VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 AS FINALIDADES DE ESCRITA EM UMA PROPOSTA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NO CADERNO ORIENTAÇÕES PEDAGÓGICAS PARA AS SALAS DE APOIO À APRENDIZAGEM Patrícia Cristina de OLIVEIRA (UEM – UENP/Jacarezinho) Considerações iniciais A prática de leitura e de produção textual na escola continua sendo um assunto urgente e necessário. Embora muito se tenha discutido sobre a questão, os resultados negativos de exames como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o SAEB (Sistema Nacional de Avaliação de Alunos), o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e até mesmo o número elevado de desclassificação das redações de alunos em concursos vestibulares apontam para o fato de que o ensino-aprendizagem especificamente, à de língua leitura e materna, produção no escrita, que diz respeito, continua precário, insuficiente. Na tentativa de apresentar reflexões e contribuições ao ensino da produção textual, o presente artigo apresenta o resultado da análise a respeito da (in)constituição das finalidades de escrita da proposta de produção de textos no Caderno Orientações Pedagógicas destinado às Salas de Apoio à Aprendizagem, a qual se encontra nas página 84 e 85. Elegemos esse corpus de análise por entender que não podemos deixar de levar em consideração o fato de que a verificação das propostas de produção escrita em materiais didáticos revela-se profícua e essencial, já que, como constatam diversas pesquisas e estudos, a maior parte dos professores da rede pública segue indiscriminadamente o livro didático, legitimado socialmente como “lugar do saber definido, pronto, acabado, correto e, dessa forma, fonte única de referência” (SOUZA, 1999, p. 27). Essa legitimação do livro didático é tão grande que mesmo um programa de apoio ao ensino da língua portuguesa voltado para o VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 desenvolvimento de atividades diferenciadas das de sala de aula regular conta com um livro didático, para apontar os encaminhamentos a serem seguidos em sala de aula. Isso nos parece, de certa forma, paradoxal. O objetivo da análise é verificar: a) se a proposta de produção textual apresenta, de fato, uma razão para justificar a produção escrita; b) se tal proposta leva em consideração o outro; c) se o comando de produção textual deixa claras para o aluno as condições de produção que devem ser observadas para produzir o texto; d) se a interface leitura/escrita é evidenciada nessa proposta. Para tanto, lançaremos mão, principalmente, das propopsições teóricas desenvolvidas por Mikhail Bakhtin (2003) e Bakhtin/Volochínov (1999), bem como as contribuições de estudiosos brasileiros que defendem a perspectiva interacionista da linguagem e, consequentemente, o caráter dialógico de toda enunciação. A perspectiva interacionista e as finalidades de escrita Para Bakhtin (2003) todo enunciado deve possuir uma razão para ser produzido, tendo em visto que é a finalidade que define se o resultado da escrita será um texto ou simplesmente uma redação, conforme aponta Geraldi (1995), que é um dos estudiosos de Bakhtin no Brasil. Contudo, percebe-se, ao analisar materiais didáticos, que os comandos de produção textual, na maior parte dos casos, não deixa marcado para o aluno porque ele deve escrever, instaurando, dessa forma, um artificialismo que tem assombrado as práticas de escrita na escola. Bakhtin (2003, p.281) sustenta que “o intuito, o quererdizer do locutor”, isto é, a finalidade, constitui-se um dos elementos essenciais para a totalidade acabada do enunciado, que permite a possibilidade de responder. Isso significa que, independente do tipo de enunciado produzido, o interlocutor deve ser capaz de compreender, ou até mesmo sentir, a intenção discursiva do locutor. Todavia, como em VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 muitos livros didáticos a finalidade de escrita aparece marcada, o aluno acaba escrevendo um texto totalmente desprovido de sentido, já que não sabe por que está escrevendo e de igual forma não quem é o interlocutor do seu texto. Segundo Geraldi (1995) essa escrita sem finalidade marcada leva o aluno a produzir aquilo que ele denomina redação, uma vez que esta é concebida sob uma perspectiva monológica, isto é, o aluno escreve sem ter objetivo algum para sua escrita e muito menos sabe quem é o destinatário de todo o seu esforço para elaborar o discurso escrito. É nesse sentido que Antunes (2003), diz que é necessário que a escola, representada na sala de aula pelo professor, desenvolva práticas de escrita que levem em consideração o leitor, isto é, uma escrita que tenha destinatários e finalidades, para, a partir daí, escolher o que será escrito e de que forma será escrito. Tal proposição reforça a afirmação de Geraldi (1995), para quem “o outro é a medida”. Assim, evidencia-se que a finalidade é um dos elementos essenciais no momento da enunciação. Por isso, os materiais utilizados em sala de aula devem dar condições para que o aluno saiba por que terá que escrever, pois somente desta forma é que este poderá se constituir como autor de seus textos. Assim sendo, podemos afirmar, respaldados por Geraldi (1995), Pereira (1995), Almeida (1995) e Mendonça (2003) que a falta de finalidades para se desenvolver a escrita tem se mostrado um dos problemas centrais do ensino da produção textual. É nesse sentido que Geraldi (1995) sustenta que para produzir um texto é preciso ter o que dizer, para quem dizer e por que dizer. Deixando, assim, bem clara a necessidade de objetivos/finalidades específicas para o desenvolvimento de qualquer tipo de escrita. Partindo desse mesmo princípio, Mendonça (2003), no artigo “Língua e ensino: políticas de fechamento”, afirma que em VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 situações naturais de uso da linguagem escreve-se sempre para alguém, com finalidades específicas previamente definidas. É nessa direção que Geraldi (1995), sustenta que para se produzir um texto, em qualquer modalidade, é necessário estabelecer as condições de produção, ou seja, é preciso que se tenha o que dizer, se tenha uma razão para dizer o que se está dizendo. É preciso, também, que se tenha para quem dizer e que o locutor se constitua como sujeito dessa enunciação e, a partir disso, escolha as estratégias para realizar a enunciação, ou seja, escolha o gênero textual adequado ao seu discurso e ou às suas intenções. Depreende-se do exposto que cabe, portanto, à escola recuperar a atividade de produção de textos como um trabalho dialógico e também como atividade em que se deseja dizer alguma coisa para alguém. Análise da Proposta de Produção Textual do Caderno Orientações Pedagógicas: língua portuguesa, sala de apoio à aprendizagem A Sala de Apoio à Aprendizagem é um programa implantado pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED) para atender a alunos da 5ª série da rede pública com dificuldades na leitura e na escrita, na tentativa de evitar, ou amenizar, os índices significativos de reprovação nas 5ª séries do Ensino Fundamental. Ao verificar as atividades propostas nas unidades de ensino do Caderno Orientações Pedagógicas para as Salas de Apoio à Aprendizagem, constatamos que há uma ênfase significativa no ensino da leitura, ficando as atividades de produção escrita relegadas ao segundo plano, pois estas aparecem em menor quantidade. Sem querer negar a importância do ensino da leitura, respaldados por Geraldi e por vários outros teóricos, acreditamos que o trabalho com a produção de textos deve estar situado no mesmo patamar, já que ambas as atividades são complementares e interdependentes. VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 Como acontece com a maior parte dos livros didáticos, na organização do Caderno Orientações Pedagógicas: Língua Portuguesa – Sala de apoio à aprendizagem, a produção de texto é a última seção a ser trabalhada. Apresenta-se vinculada aos textos da unidade, mas sem qualquer relação de intertextualidade com tais textos, que têm em comum, simplesmente, a temática, e de uma forma muito abrangente. A proposta que nos propomos a analisar, transcrita abaixo, encontra-se nas páginas 84 e 85. Escolha uma das duas opções abaixo: 1) Faça uso de sua imaginação e crie uma história em que um ou mais animais mencionados no texto “Um Sonho Ecológico” sejam vítimas de perseguição de alguém. Não se esqueça de que os elementos da narrativa – ação, personagens, espaço, tempo, foco narrativo (quem conta a história) – precisam estar presentes. Dê um título bem original para o texto. 2) Com base nos textos lidos e, de modo especial, nas discussões relacionadas à ecologia que aconteceram em sala de aula, produza um texto expressando sua opinião, defendendo seu ponto de vista sobre a destruição do meio ambiente ou sobre a extinção de certas espécies de animais. Lembre-se de que seu texto precisa ter início, meio e fim. Dê a ele um título apropriado. Estes dois comandos de produção textual pertencem à unidade denominada Meio ambiente e são elaborados a partir do texto “Um Sonho ecológico”, o qual está posto como atividade de leitura e interpretação. Claramente, percebe-se que o realce é dado à estrutura do texto, seguindo as conservadoras tipologias textuais: narração e dissertação. Vale ressaltar, também, que a produção de texto é planejada distante de um contexto comunicativo com destinatários reais. Não há nenhuma marca linguística expressa no comando de produção textual que evidencie quem seja o interlocutor do texto que deve ser produzido. O VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 aluno é “convidado” a escrever, simplesmente a fim de exercitar sua “imaginação” e sem saber para quem o texto se dirige, isto é, não há um interlocutor marcado. Na primeira proposta, o comando solicita que o aluno, usando a imaginação, conte uma história sobre animais que são vítimas de perseguição. Nesse comando, percebe-se que a suposta finalidade da escrita é produzir um texto narrativo. Infere-se, dessa forma, que a finalidade de escrita é, unicamente, a reprodução de um tipo textual: a narração. Encontram-se presentes no comando os elementos da narrativa que devem estar evidentes no texto do aluno. Verificamos, assim, que a ênfase está na estrutura composicional do texto, não havendo nenhuma preocupação em se marcar para o aluno as finalidades da escrita e nem com quem o texto deve dialogar, ou seja, a quem a produção escrita se destina. Sabe-se que os educandos que estão inseridos no projeto Sala de Apoio à Aprendizagem precisam, de fato, se constituírem como sujeitos-autores e caminharem rumo à autonomia e competência linguística, a fim de se garantir a todos uma educação de qualidade, voltada para os princípios que regem a LDB/96, os PCNs (1997) e as DCE (2006), na proposição de formar homens letrados, comprometidos com o pleno exercício da cidadania. Dessa forma, fica o seguinte questionamento: Como o aluno pode constituir-se sujeito da sua produção escrita, se nem ao menos sabe por que está escrevendo, nem tampouco quem é seu interlocutor? Em relação às demais condições de produção (O quê? Por quê? Para quê? A quem? Quando? Onde? Como?), percebemos que o comando também não leva tais fatores em consideração. A segunda proposta baseada no mesmo texto – Um Sonho Ecológico – é totalmente inadequada à situação específica de ensino. Não podemos esquecer que os alunos a quem estas atividades se destinam apresentam dificuldades de aprendizagem quanto à leitura e à escrita, sendo que a maior parte dos alunos ainda apresenta problemas quanto ao processo de alfabetização. VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 Contudo, o comando convida o aluno a produzir um texto dissertativo-argumentativo, relacionando informações advindas dos textos lidos e também informações obtidas em sala de aula. Ora, se o aluno, na maior parte desses casos, não consegue nem produzir frases que sejam coerentes, como conseguirá organizar essa gama de informações, mantendo um eixo norteador de sentido? Quem lhes ensinou a fazer isso? Também não fica claro por que o aluno deve escrever esse texto. Quem vai ler? Não há nenhuma referência a quem se destina o texto. Solicita-se ao aluno um texto que expresse opinião, mas não se diz para quem esta opinião deve ser dirigida. Conforme já dissemos anteriomente, para Bakhtin toda obra (texto escrito) visa à resposta do outro. Sendo assim, todo enunciado se elabora, sempre, como para ir ao encontro de uma resposta. No dizer de Geraldi, o outro é a medida. Portanto, o discurso é sempre dialógico, porque é construído e determinado em função do outro. Vemos, assim, que não se leva em conta este fator fundamental – a presença do outro nas produções escritas – na elaboração desses comandos de produção textual. Em que situação o texto será lido? Que instrumento será utilizado para veicular o texto? Não sabemos. A proposta também não evidencia tais condições de produção. Ainda, não podemos deixar de comentar que o texto utilizado como suporte para tal proposta faz uso de várias figuras de linguagem e não há como fazer uma leitura única, a partir dele. Além disso, vários animais que são citados no texto não fazem parte do conhecimento de mundo nem de muitos adultos, quanto mais de crianças. Novamente, percebe-se que a finalidade de escrita recai na reprodução de um determinado “tipo textual”, ou seja, a ênfase está posta na estrutura e não em uma finalidade específica que justifique o porquê o aluno deve escrever tal texto. De acordo com Geraldi (1995), o gênero (no caso, aqui, descrito, o “tipo”) não se constitui uma finalidade de escrita, e sim a forma como o produtor do texto vai elaborar seu texto, VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 dependendo das intenções que este tenha para escrever – diz respeito ao “Como” e não ao “Para quê?”. Considerações finais A partir das reflexões realizadas, percebeu-se que a finalidade da escrita não aparece expressa nos comandos de produção textual de nenhum dos dois comandos de produção textual analisados. No Caderno Orientações Pedagógicas: língua portuguesa, sala de apoio à aprendizagem acaba concebendo a finalidade como mera reprodução de um dado gênero textual, que, aqui, configura-se mais como a reprodução de um “tipo” textual. Este tipo de escrita que o aluno é convidado (pela imposição) a desenvolver caracteriza-se como sendo “redação” e não, de fato, uma produção textual, pois como não há interlocutores estabelecidos, o texto torna-se monológico e, portanto, artificial. Para Bakhtin (2003), o elemento subjetivo deve estar ligado ao objetivo, em uma unidade indissolúvel. Isto significa que a finalidade de escrita deve estar associada ao gênero discursivo e não simplesmente marcar a finalidade de um texto como sendo a reprodução de um gênero. Para que a escrita não se torne artificial, é necessário que a finalidade esteja bem definida e é a partir dessa definição que ocorrerá a escolha do gênero discursivo adequado à situação de escrita. Somente assim, a escrita do aluno apresentará conexões com a sua realidade. Dessa forma, reafirmamos que sem a interação entre os sujeitos envolvidos na atividade de escrita a produção de textos fica sem finalidade, uma vez que, de acordo com a concepção interacionista, o discurso é produzido nas interações verbais. Portanto, se não há interação, não há como desenvolver uma escrita que realmente tenha sentido. Na escola, quando o produtor do texto não encontra um interlocutor ou não consegue construi-lo imaginariamente, a partir das condições propostas pelos comandos de produção de textos, a atividade VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216 de escrita torna-se artificial. Isso porque o sujeito com quem se produz um diálogo imaginário é essencial para a constituição do texto e de sua coerência. Os resultados obtidos evidenciam que, embora se afirme ser interacionista a concepção de linguagem que norteia o Caderno Orientações Pedagógicas, alguns elementos fundamentais dessa perspectiva teórica sobre a prática de produção de textos encontram-se ausentes dos comandos analisados. Isso nos leva a inferir que a escola ainda continua ensinando os alunos a reproduzirem modelos, numa visão distorcida a respeito da construção do texto escrito. Este, talvez, seja um dos principais motivos pelos quais os alunos apresentam dificuldades de escrita e não gostam de escrever. REFERÊNCIAS ALMEIDA. J. Sobre redigir. In: Confluência - Boletim do Departamento de Linguística. Assis: Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, ano 4, nº especial, 1995. ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, M. (Volochinov). 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