O MANIFESTO
DA ÁGUA
Pelo Comitê Internacional
para o Contrato sobre a Água
1998
A ÁGUA
É IGUAL
PARA TODOS
FICHEIRO
2005
Il Manifesto dell’acqua
O DIREITO À VIDA
Vimos de África, da América Latina, da América do Norte,
da Ásia e da Europa. Em 1998 reunimo-nos com nenhuma outra
legitimidade ou representatividade que a de sermos cidadãos
preocupados com o facto de que, dos 5 biliões e 800 milhões de
pessoas que vivem no nosso planeta, 1 bilião e 400 milhões não terem
acesso a água potável. Isto é intolerável. O grande risco é o de que em
2020, quando a população mundial for de aproximadamente 8 biliões
de seres humanos, o número de pessoas sem acesso à água potável
ascenda a mais de 3 biliões. Isto é inaceitável. Podemos e devemos
impedir que o inaceitável se torne possível.
Como?
É nossa convicção de que é possível atingir este objectivo se os
princípios e regras aqui descritos forem por nós seguidos.
A ÁGUA “FONTE DE VIDA” É UM BEM COMUM
QUE PERTENCE A TODOS OS HABITANTES DA TERRA
Enquanto “fonte de vida” insubstituível do ecossistema, a
água é um bem vital que pertence a todos os habitantes da Terra,
como comunidade. A nenhum deles, individualmente ou em grupo,
deveria ser concedido o direito de a tomar como sua propriedade
privada. A água é património da humanidade. A saúde individual e
colectiva dependem dela. A agricultura, a indústria e a vida
doméstica estão-lhe intimamente ligadas. O seu carácter
“insubstituível” implica que o conjunto de uma comunidade humana e cada um dos seus membros - tenha direito ao acesso à água, em
particular à água potável, em quantidade e qualidade necessárias e
indispensáveis à vida e à actividade económica. Não há produção de
riqueza sem acesso à água. A água não é comparável a nenhum outro
recurso: não pode ser objecto de troca comercial de tipo lucrativo.
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A ÁGUA É IGUAL PARA TODOS FICHEIRO 2005
O DIREITO À ÁGUA É UM DIREITO INALIENÁVEL
INDIVIDUAL E COLECTIVO
A água pertence bem mais à economia dos bens comuns e à
partilha da riqueza, do que à economia de acumulação privada e
individual e da predação da riqueza do outro. Enquanto a água foi
frequentes vezes, no passado, fonte maior de desigualdades sociais, as
nossas civilizações de hoje reconhecem que o acesso à água é um
direito fundamental, inalienável, individual e colectivo. O direito à
água faz parte da ética de base de uma “boa” sociedade humana e de
uma “boa” economia. É dever da sociedade, no seu conjunto e aos
diversos níveis de organização da sociedade, segundo o duplo
principio de co-responsabilidade e de subsidiariedade, garantir o
direito de acesso à água para todos e para a comunidade humana,
sem qualquer discriminação de raça, sexo, religião, rendimento ou
classe social.
A ÁGUA DEVE CONTRIBUIR PARA O REFORÇO
DA SOLIDARIEDADE ENTRE POVOS, COMUNIDADES,
PAÍSES, SEXOS E GERAÇÕES
Os recursos provenientes da água encontram-se
desigualmente distribuídos pelo planeta. Tal como os rendimentos,
que também estão desigualmente repartidos pelos seres humanos.
Mas isto não implica que deva haver também uma desigualdade no
acesso à água entre pessoas, comunidades e regiões. Além disso, a
desigualdade na distribuição deste recurso e dos rendimentos não
significa que os povos ricos em água e as pessoas ricas em
rendimento possam fazer dela a utilização que entendam, ou seja
vender (ou comprar) ao estrangeiro para disso tirarem o máximo
lucro (ou prazer). É tempo da água deixar de ser, em numerosas
regiões do Mundo, fonte de grandes desigualdades entre homens e
mulheres, estas últimas suportando o fardo das actividades
económicas ligadas à água. Há, ainda hoje, demasiadas guerras
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Il Manifesto dell’acqua
entre Estados vizinhos por causa da água, uma vez que os Estados
que se encontram em melhor posição geo-económica, utilizam a
água como um instrumento ao serviço dos seus interesses
estratégicos de potência “hegemónica” local. É possível subtrair a
água às lógicas do Estado-potência para a tornar res publica sob
tutela do Estado-cidadão.
O ACESSO À ÁGUA PASSA NECESSARIAMENTE PELA
PARCERIA. É TEMPO DE ULTRAPASSAR AS LÓGICAS DOS
“SENHORES DA GUERRA” E DOS CONFLITOS ECONÓMICOS
PELA HEGEMONIA E CONQUISTA DOS MERCADOS
A cidadania e a democracia baseiam-se na cooperação e no
respeito mútuo. “Parceiros para a água” é o princípio inspirador de
todos os dispositivos (como, por exemplo, os “contratos de rio”), que
permitiram, nestes últimos tempos, ultrapassar eficazmente os
conflitos que, em certas regiões do Mundo, envenenaram as relações
entre comunidades ribeirinhas ou que partilham a mesma bacia
hidrográfica. Defendemos uma parceria pública/privada ao nível local,
nacional, mundial, fundada no respeito pelas diversidades, onde as
múltiplas lógicas e culturas em presença podem equitativamente
contribuir à gestão integrada, solidária e sustentável da água, no
interesse geral. Uma parceria submetida, como sucede actualmente,
às lógicas e interesses dos actores privados em competição renhida
pela conquista do mercado não poderia senão prejudicar os
objectivos do acesso à água para todos e da gestão integrada,
sustentável e solidária dos recursos de água.
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A ÁGUA É IGUAL PARA TODOS FICHEIRO 2005
PENSAMOS QUE A RESPONSABILIDADE FINANCEIRA
DA ÁGUA DEVE SER SIMULTANEAMENTE COLECTIVA
E INDIVIDUAL SEGUNDO OS PRINCÍPIOS
DA RESPONSABILIDADE E DA UTILIDADE
Assegurar o acesso à água para satisfação das necessidades
vitais elementares e fundamentais de cada pessoa e comunidade
humana é uma obrigação da sociedade no seu conjunto. É a
sociedade que deve assumir colectivamente a cobertura dos custos
relativos à recolha, produção, armazenamento, distribuição,
utilização, conservação e reciclagem da água, de modo a fornecer e a
garantir o acesso à água na quantidade e qualidade consideradas
como sendo o mínimo vital e necessário indispensável. Os custos
(incluindo as externalidades negativas que não são tidas em conta
pelos preços do mercado) constituem custos sociais colectivos que
devem ser suportados pela comunidade no seu conjunto. Isto tornase ainda mais evidente e significativo à escala de um país, de um
continente e da sociedade mundial. O seu financiamento deve ser
assegurado por via da repartição colectiva.
Os mecanismos de fixação de tarifas individuais, segundo um sistema
de progressividade, devem intervir a partir de uma utilização da água
que ultrapasse o mínimo vital necessário e indispensável. Para além
do mínimo vital, é correcto que os preços sejam estabelecidos em
função da quantidade utilizada. Com um limite: todo e qualquer
abuso e excesso na utilização devem ser considerados como ilegais.
Não é porque uma pessoa tem capacidade financeira que lhe permite
pagar preços elevados que tem o direito de utilizar a água em
quantidade ilimitada e de forma abusiva.
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Il Manifesto dell’acqua
A ÁGUA É UM PROBLEMA DE CIDADANIA E DE DEMOCRACIA
Criar condições necessárias para que o acesso à água seja
eficaz e sustentável é um problema de todos. É também um problema
entre gerações. É, de facto, responsabilidade das gerações actuais
utilizarem, valorizarem, protegerem, conservarem os recursos em
água de modo a que as gerações futuras possam usufruir da mesma
liberdade de acção e capacidade de escolha que desejamos
actualmente para nós. O cidadão deve estar no centro das decisões. A
gestão integrada e sustentável da água é domínio da democracia.
Ultrapassa as competências e os conhecimentos dos técnicos, dos
engenheiros, dos banqueiros. O utilizador tem um papel importante a
desempenhar pelas suas escolhas judiciosas e pelas suas práticas
guiadas pelos princípios de uma economia e de uma sociedade
sustentáveis ao nível ambiental, económico e social.
QUALQUER POLÍTICA DA ÁGUA IMPLICA UM ELEVADO
NÍVEL DE DEMOCRACIA AO NÍVEL LOCAL, NACIONAL,
CONTINENTAL E MUNDIAL
Por definição, a água reclama uma gestão descentralizada e
transparente. Os dispositivos da democracia representativa devem
ser reforçados. Novas formas de governo democrático devem ser
criadas. A democracia participativa é inevitável. Isto é possível com ou
sem as novas tecnologias informáticas e da comunicação, ao nível das
aldeias, das cidades, das bacias hidrográficas, das regiões. Os quadros
regulamentares ao nível internacional e mundial devem fazer emergir
e tornar visível a política sustentável e solidária da água ao nível da
comunidade mundial. As instâncias parlamentares devem
desempenhar um papel fundamental nesta matéria. Por esta razão,
pensamos que é urgente e indispensável (re)valorizar as práticas locais
e tradicionais de gestão da água. Um património considerável de saberes,
de competências e de práticas comunitárias de uma grande eficácia
tem sido delapidado e perdeu-se. Corre o risco de ser ainda mais
destruído nos próximos anos.
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A ÁGUA É IGUAL PARA TODOS FICHEIRO 2005
PROPOSTAS
Para que estes princípios e estas regras se tornem uma
realidade nos próximos 20-25 anos, quando dois biliões de seres
humanos serão acrescentados à população actual, propomos que
sejam adoptadas as seguintes medidas, parte integrante de um
“Contrato Mundial da Água”, segundo dois princípios basilares:
• a constituição de uma “rede de parlamentares pela água”,
• a promoção de campanhas de informação, de sensibilização,
e de mobilização em torno da “água para todos”.
Propomos a instalação de um Observatório mundial dos direitos da água.
A CRIAÇÃO DE UMA REDE DE PARLAMENTARES PELA ÁGUA
Cabe aos parlamentares, órgãos principais da
representação política nas sociedades “ocidentalizadas”, ou às
instituições comparáveis noutros contextos civilizacionais, a
responsabilidade de modificar as legislações existentes aplicando os
princípios e regras adiante explicitados. Definir um novo
enquadramento jurídico em matéria de água, não apenas ao nível
local e nacional, mas também no plano internacional e mundial
constitui uma tarefa primordial face ao vazio jurídico existente neste
domínio à escala mundial. Deve ser dada prioridade a um “Tratado
mundial da água” fundado sobre o princípio da água como bem vital
patrimonial comum da humanidade. Este “tratado”, por exemplo,
excluiria a água de qualquer convenção internacional comercial (no
quadro da Organização Mundial do Comércio - OMC), como é já o
caso no domínio cultural.
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Il Manifesto dell’acqua
PROMOÇÃO DE CAMPANHAS DE INFORMAÇÃO,
DE SENSIBILIZAÇÃO E DE MOBILIZAÇÃO
1. O desenvolvimento (ou modernização) dos sistemas de
distribuição e tratamento sanitário das águas para as 600
cidades dos países de África, da Ásia, da América Latina e
da Europa oriental e Rússia que terão mais de um milhão
de habitantes em 2020 e cujos sistemas de água são, já hoje,
inadequados, obsoletos, senão mesmo inexistentes.
2. A luta contra as novas fontes de poluição das águas nas
cidades dos países da América do Norte, da Europa
ocidental e do Japão cuja contaminação do solo e das
camadas freáticas de superfície e profundas é cada vez
mais inquietante, grave e, em alguns casos, irreversível.
Estas acções pretendem realizar o objectivo da criação de “3 biliões de
torneiras de água”.
Os movimentos associativos, as ONGs, os sindicatos, os científicos
têm nesta matéria um papel essencial e determinante a desempenhar.
Para este objectivo, dever ser dada prioridade:
1. À reforma estrutural dos sistema de irrigação ligados ao modo de
produção agrícola industrial intensiva.
As soluções existem, entre outras, a irrigação “gota a gota”.
A agricultura actual “moderna” constitui o principal
consumidor de recursos de água doce do planeta (70% das
estimativas totais mundiais, cuja maior parte se prende
com a irrigação). Ora, 40% da água para irrigação perde-se
no seu percurso. Além disso, os seus excessos estão na
origem de graves atentados e ameaças ao ambiente (em
particular, pela salinização dos solos e o hidromorfísmo).
2. Uma moratória de 10-15 anos relativamente à construção de novas
grandes barragens das quais se conhecem já os consideráveis
inconvenientes a curto e longo prazo para o ambiente, para as
populações e para a gestão integrada e sustentável da água.
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A ÁGUA É IGUAL PARA TODOS FICHEIRO 2005
A CRIAÇÃO DE UM OBSERVATÓRIO MUNDIAL
DOS DIREITOS DA ÁGUA
O principal objectivo do Observatório será o de recolher,
produzir, distribuir e disseminar as informações mais rigorosas e
fiáveis possíveis em matéria de acesso à água do ponto de vista dos
direitos individuais e colectivos, da produção da água, da sua
utilização, da sua conservação/protecção e da sua gestão sustentável
e democrática. O Observatório deveria tornar-se um dos dispositivos
de informação e de comunicação de referência mundial,
nomeadamente para a valorização das práticas efectivas de parceria
real e de gestão solidária da água.
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