “No meio de qualquer destas salas encontrareis uma mulher com um livro na mão: todas se preparam a contar-me uma história que se desdobra, se prolonga sempre: la suite au prochain numéro” (MENDES, 1994: p.984). Se a enciclopédia ambiciona o projeto de cobrir a totalidade dos saberes baseada na crença de que o mundo é passível de conhecimento por meio do escrutínio e da categorização, a colagem, parodiando esta prática, aponta para a direção contrária, a do desdobramento infinito. Tal como “Setor Microzoo” e “Setor Microlições das Coisas”, o “Setor A Palavra Circular” também é um álbum de instantes, um olhar que parece dedicar-se à fixação do Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 efêmero atravessada por uma consciência trágica, o mundo da bomba atômica, da guerra. Vasto é o repertório de objetos que encenam a violência e engendram um gesto de revolta que imprime força subversiva ao texto. Murilo, como menino experimental, “Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a torquês. Dança com eles. Conversa-os” (MENDES, 1994: p.1013), apontando no sentido de uma poética destrutiva. Tais artefatos disseminam uma rede de significação ácida, irônica, como podemos ver no texto “Estilhaços”: Detesto estilhaços de vidro. Quando irrompem de qualquer parte, atacam-me a pele, a vista, os ouvidos, a planificação do texto; sournois. Insistem, o que é grave. São merdinhas de diamante a gritar. • Eu ofereceria a uma nazista (mas felizmente não conheço nenhuma) um colar de estilhaços de vidro giratórios, movidos por um dispositivo mecânico especial, o que lhe permitiria roer-lhe o pescoço dia e noite. O serrote, pai de Artaud. (MENDES, 1994: p.996) A confecção imaginária de um colar de estilhaços giratórios revela como o recurso da tortura, da crueldade, funciona como uma negação incisiva, um espaço de rejeição à racionalidade absoluta que, em uma de suas mais catastróficas expressões, forjou as potentes estruturas de opressão e exploração política e econômica da ideologia nazista. Em Poliedro a figura de Artaud aparece mais de uma vez relacionada ao serrote. No texto que dedica ao instrumento, Murilo repete esta relação: “Acho angustiante a música dentada do serrote rangendo, pai de Antonin Artaud, cuja mãe é uma das Górgones” (MENDES, 1994: p.995). A intensidade extrema da figura de Artaud se liga à violência de uma busca dilacerada de vivência da utopia surrealista enquanto “máquina de revirar o espírito” (ARAGON, 1996: p. 92). É nesta reviravolta, possível através da negação violenta, que reside a força rebelde da crueldade de Artaud, Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 mais um elemento que faz coro e expande ainda mais a rede de símbolos relacionados à contundente reação aos valores absolutos. Nesta constelação maligna, também assoma a figura da górgone, criatura monstruosa da mitologia grega que tinha o poder de transformar em pedra quem a olhasse. Outra figura mitológica relacionada ao aspecto da violência que percorre todo o texto é Átropos, criatura responsável por cortar o fio da vida. Entre os atributos de Átropos aparece a tesoura tão valorizada por Murilo. Se o corte de Átropos pode relacionar-se com o fim da vida, ao mesmo tempo, se pensamos no contexto da colagem e da escritura muriliana, seu afiado corte serve para “descamar” a realidade, mostrar sua multiplicidade: “A tigresa eternidade avança para mim sob a forma de uma tesoura: Átropos” (MENDES, 1994: p.1033). A eternidade em forma de tesoura pode apontar a eterna multiplicação a que procede este instrumento. É somente pela tesoura que é possível o desdobramento do mundo: desta forma, a tesoura estanca o fechamento do texto, passível de multiplicação ad infinitum. O aspecto cruel da vida engendra um tipo de humor particular que se alimenta de uma certa tragicidade do mundo, de seu aspecto degradante. Neste sentido, Murilo se aproxima da linhagem “maldita” do humor noir surrealista. Tomada a lição jarryana, os surrealistas usam do humor para ferir a representação que nós fazemos do mundo, oferecendo uma imagem inteiramente subversiva do mesmo (GENDRON, 1992: p.105). O humor intimamente ligado à crueldade também aponta para uma posição de revolta, uma não aceitação da realidade dada; assim, o qualificativo negro vem dessa “predileção do humor por brincar com a imagem da morte, pois então é elevada ao máximo de sua potência de recusa do real” (GENDRON, 1992: p.106). Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Ainda em uma perspectiva surrealista, é importante lembrar o valor da violência como ato transgressor, marcado pela célebre passagem do “Segundo Manifesto Surrealista”: “Revolta absoluta, a insubmissão total, a sabotagem em regra, e que só da violência se espera alguma coisa. O mais simples ato surrealista consiste em ir para a rua, empunhando revólveres, e atirar ao acaso, até não poder mais, na multidão” (BRETON, 2004: p.28). Em Murilo, da mesma forma, a violência recupera o sentido de transgressão contra o texto, a literatura, as convenções sociais e contra todo sentido imposto. O tema da liberdade está intimamente relacionado a esta tendência anárquica: (...) diria que o meu maior instinto é o da liberdade, que procuro aplicar a mim e a todos. Fui, felizmente, enfant-terrible. Detestando o primeiro da classe. Indisciplinado, irregular, insatisfeito. Não aceitava observações, que me pareciam um limite traçado à minha liberdade (MENDES, 1994: p.1020). Neste contexto, o menino experimental funciona no texto como símbolo deste sentimento de rebeldia, é a força concentrada de contestação que se lança contra os discursos estabelecidos. O Menino volta-se contra a Igreja: “O menino ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros” (MENDES, 1994: p.1013); contra a Filosofia: “O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado” (MENDES, 1994: p.1014); contra a Arte “O menino experimental, escondendo os pincéis do pintor e trancando-o no vaso sanitário, obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse” (MENDES, 1994: p.1013); e, enfim, contra a História: “O menino experimental atira uma granada em forma de falo na mãe de Cristóvão Colombo, sepultando as Américas” (MENDES, 1994: p.1014). No plano literário, Murilo é o menino experimental que “devora o livro e soletra o serrote”, que usa de seus instrumentos torcitários para agredir a literatura em seus Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 alicerces firmemente cimentados: o texto enquanto textura contínua, o autor enquanto criador individual, o livro enquanto totalidade, os gêneros enquanto unidades estanques e, por fim, a própria literatura como instância separada da vida. Por meio das incisões, opera-se uma espacialização do texto, preocupada em desestabilizar o valor de fluidez atribuído ao Livro. Neste sentido, comenta Barthes, se tudo que se passa na superfície da página desperta uma suscetibilidade tão viva, é evidentemente porque essa superfície é depositária de um valor essencial, que é o contínuo do discurso literário. (...) O Livro (tradicional) é um objeto que encadeia, desenvolve, desliza e escorre, em suma, tem o mais profundo horror do vazio (BARTHES, 2008: p.113). O corte que Murilo emprega é dado pelo espaço vazio ou o branco da página que funciona como um elemento de tensão em relação à escrita, um contrapeso, um silêncio, um nada que polariza a existência do discurso. É importante ressaltar que os espaços que se dão entre os fragmentos deixam a nu o próprio processo de composição, o espaço intersticial, o corte que foi operado entre cada realidade textualizada. A essa operação Murilo dedica o texto “Tesoura” no qual relaciona estreitamente o corte e a abertura da realidade, “Quem ousaria dizer que a tesoura só serve para cortar? Ela abre diante de nós - consciente - em forma plástica, reduzida, o grande X do universo” (MENDES, 1994: p.1010). Na colagem a operação do corte não atua apenas espacialmente, o tempo também é seu objeto. A superposição dos tempos só é possível mediante um corte na leitura linear que tradicionalmente se faz. Em “Chaves do Tempo”, Murilo “cola” estes diferentes tempos: Um aloprado fotorrepórter, americano ou não, dispondo somente de meia hora concedida pelo seu jornal, cai de helicóptero na cidade de Nazaré para documentar-se sobre a sociologia da sagrada família: Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Hélas! Nosso Senhor acha-se no deserto, jejuando e fazendo penitência contra a guerra, os campos de concentração, os bombardeios; a Virgem, seguindo lições de enfermagem na Escola das Dominicanas; José, ensinando o ofício de carpinteiro a jovens de um quibuz, numa aldeia distante de Nazaré um tiro de fuzil (MENDES, 1994: p.1026). Através do jogo das justaposições, da idéia de simultaneidade presente na imagem do texto como “casa de mil salas paralelas”, Murilo, segundo Raimundo Carvalho, contradiz Lessing que propõe a clássica divisão entre arte espacial (a pintura) e arte temporal (a literatura) na medida em que “incorporou a espacialidade à dimensão temporal, à sucessividade de seu discurso” (CARVALHO, 1994: p.66). No que se refere à composição, uma das características da colagem é seu caráter reciclado, a confecção do texto que se constrói na base de um outro texto. A exibição deste caráter aponta sua auto-reflexibilidade, a crítica aos meios de criação e à noção de uma autoria individual. Como colagem Poliedro também é um mosaico de citações, selecionados pelo olhar do autor, que assume sua prática de escrita na constante relação com outros textos. As citações preparam em nosso imaginário uma constelação significativa, uma rede simbólica que cresce e expande a malha textual. Neste sentido, a relação se amplia a outras artes, como as artes plásticas e a música, como ainda veremos nos casos dos textos de crítica de arte. As citações funcionam como elementos alheios que são inseridos no texto, às vezes mimetizados pela incorporação sem vestígio que faz da citação um furto, às vezes explicitamente retirados de seu contexto e colados em outro ou, ainda, como “falsas citações”, quando humoristicamente Murilo atribui a terceiros seu próprio discurso. Em várias ocasiões, Murilo deixa clara sua intervenção no texto “original” e sua subversão como parte do próprio processo criador num desconcerto constante dos critérios de propriedade e autoria. Um exemplo ilustrativo está em “A tartaruga” em que Murilo re- Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 contextualiza ludicamente a citação livre de Walter Benjamin: “De resto no século XIX, conforme nos revela Walter Benjamin muitos parisienses, entre os quais provavelmente Baudelaire, tinham o hábito de flanar em certas ruas e passagens da cidade arrastando uma tartaruga pelo cordel” (MENDES, 1994: p.1034). Murilo impõe à sua citação a marca de sua escrita, sem deixar claro, ainda que possa ser facilmente inferido no exemplo em questão, onde começa o texto do outro e onde termina o seu. A agressão à noção de autoria aqui é dupla, não só o poeta assume o texto do outro como seu, como faz com que o texto do outro sofra intervenção. As referências constantes a outras personalidades e artistas também funcionam como núcleos de significação dentro do texto que se constrói mediante a incorporação do outro. Murilo, em “Microdefinição do Autor”, dedica uma seção inteira ao reconhecimento destas figuras: Tenho raiva de Aristóteles, ando à roda com Platão. Sou reconhecido a Jó; aos quatro evangelistas; a São Paulo, a Heráclito de Éfeso, Lao-Tse, Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Camões, Pascal, Quevedo, Lichtenberg, Chamfort, Voltaire, Novalis, Leopardi, Stendhal, Dostoievski, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche, Ramakrishna, Proust, Kafka, Klebnicov, André Breton; a Ismael Nery, Machado de Assis, Mário de Andrade, Raul Bopp; Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto (...) (MENDES, 1994: p. 47). A respeito deste procedimento, David Arrigucci Jr., em sua análise do “Poema só para Jaime Ovalle”, comenta: “[as figuras] perdem seu caráter estritamente factual e se transfiguram (...) por meio da construção literária, numa parte integrante e significativa do todo formado que é o poema” (Apud: FRANCO, 2002: p.27). Junto às citações, este recurso infiltra o outro no discurso, criando um relevo no texto que, somado à descontinuidade dada pelo corte, dão o efeito textual de uma colcha de retalhos. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Na dinâmica dupla da ruptura e do contato deste incongruente terreno se forma um olhar que se atém ao desnível, aquilo que não se combina na semelhança, mas convive em um mesmo lugar. A leitura parece saltar, o olhar adquire a sensibilidade da exploração “do encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não pertinente” ou, para usar um termo mais curto, “encontro de elementos díspares”, a estética da colagem é aquela “dos efeitos de estranhamento sistemático” segundo a tese de André Breton: “A surrealidade será aliás função de nossa vontade de estranhamento em relação a tudo” (BRETON, 2001: p.253). O estranhamento sistemático aguça o olho, o desarticula, faz com que ele seja “selvagem” no sentido de ser “solicitado a abandonar o maior número possível de códigos, a fim de empregar sua sensibilidade sem reserva” (GENDRON, 1992: p.93). Visibilidade e Invisibilidade aparecem como binômios em constante articulação, uma força que atravessa todo o texto. O concreto da microlição das coisas, o olhar à mesa, à gravata, ao lençol, ao copo, ao tomate, à laranja, aponta uma materialidade da visualidade em busca do “invisível que se esconde atrás do visível”, idéia que se cristaliza em um aforisma do “Texto Délfico”. Assim como as colagens de Ernst, em que um dos procedimentos consiste em recuperar elementos da vida cotidiana, textos de jornais, revistas ou propagandas e colocá-los na tela, Murilo lança sua atenção aos objetos da vida vulgar. Se na colagem plástica o artista desvia tais elementos de seus contextos tradicionais para submetê-los a novos, colando no espaço da tela materiais considerados fora do terreno da arte, o escritor toma aqui estes elementos cotidianos também no sentido de mostrá-los através uma outra significação. Pelo deslocamento se esvazia o sentido utilitário das coisas e, em seu lugar, abre-se um outro, o poético. O Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 olho recorta da realidade cotidiana o objeto, já não mais em sua função utilitária, mas num nível de percepção que o excede e transborda. É somente através da operação visual que objetos e lugares ganham sentido poético, transformando-se em signos. Esta é a ótica surrealista a que se refere o crítico José Miguel Wisnik ao retomar Walter Benjamin: “Falando do Surrealismo, e identificando nele um tipo de olhar que sonda o impenetrável no cotidiano, e o cotidiano no impenetrável, Benjamin localizou a pedra de toque do visionarismo moderno” (Apud: NOVAES, 1988: p.287). A lição deste visionarismo, Murilo atribui a Ernst em seu texto “Max Ernst”, em que o poeta afirma: Confesso-lhe o quanto lhe devo, o coup de foudre que foi para o desenvolvimento de minha poesia a descoberta do seu prodigioso livro de fotomontagens La femme 100 têtes, só comparável, no plano literário, à do texto de Les illuminations. De resto, creio que Max Ernst descende de Rimbaud pela criação de uma atmosfera mágica, o confronto de elementos díspares, a violência do corte do poema ou do quadro, a paixão do enigma (aí foi ajudado pela obra do primeiro De Chirico). É um vidente. Perguntaram-lhe um dia qual sua ocupação preferida. Resposta: desde menino olhar (MENDES, 1994: p.1248). Encontramos na citação características que Murilo atribui à Ernst e que são facilmente identificadas em Poliedro. Aqui Murilo sintetiza as linhas de força de sua escritura e expõe sua vinculação à colagem tanto pela menção da colagem ernstiana La femme 100 têtes como pela referência à Les illuminations, de Rimbaud. O uso da violência do corte, do confronto do díspar, da criação da atmosfera mágica e da paixão pelo enigma são os alicerces desta prática que abarca o intuito da construção múltipla, poliédrica da realidade. Desta forma, vemos que o estranhamento funciona aqui como um dispositivo que coloca em alerta nossa percepção para o mundo e tenta, deste modo, desautomatizar nosso olhar. O impacto da colagem reside exatamente em seu poder de deslocamento e de estranhamento para a construção de um outro espaço poético, arredio à lógica racional e ancorado no enigma. Revista Icarahy Edição n.04 / outubro de 2010 Recebido em setembro de 2010 Aprovado em outubro de 2010 Referências Bibliográficas: ARAGON, Louis. Escritos sobre arte moderno. Madrid: Editorial Síntesis, 2003. ARBEX, Márcia. ARBEX, Márcia. Le procédé du collage dans l’œuvre de Max Ernst. Caligrama. Belo Horizonte, Departamento de Letras Românicas/FALE/UFMG, v.3, 1998. ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Arquitetura da memória. In: O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São Paulo : Duas Cidades: Editora 34, 2000. BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2008. BENJAMIN, Walter. 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