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Chamemos de relíquia mutilada esse pequeno texto sagrado
escrito em uma língua já morta sobre um rolo de seda que,
vítima de uma crise violenta de loucura, foi rasgado ao meio
— não com as mãos nem com faca ou tesoura, mas com os
dentes de um imperador enfurecido.
Meu encontro casual com o professor Tang Li, em
meados de julho de 1978, numa sala de reuniões do Hotel de
Pequim, e aquilo que ele me revelou sobre esse tesouro brilham ainda hoje como um pequeno quadrado de luz no labirinto enevoado e turvo em que se transformaram as minhas
lembranças da China.
Pela primeira vez na vida eu era remunerada como
intérprete, numa reunião de consulta organizada por uma
produção de Hollywood para estabelecer o roteiro de O último imperador, que resultaria no filme espetacular que todos
conhecem, coroado com oito ou nove Oscars e que arrecadou uma quantia faraônica nas bilheterias. Com a permissão
da Universidade de Pequim, onde estava matriculada como
estudante estrangeira no departamento de literatura chinesa,
munida de um caderninho de anotações comprado na véspera
especialmente para a ocasião, fui ao Hotel de Pequim no meio
de uma tarde de verão em que o calor transformava tudo em
vapor, fazendo da cidade uma caldeira na qual fervíamos a
fogo brando. Com guinchos agônicos, as rodas de minha bicicleta enfiavam-se no asfalto grudento, amolecido pelo calor,
do qual subiam, em espirais, fios azuis de fumaça. Tomava
conta da entrada do grande hotel de oito andares, único arranha-céu da época, uma agitação fora de controle. A porta
giratória de vidro fora ocupada por uma multidão barulhenta
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de cinquenta, cem, duzentas pessoas — não saberia dizer exatamente. Pela diversidade dos sotaques, podia-se ver que tinham vindo de todos os cantos da China. Pais carregados com
sacolas de alimentos, crianças levando nas costas um estojo de
violino, vestindo, apesar do calor, um paletó ocidental, com
uma camisa branca bem-abotoada e uma gravata borboleta
ou gravata simples, embora algumas tivessem apenas seis ou
sete anos de idade. Quando uma criança, acompanhada do
pai ou da mãe, aparecia vinda do hall, provocava imediatamente um alvoroço; os outros se precipitavam em sua direção,
espremiam-se em volta deles, cobriam-nos de perguntas, agitavam-se, discutiam, com ar de preocupação... Dir-se-ia uma
verdadeira multidão de refugiados angustiados debatendo-se
na entrada de uma embaixada. Acabei entendendo que todos
estavam ali à espera de uma audiência privada com Yehudi
Menuhin, que ia à China uma vez por ano com uma missão
artística e beneficente, na qual não faltava uma sutil campanha publicitária pessoal: revelar uma ou duas crianças-prodígio, um novo Mozart chinês. Para os violinistas iniciantes,
tratava-se de uma oportunidade de ouro, a chance inesperada
de partir para os Estados Unidos e frequentar uma escola de
música dirigida pelo próprio mestre.
O elevador estava quebrado, e a subida até o oitavo
andar, onde se realizava a minha reunião, exigiu um esforço
considerável, maior ainda pelo fato de vários violinistas estarem amontoados também nas escadas, sentados ou deitados
nos degraus, nos corredores e nos peitoris das janelas. Morta
de cansaço, finalmente entrei na sala de reunião, a qual, por
coincidência, ficava ao lado da sala de audiência dos futuros
concertistas, cuja porta estava fechada.
Fui convidada a me juntar a um grupo composto por
um representante do diretor ítalo-americano, uma assistente
de produção, um outro tradutor e uma dezena de eminentes
historiadores chineses, em torno de uma mesa retangular coberta com uma toalha branca cheia de garrafas de Coca-Cola,
xícaras de chá, cinzeiros, vasos de rosas de plástico e de papel,
no meio da qual reinava um gravador profissional, imponente
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e majestoso. Na parede estava presa uma ampliação de uma fotografia em preto e branco de Puyi, o último imperador, tirada
na Cidade Proibida num dia de inverno particularmente rigoroso de 1920, trajando uma roupa ocidental, com óculos de
vidros redondos e sem aros, os traços rígidos, o olhar sombrio.
As trocas de apresentações e os apertos de mão eram acompanhados pela minha tradução hesitante do chinês para um
inglês com forte sotaque francês, enquanto o outro intérprete,
não muito mais à vontade do que eu, traduzia do inglês para
o chinês; o protocolo era estritamente respeitado. Notei a presença de um chinês de uns sessenta anos de idade diferente de
seus compatriotas, todos eles com camisas de mangas curtas.
Estava todo coberto com o traje tradicional chinês, um robe
de seda azul-escuro, abotoado lateralmente, que descia até os
pés e lhe conferia, considerando a estação do ano, um aspecto
meio despropositado, porém tocante. Era o único a se inclinar
para cumprimentar os convidados da reunião, mas sem a menor bajulação, e, às vezes, erguia a mão elegantemente, num
gesto de uma lentidão antiquada, para acariciar a longa barba
branca que flutuava levemente ao sopro do ventilador de teto.
O tempo parecia ter-se fixado nele, que encarnava sozinho
toda uma época, um universo à parte. Quando pronunciou
seu nome, em duas letras, senti-me tocada pela sua simplicidade e pela sua familiaridade, que se associava, em minha
mente, a... eu procurava, procurava, examinando seu rosto, mas
em vão. A lembrança se perdia em alguma dobra da memória
entorpecida pelo nervosismo daquela primeira experiência profissional. Quando traduzi a forma como seus colegas chineses
o apresentavam — “o dicionário vivo da Cidade Proibida” —,
o representante do diretor deu uma gargalhada e, com um ar
condescendente, prometeu encaixar aquele “Senhor” como figurante ou até mesmo em algum papel menor. Os outros chineses riram muito, mas ele não. Ouvi um zunido de insetos que
o sopro artificial do ventilador fazia dançarem nos pequenos
focos de luz da sala. O som de um violino, no outro lado da parede, uma sonata ou um concerto de Mendelssohn, suave, um
tanto piegas, servia de música de fundo da reunião.
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Passaram-se duas ou três horas até que meu olhar se
voltou novamente para o homem de traje tradicional. A reunião, durante a qual ele permanecera calado, chegava ao fim,
os presentes olhavam para seus relógios impacientemente,
quando ele, de repente, pediu a palavra, com uma voz cansada, frágil, como que abafada.
— Se ainda tivermos mais alguns minutos, gostaria,
muito humildemente, tão humildemente quanto me impõe a
minha cultura, de pleitear o restabelecimento da verdade.
Numa fração de segundo, traduzindo suas palavras,
achei que me lembrara do que o seu nome evocava em mim.
Era... Nesse instante, um enorme mosquito, grudado na testa
reluzente do representante do diretor, chamou-me a atenção;
eu o vi se soltar dali, voar, voltar e aterrissar com precisão na
ponta de seu nariz, provavelmente menos oleoso. Passou pela
minha cabeça o verso de um poeta russo que eu tinha acabado
de traduzir: “O mosquito exibia com beatitude um pequenino
ventre rubi.” Era exatamente isso. Quanto a saber quem era o
velho chinês, minhas reminiscências, que mal tinham despertado, acabaram por se apagar.
— Peço ao diretor e a seus roteiristas — prosseguiu
o velho —, por seu intermédio ou por intermédio do gravador do qual meus eminentes colegas não afastam os olhos,
que joguem esse roteiro, ao menos essa versão, no lixo do
hotel, onde, a despeito de seu prestígio, vive uma importante população subterrânea saltitante, como a chamava La
Fontaine, que o roerá, eu espero, página por página, palavra
por palavra, de tão mal que ele retrata a verdadeira personalidade de Puyi, que era, ao contrário do que dá a entender
a biografia mentirosa na qual se baseia o seu roteiro, um
ser patologicamente complexo, e não me refiro de modo algum à sua homossexualidade, pois outros imperadores antes dele também tiveram tendência semelhante. A questão
não é essa, mas sim a sua crueldade sádica, seus frequentes
acessos de delírio, tão imprevisíveis quanto incontroláveis,
coisas de um esquizofrênico, no sentido puramente médico
da palavra.
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No silêncio generalizado, podiam-se ouvir, através da
parede, as notas soltas do motivo com o qual começa o allegro de um concerto de Beethoven e, em seguida, um tapa
que o representante do diretor deu em si mesmo. O mosquito,
que eu não conseguia ver mais, devia ter escapado do golpe e
desaparecido.
— Merda!
Gritando essa palavra vingativa, o sujeito levantou da
cadeira, esmagou o inseto entre as mãos e lançou seu cadáver
esmagado e sanguinolento num cinzeiro, onde o calcinou com
a ponta de seu cigarro.
— O que é que esse mosquito estava fazendo aqui?
— disse ele. — Queria fazer cinema também?
Deu uma gargalhada, para declarar em seguida que
a reunião, então, encerrava-se por ali. Antes de sair, virou-se
para mim.
— Diga ao velho que ele certamente está dizendo a
verdade, mas que ela é triste demais, negativa demais, que ela
não é nada conveniente para o público ocidental, que não tem
valor algum para o cinema, que ninguém se interessa por isso,
muito menos um diretor conhecido mundialmente e cujo objetivo se resume numa única palavra: Oscar.
E saiu. Enquanto eu fazia a tradução, procurando com
dificuldade alguns contornos e palavras atenuantes, o “dicionário vivo da Cidade Proibida” fixava seus olhos enormes em mim,
sua barba lisa e seus cabelos brancos entesados de tanta raiva.
Só depois que a sua silhueta, naquele robe azul, desapareceu oscilante atrás da porta e que fechei aliviada o
meu caderno cheio de rabiscos, veio-me à mente, de repente,
aquilo que pouco antes eu não tinha conseguido me lembrar.
Tang Li, é claro! O autor da Biografia secreta de Cixi. Eu me
levantei, cruzei a porta e avancei pelo corredor, trombei com
alguém e me lancei pela escadaria onde se amontoavam os
futuros Mozarts, entre os quais fui abrindo caminho, a cada
andar. Como se estivesse diante do portador da Boa-nova,
a multidão nervosa, torturada pela espera e pela angústia,
animou-se novamente. Meu jeito apressado, meu pequeno
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caderno de tradutora, meu físico ocidental... eram detalhes
certamente insignificantes mas que foram suficientes para
suscitar expectativas, para erguer ondas de excitação que me
acompanharam até o térreo, chuvas de perguntas, de súplicas,
de temores quanto à escolha do rei do violino, de quem achavam que eu fosse a poderosa assistente que programava nos
bastidores as audiências a portas fechadas. Apesar das minhas
explicações, em meio às quais eu não parava de jurar em vão
em nome do cinema e de pronunciar o nome de um outro
rei, o da câmera, os pais dos jovens artistas me perseguiam
obstinadamente, só Deus sabe o porquê, e uma mãe de uns
trinta anos de idade, corcunda, o cabelo com permanente,
o rosto todo suado, portando uma saia barata, puxando os
filhos pelo braço, seguida do marido careca, partiu atrás de
mim como uma predadora decidida e desceu as escadas com
a impetuosidade de um corajoso soldado, sem me perder de
vista. Mas ela deve ter tropeçado em algum degrau, pois sua
sacola caiu e dela saíram latas, sanduíches, garrafas d’água e
uma maçã vermelha que ficou saltitando de degrau em degrau até o patamar.
Na rua, já era quase noite. Tive de deixar minha bicicleta no estacionamento e atravessar, à custa de muita acrobacia, o fluxo intenso, não de automóveis, que eram objetos
raros naquela época, mas das bicicletas, que avançavam de
modo irrefreável, para alcançar o velho de robe azul comprido no ponto do bonde, do outro lado da avenida mais larga
da China, construída na loucura das grandiosidades dos anos
cinquenta, imitando a Praça Vermelha de Moscou. Por dois
segundos, eu teria perdido o bonde. O motorista partiu, mas
meu alívio se desvaneceu quando vi chegarem correndo, ofegantes, o pai, o filho e o estojo do violino, sem, no entanto,
a mãe. Corri até a porta, que tremia com os socos dados pelo
pai e acabou-se abrindo. Mais uma vez fui posta a uma difícil
prova; expliquei-lhe quem eu era, auxiliada pelo testemunho
do velho historiador, que veio me ajudar e cuja hostilidade
parecia ter sumido naquela avenida cinza e imponente, conhecida então no mundo todo por seus desfiles militares, suas
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grandes manifestações supostamente populares e, anos mais
tarde, pelo massacre de estudantes. O pai, perdido em meio
a nomes como Menuhin, Bertolucci e Puyi, finalmente jogou
a toalha, e a pressão de um grupo de estudantes que se aglomerava na porta do bonde acabou por afastá-lo, desamparado,
junto com o filho.
Mais do que os olhos fixos, imóveis, quase saltando
das órbitas do velho historiador, é sua voz que me vem à mente
e que ainda vibra em meus ouvidos; um fio de voz fremente, cansada, de grande suavidade, engolida na maior parte do
tempo pelo barulho do bonde. Sua voz e a maneira com que
ele limpava a garganta quando uma onda de tristeza ou de indignação o envolvia. Em pé entre os demais usuários, as mãos
presas numa correia de couro, sem nada falar sobre as curvas
que quase o derrubavam, sem olhar para mim, ele retomou
o tema de Puyi no ponto em que fora interrompido naquela
tarde, como se nada tivesse acontecido naquele intervalo de
tempo e a reunião prosseguisse naturalmente no bonde todo
empoeirado.
— A história nos ensina que os dois imperadores-crianças, Guangxu e Puyi, nomeados sucessivamente pela tia,
a imperatriz Cixi, com trinta anos de intervalo, foram afetados de modo semelhante pelo mesmo mal misterioso, que eu
chamei de impotência, que punha fim a qualquer esperança
de perpetuação da linhagem. O caso de Puyi é ainda mais
fatal, pois, se considerarmos o seu status de último imperador, o fenômeno ganha uma dimensão quase metafísica que
vai além de seu destino pessoal. Sofrendo dos nervos desde
a infância, sua fragilidade agravou-se com o passar dos anos
devido aos inúmeros medicamentos chineses ou ocidentais, às
injeções em doses cavalares, às preces, aos rituais e todo tipo
de cura, fumigações de aromáticos, afrodisíacos extraídos de
testículos de diversos espécimes terrestres, celestes ou marítimos, dos quais o mais famoso é, sem dúvida, a “erva de verme”
tibetana, um pequeno verme achatado, platelminto da ordem
dos Peziza, com dois ou três centímetros de comprimento, parecido com o bicho-da-seda cinzento, chamado Bombyx mori.
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Esse verme deve seu nome ao fato de que, depois de morrer,
no inverno, seu cadáver coberto pela neve do Himalaia se
transforma numa erva que acaba transpassando a neve e cresce na primavera, passando a ter, a partir daí, uma existência
apenas vegetal. Mesmo assim, doses maciças desse poderoso
afrodisíaco, reputado por sua eficácia, não foram capazes de
tirar o membro imperial de sua letargia. Pior: fez o imperador
mergulhar em estados de pânico extremo, provocou-lhe crises
durante as quais ele se imaginava presa de pequenas criaturas
que se agitavam dentro de seu estômago, invadiam-lhe o fígado, subiam até o coração, o cérebro, sentindo que elas eram
ora lagartas com penugem cinza-pérola que o moíam, roíam
e permaneciam dentro dele até a morte, ora talos de bambu
pontudos, dos quais parecia-lhe enxergar o brilho esverdeado,
florescendo em todas as partes do seu corpo, que se esfriava, e
se esfriava e se esfriava como um campo no dia seguinte a uma
batalha perdida, como um iceberg à deriva. Ele mergulhava
então impetuosamente na caligrafia, uma verdadeira arte na
época e que ainda hoje continua a sê-lo; o dia todo, da manhã à noite, punha-se a copiar a obra de um outro imperador,
Huizong (1082-1135), da dinastia Song, de temperamento artístico, porém péssimo gestor, que também viveu um longo
período de esterilidade e cumpriu um percurso penoso como
combatente até o nascimento tardio de seu primeiro filho, que
lhe chegou depois de ele, a conselho de um adivinho, mandar
construir uma montanha artificial ao norte da capital. Ao final
de seu reinado, o país estava em ruínas, e ele perdeu a guerra.
Quando os “bárbaros do Norte”, os jin, avançaram em direção
à capital, ele ordenou, a conselho de outro adivinho, que as
portas da cidade fossem abertas, na crença de que um exército
viria dos céus para socorrê-los. Viveu seus últimos anos como
Puyi bem mais tarde, em cativeiro, no silêncio total do Grande Norte, a oito mil quilômetros de seu palácio, o qual ele só
podia visitar em sonhos. Restaram tão poucos de seus escritos,
que cada um deles, mesmo um pequeno fragmento de carta,
possui um valor inestimável; tinham uma importância fundamental na coleção da família imperial, e Puyi, que era o seu
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único herdeiro, pôde usufruir a felicidade não só de admirá-los
como também de copiá-los. Ele abria sobre a mesa uma obraprima escrita normalmente em folhas de papel de cânhamo
tingidas de amarelo a partir da decocção de uma polpa vegetal
para protegê-las contra vermes e insetos, um tipo de papel utilizado apenas para a transcrição dos sutras e que com o tempo
adquiria uma bela pátina cinza-escura. Em seguida, colocava
em cima uma folha de papel translúcido coberto com uma
fina camada de cera que possibilitava um trabalho de decalque
perfeito. Mandou fabricar pincéis semelhantes àqueles utilizados por seu antecessor, com um tufo agrupado em torno de
uma ponta central com longos pelos de doninha, conhecidos
por sua rigidez, cujo controle no manuseio requer anos de prática contínua, mas que proporcionam uma resistência elástica
capaz de conferir ao traço uma força bem afiada, traduzindo
em mínimos detalhes a personalidade do calígrafo. Ainda se
encontra na Cidade Proibida o cemitério de pincéis de pelo de
doninha usados por Puyi; cada um tem a sua própria tumba,
uma estela e um epitáfio redigido pelo próprio imperador, com
o nome do fabricante e as datas de início e fim de sua utilização etc. Durante as suas longas sessões cotidianas de decalque,
Puyi sentia o gigante da caligrafia chinesa guiar a sua mão,
transmitindo o segredo contido em cada traço, em cada caractere; segundo o diagnóstico emitido anos mais tarde pelos
médicos da Corte, essa atividade criou uma relação hipnótica,
afetiva, amorosa, entre o decalcado e o produtor do decalque e
fez nascer neste uma forma de autodestruição designada pelo
estranho nome de “transferência de personalidade”. Dessa forma, o jovem imperador tinha a sensação de se revestir da pele
de outro monarca aprisionado; quando mergulhava o pincel
na tinta e o tufo de pelos se inchava, cobrindo-se com uma camada de tinta cuja precisão era típica de Huizong, Puyi se via
num campo de prisioneiros, oitocentos anos antes, olhando a
neve que tudo cobria, as tendas dos guardas e dos prisioneiros,
as vastas planícies, o topo das colinas distantes. Prendia a respiração, e a mão exercia uma pressão delicada que concentrava
todo o refinamento e toda a elegância estilística de Huizong.
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Com essa pressão, a ponta de longos pelos de doninha despejava a quantidade adequada de tinta sobre o papel ou, melhor
ainda, era a personalidade de Puyi que se despejava ou, como
ele mesmo costumava dizer, a do próprio Huizong. Pouco a
pouco, os traços de tinta se confundiam aos seus olhos com os
traços de urina que tinha cavado seu curso numa espessa camada de neve no interior da tenda de Huizong numa noite de
tempestade. O infeliz prisioneiro, torturado por uma doença
na próstata, levantara no meio da noite mas não tivera tempo
de alcançar as latrinas colocadas do lado de fora. Ocorria que,
ao fazer o decalque, Puyi derramava lágrimas que deslizavam
sobre a folha de decalque encerada, e ainda hoje é possível
ver, numa das obras de Huizong conservadas pelo museu de
Tóquio, o traçado dessas lágrimas sobre o papel de cânhamo
amarelecido. Sofria grandes crises nervosas quando não conseguia controlar um gesto essencial, gesto que não é exclusivo
de Huizong mas que é usado por outros grandes calígrafos,
o qual consiste em trabalhar sempre com a mão no ar, sem
nenhum apoio na mesa, seja para a mão seja para o cotovelo,
para, nessa suspensão de todo o braço, definir a pressão a ser
exercida pela ponta do pincel sobre o papel, de maneira que os
movimentos adquiram seu impulso em total liberdade e criem
a sequência rítmica necessária para formar as partes mais grossas e as partes mais finas das letras. O punho de Puyi, quando
ele o erguia no ar, não o obedecia mais, tremia como uma
folha, o que o deixava num estado de cólera de uma veemência
paroxística e, como se tratava de um perverso, a única forma
que encontrava para se acalmar era gozando do sofrimento dos
outros: calçava uma luva e chicoteava ou espancava a cabeça
de um ou vários eunucos que haviam testemunhado o seu fracasso, inventando, com base numa inspiração sádica, as mais
ignóbeis torturas, pelo simples prazer de ouvi-los chorar, gritar
de dor e suplicar.
“No começo de abril de 1925, treze anos após a queda
do Império, Puyi foi libertado de sua prisão dourada, a Cidade Proibida, protegida pelo exército da República nascente,
depois de sofrer uma espécie de crise de epilepsia que o lançou
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numa letargia profunda, deixando-o mais morto que vivo. Foi
então transportado para a concessão japonesa de Tianjin, ao
sul de Pequim. Permaneceu de cama durante várias semanas,
voltando a sorrir apenas diante da chegada de um cortejo de
carregadores com dois quilômetros de comprimento, que traziam em suas costas machucadas enormes baús. Havia três mil
deles, todos lotados de objetos preciosos colecionados por seus
antepassados. Para ele, porém, o mais belo desses baús repletos
de tesouros nacionais, chuvas de pérolas, rios de diamantes,
cascatas de jade, de ouro, porcelanas, cobre, esculturas, pinturas, caligrafias etc., era aquele reservado para as obras de
Huizong. Assim que começou a se recuperar, voltou a mergulhar nas obras de seu mestre, dessa vez para copiar as pinturas,
domínio em que Huizong atingira a excelência, mais ainda,
talvez, do que na caligrafia, ocupando um lugar equivalente ao de Modigliani ou de Degas na pintura ocidental. Não
se podia saber com precisão a que atribuir a sua recuperação:
se às pinturas de Huizong ou ao lutador de sumô japonês de
nome Yamata, que tinha um corpo tão grande que a cabeça,
minúscula, parecia enfiada para dentro dos ombros caídos, e
que desempenhou um papel indispensável em sua vida cotidiana. Por volta do meio-dia, Puyi tocava uma campainha para
sinalizar que acordara, e o lutador de sumô, totalmente nu,
aproximava-se dele, deslocando-se como uma montanha silenciosa, e, no calor de seus braços de uma maciez tão feminina,
transportava-o para o banheiro, colocava-o numa banheira de
mármore onde a temperatura da água tinha sido regulada e
monitorada cuidadosamente com o auxílio de um termômetro
alemão pelo próprio lutador, que sabia por experiência própria
que qualquer mudança provocaria em seu tão maníaco senhor
uma nova crise nervosa. Então, num estado de semissono —
como contou Puyi um dia a um primo perante o qual, como
diante de todo mundo, ele utilizava a terceira pessoa e o termo
imperador para falar de si mesmo, explicou-me o professor —,
o imperador ouvia a estrutura de seu próprio corpo, dilatado
pela água, estalando e gemendo, embalado pela voz de uma
jovem virgem sentada junto à banheira a ler um romance es-
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colhido por ele mesmo na véspera. Na maior parte das vezes,
tratava-se de algum trecho do Jin Ping Mei, lido por chinesas,
uma mais bela que a outra, mas também ocorria de o imperador, aconselhado pelo lutador de sumô, encomendar romances
eróticos japoneses; nesses casos, a leitura era feita por alguma
japonesa desconhecida e, apesar de o imperador não entender
nada daquela língua, a voz da japonesa, misturada ao vapor
da água, o envolvia, e quando ele achava forças para abrir os
olhos por uma fração de segundo, parecia-lhe ver uma sereia,
pois a saia de seda cinza-pérola da moça cintilava naquela estufa como a cauda de um peixe, cujas escamas, segundo a lenda, se soltavam em pequenas porções diante do olhar de um
homem, escamas que o imperador imaginava flutuarem na
superfície da água, brilhantes como lâminas de prata, em torno de seu corpo mergulhado na banheira. Tocava novamente
uma campainha para comunicar o final do banho, o lutador
entrava, tirava-o da banheira, carregava-o para o quarto nos
braços, colocava-o sobre a cama e o envolvia rapidamente em
toalhas grandes, macias, espessas, impregnadas de um perfume embriagante. O imperador permanecia deitado por um
longo tempo, numa escuridão absoluta, sem nada ver nem escutar, respirando aqueles aromas deliciosos de flores, plantas,
almíscares, até se perder dentro deles. O tempo, que em outras
partes passava como um relâmpago, desenrolava-se tão lentamente para ele que cada minuto parecia uma eternidade.
“No final da tarde, segundo as memórias de seu primo”, continuou o professor, “após a primeira refeição do dia,
o imperador fechava-se em seu birô, cujas janelas ficavam permanentemente cobertas por cortinas de um vermelho violáceo
que o sol não conseguia atravessar, e, diante de uma mesa iluminada por um abajur verde, como um aluno com sua lição
de casa, ele produzia uma cópia de um pássaro sobre um galho
nu, pintado sobre seda por Huizong, que foi o pioneiro nesse
gênero típico de pintura de corte, auge do refinamento e da
elegância do espírito chinês, em que predomina uma pureza
muito particular, despojada, fantasmagórica, sempre leve porém carregada de sentido. Não se podia dizer se o pássaro se
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encontrava num céu paradisíaco, num mundo submarino, um
aquário sombrio, de tão ausente que estava da obra a vulgaridade das realidades terrenas. É inútil precisar que o imperador
demonstrava uma predileção particular por esse tipo de pintura. O lutador preparava a tinta e estendia uma peça de seda
fabricada especialmente para ele por um ateliê de Suzhou, reprodução perfeita daquela utilizada por Huizong oitocentos
anos antes: uma seda com pontos espessos, com dupla costura,
não dessas sedas de hoje em dia, essas sedas vulgares de pontos finos e fios de cadeia dupla. Os artesãos, seguindo uma
técnica da época dos Song, untavam a seda crua com uma
mistura de cola e alume, primeiro com uma escova, depois
por pressão, batedura e polimento, a fim de que ela se prestasse
melhor a receber as múltiplas camadas de aquarelas aplicadas
sucessivamente, técnica esta inventada por Huizong e da qual
este era o mestre inquestionável. O imperador permanecia
sentado, imóvel, horas e horas, contemplando o pássaro que
ele iria copiar, procurando captar o segredo de sua plumagem
acinzentada, feita de linhas justapostas, dissimulando sob um
frêmito contínuo, quando se via de bem perto, uma absoluta
precisão; o segredo daqueles vapores avermelhados, folhas sem
forma nem identidade se tornando pétala, estame, pistilo... em
torno da cauda de tom carmim do pássaro; e aquele bico preto,
cuja única linha, muito fina, desenhava o contorno cristalizado numa forma fluida atravessada por uma invisível vibração;
acima de tudo, o milagre do olho, que, de uma maneira ainda
mais perturbadora, constituía um enigma que nem o imperador nem nenhuma outra pessoa jamais pôde desvendar: como
o pintor conseguiu conferir-lhe um brilho e uma força tal que
se poderia dizer, embora isso fosse em tese materialmente impossível, que ele estava examinando você, ultrapassando uma
fronteira invisível. Às vezes o imperador imaginava que Huizong não tinha usado pincel, mas apenas a unha, sobre a qual
derramara um ponto da tinta preta que então lançara a um
metro de distância e que, por um acaso ou como efeito de
um movimento minuciosamente elaborado, caíra sobre a tela
no lugar exato onde deveria cair. A cabeça do pássaro, pinta-
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da em cores translúcidas, com sombras de nuanças delicadas,
uma proeza anatômica, detalhada e natural, essa cabeça frágil,
vibrante, impregnada de uma profunda solidão, invocava no
imperador a própria imagem quando criança, aos três anos,
empoleirado sobre um trono trabalhado em ouro, sustentado
por quatro dragões entrelaçados, que se elevava a uma altura
que os olhos de uma criança tinham dificuldade de alcançar,
aquele trono em que lhe parecera que o seu corpo, desprovido
de peso, se transformava no de um pequeno pássaro abrigado
em um ninho construído bem no alto, naquela sala de audiência onde reinava um frio glacial e, por mais paradoxal que
possa parecer, um silêncio de morte, onde os gritos ensurdecedores de milhares de súditos que se ajoelhavam diante dele
ressoavam como num abismo enorme, para misturarem-se em
longos ecos sombrios e aterrorizantes.
“O que Puyi não revelou ao primo”, comentou o professor, “é que ele nunca conseguiu, apesar da duração infindável de suas contemplações, efetuar um único traço sobre a
seda, a menor mancha de tinta, a mais ínfima garatuja. As
obras de Huizong acabaram inspirando-lhe tão somente um
profundo desgosto em relação a si próprio. Ao final de cada
sessão, o lutador de sumô repunha na gaveta os pincéis, cujas
pontas nunca tinham sido mergulhadas na tinta, a qual lentamente se espessava, coagulando progressivamente, tornando-se irremediavelmente opaca, e depois guardava no fundo de
um cesto as peças de seda virgens, rasgadas e rejeitadas por
Puyi, e as enterrava no pátio, sob uma camada de terra e de
folhas em decomposição. Esse período de “meditação sobre a
pintura”, como o chamava Puyi, culminou com um episódio
espetacular, não desprovido de alguns traços de comédia: no
fim de novembro de 1926, após uma noite de muita neve,
Puyi, então com vinte anos de idade, foi visto com espanto,
ao primeiro clarão do amanhecer, com seu corpo frágil e nu
enrolado num longo cachecol de plumas pretas e brancas,
empoleirado, tremendo de frio, sobre o galho de um olmo,
como o pássaro pintado por Huizong oitocentos anos antes.
Nenhum dos criados ousou ir ter com ele, com exceção do
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lutador de sumô, única pessoa autorizada a adentrar o birô,
que era fechado para todos, para, no inverno, repor a lenha na
lareira e, no verão, agitar um leque em silêncio às suas costas.
Nunca saberemos que grau de intimidade havia entre o jovem
imperador decadente e seu lutador japonês, mas, de acordo
com as memórias de um dos últimos eunucos de Tianjin, toda
vez que Puyi mergulhava numa letargia profunda, após uma
crise nervosa, o lutador juntava-se a ele em sua cama e, deitado ao seu lado, abraçava-o dia e noite. Mas, naquela manhã,
quando o lutador, já tendo atingido a altura em que seu senhor
se localizava, partia para pegá-lo em seus braços, o galho do
olmo, que já se envergara consideravelmente com o peso de
Puyi, cedeu num estrondo ensurdecedor, e os dois, um nos
braços do outro, caíram, sem no entanto se ferirem, graças à
neve que cobria o pátio.
“Outra coisa curiosa é que Huizong, além de pintor e
calígrafo, era também um grande colecionador, se não o maior
de todos, um domínio que requer uma fortuna imensa, sem
dúvida, mas também conhecimento da arte ou, para resumir,
bom gosto. Eu mesmo, que não sou artista”, dizia o professor, “já li e releio uma vez por ano os catálogos da coleção de
Huizong, que trazem detalhes sobre seis mil e trezentas obras,
cada uma com seu título, descrição, a biografia dos pintores e
especialmente um comentário feito pelo próprio imperador reconstituindo a gênese de cada criação. Quase todas essas obras
estão hoje desaparecidas, mas a leitura dos catálogos proporciona o mesmo prazer que a de um mapa antigo de uma cidade
ou de um bairro, em que passeamos por ruínas imaginárias,
atravessamos um cruzamento, perdemo-nos num mercado,
caminhamos junto a um espelho d’água, espreitamos o nosso
próprio temor ao longo da linha sinuosa das muralhas, que
desaparece no mesmo instante em que acreditamos alcançá-la. Eis a razão pela qual, e a senhora há de compreendê-lo, fui
tomado por uma grande sensação de felicidade ao descobrir,
numa ampliação fotográfica, os títulos de duas obras desse
catálogo mítico na etiqueta do baú confiado a Huizong que o
nosso último imperador possuía.
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“A primeira era uma caligrafia de Li Bo, o grande
poeta da dinastia Tang, uma transcrição autografada de seu
poema ‘O Terraço do Sol’, em papel de cânhamo. Três séculos separam Li Bo de Huizong, mas naquela época, como
acontece ainda hoje, os letrados se dividiam em dois campos,
o dos admiradores de Li Bo e o dos entusiastas de Du Fu,
outro grande poeta da dinastia Tang, amigo íntimo de Li Bo.
Visivelmente, Huizong pertencia ao primeiro grupo, pois possuía, segundo o catálogo de sua coleção, seis caligrafias autografadas de Li Bo — seis poemas dos quais era ele próprio o
autor —, duas em estilo semicursivo, executadas no palácio
diante do imperador que as encomendara, e as outras quatro
com uma letra cursiva totalmente apressada, todas elas, a julgar por seus títulos, elogios ao álcool improvisados sob plena
bebedeira e que Huizong, num comentário que vai além de
seu papel como especialista, abordava assim: ‘Li Bo e o álcool,
um correndo ao encontro do outro, confundem-se até formar,
num desvanecimento, uma só criatura, compacta e indistinta,
única no mundo.’
“Não pude deixar”, disse o professor, “de fazer uma
pesquisa sobre esse poema intitulado ‘O Terraço do Sol’. Que
enorme trajeto ele deve ter percorrido em meio às peripécias
políticas, ao surgimento e quedas de dinastias! Depois que
Huizong foi para o exílio, essa obra desapareceu, ressurgindo
na dinastia Yuan, inicialmente com Yan Qin, depois com Ou
Yangxuan (1274-1358), célebre mestre dos Arquivos Imperiais,
desaparecendo depois novamente, para ressurgir trezentos anos
mais tarde, na dinastia Ming, no catálogo do famoso colecionador Xiang Zijing, antes de se tornar propriedade, por volta
do final do século XVI, dos imperadores Qing, antepassados
de Puyi. A caligrafia não é senão a representação artística de
uma outra forma, a dos ideogramas que compõem o poema,
mas não só reflete a natureza e o temperamento do artista; podemos identificar nela também, acredite, seu ritmo cardíaco,
sua respiração, seu hálito cheio de álcool, que proporciona ao
amador uma euforia comparável à de um melômano apaixonado que viesse a descobrir ou, melhor ainda, que viesse a se
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apropriar de um registro sonoro, gravado duzentos anos antes,
de uma sonata para piano de Beethoven tocada pelo próprio
Beethoven em pessoa.
“Psicologicamente, o efeito hipnótico de uma caligrafia ou de um quadro que, segundo a opinião dos médicos,
constituía um milagre em Puyi é, como qualquer sugestionamento artístico, um efeito de curta duração, que não podia ser
suficiente no seu caso patológico nem manter nele um equilíbrio mental, ainda que frágil. Sem querer ser abusivo, digo
que isso é, no entanto, o que lhe proporcionava o segundo
tesouro da coleção de Huizong — um manuscrito em um rolo
de seda, numa língua então desconhecida —, a coisa que mais
lhe importava no mundo. Era tamanho o poder hipnótico
que exercia sobre ele, que Puyi, que tinha mandado pendurar
ao lado de seu leito a caligrafia de Li Bo, quase nunca mais
olhou para ela, incapaz que se tornara de tirar os olhos do rolo
manuscrito.
“Vejo nos seus olhos”, observou o professor, “o grande interesse que esse rolo desperta na senhora, e, antes que
isso adquira uma dimensão mais apaixonada, como ocorreu
com todos os que dele se aproximaram, faço questão de alertá-la. Mesmo em mim, devo admitir, ele suscitou um grande
entusiasmo quando me debrucei sobre o seu caso, esgotando
todas as fontes possíveis, várias dentre as quais sujeitas a muito cuidado, por estarem intimamente misturadas com lendas,
mas me parecia que, reconstituindo o seu percurso, por mais
sinuoso que ele fosse, eu conseguiria falar melhor sobre os imperadores já mortos nos quais ele deixara a sua marca, recompor os fragmentos desaparecidos da vida de nobres depostos,
como Setenta e Um, de quem falo no livro que a senhora leu.
Lamento muito que, no momento da publicação, seu compatriota Paul d’Ampère ainda não tivesse chegado à China, que
os caminhos desse nobre louco e desse manuscrito ainda não
se tivessem cruzado, privando meu livro de um capítulo que
seria o mais perturbador de todos.
“Esse precioso rolo é constituído por dois pedaços de
seda costurados um ao outro com pequenos pontos. O pri-
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meiro contém o texto em língua desconhecida, sobre uma
seda pintada com um amarelo alaranjado. Não traz nenhuma
indicação de data, mas, por meio de um exame científico do
tecido, sabe-se que a tintura foi extraída de uma decocção da
casca da árvore Huangbo, típica da dinastia Han, e a análise
da tinta, de excepcional qualidade, que conservou intacta toda
a intensidade de seu preto profundo, tende a provar que essa
obra misteriosa data provavelmente do século II ou do século
III da nossa era, o que faz dele o rolo mais antigo preservado
até o momento.
“No outro pedaço, de uma seda mais luxuosa, tingida
de azul-claro, figura um longo texto com trinta colunas de
ideogramas chineses, na cor marfim, caligrafados por Huizong com pó de ouro — que ainda brilha em alguns pontos
— misturado com uma cola, técnica utilizada nos templos
budistas para copiar textos sagrados. (Teria Huizong algum
pressentimento em relação à natureza desse texto escrito numa
língua desconhecida?)
“O texto começa com uma breve biografia de An Shigao, o primeiro tradutor de sutras budistas para o chinês, príncipe herdeiro de Pártia, na Ásia Ocidental, que se converteu ao
budismo, tornou-se monge e, com a morte do pai, abriu mão
de suas prerrogativas em benefício do tio. Partindo dos confins indo-iranianos, seguiu a rota dos oásis da Ásia Central,
Khotan, Kucha, Turfan... até Gansu, depois de atravessar as
cidades cosmopolitas de Dunhuang, Zangye e Wuwei. Avançou pelo vale do rio Amarelo, na China do Norte, onde sua
presença foi atestada em meados do século II, mais precisamente em 148, na capital, Luoyang. À sua reputação de gênio
linguístico — falava vinte línguas —, somava-se uma ampla
erudição histórica e nenhum dia se passava sem que ele dedicasse algumas horas a seus trabalhos de tradução. Passou dez
anos em seu quarto traduzindo para o chinês inúmeros sutras
que trouxera de suas viagens; sua tradução, na maior parte das
vezes em versos, concebida com uma sobriedade despojada de
qualquer traço de sua vida anterior de príncipe parto e, mais
ainda, de qualquer pretensão personalista, é de tocar a alma,
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sendo que, no dia a dia, seu chinês era bem vacilante, marcado
por um forte sotaque e por erros gramaticais. Certo dia, por
ocasião de uma ida a Xi’an, a antiga capital chinesa, onde fora
pregar no bairro de Fufeng, ele viu, bem no meio da noite,
num terreno vazio, conforme relatou mais tarde ao imperador,
feixes de luz brotando da altura do chão e iluminando alguns
pontos, como nessas visões místicas representadas em pinturas
religiosas. De acordo com o relatório que apresentou à Corte,
em 480 antes da nossa era, depois de o Buda Shakyamuni
entrar na insondável paz do Parinirvana, seus discípulos dividiram entre si suas relíquias e partiram em vários grupos em
diversas direções para difundir sua palavra pelo mundo. Os
que chegaram à China conheceram dificuldades insuperáveis,
pois a guerra arrasava o país, sucumbindo um após o outro.
O último deles, já bastante idoso, morreu ao chegar ao vale de
Wei, um vale do rio Amarelo, onde teve de esconder as relíquias do Buda, que revelavam-se a An Shigao através daqueles
feixes de luz divina que atravessavam a terra. Era a primeira
vez que a Corte ouvia falar no nome de Buda, que causou risos
em todos; de toda maneira, escavações foram realizadas pelo
exército, sob as ordens do imperador, e encontraram-se cristaloides em forma de dentes e de falanges de dedos, em tamanhos superiores ao normal, de coloração dourada, translúcida,
que brilhavam ao fundo de um fosso. Foi dessa maneira que
An Shigao logrou converter o imperador da China, que, em
memória desse milagre que marcava o triunfo do budismo,
mandou construir no lugar um deslumbrante estupa — um
edifício alto, de madeira e tijolos, pintado de branco —, em
cuja cripta foram conservadas as relíquias do Buda. Ao lado,
mandou construir uma casa onde An Shigao passou o restante
de seus dias, a rezar, meditar, traduzir e ensinar, e que, depois
de sua trágica morte (foi assassinado durante uma de suas inúmeras peregrinações religiosas), tornou-se o primeiro templo
budista da China: o Templo da Porta da Lei.
“Quase mil anos se passaram”, prossegue o texto escrito por Huizong, “até que em meados de agosto de 1128,
no meio de uma noite de tempestade marcada por trovões,
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