Os Igarapés na Cidade de Manaus: uma dupla visão
Larissa Christinne Melo de Almeida
Centro Universitário do Norte – UNINORTE/Laureate – Manaus/AM
Mestra em Arquitetura e Urbanismo, pela UFRN/Natal, 2005;
Arquiteta e Urbanista, pela ULBRA/Manaus/AM, 2002.
Afrânio Barbosa de Almeida Lins Filho
Centro Universitário do Norte – UNINORTE/Laureate – Manaus/AM
Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade, pela UFAM/Manaus, 2005;
Arquiteto e Urbanista, pela ULBRA/Manaus/AM, 2002.
Maria Luisa Gambôa Carcereri
Centro Universitário do Norte – UNINORTE/Laureate – Manaus/AM
Mestra em Urbanismo, pela UFRJ/Rio de Janeiro, 2009;
Arquiteta e Urbanista, pela UFJF/Juiz de Fora/MG, 2007.
Daniel Montenegro Alfaia
Centro Universitário do Norte – UNINORTE/Laureate – Manaus/AM
Especialista em Conforto do Ambiente Construído, pela USP, 2003;
Arquiteto e Urbanista, pela ULBRA/Manaus/AM, 2001.
RESUMO
A cidade de Manaus, em sua morfologia natural, possui grande presença de pequenos rios,
conhecidos como igarapés. Com grande quantidade de água corrente, os igarapés fizeram que a
cidade, na década de 1920, ficasse conhecida como a Veneza dos Trópicos. Porém, em sua
história, a cidade passou por momentos de forte migração populacional, o Ciclo da Borracha, final
do século XIX e início do XX; e a Zona Franca, em meados do século XX, com a inserção da
indústria. Esses momentos trouxeram benefícios, na economia da cidade. Todavia, na questão
urbana, o alto fluxo migratório e a falta de estrutura para tal acontecimento, resultou no caos.
Agravaram-se os problemas relativos ao uso e ocupação do solo, em especial, a questão
habitacional. Por falta de opção, as pessoas ocuparam vazios urbanos e margens dos igarapés,
resultando num adensamento de habitações sem infraestrutura. Assim, para melhorar o aspecto
dos igarapés e recupera-los, o Governo do Estado implantou o Programa Social e Ambiental dos
Igarapés de Manaus (PROSAMIM), promovendo o saneamento e a utilização racional do uso do
solo às margens dos igarapés. Para tal, foi necessária a remoção das famílias que viviam nas
áreas de risco, sujeitas a inundações. Dessa forma, houve a implantação de projetos para novas
habitações e espaços públicos, proporcionando uma integração social não só da comunidade,
mas também de toda a população residente e dos turistas, visto que esses espaços, “resgatam”,
de certa forma, um pouco da história da cidade.
1. O CICLO DA BORRACHA
1.1. O aumento da população
Antes do ciclo da borracha, a população da Amazônia crescia lentamente. Caracterizada como
população ribeirinha, a cidade “funcionava” bem na margem direita do rio Negro, onde seus
habitantes viviam basicamente da pesca e da agricultura, em harmonia com a natureza, dela
retirando o suficiente pararirsup
suas necessidade
Todavia, enquanto aumentava a população “civilizada”, os povos indígenas tiveram seus territórios
diminuídos, seus membros dispersos, seu povo, muitas vezes, violentado e, de um modo geral,
foram reduzidos pela “febre” extrativista da borracha.
Outros elementos passaram a predominar, mesclando as várias raças e tipos humanos que
marcaram sua presença, deixando como herança os que descenderam dessa miscigenação. Ao
lado do tapuio1 e do caboclo, a figura do nordestino fazia emergir um novo personagem: o
seringueiro. (DAOU, 2000).
1.2. A morfologia urbana
Manaus era a capital provincial localizada na região mais distante da Corte e para chegar a ela
era necessário empreender longas e nem sempre cômodas viagens fluviais.
Antes do Ciclo da Borracha, o aspecto urbanístico da cidade não era muito organizado, apenas
um aglomerado definido de acordo com os caprichos da natureza: diversos igarapés recortavam
irregularmente a cidade e estabeleciam os limites de alguns bairros recortados por ruas
irregulares e esburacadas, cujos limites eram muitas vezes definidos por acidentes naturais. A
grande maioria de suas casas era coberta com palha e entre os edifícios públicos, poucas
construções de porte destacavam-se.
A comunicação entre alguns bairros era feita por meio de pontes de madeira (que quase sempre
precisavam de reparos). O serviço de iluminação pública e o de abastecimento de águas eram
bastante deficientes. A arquitetura da cidade era constituída por edificações, em sua maioria, de
um só piso, muitas construídas no sistema pau-a-pique e algumas ainda cobertas de palha.
Entre 1892 e 1896, durante a administração de Eduardo Ribeiro, um engenheiro militar, Manaus
foi transformada. Foram introduzidos mecanismos legais que visavam a promover um melhor
controle do espaço urbano e a nortear a ocupação de novas áreas, garantindo assim os rumos da
expansão urbana.
Os novos bairros previstos eram inteiramente distintos da implantação anterior, pautada numa
ligação tradicional com o rio. Ruas largas em traçado reto significavam uma atitude de ação sobre
a natureza, submetendo aos trabalhos de canalização as águas dos igarapés que dividiam a
antiga cidade.
O novo modelo urbanístico adotado era baseado num traçado em forma de tabuleiro de xadrez, e
as obras, a partir daí, fizeram com que colinas fossem aplainadas, os igarapés, aterrados, e as
ruas avançassem em direção à mata. A cidade passou a ter dois patamares: um voltado para o rio
e outro que dele se distanciava, incorporando as áreas de mata ao quadriculado do novo traçado.
1
Conforme Aurélio, nome usado antigamente pelos tupis para designar os inimigos. Índio manso ou mestiço de índio.
O eixo principal, inicialmente denominado Avenida do Palácio, quando inaugurado em 1901,
recebeu posteriormente o nome de Avenida Eduardo Ribeiro, numa homenagem póstuma.
Chamado pelos moradores da cidade simplesmente de “avenida”, indicava o centro simbólico da
nova cidade então concebida.
A Manaus modernizada atendia particularmente aos interesses da burguesia e da elite
“tradicional”, vinculada às atividades administrativas e burocráticas. Foram implantados vários
serviços urbanos: redes de esgoto, iluminação elétrica, pavimentação das ruas, circulação de
bondes e o sistema de telégrafo subfluvial, que garantia a comunicação da capital com os
principais centros mundiais de negociação da borracha.
Muitos dos que foram para o Amazonas na década final do século XIX e no início do século XX –
estrangeiros ligados à exportação e à importação ou funcionários das firmas prestadoras de
serviços urbanos e de navegação, e, em menor número, profissionais liberais – passaram a viver
nos novos bairros, nos quais as ruas seguiam o traçado geométrico, livre do domínio dos igarapés
e de aspecto mais salubre que o antigo centro.
A construção das casas refletia um estilo de vida distinto, com uma nítida separação entre os
locais de moradia e os de trabalho, valorizando-se as residências situadas em amplos terrenos ou
chácaras. No estilo das casas e na disposição dos jardins e pomares, expressava-se a
diversidade das origens dos que ali passaram a viver, como por exemplo, ingleses, americanos e
libaneses.
A intervenção urbana promoveu, aos olhos dos que ali viviam, a superação de um atraso histórico.
De acordo com Mesquita (1997), devido à homogeneidade no estilo, nas funções ou nos usos que
tiveram os novos espaços, sucedeu uma representação de ampla e inequívoca aceitação para os
amazonenses sobre a “Manaus antiga”. Este é o cenário urbano da belle époque manauara,
também conhecida como “Manaus moderna”.
No entanto, ressalta-se que a localização geográfica e as condições climáticas da região
Amazônica
inspiravam
muitos
temores
e
exigiam
cuidados
redobrados,
levando
os
administradores a empreenderem grandes projetos na tentativa de melhorar as condições de
salubridade da cidade.
O Departamento de Higiene e Saúde apontava como medidas urgentes a serem adotadas: o
aterro dos igarapés que cortavam a cidade, o nivelamento dos terrenos, o calçamento e a
arborização de ruas e praças da cidade, além do melhoramento do serviço de limpeza pública, a
ampliação do sistema de distribuição de água potável para a população e a instalação de uma
rede de esgoto.
Por conseguinte, em 1909, o então governador Antônio Ribeiro Bittencourt fez várias críticas aos
trabalhos de saneamento realizados na cidade. Condenou as escavações e aterros de igarapés,
pois assim, privaram a capital de seus acidentes naturais, tirando-lhe “um de seus encantos”, e
classificou o aterro dos igarapés como “infeliz idéia”, por acreditar que se fossem devidamente
drenados fariam de Manaus, “não só a linda princesa do rio Negro, mais ainda uma Veneza dos
Trópicos, enfeitada pela luxuosa vegetação amazonense”. (MESQUITA, 1997, p. 37)
Se por um lado melhoravam as condições de comunicação, higiene, transporte; por outro,
interferia-se na topografia, modificava-se o clima e impunham-se costumes, ignorando as
tradições locais. Ou seja, a cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia os
traços de características ocidentais.
No final do século XIX, a concepção de traçado urbano aplicado por Haussmann na reforma de
Paris já estava definitivamente difundida por quase todo o mundo ocidental e adotada como
modelo eficiente pela maioria das grandes cidades.
O novo modelo urbanístico estava inserido no rol das grandes mudanças pelas quais passava a
sociedade moderna. O progresso da ciência e o avanço tecnológico construíam uma nova
sociedade em que a participação da máquina tornava o ritmo de vida mais rápido e o consumo de
bens e serviços favorecia a utilização dos espaços públicos. A ampliação de ruas, a abertura de
boulevares, cafés, galerias e outros itens comerciais criavam um clima efervescente e alegre,
estimulando bastante a vida mundana.
O modelo urbanístico francês influenciou as reformas que se processaram em algumas cidades
brasileiras, principalmente no que diz respeito à abertura de grandes avenidas e a constante
preocupação com o embelezamento das fachadas dos novos prédios. Todavia, em Manaus,
apesar desta influência pelo país, a distribuição e o uso do espaço urbano mantiveram várias
características da organização luso-brasileira.
Durante o período provincial, a cidade apresentava um aspecto um tanto singelo, marcado pela
presença dos igarapés e da farta vegetação. A malha urbana observada no primeiro mapa da
cidade (mapa 01), em 1852, era pequena, e constituída por ruas curtas e estreitas, sendo os
quarteirões dispostos sem rigidez.
Essas características imprimiam um traçado de aparência pouco organizado, apesar de estar
muito mais de acordo com as condições da natureza local; seu desenho era definido pelas
condições físicas da região, ou seja, as construções espalhavam-se sobre colinas, seguiam a
sinuosidade dos igarapés que faziam curvas pela cidade e determinavam os limites das ruas. Tais
características, nem sempre inspiravam segurança àqueles que buscavam nas metrópoles
modernas e saneadas, um modelo de cidade, mas naquele momento este padrão era inacessível
para as condições locais.
O mapa da cidade (mapa 01) revela o traçado de um pequeno povoado que tinha como pontos
extremos o Hospital de São Vicente à esquerda, e à direita o Largo dos Remédios, enquanto que
no sentido Norte o ponto mais distante era o Campo da Pólvora2 que ficava por trás do bairro
Campinas.
Mapa 01: Planta da cidade de Manaus, levantada em 1852. Fonte: Mesquita (1997).
O pequeno povoado era recortado pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, do Espírito Santo e
do Aterro, que separavam os bairros dos Remédios, República, Espírito Santo, Campinas e Ilha
de São Vicente.
Em 1893, foi traçada uma nova planta para a cidade de Manaus (mapa 02), na qual se pode ver
uma malha urbana bastante ampliada, com um desenho rigidamente organizado. Nesse
momento, o objetivo era inserir a cidade em um novo modelo urbanístico, e para isso, seria
necessário o seu redimensionamento, implicando em “reedificação”.
A partir do período republicano, os temas urbanismo, arquitetura e paisagismo tornaram-se
frequentes nas mensagens governamentais relacionadas às obras públicas necessárias ao
embelezamento da cidade e passaram a ocupar uma função importante no processo de
modernização, segundo os novos padrões.
O embelezamento da cidade implicava o redimensionamento do espaço urbano e a reformulação
do aspecto arquitetônico, eliminando o antigo e tímido traçado provinciano. Neste sentido, foram
executadas algumas obras de aterro de igarapés, nivelamento de terrenos, alargamento de ruas,
2
Área atualmente ocupada pela Igreja e Colégio Dom Bosco.
calçamento de vias e outros serviços, iniciados, quase todos, durante a administração de Eduardo
Ribeiro, o qual, em 1892, solicitou ao Congresso a verba necessária para realizar diversos
melhoramentos de Manaus.
4
1
2
3
Mapa 02: Planta da cidade de Manaus, levantada em 1893. Fonte: Mesquita (1997).
Comparando a planta de 1893 (mapa 02) com a de 1852 (mapa 01), percebe-se o quanto a
cidade cresceu, estendendo-se, principalmente, nos sentidos Norte e Leste, ultrapassando os
limites naturais determinados pelos igarapés de Manáos (1) e do Bittencourt (2), avançando até o
igarapé da Cachoeirinha (3), sendo ao norte delimitada pelo Boulevard Amazonas (4).
A planta da cidade mostra que o novo modelo urbanístico adotado era baseado no traçado em
forma de tabuleiro de xadrez. Muito bem organizado, retilíneo, composto por largas ruas e
avenidas que se entrecortavam em ângulos retos; várias praças estavam demarcadas, enquanto
que os igarapés da parte primitiva da cidade praticamente desapareceram: mantinham-se apenas
parte do igarapé de São Vicente e do igarapé do Aterro, que passara a denominar-se igarapé dos
Remédios.
Percebe-se que as principais diferenças entre os dois mapas de Manaus estão, basicamente,
definidas por uma ampliação do tamanho da cidade e uma maior rigidez em seu traçado, com
aberturas de longas e largas avenidas, tornando bem mais claro e definido o traçado regular
(tabuleiro de xadrez).
De acordo com Mesquita (1997), desde o início a cidade adotou um modelo importado, que se
desenvolveu com a colonização portuguesa. Contudo, não se pode afirmar que houve influências
do modelo de Haussman. O que se pode notar é a existência de duas das características do
urbanismo francês, no mapa 02, ou seja, ruas largas e a construção de uma avenida principal, na
qual se destaca construções de grande porte no seu ponto mais elevado.
Além de atualizar o aspecto visual da cidade, pretendia-se reproduzir a vida alegre e festiva dos
espaços parisienses, dotando estas vias com passeios, hotéis, teatros e cafés, que contribuíram
para recriar o clima europeu nos trópicos. Tais características demonstravam que a população
estava inserida no espírito típico da belle époque apoiada pela riqueza e algumas vantagens da
moderna tecnologia que se desenvolvia naquele momento.
O império da borracha foi uma fase pouco duradoura: ao mesmo tempo em que parecia atingir o
auge, iniciava-se a sua finalização.
Em 1876, quando o ciclo da borracha ainda iniciava em sua fase de progressiva expansão, algo
decisivo tinha acontecido: o contrabando de sementes de seringueira para a Inglaterra e, daí, para
suas colônias na Ásia, onde seriam cultivadas.
Tal empresa foi concebida e realizada pelo botânico inglês, Sir Henry Wickham, que embarcou
clandestinamente cerca de 70 mil sementes para a Inglaterra, onde foram cultivadas
experimentalmente em estufa. Dentre essas, vingaram 7.000 mudas, as quais foram
transportadas para o Ceilão e, posteriormente, para a Malásia, Symatra, Bornéu e outras colônias
britânicas e holandesas, nas quais se desenvolveram, passando a produzir uma seringa de maior
qualidade e menor custo, o que provocou a queda dos preços da borracha e fez com que o quase
monopólio da borracha no Brasil desmoronasse.
A prosperidade alcançada, todavia, pelos “habitantes da capital”, a minoria rica e patronal, que
queimava “charutos de dinheiro”, começava a desabar diante do grande adversário do Oriente: a
goma asiática.
A partir de então, a produção de seringa brasileira passou a despencar vertiginosamente,
sobretudo face à queda dos preços da borracha no mercado internacional, que inviabilizava cada
vez mais a atividade extrativa na região amazônica em função do seu custo.
O ciclo da borracha havia chegado ao fim. Suar marcas, porém, ficaram registradas na
transformação de uma pequena vila em uma cidade cosmopolita, na figura do homem perdido e
isolado no interior da mata – o seringueiro – para quem quase sempre a exploração e a morte
eram seu único destino, na memória daqueles que chegaram a “respirar aqueles ares” e dos que
ainda vivem nas fotos, nas construções, nos monumentos, nos antigos registros, nos arquivos
oficiais e, enfim, nas memórias e teias dessa conturbada história.
Além do que, com o declínio da borracha, houve uma redução na pressão sobre as florestas, bem
como, isolou a região do contexto nacional e do capitalismo internacional.
A borracha foi, sem dúvida, um material do progresso, participando da produção dos mais
modernos bens industriais, expressivos dos avanços da técnica e do domínio da natureza pelo
homem. Foi a economia da borracha que permitiu às elites das duas províncias (a do Amazonas e
a do Grão-Pará) uma aproximação social e cultural com a Europa, já de muito cultivada;
orgulhavam-se da riqueza promovida pela floresta – o látex da seringueira, este “dom da
natureza”, então monopolizado pela produção amazônica que os conectava, afinal, com o que
havia de mais expressivo das conquistas do século XIX. Era um salto qualitativo para aqueles
que, há pouco mais de três décadas, queixavam-se do isolamento e clamavam pelo comércio
entre os povos.
Contudo, o projeto de modernidade para a cidade de Manaus raramente fazia considerações às
características de tradições locais, principalmente, quando tais tradições estavam comprometidas
com traços indígenas. Mas, não se pode deixar de reconhecer que esta produção passou a
constituir a imagem da cidade e contribuiu para a formação de sua identidade.
Ressalta-se que, o marasmo econômico que mergulhou a cidade após a crise da borracha pode
ser considerado como um fator positivo em relação à conservação da visualidade da cidade,
porque se preservou sua arquitetura, ruas e praças. Entretanto, a partir dos anos 70, com a
implantação da Zona Franca em Manaus, desencadeou-se um processo de descaracterização
cultural provocado por um brusco e desordenado crescimento perante a falta de estrutura para tal.
2. A Zona Franca de Manaus
Após o período áureo da borracha, Manaus passou por uma estagnação em sua economia,
refletindo em seu crescimento populacional, até a implantação da Zona Franca, com a criação do
Distrito Industrial, na década de 1970.
A partir disso, o fluxo migratório se intensificou na cidade, fazendo com que sua população
aumentasse mais de 300% em apenas 10 anos, saltando de 311 mil habitantes, na década de
1970, para 1 milhão de habitantes na década de 1980 (Tabela 01). Foi o maior crescimento
populacional ocorrido na cidade em um curto espaço de tempo, sendo a migração um fator
relevante no processo de ocupação do solo. Pela falta de opção, esse contingente populacional
ocupou as margens dos igarapés e estimulou o processo de ocupações irregulares em áreas
particulares.
ANO
Nº DE HABITANTES (≅
≅)
1970
311.000
1980
1.000.000
2000
1.400.000
2003
1.590.000
2008
1.800.000
2011
2.000.000
3
Tabela 01: Dados do crescimento populacional de Manaus . Fontes: Melo (1990), Oliveira (2003) e IBGE
(2012).
Como conseqüências do acelerado processo de ocupação do solo, teve-se a insuficiência e a
desarticulação da malha viária urbana, a ocupação imprópria dos igarapés, a substituição e/ou
reforma paulatina de edificações de caráter histórico, a especulação imobiliária em terrenos
desocupados e a deficiência dos serviços e equipamentos sociais básicos, resumindo no
descumprimento do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, em vigor desde 1975.
Ressalta-se que antes disso, a cidade não contava com planos de ação que pudessem suprir a
necessidade de políticas públicas urbanas em médio prazo, ou seja, com um planejamento
urbano, a cidade poderia ter tido um rumo à expansão, de forma diferente, que preservasse o
patrimônio cultural e natural (OLIVEIRA, 2003).
Assim, apesar dos diversos conjuntos habitacionais construídos para abrigar as famílias imigradas
em função da Zona Franca, a cidade, com pouco mais de 1 milhão de habitantes, registrou, em
1987, um déficit habitacional equivalente a 120 mil habitações (ALMEIDA, 2005). Déficit esse que,
no presente trabalho, consiste no número de pessoas que não tem onde morar, ou seja, não
possuem um lugar de abrigo, com paredes e teto.
Quem não conseguiu um teto se instalou nas margens dos igarapés ou ocupou irregularmente
terras na periferia da cidade, sendo as zonas Leste e Norte, as áreas mais atingidas. Dessa
forma, é fato que a cidade cresceu, principalmente, com assentamentos irregulares, os quais
surgiram, sucessivamente, a partir dos anos de 1980.
Um fato contribuinte para essas ocupações em áreas impróprias foi a morfologia natural da cidade
de Manaus, que apresenta especificidades em sua paisagem urbana, como as florestas e cursos
d’água.
Ou
seja,
as
áreas
ambientais,
normalmente
mais
frágeis,
são
ocupadas,
predominantemente, pelo segmento mais pobre da população, enquanto as áreas planas, bem
localizadas são ocupadas pela população com melhor poder aquisitivo.
3
Dados populacionais com valores aproximados.
Os arredores de Manaus caracterizam-se pela influência das ações antropogênicas que causam a
descaracterização de suas paisagens, apresentando problemas ambientais, principalmente, nos
cursos d’água existentes.
Nessa perspectiva, a Prefeitura de Manaus institui o Código Ambiental do município, declarando
que as nascentes, matas ciliares e as faixas marginais dos corpos d’água existentes na cidade,
como os igarapés, são áreas de preservação permanente (Art. 32), sendo consideradas infrações
graves: o lançamento de qualquer efluente líquido em seus leitos, o despejo de esgoto “in natura”,
bem como, entre outros, a destruição ou dano das formações vegetais de porte arbóreo nas
margens (Art’s 137 e 138).
Contudo, a existência das leis impõe limites e dúvidas na questão do “não ocupar”, pois notou-se
que o seu cumprimento não era realizado, e cada vez mais, as áreas ambientais estão sendo
ocupadas ou mesmo adensadas, implicando na redução do déficit habitacional, porém
aumentando o déficit de habitabilidade.
De acordo com a SETHAB, existiam em 2002, cerca de 70 mil moradias implantadas nos mais de
140 quilômetros de afluentes que cortam a cidade, áreas consideradas como de preservação
permanente, de acordo com o Plano Diretor Urbano e Ambiental da cidade (ALMEIDA, 2005).
Todavia, dados não oficiais e estudos indicavam que existiam, em média, 100 mil moradias nas
margens dos igarapés, sendo a revitalização e a recuperação dos leitos um desafio constante
para o Poder Público.
Foto 01: Palafitas na margem de um igarapé. Fonte: Almeida (2005).
O que se verifica é que o padrão de ocupação dos igarapés definido pela grande concentração de
palafitas, além de expor os moradores a situações de risco de vida, quer seja por problemas de
desmoronamentos, quer seja de saúde pública, também compromete os mananciais de água, que
são recursos fundamentais para a sobrevivência de todos os moradores da cidade, mostrando
que a concentração de moradias teve efeitos diretos sobre a balneabilidade dos rios, que se
transformaram em depósitos de esgoto e lixo e na vegetação ribeirinha, devastada em quase sua
totalidade.
Nesse contexto, constata-se que os igarapés foram os principais atingidos em relação ao
desenvolvimento urbano da cidade, e hoje representa um dos maiores problemas a serem
solucionados na cidade. Assim, é oportuno observar a necessidade de preservação das áreas
ainda não atingidas e recuperação das áreas mais degradadas, pois, o controle ambiental implica
diretamente na melhoria da qualidade de vida.
Contudo, ressalta-se que os igarapés poluídos não são apenas um problema ambiental. Eles
também são fruto do descaso cultural e da desvalorização de sua história, e que somente uma
relação afetiva manifestada pela comunidade é que seu resgate pode ser possível, resultando
num projeto que reúna tanto obras de saneamento quanto a valorização cultural das bacias de
igarapés de Manaus, de forma que a cultura e o estilo de vida da população ribeirinha sejam
preservados.
3. O PROSAMIM
Em 2004, o Governo do Estado começou a desenvolver uma ação para recuperar os Igarapés, o
Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM), que tem como objetivo não
só a recuperação ambiental dos Igarapés, como também o uso sustentável dessas áreas, a
melhoria da qualidade de vida das populações dos locais e a implantação de infra-estrutura de
saneamento, como, água tratada e disposição de serviços de esgoto, incluindo coleta, tratamento,
e destinação final adequada dos resíduos.
O Programa está estruturado em três grandes áreas: a) a infra-estrutura de saneamento, que
equivale aos serviços de água potável, esgoto sanitário e coleta de lixo; b) a recuperação
ambiental, com a preservação e restauração das nascentes, o reassentamento das famílias que
estão em áreas de risco, e; c) a sustentabilidade social institucional, com o desenvolvimento de
política urbana e social, beneficiando os grupos de baixa renda, com a geração de emprego e
renda, inibindo e prevenindo assim, o surgimento de novas ocupações irregulares.
Assim, para melhorar o aspecto visual dos igarapés e recuperar esses espaços importantes para
a cidade, o Governo já “entregou” a população manauara diversos igarapés recuperados e com a
disposição de espaços para o uso público, proporcionando uma integração social não só para os
moradores próximos, mas também para toda a cidade, bem como aos turistas, visto que esses
espaços, “resgatam”, um pouco da história da cidade.
Foto 02: Áreas com brinquedos para o uso das crianças. Fonte: Arquivo pessoal.
Foto 03: Coretos e passarelas com coberturas em ferro. Fonte: Arquivo pessoal.
Foto 04: Reassentamento dos antigos moradores, em habitações mais adequadas. Fonte: Arquivo pessoal.
Por fim, destaca-se que, com a revitalização das margens dos igarapés, nota-se que houve uma
drástica mudança nos espaços que antes representavam acúmulo de lixos e habitações precárias,
e hoje, representam espaços que podem ser utilizados de diversas formas, como lazer,
entretenimento ou, simplesmente, apreciação da paisagem.
Contudo, ressalta-se que é importante a preservação de bens naturais, bem como o respeito as
suas características físicas, pois, o fato de “estar dando certo” os ‘novos espaços públicos’, não
significa que a reurbanização foi realizada de forma coerente, visto que em certas áreas, os
igarapés foram canalizados; e acima dos seus antigos leitos, foram implantados novos modelos
de habitações. Assim, cabe-se uma discussão relacionada ao item “social e ambiental”,
considerando que “partes” dos igarapés, literalmente, saíram do mapa.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, L. C. M. de. Habitabilidade na cidade sobre as águas: desafios da implantação de infraestrutura de saneamento nas palafitas do Igarapé do Quarenta, bairro Japiim, Manaus/AM. Natal,
2005. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
DAOU, A. M. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo populacional da
cidade de Manaus. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acessado em: 17 abr. 2012.
MEIRELLES FILHO, J. C. O livro de ouro da Amazônia: mitos e verdades sobre a região mais
cobiçada do planeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
MELO, M. L.; MOURA, H. A. Migrações para Manaus. Recife: FUNDAJ: Massangana, 1990.
MESQUITA, O. Manaus: história e arquitetura (1852-1910). Manaus: Universidade do Amazonas,
1997.
MONTEIRO, M. Y. Roteiro histórico de Manaus. Vol’s 1 e 2. Manaus: Universidade do Amazonas,
1998.
OLIVEIRA, J. A. de; ALECRIM, J. D.; GASNIER, T. R. J. Cidade de Manaus: visões
interdisciplinares. Manaus: UFAM, 2003.
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