CRÍTICA & C O N T E X TO Graciliano Ramos: uma escrita derramada Cid Seixas Rá st ros do pás sar o de fo go RESUMO A partir da máxima de Bouffon, o estilo é o homem, Graciliano Ramos é tido pelos leitores como um homem seco e áspero, a exemplo da sua escrita. Esta impressão é desmentida pelas cartas de amor que ele escreveu a Heloísa e foram publicadas em livro. Palavras chave: Estilo, cartas de amor, Graciliano Ramos ABSTRACT Because of the sentence attributed to Bouffon, style is the man, Graciliano Ramos is seen by readers as a man dry and rough, as the example of his writing. This impression is belied by the love letters he wrote to Heloise and were published in book form. Keywords: Style; love letters, Graciliano Ramos A secção “Crítica & Contexto” reúne artigos de crítica de rodapé produzidos em diversos momentos por Cid Seixas, editor dos Cadernos de Literatura e Diversidade e de Jornada. Assim chamada por ter sido desenvolvida nos jornais, especialmente em espaços menos nobres, como a parte inferior da página, a crítica de rodapé encontrou cultores no Brasil, mesmo entre nomes da Academia, a exemplo de Antonio Cândido e Wilson Martins. 185 UEFS Marcada pelo calor da hora e pela resposta imediata ao lançamento ou à leitura de um livro, esta “brigada ligeira” é vista como uma atividade de risco intelectual, onde a reflexão imediata pode ser desmentida pelo amadurecimento das questões propostas. Atualmente confundida com a resenha informativa de caráter jornalístico, ela é rigorosamente uma resenha crítica concentrada e minimalista, primando pela seleção de pontos considerados essenciais. Na Bahia, foi praticada por estudiosos de formação universitária como Carlos Chiachio, Hélio Simões, Heron de Alencar e David Salles. No final do século XX, o autor deste texto assinou por quatro anos a coluna “Leitura Crítica”, no jornal A Tarde, onde se propunha a analisar um livro por semana, além de publicar críticas esparsas em O Estado de S. Paulo e na revista Colóquio | Letras, de Lisboa. Este espaço essencialmente acadêmico, retoma a experiência do texto leve e despretensioso, da conversa amena sobre leituras. Precisamente o contrário da análise vertical proposta pelo pensamento estrutural, ou cientificista, do início do século passado, ainda vigente na academia. Como o texto de jornal, já no dia seguinte, passa a ser letra morta e, assim como o seu veículo, é deposto na lata de lixo, tentase aqui salvar do destino inexorável um artigo que jaz no seu túmulo de papel: Coluna “Leitura Crítica”, Salvador, A Tarde, Caderno 2, 26 dez. 94, p. 4. Cartas de amor – “Se não te agradam sentimentos tão excessivos, mata-me. Mas não me mates logo: mata-me devagar, deitando veneno no que me escreves.” 186 CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE A letra de um tango, ou de um samba canção, cantado por Gardel, ou por Nelson Gonçalves, não seria mais plangente e dramática. Mas as palavras aqui transcritas são de Graciliano Ramos, publicadas no livro Cartas de Amor a Heloísa.1 – “Vê se me arranjas um colete de forças por causa de minha loucura.” – “Devo repetir-te que te amo como um doido?” – “Santo Deus! Vais chamar-me novamente romântico. Pieguices! Mas por que imaginas que o que te escrevo é falso? Não pensas o que disseste. Sabes perfeitamente que me tens preso – e brincas comigo como se eu fosse um miserável animal que uma criança amarra com um fio.” *** A escrita seca e cortante, a frase curta e precisa são características associadas por qualquer leitor ao nome de Graciliano Ramos. Estes traços também são estendidos ao caráter do escritor e do homem. Não esqueçamos que a similaridade entre o homem e o estilo da sua narrativa de ficção foi constituída desde que o leitor do romancista tomou conhecimento do seu relatório quando prefeito de Palmeira dos Índios. Polarmente oposto a todo documento desta natureza, o relatório que Graciliano apresentou em 1929 ao Governador do Estado, além de incisivo, revela um homem cuja objetividade do dizer confunde-se com a 187 UEFS CADERNOS DE LITERATURA E DIVERSIDADE secura mordaz. Ele não faz nenhuma concessão ao interlocutor. Pelo contrário, provoca-o desconcertantemente. Quando lemos as crônicas publicadas na imprensa de Alagoas, desde a segunda década do século XX, também vamos encontrar o mesmo sujeito resmungão. Graciliano começa sua coluna no jornal de Palmeira dos Índios espetando o leitor; ironicamente apontando suas mazelas. Ao invés de sussurrar ao ouvidos das leitoras, puxava suas orelhas, às vezes, reclamando que estavam sujas. Este é o jeito de Graciliano Ramos. Mas, no mesmo ano de 1928, ele aparece com uma escrita adocicada, feita de plumas, entrecortada por flechas, ou derramada de paixão. São as cartas escritas a Heloísa. Embora visceralmente ligadas ao mesmo estilo direto e agressivo, elas aparecem acolchoadas por almofadas de delicadezas, adocicadas pelos arrulhos amorosos do apaixonado missivista. São sete cartas de amor que o viúvo e pai de quatro filhos Graciliano, então com trinta e cinco anos, escreve à jovem Heloísa, de apenas dezoito anos. Estas cartas têm de tudo que qualquer carta de amor tem direito a ter. Lamúrias, afagos, fúrias ingênuas. Por isso, iluminam o horizonte do leitor na tentativa de se situar no universo de Graciliano Ramos. Como a sentença de Bouffon é freqüentemente apli- cada ao caso Graciliano – o estilo é o homem –, José Paulo Paes, no estudo introdutório às sete cartas de amor, procura tornar a máxima menos estreita. O mito da secura de Graciliano Ramos é enriquecido pelo depoimento do seu contato com o autor, quando, em 1947, conheceu um Graciliano que durante uma tarde inteira conversou com o jovem José Paulo Paes. Mestre Graça “vivia ali o seu lado descontraído (...) ficava natural”. O retrato assim retocado é menos incompleto. Aparece uma outra face de Graciliano, como a face revelada pelas suas cartas a Heloísa. É por isso que Paes conclui: “O escritor não é todo o homem, mas uma de suas virtualidades. No caso Graciliano Ramos, a mais rica sem dúvida, a julgar pela excelência e pela permanência das suas criações.” Mas as cartas de amor, apesar de desconcertantes para quem guarda a imagem casmurra do romancista, também estão sincronizadas com o narrador de Caetés. Numa dessas cartas aparece o episódio no qual um padre, amigo de Graciliano e da família de Heloísa, revela ao pai da moça que o seu futuro genro estava escrevendo um romance. Embora só fosse publicado em 1933, Caetés foi escrito entre 1925 e 1928, o ano em que o autor conheceu Heloísa. E não se diga que a paixão verdadeira vivida pelo escritor não é transposta, ou recriada, de modo diverso, porém análogo, na confidência que o personagem João Valério nos faz da sua paixão por Luísa. O personagem do romance escrito 188 189 *** UEFS por Graciliano Ramos também escreve o seu romance. Há uma importante e didimulada relação intertextual entre as cartas e o livro de estréia de Graciliano. Apesar disso, podemos dizer que as cartas de amor do autor de Vidas secas são tão surpreendentes quanto as cartas de amor de Fernando Pessoa a Ophélia. Assim como epístolas e criação se interpenetram em Graciliano, em Pessoa as cartas ressoam nas palavras do poeta heterônimo Álvaro de Campos: Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. [...] Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas. REFERÊNCIAS 1 Graciliano Ramos: Cartas de Amor a Heloísa. Ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro, Record, 1994. Cid Seixas é Doutor pela USP, professor Titular da UFBA e adjunto da UEFS. Jornalista e escritor, publicou diversos livros e artigos. E-mail: [email protected] 190 E S P E C I A L Normas para apresentação de textos Artigos e resenhas para publicação na revista Cadernos de Literatura e Diversidade poderão ser encaminhados observando-se o seguinte: 1. Envio de textos, com o máximo de 16 páginas (artigos) e 4 páginas (resenhas), em formato Word, fonte Times New Roman 12, espaço 1,5, corrigidos e revisados na forma a ser publicada, para que sejam submetidos ao Conselho Editorial. 1.1 Textos apresentando problemas de revisão poderão ser liminarmente rejeitados. 1.2 Excepcionalmente, serão aceitos textos fora das dimensões solicitadas. 2. Os artigos devem conter um resumo e um abstract, em inglês para indexação em fontes internacionais. 3. 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