A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL1 Elizângela Cardoso de Araujo Silva2 RESUMO Este artigo analisa a precarização experimentada no cotidiano dos trabalhadores em saúde mental na assistência hospitalar pública diante da redução da intervenção do Estado na sua responsabilidade do provimento das políticas sociais. A discussão parte de levantamento bibliográfico e da observação sistemática realizada em experiência de estágio supervisionado na assessoria de Recursos Humanos do Hospital Dr. João Machado - HJM (em Natal RN), entre 2008 e 2009. Pretende contribuir com a reflexão sobre as principais transformações políticas e econômicas que incidem no mundo do trabalho e na vida dos trabalhadores quanto à desproteção e redução de seus direitos, dificultando que estes atuem de forma articulada às últimas orientações da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil no que lhes compete a prestação de serviços aos usuários. Palavras-chave: Política de Saúde Mental. Hospital. Trabalhadores. Precarização. Introdução Discutir o trabalho hospitalar em saúde mental requer compreender, primeiramente, que após um longo período de equívocos e agressões cometidos contra as pessoas com transtornos mentais, transformaram-se os conceitos, legislações e princípios que regem a efetivação dos serviços direcionados ao acompanhamento da vida desses sujeitos. Foram realizadas reformas no Brasil e no mundo em busca de aperfeiçoar o cuidado em saúde mental e quebrar paradigmas historicamente construídos na sociedade sobre a loucura, o que traz implicações importantes no cotidiano dos trabalhadores da área hospitalar. Os esforços dos movimentos sociais (dos familiares, dos trabalhadores e dos usuários dos serviços) visando reformular o modelo de atenção às pessoas com transtornos mentais têm alcançado patamares de proteção dos direitos humanos e sociais muito significativos para os usuários e dentro desse processo. A partir dessa premissa, analisa-se, o processo de desmonte que determinou a precarização do trabalho em saúde mental a partir da observação 1 2 Artigo elaborado como requisito de avaliação da disciplina de Trabalho e Proteção Social: Tendências e perspectivas, da professora Odília Souza de Araújo, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (2010.1). Assistente Social, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (2010.1). E-mail: [email protected]. 1 participante e sistemática do cotidiano dos trabalhadores do hospital psiquiátrico Dr. João Machado – Natal RN. Considera-se que os trabalhadores são atores singulares na luta pela manutenção e ampliação dos direitos conquistados dentro dessa conjuntura tão desfavorável para as políticas sociais em que o Estado tem se afastado de suas obrigações na intervenção da questão social através das políticas sociais. A análise aqui apresentada está voltada a compreender a política de saúde mental no hospital psiquiátrico enquanto espaço onde se processam as relações cotidianas entre trabalhadores e usuários do serviço. Em seguida, apresenta-se como se dá o trabalho em saúde mental e a concretização da retração do Estado com o provimento das condições adequadas para os trabalhadores desenvolverem a assistência. 2 A Política de saúde mental: o trabalho no hospital psiquiátrico3 A principal diretriz da política de saúde mental é reduzir progressivamente os leitos psiquiátricos e paralelamente qualificar e expandir a rede extra-hospitalar4. Visa-se, sobretudo, manter um Programa Permanente de Formação em Recursos Humanos para Reforma Psiquiátrica, na perspectiva de promover os direitos dos usuários e seus familiares e garantir um tratamento digno às pessoas com transtornos mentais5. O novo rumo dessa política com o Sistema Único da Saúde – SUS – está consubstanciado no conjunto de normas legais reguladoras que apontam para a expansão e consolidação da rede de atenção extra-hospitalar. A Lei nº 10.216 de 2001 criou política de expansão continuada da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) na busca de assegurar um mecanismo diferenciado de financiamento para esta rede. A política de saúde mental passou por significativas transformações, que irão transitar da concepção/ações de assistência centrada na referência hospitalar, para fortalecimento modelo de atenção diversificada, de base comunitária. No entanto, essa perspectiva política 3 As reflexões sobre a Política de Saúde Mental na área hospitalar é resultado também do trabalho monográfico realizado em parceria com a Assistente Social Genoclécia Márcia Mafra da Rocha no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na ocasião da conclusão do curso de Serviço Social na Universidade potiguar em 2009.2. 4 Essa rede se constitui de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT’s) e Unidades Psiquiátricas em Hospitais Gerais (UPHG), incluindo as ações de Saúde Mental na saúde básica. 5 A avaliação dos hospitais psiquiátricos se dá por meio do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/Psiquiatria (2002), com o objetivo de possibilitar a melhoria da qualidade dos serviços hospitalares do SUS. É um instrumento de avaliação que busca diagnosticar a qualidade da assistência hospitalar psiquiátrica, descredenciando hospitais de má qualidade. O SUS realiza as supervisões, fiscalizações e auditorias, avalia a estrutura física do hospital, o funcionamento, os processos e os recursos terapêuticos da instituição e a sua adequação a rede de atenção à saúde mental (BRASIL, 2005). 2 ainda não foi assumida plenamente na atenção em saúde mental no Sistema Único de Saúde, que ainda gasta parcela significativa de seus recursos com a área hospitalar. O Estado, quando deveria impulsionar estratégias de desinstitucionalização6 fortalecendo a rede substitutiva, tem provocado uma desospitalização com sentido de desassistência. Nessa transição, o cotidiano dos trabalhadores em um hospital psiquiátrico nos dias atuais se torna repleto de contradições, embates e frustrações. Quando nos reportamos ao provimento das condições mínimas de trabalho e garantias das competências do Estado no provimento de um atendimento aos usuários de forma gratuita e qualitativa, verificamos que as exigências para a realização do trabalho se multiplicam. De acordo com Lobosque (2003), por um longo tempo, as questões voltadas à abordagem da saúde mental configuraram-se como uma “coletiva vontade de poder” que capturou e excluiu a loucura do espaço político de cidadania, tratando no âmbito da figura totalitária do hospital psiquiátrico aqueles não adaptáveis à ordem social estabelecida. A luta antimanicomial tornou-se um processo político na busca da transformação das relações da sociedade, dos trabalhadores e do Estado contra a loucura, e ao mesmo tempo implica exigências contínuas de investimento na ampliação qualitativa da organização do trabalho, permitindo assim restituir aos usuários a proteção de seus direitos humanos. O trabalho em saúde mental passa por muitas transformações desde seu nascimento. Uma característica importante, no entanto, é a centralidade do saber médico-psiquiátrico e do seu olhar sobre a doença mental. A história da clínica7 em saúde mental ocorre segundo Lobosque (2003, p. 18), nos hospitais psiquiátricos, nas fábricas, nas prisões, nos reformatórios, ou seja, justamente naquelas instituições criadas para disciplinar os homens, tratando de reeducá-los, adestrá-los, adequá-los a certas normas que apreendem o tempo, a vida e a força de seus corpos num jogo econômico do qual nem sequer são atores, mas, simplesmente, servidores. Com essa concepção, o cuidado está baseado numa relação entre sujeito técnico ativo e sujeito doente mental passivo, em que a clínica assume a função de controle social. 6 Desinstitucionalização não se restringe à substituição do hospital por um aparato de cuidados externos envolvendo prioritariamente questões de caráter técnico-administrativo-assistencial como a aplicação de recursos na criação de serviços substitutivos. Envolve questões do campo jurídico-político e sociocultural. Exige que, de fato, haja um deslocamento das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado realizadas na comunidade (GONÇALVES & SENA, 2001). 7 A origem da medicina moderna está na clínica. Esta se baseia no encontro entre a pessoa que se queixa e a que a atende. A palavra vem do grego – klinus - que significa leito ou cama e tem sentido de inclinar-se. Clínica médica: estar ao leito, assistir ao doente na cama (AMARANTE, 2003, p. 52 - módulo 3). 3 Relate-se que hospital8 ao ser criado a partir do século IV não se constituía como instituição médica, sua finalidade era mais voltada à religião e a filantropia na caridade prestada aos pobres e desamparados provendo-lhes teto, roupa, comida aos necessitados, e nesse serviço, pregar a palavras de Deus. O doente não era atendido com vistas a cura e sim o cuidado cristão (AMARANTE, 2003). Apenas a partir do século XVIII, com a medicina do espaço urbano em função dos processos de industrialização e expansão do proletariado, na França, o hospital passa a adquirir outras funções como internar uma população sob a condição de pobreza, desamparo e falta de recursos que precisava ser separada da sociedade. O hospital visava assim cumprir a função de auxiliar a ordem pública excluindo do meio urbano os inimigos do rei ou do Estado. Nesse mesmo período surgem as primeiras expressões do hospital como instituição de cura e de tratamento das doenças como instrumento terapêutico em função do desenvolvimento da medicina,9 que passou a ser um saber e uma prática hospitalar (AMARANTE, 2003). A partir de 1.780, quando as transformações sociais e econômicas ocorridas pelas mudanças no modo de produção aumentam a concentração urbana e, consequentemente, a precariedade das condições de vida, o hospital adquire papel de controlar as enfermidades (FOGOS, 2000, p. 103). Ao avaliar a função do hospital, Pitta afirma que: As diferentes funções que o hospital tem desempenhado ao longo de sua história têm dificultado em muito a tarefa dos que buscam entender o processo de trabalho hospitalar como um corpo de práticas institucionais articuladas às demandas práticas sociais numa dada sociedade e submetido a determinadas regras históricas, econômicas e políticas (1999, pp. 44-45). O processo de reorganização do hospital e de suas funções buscou a separação das patologias, e a loucura, tratada pela psiquiatria, foi objeto das formas mais diversas de abordagem. Inicialmente, apresenta-se uma psiquiatria baseada no princípio do isolamento, justificado pela “garantia de segurança pessoal dos loucos e de sua família”. Assim, foram estabelecidos meios de repressão, como tratamento moral (AMARANTE, 2003). Nesse percurso histórico registram-se também atitudes de insatisfação por parte dos profissionais em relação às técnicas utilizadas e às teorias que as sustentavam, levando-os à 8 9 O termo hospital vem do latim - hospitale – e significa hospedaria, hospedagem. Os hospedes acolhidos naquele momento eram prostitutas, delinquentes, venéreos, pobres, doentes e loucos (AMARANTE, 2003). A partir da reorganização do espaço hospitalar como laboratório para o estudo das patologias, a medicina passou a construir uma linguagem que permitia ver mais a doença do que o sujeito que sofria (ibdem). 4 procura de outras propostas para lidar com a questão. Esse desconforto se acentua após a segunda Guerra Mundial, em que a psiquiatria torna-se alvo de criticas em função da violência e exclusão que representavam os hospitais psiquiátricos pela sua prática de privação de liberdade e de desrespeito aos direitos humanos. Essas críticas foram muito importantes no sentido da busca de superação dos problemas apontados. Posteriormente, ocorreriam mudanças importantes na concepção e nos modos de abordagem da doença mental a partir das Reformas Psiquiátricas. O início da movimentação pela mais recente Reforma Psiquiátrica10 no Brasil se dá entre 1978 e 1982, onde a sociedade se mobilizava em torno de uma luta contra o asilamento tido como genocida, e contra a mercantilização da loucura, agravada pela expansão da saúde privada. As principais questões que fundamentaram essa luta foram: as denúncias de violências e a mobilização pela humanização nos hospitais psiquiátricos públicos e privados; a denúncia da indústria da loucura nos hospitais privados e conveniados do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); as reivindicações por melhores condições de trabalho nos hospitais; e a expansão dos ambulatórios para o tratamento em saúde mental (VASCONCELOS, 2000). O modelo de internação hospitalar11 foi amplamente questionado no Brasil. Este foi considerado por críticos como invasivo e violento além do caos da superlotação. E entra em crise por se caracterizar como um espaço para depósito de pessoas, não conseguindo atender de forma qualitativa aos rejeitados pela sociedade. Alguns eram loucos, porém todos vivenciavam o processo de exclusão social (BRASIL, 2004 a). O modelo de assistência à saúde mental é repensado no momento em que são projetadas novas bases para a Reforma Sanitária brasileira, reforçando-se pela ampliação do protagonismo de vários atores sociais que são responsáveis pelas críticas ao modelo asilar. Nessa perspectiva, há um fortalecimento do Movimento pela Reforma Psiquiátrica. 10 Para Vasconcelos (2000), no movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos destaca-se o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), iniciado com um forte processo de questionamento das políticas de assistência psiquiátrica vigentes no país. O movimento pela Reforma Psiquiátrica envolvia também trabalhadores do Movimento Sanitário, associações de famílias, e pessoas com longo período de internação psiquiátrica. 11 De acordo com a declaração da Conferência de Caracas de 1990, o hospital psiquiátrico, como única modalidade assistencial, impede alcançar os objetivos compatíveis com um atendimento comunitário, descentralizado, participativo, integral, contínuo e preventivo ao: a) isolar o doente do seu meio, gerando, dessa forma, maior incapacidade social; b) criar condições desfavoráveis que põem em perigo os direitos humanos e civis do enfermo; c) requerer a maior parte dos recursos humanos e financeiros destinados pelos países aos serviços de saúde mental (BRASIL, 2004 b). 5 Assim, os hospitais passam por um processo de transição deliberado pela Reforma Psiquiátrica, devendo reestruturar-se conforme as determinações da Política Nacional de Saúde Mental implementada no Brasil. Porém, expansão de uma rede extra-hospitalar (rede substitutiva) que acolha de forma integral a atenção às pessoas com transtornos mentais, ainda é incipiente em diversos níveis. O seu pleno funcionamento fará com que o hospital psiquiátrico deixe de existir. Isso causa inquietação e discordâncias entre trabalhadores: enquanto uns lutam pela idéia da expansão da rede substitutiva nas condições mais desfavoráveis, outros defendem a manutenção instituição no formato asilar/manicomial. Diante dessa realidade, o hospital se afirma como espaço crítico “[...] de aglutinação de trabalhadores diversificados e de usuários, frequentemente em dramáticas situações” (PITTA, 1999, pp. 19-21). E no seu exterior, a rede básica não funciona adequada e suficientemente para que o hospital cumpra a sua função de internar pacientes em crise e depois liberá-los ao convívio familiar, com o devido acompanhamento de base comunitária, e o Estado se desresponsabiliza cada vez mais do financiamento e da garantia dos serviços, assumindo o mínimo para os que não têm nenhuma condição de pagar pelos serviços na rede privada. Com as novas configurações do Sistema Único de Saúde – SUS, o hospital passa a fazer parte do setor terciário, enquanto instituição prestadora de serviços12. Aparecem formas de trabalho divididas em parcelas cada vez menores. Assim, o trabalho hospitalar enquanto processo envolve a prática (que é o próprio trabalho), os meios (que são os instrumentos teóricos e técnico-operativos), e a matéria prima (que é o objeto sobre o qual irá incidir a ação transformadora) (IAMAMOTO, 2006, p. 95). Nesse caso, a ação transformadora se dá em direção ao atendimento das necessidades da vida do sujeito atendido pelos equipamentos dos serviços de saúde mental e proteção de seus direitos. Impõe-se aqui o questionamento sobre qual o potencial dos trabalhadores desenvolverem uma ação transformadora quando também desprotegidos de seus direitos em situação de precarização do trabalho. 3 A precarização no cotidiano dos trabalhadores e a contra Reforma do Estado 12 O hospital, enquanto complexo aparelho de prestação de serviços à saúde, desenvolve um “trabalho que se consome como atividade útil por si mesma” (PITTA, 1999, p. 50). Para Costa (1998, p. 99), o serviço torna-se útil não como coisa, mas como atividade que se materializa no seu valor de uso. 6 Nesse tópico faz-se uma tentativa de realizar uma aproximação com o modo como se expressa a precarização no cotidiano do trabalho em saúde mental, concretizando desresponsabilização do Estado no provimento das condições adequadas para os trabalhadores desenvolverem a assistência na instituição hospitalar. Pelo trabalho em saúde mental perpassam as transformações que ocorrem na base conceitual (dos princípios e paradigmas) sobre a assistência em saúde mental e nos modos (prática cotidiana) de implementar os serviços enquanto política pública. Esse processo envolve movimentos tão complexos que sua abordagem não é capaz de esgotar-se nesse artigo. As transformações de base conceitual (dos princípios e paradigmas) exigem do trabalho hospitalar “repensar e construir de uma outra maneira, a presença da loucura entre nós” (LOBOSQUE, 2003, p. 17). Para a autora, esse tem sido o objetivo de um movimento que existe há décadas no Brasil. Trata-se de encontrar uma nova habitação para a loucura – o que não significa, naturalmente, reformar ou remodelar os espaços que os chamados loucos deveriam forçosamente habitar, e, sim tornar cada vez mais fluidas, mais transitáveis, mais flexíveis, as fronteiras entre as instituições destinadas a eles e a sociedade onde se desenrola a vida e o destino de todos nós, loucos ou não. Percebe-se uma necessidade de transformação de natureza diversa, no âmbito da sociedade. Quanto ao modo (prática cotidiana) de implementar os serviços enquanto política pública exige-se apreender o louco como sujeito de direitos, no âmbito da reorganização dos serviços baseados em princípios de liberdade e do desenvolvimento humano, requerendo do trabalho uma prática coerente com esses princípios, sem deixar de lado a luta pela proteção dos direitos dos trabalhadores, ampliando direitos trabalhistas e previdenciários. O Programa Permanente de Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica criado em 2002 pelo Ministério da Saúde propõe incentivar, apoiar e financiar a implantação de núcleos de formação em saúde mental para a Reforma Psiquiátrica, através de convênios estabelecidos com a participação de instituições formadoras como as universidades. No entanto, ocorrem problemas como: ausência de projetos para viabilizar tais propostas, de profissionais suficientes que assumam a formulação de projetos e de incentivos para estes profissionais. E quando há projetos/ações, ocorre uma baixíssima participação dos profissionais que atuam diretamente no provimento do cuidado das pessoas com transtornos mentais. Os investimentos na formação técnica e teórica dos trabalhadores ainda são poucos, 7 e os trabalhadores encontram-se desmotivados por baixas remunerações ou contratos precários de trabalho e jornadas excessivas. É comum a culpabilização dos profissionais, porém as condições de trabalho tem sido as mais adversas como serão apresentadas nessa análise. As situações de precarização do trabalho têm prejudicado mais ainda a prática em saúde mental. Com as transformações econômicas e políticas em curso, os prejuízos para os trabalhadores da saúde em geral têm sido preocupantes e desmobilizadores das lutas. Assim, apresentam-se muitos problemas para a atuação profissional no hospital psiquiátrico, desde a formação de recursos humanos para atuar na área, como também seguranças que permitam os trabalhadores fortalecerem as lutas em favor dos direitos dos usuários. Em 2001, com a Lei 10.216, no seu artigo 3º, o Estado foi responsabilizado pela implementação da política de saúde mental, como se verifica na citação a seguir, É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2004 b, p. 17-18). Ocorrem, no entanto, outros movimentos que o distanciam de sua função no desenvolvimento dessa política. O Estado aporta-se numa suposta escassez de recursos fazendo-o retirar sua responsabilidade em relação as respostas que devem ser dadas à questão social. Para Montaño (2010), os desvios significativos que ocorrem no Brasil envolvem os impactos das transformações político-econômicas desencadeadas a partir de 1970, por conta da crise do petróleo, se constituindo como uma crise estrutural geral que emerge do capital, está enraizada no excesso de capacidade de produção que não encontrou seu retorno nas vendas, levando a uma forte queda das taxas de lucro em derivação também as manifestações das crises da produção fordista, do “Estado de Bem-Estar”, do “pacto Keynesiano” e seu modelo de regulação. Com essa compreensão, o autor segue dizendo que com a queda de lucratividade (pela incapacidade de vender tudo que se produz) o capitalista passa a desenvolver suas estratégias de superação como o “acirramento da exploração da força de trabalho” (MONTAÑO, 2010, p. 43), ampliando formas de extração de mais-valia e diminuindo os custos da mão de obra, precarizando salários, direitos, serviços e políticas estatais, bem como os direitos trabalhistas conquistados como direitos sociais e políticos. 8 Como solução parcial da crise capitalista, o neoliberalismo visa à reconstituição do mercado com o apoio do Estado, propondo assim, reduzir ou até mesmo eliminar a intervenção social deste em diversas áreas e atividades, incluindo a precarização do trabalho no setor público baseado no princípio de enxugamento da máquina pública (MONTAÑO, 2003). O afastamento do Estado com o provimento das condições adequadas para os trabalhadores na saúde mental envolve receituário neoliberal de adaptação deste a ordem social vigente que considera os gastos sociais como atividades burocratizadas e sem retorno permitindo-nos visualizar as situações de precarização. O que aqui se denomina de precarização está relacionado às situações de insegurança13 em que vivem os trabalhadores no seu cotidiano (BEHRING, 2003). Envolvem situações como a terceirização, o trabalho por tempo parcial, desprotegido, instável, temporário, desqualificado, desregulamentado (ANTUNES, 2000) e sem garantias como férias, décimo terceiro salário, benefícios previdenciários, regulamentação das jornadas, dos contratos e remunerações. Essas são consequências dos processos de redirecionamento das políticas sociais submetidas aos ditames da política econômica em curso, que segundo Behring (2003) trata-se de uma contra-reforma pelo seu aspecto regressivo, observado nas condições de vida e de trabalho e de participação política das maiorias. As políticas neoliberais comportam algumas orientações/condições que combinam, tendo em vista a inserção de um país na dinâmica do capitalismo contemporâneo, marcada pela busca de rentabilidade do capital por meio da reestruturação produtiva e da mundialização: atratividade, adaptação, flexibilidade e competitividade (BEHRING, 2003, p. 59). A autora assinala que os Estados nacionais ficam restritos a cobrir o custo de algumas infra-estruturas (onde não há interesse privado), aplicando incentivos fiscais e garantindo escoamentos suficientes e institucionalizando processos de liberalização e desregulamentação. Isso implica liberalizar, desregulamentar e flexibilizar as relações de trabalho diminuindo salários, contribuições sociais para a Seguridade social, em que se destacam também as privatizações e a redução do setor publico na prestação de serviços. 13 Para Behring (2003, p. 39-40), a insegurança se manifesta nas formas de insegurança no mercado de trabalho (não prioridade do pleno emprego como objetivo do governo, ampliação de desigualdades, redução de benefícios etc.), insegurança no emprego (redução da estabilidade e subcontratação), insegurança na renda (flexibilização dos salários), insegurança na contratação do trabalho (risco da explosão jurídica do contrato coletivo de trabalho) e insegurança na representação do trabalho (redução dos níveis de sindicalização). 9 Os direitos sociais, conquistados na Constituição Brasileira de 1988, são esvaziados numa estratégia ideológica de transferência da responsabilidade para o terceiro setor ou para o setor privado, que segundo Montaño (2010, p. 43), funciona como encobridor do “desmonte do padrão de intervenção social estatal, construído historicamente (...) e a confecção de uma nova modalidade de resposta social orientada nos moldes neoliberais.” No âmbito do trabalho em saúde os impactos do plano da contra-reforma do Estado são identificados a partir de alguns fatores como: diversidade de formas de contratação, ausência de concursos públicos, alta rotatividade de pessoal, terceirizações abusivas, inexistência/inadequação de planos de carreiras, ausência de política de qualificação/formação, inadequação organizacional e funcional das secretarias estaduais e municipais de saúde (SES e SMS), e inexistência de mecanismo que assegure o diálogo entre os gestores e os trabalhadores do SUS (BRASIL, 2006). A situação de precarização se concretiza na medida em que, conforme o Programa Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS (2006), os contratos de prestação de serviços são utilizados exclusivamente como contratos de fornecimento de mão-de-obra. Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Publico (OSCIP) cooperativas e empresas privadas, passam a atuar como intermediadoras de mão-de-obra, contratando pessoas para atuarem no na saúde sem concurso público (BRASIL, 2006). A reforma administrativa do Estado instituiu novas normas jurídicas para o trabalho no setor público e determinou novos formatos às instituições com as quais o Estado pode se associar, trazendo mudanças que afetaram a gestão e a regulação do trabalho no SUS como: contenção de gastos com pessoal, terceirização sem critérios, flexibilização dos vínculos de trabalho, incentivos à demissão voluntária através de planos específicos, estimulo à aposentadoria, e desestruturação das carreiras que não constituíam o núcleo central de gestão do Estado (Ibdem). O Programa Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS (BRASIL, 2006), ao relacionar a terceirização ao trabalho precário apresenta a previsão legal para tal encaminhamento: O decreto-lei 200, de 1967, legalizou a transferência das atividades auxiliares (planejamento, coordenação, supervisão e controle) para a iniciativa privada. Enunciado 331, de 1993 (TST) admitiu a terceirização de atividades meio da administração pública, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta. A Lei 8.666, de 1993, e Lei 8.883, de 1994, permitiram a terceirização pela administração direta e indireta de serviços como: transporte, vigilância, conservação, manutenção, limpeza, publicidade, seguro e trabalhos técnico-profissionais (BRASIL, 2006, p. 11). 10 Ou seja, a precarização do trabalho em saúde mental está protegida em bases legais, e além dessas situações, encontram-se outras manobras de gestão que agravam a precarização, como: terceirização ilícita de mão-de-obra, estágios fraudulentos, falsas cooperativas, desvirtuamento dos cargos e funções de confiança ou comissionados, contratação temporária abusiva e não nomeação de aprovados nos concursos (SOARES FILHO, 2010). Conforme Antunes (2000), as mudanças que ocorreram no mundo do trabalho criaram uma classe trabalhadora mais heterogênea, mais fragmentada e mais complexificada, perdendo-se os laços de pertencimento de classe e fortalecendo buscas de soluções individualizadas. Soma-se a esse quadro a complexidade própria do cotidiano do trabalho hospitalar, envolvendo assim a vida dos trabalhadores como um todo. Para Heller a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela encontram-se “em funcionamento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos paixões, idéias e ideologias. (2008, p. 31), A autora permite-nos compreender que no cotidiano do trabalho em saúde mental, os trabalhadores carregam e expressam as determinações múltiplas da vida em sociedade, políticas, sociais e econômicas, expressando esse movimento complexo e por vezes contraditório no seu trabalho. As questões contraditórias no cotidiano do trabalho em saúde mental aparecem segundo Lobosque (2003, pp. 174-177) como problemas: da ordem da formação técnica, por ainda estar “divorciada das necessidades dos serviços substitutivos”, exigindo mudança de conteúdo e na forma da aprendizagem; problemas nas questões da admissão dos trabalhadores envolvendo a ampliação de um processo de precarização das contratações, trazendo reflexos negativos para o trabalho e por fim problemas de distanciamento entre trabalhadores e gestores, em que as decisões podem se tornar centralizadas e ocorrem incoerências nas nomeações muitas vezes clientelísticas e exercício autoritário de coordenações e chefias. 4 Considerações finais Todos esses problemas parecem convergir para o enfraquecimento e fragmentação das lutas em favor da manutenção e ampliação das conquistas da reforma psiquiátrica, impelindo trabalhadores e usuários a uma possibilidade de retorno ao confinamento de incertezas e desafios. Mas aqueles pequenos grupos mais desejosos da concretização das mudanças 11 resistem corajosamente e insistem e promover encontros entre os sujeitos enlouquecidos pela vida e os espaços sociais, bem como não se submetem e não se entregam a esse cenário desalentador. O panorama atual das políticas sociais diante do afastamento do Estado enquanto seu principal provedor, vem requerer exigências ainda maiores aos trabalhadores da saúde mental, além de maior apropriação política dos processos em curso, a luta envolve a sistematização de estratégias que contemplem reivindicações e resistências em defesa dos usuários e do seu próprio trabalho, porque os retrocessos carregam o legado das de ofensivas no nível macroeconômico e político, mas também do terreno das indiferenças e dos imobilismos ao qual intencionalmente foram empurrados os trabalhadores. Não se esperam facilidades, nem manuais com respostas prontas. Esperam-se encontros e confrontos que contestem e neguem essa existência humana reduzida e estranhada. Referências AMARANTE, Paulo (coord.). Saúde mental, políticas e instituições: Programa de educação a distância. Rio de Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ. EAD/ FIOCRUZ, 2003. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses do mundo do trabalho. 7. Ed. ver. Ampl.—São Paulo: Cortez; Campinas. São Paulo, 2000. BEHRING, Elaine R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde/DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, 2005. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br> Acesso em: 10 ago. 2008 às 15: 20 h. ______. Ministério da Saúde. Secretária- Executiva. 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