O Português do Brasil: a constituição de uma língua nacional1
Mariza Vieira da Silva
Universidade Católica de Brasília
O Português do Brasil. De que estamos falando, quando falamos de Português do
Brasil? Da constituição de uma língua nacional? Que língua nacional é essa? Como se
construiu? Responder a essas questões não é tarefa fácil e nem é possível fazê-lo nos
limites de uma mesa de debates. Nada nos impede, contudo, de começar, sabendo desde já
que estaremos trilhando os caminhos da história - de uma língua, de um povo, de um
Estado -, de uma história que está a reclamar sentidos, e sabendo também que a
incompletude é constitutiva de todo dizer. E se falamos de caminhos é por que há vários a
se tomar e que nos levarão a produzir diferentes sentidos para essa história há muito já
começada.
Gostaria, pois, de fazê-lo por um caminho determinado - talvez meio tortuoso -,
abordando a questão pelo interior da Lingüística para evidenciar que o processo de
produção de conhecimento não está desvinculado das condições materiais de existência de
uma formação social, já que a "pesquisa" é o grande tema desta Semana Universitária.
A tarefa a que me proponho, aqui, pode parecer fácil, pois, no momento, há uma
fala generalizada sobre esse tema da língua que falamos, da língua que escrevemos:
português do Brasil, no Brasil, português brasileiro... E os chamados mitos, falácias e
preconceitos sobre uma língua desvinculada do cotidiano dos brasileiros vêm sendo, de
forma crescente, debatidos e combatidos por lingüistas, pedagogos, psicólogos,
professores, educadores em geral, pelo menos desde a década de 80. Subentende-se,
portanto, que estaríamos em um terreno propício para levantar mais algumas questões, na
busca de outros argumentos que dariam uma maior completude e consistência ao combate
daquilo que há de conservador e reacionário no ensino de língua portuguesa na escola.
Ora, de acordo com a nossa perspectiva teórico-metodológica - a Análise de
Discurso - e os trabalhos que vêm sendo produzidos pelo projeto “História das Idéias
Lingüísticas no Brasil”, essa reflexão talvez não se dê de forma tão simples, nem o terreno
seja tão propício. Existem contradições nos sistemas escolares dos países capitalistas,
operando neste discurso "moderno" e "democrático", recoberto pela "neutralidade"
1
Texto apresentado na III Semana Universitária da Universidade Católica de Brasília, no dia 02 de outubro
de 2001.
científica da Lingüística, através de diferentes formas de escolarização das massas que se
abrem, como diz Pêcheux e Gadet (1998), para a questão do "fracasso escolar" que atinge
os "des-herdados" por causa do que se chama pudicamente sua origem sócio-econômica.
Neste discurso de combate aos preconceitos e às discriminações lingüísticas e
sociais, quase nunca, coloca-se em questão a estrutura global de uma sociedade como a
brasileira. Diria mais. Estamos diante de políticas, programas, projetos, tecnologias,
metodologias - práticas científicas e políticas - em que se busca uma adaptação ou readaptação das relações sociais à prática social global, enquanto invariante do sistema, pela
forma de configuração de uma subjetividade específica, a de um sujeito-letrado, isto é, a de
um sujeito-trabalhador: o cidadão brasileiro.
Para compreender essas questões, tomei como corpus de análise para esta
apresentação, os PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais de 1ª a 4ª séries, volumes 1 e 2,
que tratam da "introdução" e da "língua portuguesa" (1997), enquanto parte de uma
política de escolarização da língua portuguesa, como língua nacional.
É importante lembrar que há, no Brasil, todo um imaginário construído ao longo de
sua história, em que as representações sobre a(s) língua(s) e seus falantes
revelam/conferem ao trabalho pedagógico a possibilidade de vencer a barbárie e instalar a
civilização no Novo Mundo, transformando a língua em um objeto de estudo2. Neste
sentido é que tomo as políticas lingüísticas, com suas orientações sobre teorias e práticas a
serem adotadas nas escolas brasileiras, como fatos a interpretar.
Os PCN, em seu volume 2, afirmam, desde a sua “apresentação”, que a escola ao
ensinar a Língua Portuguesa tem a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o
acesso aos saberes lingüísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito
inalienável de todos. Este lugar estratégico atribuído à escola para a constituição de uma
determinada cidadania está, pois, centrado nos saberes linguísticos necessários, que a
instituição pode transmitir, para provocar as mudanças e rupturas desejáveis pelo Estado
brasileiro.
Como pensar esses saberes lingüísticos, necessários para o exercício da cidadania,
tomados como centro da questão ética da vida pública, civil, de cada brasileiro, e que
devem articular de uma forma determinada a falta individual – saber ler e escrever - à falta
coletiva – exercer ou não competentemente a cidadania?
2
. Ver tese de doutorado de Silva (1998)
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A reestruturação proposta sustenta-se, segundo os PCN, na má qualidade do ensino
do fundamental, no reiterado fracasso dos alunos e na repetência significativa na 1ª e na 5ª
séries, pela dificuldade em alfabetizar todas as crianças e por não garantir um uso eficaz
da linguagem, respectivamente. Sustenta-se, pois, em evidências.
Quanto à produção científica, capaz de transformar as idéias e a ação pedagógica,
os PCN tomam como marco a década de 80 e os campos da Psicologia e das Ciências da
Linguagem, assim discriminadas em subáreas: Psicologia da Aprendizagem e Psicologia
Cultural, e Psicolingüística, Sociolingüística, Pragmática, Gramática Textual, Teoria da
Comunicação, Semiótica e Análise do Discurso.
Observamos, que, embora todas essas disciplinas estejam mencionadas, e
encontremos, ao longo, do Volume, noções e conceitos retirados desses diferentes
domínios, o saber básico de referência, em se tratando da área das Ciências da Linguagem,
é o da Sociolingüística articulada a uma concepção de linguagem/língua como atividade de
Comunicação, e tendo localizado no sujeito intencional e cognoscente da escolarização –
aluno e professor – a possibilidade de se obter o produto desejado: um uso eficaz da
linguagem. Isso implica em mudança de paradigma: o abandono da gramática dita
tradicional e a adoção da lingüística.
Se a mudança de paradigma é fundamental para a mudança das práticas
pedagógicas, isso só se coloca em condições materiais determinadas, evidenciando o fato
de que as ciências têm uma relação com uma exterioridade para se constituírem, e com
seus efeitos fora delas mesmas, como é o caso do ensino. A prática que domina cada
ciência, e a relação entre elas, torna-se uma prática de ensino, ligada à transformação
histórica do processo de produção econômica, produzindo a normalização da força de
trabalho e a organização das relações sociais, pois o seu sujeito – no caso, o aluno – é um
elemento das forças produtivas de uma sociedade dada. Dizem os PCN, reafirmando nossa
assertiva.
Mas não são os avanços do conhecimento científico por si mesmos que
produzem as mudanças no ensino. As transformações educacionais realmente
significativas – que acontecem raramente – têm suas fontes, em primeiro
lugar, na mudança das finalidades da educação, isto é, acontecem quando a
escola precisa responder a novas exigências da sociedade. E, em segundo
lugar, na transformação do perfil social e cultural do alunado: a significativa
ampliação da presença, na escola, dos filhos do analfabetismo – que hoje têm
a garantia de acesso, mas não de sucesso – deflagrou uma forte demanda por
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em ensino mais eficaz. Estes Parâmetros Curriculares Nacionais pretendem
contribuir nesse sentido. (:23 – grifos meus)
Neste processo, intervêm elementos ligados às relações e ao processo de produção,
ao ordenamento jurídico e político da sociedade e às ideologias dominantes, determinado
as condições de produção desta política, bem como a seleção de determinado campo do
conhecimento – ou de determinadas teorias – para lhe dar sustentação científica. A
educação é uma atividade humana que participa da totalidade da organização social,
historicamente determinada por um modo de produção dominante - a capitalista -, tendo
uma especificidade que só é inteligível no contexto das relações sociais resultantes dos
conflitos de classes, diz Cury (1985). E eu acrescentaria, que a escola é uma instituição
dessa sociedade.
Podemos, então, nos perguntar. Como se dão as relações entre educação, linguagem
e sociedade, no trabalho pedagógico com a Língua Portuguesa, como língua nacional, no
interior da instituição escolar, de acordo com essa política nacional que coloca em relação
o político, o sujeito, a língua, as línguas e o saber sobre as línguas de determinada
maneira? Como se trabalha a dualidade unidade/diversidade constitutiva da relação entre
línguas? Como pensar a questão da ética lingüística no que se refere à pesquisa científica?
Vamos, pois, buscar responder, mesmo que de forma sucinta, essas questões.
O objetivo maior dessa política é, como já dissemos, formar o cidadão crítico,
participativo e autônomo pela aquisição daqueles saberes lingüísticos, necessários para o
exercício da cidadania. E os PCN de 1ª a 4ª séries, em seu volume 2, dão uma nova
direção teórica ao ensino da língua portuguesa, como língua nacional, ao dizer o que será,
sob diferentes paráfrases, reiterado por toda a proposta:
A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual a forma de fala utilizar,
considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber
adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar
satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se
diz determinada coisa. É saber, portanto, quais as variedades e registros da
língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa, do contexto,
dos interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de correção da
forma, mas sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização
eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito
pretendido. (1997:31/32)
Observamos, então, que essa proposta busca institucionalmente estabelecer uma
ruptura teórica, de forma a resolver o problema do fracasso escolar. Novos conceitos,
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articulados em um sistema marcado pela “adequação” do sujeito às situações de
comunicação, devem ser adotados pela escola, para se atingir o objetivo máximo
pretendido: o de formar esse cidadão “crítico”, “participativo” e “autônomo”. Estamos,
pois, diante de engajamentos teóricos explícitos, pois para mudar o ensino do Português é
preciso mudar o referencial teórico e a metodologia
Uma leitura atenta do funcionamento lingüístico desse enunciado, fornece mais de
uma entrada para análise e compreensão dessa política. Gostaríamos, contudo, de tomar
dois pontos para reflexão, nessa Mesa, postos: 1. pelo uso reiterado dos termos “adequar”,
“adequação”, “adequadamente”; 2. pelo uso da expressão “é saber”, que trazem para a cena
enunciativa o processo de constituição de uma subjetividade determinada, sustentada por
uma teoria lingüística, que permitirá uma compreensão dos efeitos de sentido produzidos
para “cidadão crítico, participativo e autônomo”, que a Escola visa formar, para atuar na
sociedade brasileira.
Em relação ao primeiro ponto por nós destacado, podemos avançar na análise,
fazendo uma consulta ao dicionário AURÉLIO (1975), seguindo o funcionamento
discursivo dos verbetes e a processo de remissão de um verbete a outro do dicionário.
Adequação: 1. ato de adequar-se; 2.ajustamento, adaptação; 3.
correspondência exata, conformidade, identidade; 4. Filos. conformidade ou
correspondência exata entre os termos de uma relação.
Adequar: 1. tornar próprio, conveniente, oportuno, apropiar, adaptar;
2.amoldar, acomodar, ajustar, apropriar; P 3. amoldar-se, acomodar-se,
ajustar-se.
Adequado: 1. apropriado, próprio, conveniente; 2. acomodado, ajustado,
adaptado; 3. conveniente, oportuno; 4. Filos. Diz-se de uma representação que
tem exata correspondência ou conformidade com seu objeto.
Acomodação: falta de ambição, de aspiração; desambição, conformismo.
“Sua acomodação impediu-o de vencer na vida”.
Acomodado: 1. tranqüilo, quieto, sossegado; 2. ajustado a uma situação sem
estar, ou não estando inteiramente de acordo com ela, adaptado. “Seus
argumentos de nada valem: é um sujeito acomodado politicamente”.
Ajustamento: 1. ato ou efeito de ajustar(se); ajuste; 2. adaptação,
amoldamento, conformação, ajuste; 3. reconciliação entre pessoas desavindas,
acomodamento, concórdia; 4. inteireza, retidão, justiça; 5. Bras. ajustagem.
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Ajustar: 1. adaptar, acomodar, harmonizar.”Com esse novo comportamento
procura ajustar melhor a sua pessoa; 2. conformar-se, concordar. “Não se
ajustou à situação, rebelou-se”.
Amoldar: 1. ajustar ao molde; moldar; 2. modelar, conformar. “Procura
amoldar seus escritos pelos dos grandes escritores”. 3. ajustar, adaptar,
harmonizar. “Amoldou sua ideologia às conveniências da época”. 4.
acostumar, habituar, afazer. “Só o tempo e a necessidade o amoldavam a viver
no estrangeiro”.
Estes enunciados definidores e exemplos vão produzindo sentidos e configurando
os gestos de interpretação aí contidos, revelando assim as formações discursivas – referidas
às formações ideológicas – em que se produzem as condições para a constituição de uma
subjetividade – uma estrutura psicológica específica -, que deve se ajustar a um modelo já
estabelecido, abrindo mão de toda ambição, desejos, vontades e necessidades,
acomodando-se politicamente, habituando-se à situação – mesmo que com ela não
concorde -, não se rebelando. Vemos aí privilegiadas as qualidades morais do indivíduo, na
justa medida, conforme as regras estabelecidas, capaz de propiciar uma convivência sem
conflitos ou rebeliões, harmoniosa e aceitável para os demais cidadãos de uma sociedade
dada.
Ser, então, um cidadão crítico, participativo e autônomo é ser um indivíduo
adaptado, ajustado, amoldado, conformado? A grande questão nas relações sociais e
políticas da sociedade brasileira, estaria, então, na inadequação de seus cidadãos? Mas
inadequação a quê? Como e por que eles não estariam conseguindo produzir o efeito
pretendido? Pela inadequação de sua fala e de sua escrita. E que “modelo” é este a ser
seguido, capaz de tornar esse cidadão “adequado”? Não é do certo e errado da gramática
chamada tradicional? Qual é então esse molde ao qual seu deve se ajustar? A cidadania é
uma questão de comportamento?
Em uma realidade complexa e contraditória como a nossa, com regiões e cidades
em diferentes estádios de desenvolvimento e de autonomia e representação política, com
uma história de relações de trabalho sustentada por um regime de escravidão – abolida
formalmente há cento e poucos anos apenas – e com uma economia assentada na
propriedade da terra, com 34% de pobreza absoluta, como falar de “inadequação”, de
“desajuste”, de “acomodação”, de “harmonização”?
Neste sentido, podemos compreender bem o que diz Pêcheux e Gadet (1998), em
relação à Sociolingüística: que ela recalca a política falando ou acreditando falar dela.
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Essa denegação do político no ensino do português fica evidente pelo duplo movimento
que os PCN estabelecem entre o dizer e o não-dizer, referido a uma memória discursiva
que se construiu historicamente e que permanece funcionando no silêncio e nos
esquecimentos.
O texto analisado fala constantemente em ”respeito”, “não discriminação”,
“combate ao preconceito”, como sucede, por exemplo, na explicitação dos Conteúdos
Gerais do Ciclo, onde são discriminados os “Valores, Normas e Atitudes que se espera que
os alunos adquiram ou desenvolvam”.
Por outro, há uma ausência, um não-dizer, necessariamente constitutivo do dito, da
história, das relações materiais de existência do cidadão, ou seja, das condições de
produção das relações econômicas, sociais e políticas da sociedade brasileira, dos seus
conflitos e contradições estruturais, do re-conhecimento e da análise da exclusão do
cidadão do exercício da cidadania no cotidiano civil da esfera pública como resultante da
desigualdade, da injustiça, da opressão; da ausência de uma escolaridade pública,
obrigatória e gratuita para todos, da ausência de uma política eficaz de leitura, que permita
o acesso de todos os cidadãos ao material impresso, articulada a uma política econômica
em que o salário possibilite a aquisição deste material.
Apaga-se, ainda, todo o conflito e confronto existente entre línguas em nosso País
para que se produzisse uma língua homogênea e estável, passível de ser escrita e ensinada
na escola. Processo em que a produção de saberes - gramáticas, dicionários, manuais,
metodologias, didáticas -, a produção de uma escrita, de uma jurisdição da língua, de
instituições, foi constitutivo e constituinte do Português do Brasil e de uma língua
nacional, como evidências.
Como a “adequação lingüística do sujeito às situações de comunicação” pode
ajudar a suprimir a má distribuição de riqueza do País, a desigualdade, o fracasso escolar?
Nesse sentido, é que falamos em denegação do político pela adoção de teorias e
tecnologias – lingüísticas e pedagógicas – fundadas em um humanismo reformista, que
trata questões políticas enquanto questões comportamentais de um sujeito capaz de
individualmente controlar a linguagem e as boas intenções. Pêcheux e Gadet (1998),
falando da relação do Estado, na sociedade capitalista, com as duas tendências domomintes
da Lingüística, dizem que: o sociologismo recobre também a questão do Estado
substituindo a análise das relações de produção por uma teoria das relações sociais que
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não é outra coisa que uma psicossociologia das relações inter-individuais (status, papel
prestígio, atitude, motivação…). (:14)
Ao professor e à escola competem, de acordo com tais propostas, desenvolver um
trabalho que possibilite essa adequação, por um engajamento técnico-missionário, que
mobiliza uma tradição antiga, cristã, em uma missão histórica de liberação de uma energia
social, retomando, de um outro lugar, sentidos que estiveram sempre ligados à constituição
da educação no Brasil, desde a primeira escola de catecúmenos (Silva: 1998). Situando a
proposta no campo da responsabilidade moral do professor em ensinar, e do aluno em
aprender, dá-se um caráter voluntarista e idealista ao ensino da língua, no interior de uma
concepção cristã de ação social, fazendo abstração das condições materiais de existência de
professores e alunos, bem com das relações econômicas e sociais da sociedade em um
momento dado. A ordem social não é posta em questão, quando se fala em “situações de
comunicação”. A luta é contra a exclusão do espaço público de expressão e não contra os
lugares socialmente construídos para o sujeito enunciar. A não-comunicação dos pobres,
que falam outras variedades e registros é que constitui problema a solucionar. Há, pois,
algo a restaurar, a complementar, a preencher, a conquistar…
Podemos, então, perguntar. De que falam mesmo, também, esses dizeres? Somente
de teorias e tecnologias? Eles falam daquilo que pretendem falar? Por que falam tanto de
“adequação”, por que essa vontade de falar do que é “adequado” em um meio marcado,
historicamente, pela desigualdade e pela diferença? Que referente é esse? Como ele foi
construído historicamente na sociedade e na escola brasileiras?
Responder a essas questões complexas, analisando o funcionamento lingüístico dos
enunciados, é compreender como se dá, historicamente, a construção de um espaço
discursivo de intertextualidade pelo jogo do que eles dizem, da maneira como eles dizem,
em relação a um não-dito e a um já-dito – interdiscurso - sobre o cidadão e o aluno
brasileiros, considerando que a língua portuguesa escrita, enquanto um objeto de ensinoaprendizagem, é um objeto de conhecimento, mas também um objeto político. Uma análise
das práticas de ensino e das práticas científicas deve, pois, nos levar a uma compreensão
das escolhas ou das opções políticas, nem sempre explícitas, dessa política.
Observamos que nas alianças e confrontos entre essas práticas discursivas, pelo
jogo e movimento de formações discursivas (científica, pedagógica, religiosa, moral),
envolvendo instituições, cria-se, ou melhor, transforma o sujeito “inadequado”
lingüisticamente às situações de comunicação já estabelecidas econômica e socialmente em
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um “problema social” para a constituição de “verdadeiros” cidadãos. Podemos também
pensar que situando o problema na inadequação do sujeito, produz-se um deslocamento
para a manutenção de desigualdades estruturais da sociedade brasileira, re-alimentando, de
outro lugar, o imaginário social sobre a incompetência do povo brasileiro para gerir a coisa
pública, devendo organizar-se – ser autônomo – sem rebelar-se, nos limites da
“concórdia”, da “retidão”, da “justiça”, da “harmonia”.
Neste sentido, esses discursos, legitimados pelas práticas científicas, constituem-se
em lugares de “circulação” de antigos dizeres, de uma nova maneira, onde se retoma um
problema tido como velho e evidente: o da dificuldade do povo brasileiro para aprender a
ler e a escrever, agora, adequadamente. Uma nova legibilidade do “problema” se constrói,
evitando a mudança de terreno que poderia levar a transformações nas condições de
trabalho de parte da população. São, pois, lugares de retorno dos pré-construídos, para se
dizer e pensar a escolarização no Brasil, mobilizando sentidos pré-existentes.
Teríamos, então, em um país como o Brasil, uma heterogeneidade empírica –
registros e dialetos -, afetando individualmente seus habitantes, e produzindo um cidadão
incapaz de um uso eficaz da linguagem em situações de comunicação, também
empiricamente heterogêneas – o bar, a escola, o trabalho, a família -, recobrindo na
verdade uma homogeneidade – uma unidade lingüística, social e cultural – existente em
toda sociedade humana, enquanto uma generalidade abstrata.
A história apagada e denegada, assim como os conflitos e contradições reais de uma
sociedade, dilui-se em aspectos contingentes de uma teoria das relações sociais que se
produz entre indivíduos, tomados também de forma empírica, revelando a dificuldade e
impossibilidade mesmo de um Estado de conviver e gerir, democraticamente, a diferença
com tudo de ambíguo e contraditório que isso possa ter.
Podemos, ainda, pensar no que diz Gadet e Pêcheux (1981).
A questão da língua é pois uma questão do Estado, com uma política de
invasão, de absorção e de anulação de diferenças, que supõe antes de tudo que
estas sejam reconhecidas : a alteridade constitui na sociedade burguesa, um
estado de natureza quase biológico; a ser transformado politicamente.
Assim, ao falar das questões da diversidade lingüística, recalca-se o político ao dar
visibilidade à diferença enquanto inadequação de um sujeito moral a uma situação
empiricamente determinada em que o sucesso da comunicação – da transmissão de um
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conteúdo unívoco por sujeitos capazes de controlar a linguagem consciente e
intencionalmente - estaria em atingir os objetivos. Como pensar na consecução de tal
objetivo em uma relação completamente assimétrica e hierarquizada como a de alunoprofessor na escola brasileira, fundada em uma outra relação primeira: a da barbárie x
civilização? Ou em uma relação de trabalho entre patrão e empregado, fundada
historicamente também em uma outra relação: a de senhor x escravo? Ou ainda também na
relação entre os proprietários de terra x os sem terra?
Uma teoria individualista, baseada na liberdade e nos direitos do indivíduo, assim
concebida, pensa a educação como desenvolvimento e aperfeiçoamento das forças
individuais, ajudando o homem a se realizar a si mesmo, sem que os objetivos da ordem
social sejam postos em dúvida. Na realização dessa ordem social mais justa, a contradição
entre indivíduo e sociedade se torna uma oposição, que se resolve tanto pela adequação do
indivíduo à ordem, quanto pela correção da ordem através do aperfeiçoamento continuado
dos indivíduos. As contradições não são transparentes, embora se transformem em
realidade, pela e na materialidade de uma língua afetada pela história. Assim, a contradição
- unidade e diversidade - que habita os objetos "Português do Brasil", "língua nacional",
"escrita" é posta de lado, pela exclusão do movimento contraditório, tomando-se esses
objetos como identidades permanentes.
Isto nos leva a pensar que é preciso analisar a especificidade dos diferentes
mecanismos de poder como os das teorias e metodologias. E para tanto podemos tomar o
funcionamento lingüístico do discurso científico, uma vez que não se trata de um bloco
homogêneo idêntico a si mesmo e está sujeito à interpretação, como todo discurso, por
parte do sujeito que o formula. Temos, pois, de compreender o(s) gesto(s) de leitura e
interpretação aí contidos que deixaram seus vestígios na organização textual, para
trabalharmos a categoria da contradição contida nas relações entre as práticas pedagógicas
e científicas no ensino do Português. Como diz Orlandi (1998):
... a ética lingüística tem sido pouco trabalhada em seu aspecto de pesquisa
científica. Isto porque, o viés pragmático e humanista que envolve as questões
lingüísticas - procurando "resgatar" culturas e corrigir déficits educacionais e
sociais através de um "bom" ensino de língua - só permite trabalhar a questão
ética pensando-se os resultados e não os pressupostos do trabalho da e sobre a
linguagem. Saindo pois dessa redução, podemos dizer que a questão ética deve
ser remetida ao modo de produção do conhecimento lingüístico em nossas
sociedades. Ou seja, deslocamos a questão ética e política que toca a
produção lingüística dizendo que a nossa inscrição em uma filiação teórica ou
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outra já é uma questão de ética e política lingüística. O saber lingüístico que
produzimos, e que deve estar à disposição de todos na sociedade, já traz
inscritas suas direções e conseqüências no momento mesmo em que o
formulamos. E sua formulação deriva do lugar (teórico-científico) em que ele
se constitui produzindo efeitos sobre os sentidos dos objetos que ele produz.
Português do Brasil. Língua nacional. Como pensar então uma mudança de terreno,
em direção à transformação e não a meras reformas?
Mudar de terreno pode significar primeiro compreender a história da constituição
do conhecimento gramatical no Brasil, a maneira como produzimos historicamente os
saberes sobre as línguas que sustentam nosso imaginário e a nossa relação com a língua,
com a ciência, com o ensino, com o espaço público.
Mudar de terreno é pensar, questionar, e compreender a importação cega de teorias
e tecnologias lingüísticas; as concepções de linguagem, de comunicação, de interação, de
interdisciplinaridade, de aplicação, que permeiam o nosso discurso pedagógico moderno. É
trabalhar a noção de sintaxe como base de um sistema dedutivo formal ou diluída na
diversidade de dialetos e registros. É explicitar e analisar a relação entre língua e ideologia.
Podemos pensar, ainda, em conhecer e compreender essa história de construção
desses referentes - Português do Brasil e língua nacional, por exemplo - e de uma
literalidade, que produz um imaginário que os sustenta; em incluir os momentos de
identidade e de oposição; em abrir-se aos dados que se vão revelando em nossas análises
científicas para incorporá-los em uma síntese sempre inacabada, ultrapassando o real
factual, mediante uma teoria que inclui o movimento contraditório das coisas, e aponta
para o concreto nas múltiplas determinações que o sintetizam e o orientam para a sua
transformação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.
CURY, C. R. J. Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria
crítica do fenômeno educativo. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1985.
GADET, F. e PÊCHEUX, M. La langue introuvable. Paris: Maspero, 1981.
ORLANDI, E. P. Ética e política de línguas. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos, nº
1. Campinas/SP: Pontes, 1998, 7-16.
PÊCHEUX, M. e GADET, F. Há uma via para a Lingüística fora do logicismo e do
sociologismo. Trad. Eni P. Orlandi. In: Escritos. Campinas: LABEURB/UNICAMP, 1998,
5-16.
SILVA, M. V. da. História da alfabetização no Brasil: a constituição de sentidos e do
sujeito da escolarização. Tese de doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP, 1998.
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