A DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA COMO CAMINHO PARA A
CONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA FORMATIVA DOCENTE
Helena Aparecida Verderamis Sellani 1 - UNICID
Grupo de Trabalho – Formação de Professores e Profissionalização Docente
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O texto relata uma experiência formativa realizada com sete professoras do Ensino
Fundamental I, de uma escola particular de São Caetano do Sul, que participaram de uma
Sequência de Formação Docente elaborada por mim, nesta instituição, enquanto
Coordenadora Pedagógica. O processo ocorreu entre abril de 2013 e junho de 2015 e teve
como objetivos: a ampliação da capacidade de autoria destas professoras, a promoção de
exercícios de reflexão sobre sua prática e apropriação de seu próprio processo de
autoformação. A opção metodológica para encaminhar esta sequência foi a produção de
documentação narrativa de experiências pedagógicas. Estas narrativas compuseram
Memoriais de Formação Individuais e um Memorial Coletivo produzidos pelas professoras. O
referido processo formativo deu origem a seguinte pesquisa em andamento: “A documentação
narrativa como caminho para a construção de uma trajetória formativa docente". Os objetivos
da pesquisa são: investigar a relação estabelecida pelas professoras com seu processo de
autoformação por meio das narrativas e as influências em sua prática pedagógica e localizar
na documentação narrativa momentos que contribuíram para a construção identitária docente.
A pesquisa apoia-se na abordagem qualitativa e nos pressupostos da pesquisa narrativa. Para
fundamentar a sequência formativa e a referida pesquisa foram estabelecidos diálogos teóricos
com autores que investigam a formação de professores e as narrativas. Também foram
retomados os contributos da Psicologia Analítica, numa tentativa de diálogo entre o conceito
de individuação, proposto por Jung, e os processos de autoformação docente. O material
produzido pelas participantes, cerca de cento e vinte narrativas, está em processo de análise e
já tem sido possível identificar aspectos significativos. Acredita-se que por meio das
significações construídas pelas participantes da pesquisa através da produção destas narrativas
será possível cooperar com a discussão sobre documentação narrativa e formação de
professores.
Palavras-chave: Documentação Narrativa. Autoformação. Identidade Docente.
1
Aluna do Programa de Mestrado em Educação da UNICID – Universidade Cidade de São Paulo. Graduada em
Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Itajubá, MG. Especialista em Psicologia Junguiana,
pelo IJEP: Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa. E-mail: [email protected].
ISSN 2176-1396
21643
Em busca de novas possibilidades de formação
Os processos de formação na escola, sejam eles direcionados aos alunos ou aos
professores, tradicionalmente não se constituem do ponto de vista de quem aprende, mas de
quem ensina. Assim temos currículos denominados ‘grades’ e propostas de formação de
professores que mais se assemelham a pacotes prontos de sistemas de ensino que não levam
em conta as necessidades de cada realidade escolar. Não cabe aqui desqualificar ou
desconsiderar a necessidade do preparo técnico e didático, muitas vezes propostos por esses
programas, porém, enquanto formadora de professores, tenho vivenciado e constatado ao
longo de quase vinte anos em formação continuada de docentes que este caminho provoca
poucas transformações na prática e na vida destes professores. Essas inquietações me
impulsionam a buscar caminhos mais significativos para a formação docente, caminhos que
passem pela necessidade de mudanças, promovam o autoconhecimento e articulem a
construção de uma identidade docente para estes profissionais.
No livro Aprendizagem do adulto professor, organizado por Vera Placco, encontra-se
uma bonita e inspiradora maneira de olhar e estabelecer relações entre aprendizagem,
experiência e saberes:
o aprender envolve atribuir significações e engendra relações únicas com o saber.
Mobiliza experiências vividas pelo sujeito, em sua interação com outros
significativos e em sua inserção no mundo. É um processo permeado por afetos,
desejos, expectativas, vontades, os quais interferem na aprendizagem e são também
aprendidos. As experiências por sua vez, podem constituir-se em saberes e, a um só
tempo, ser significadas por esses saberes e gerar novos saberes, em um movimento
constante e contínuo. O processo de significação das experiências e de produção de
saberes tem de ser considerado pelo formador nas relações de ensino-aprendizagem.
(PLACCO, 2003, p. 86).
Em minha busca por significar as experiências em formação, vivi uma experiência que
chamo de divisora de águas: um curso de pós-graduação em Psicologia Analítica. Ao me
deparar com a Psicologia Profunda, a teoria complexa de Carl Gustav Jung, comecei a
validar, com aquele referencial teórico, muito do que eu apenas supunha ser importante para a
formação do ser humano: o poder transformador dos símbolos e das narrativas como
propulsores para a reflexão e crescimento individuais. Jung (2008) trata do processo de
individuação, que diz respeito à estruturação da psique em busca de uma integração e
crescimento do ser humano. Como formadora, não pude deixar de ser tocada pela força dessa
proposta. Laura Villares de Freitas aponta uma possiblidade de ampliação dos recursos
formativos ao dizer que:
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há um fio condutor responsável pelas “tecelagens” mais diversas e muitas vezes não
convencionais, mas que são consistentes e percorrem o caminho da individuação, ao
mesmo tempo, procurando-o e, ao assim fazê-lo, construindo-o. Esse fio é o
símbolo, que permite a dimensão vivencial, envolve a personalidade total, abrange
sempre suas dimensões racionais e irracionais e não deixa escapar a tonalidade
afetiva e emocional do que está sendo vivido. E não menos importante é a
consideração do self relacional, seja ele individual ou grupal, terapêutico ou
pedagógico, pois tais vivências se dão sempre em campos interacionais, isto é, na
rede de relações transferenciais e compartilhadas (FREITAS, 2005, p. 65).
Durante toda minha jornada profissional busquei caminhos de formação docente que
estivessem mais alinhados a propostas de transformação. Creio no ser humano dotado de
capacidade de transformar-se a partir do autoconhecimento, caminhando rumo ao processo de
individuação. Nessa perspectiva desenvolvi uma sequência formativa para um grupo de
professoras do Ensino Fundamental I. Esta sequência tinha como pretensão tornar-se uma
‘experiência formativa’ para o referido grupo. O trabalho transcorreu nos anos de 2013 e 2015
e caracterizou-se por encontros semanais ou quinzenais com um grupo de sete professoras. A
sequência formativa foi apresentada às professoras como um projeto de formação. De acordo
com Machado (2006, p. 18), “constituímo-nos como pessoas na medida em que realizamos
nossos projetos”, por isso, aquele projeto foi compartilhado e revisto até tornar-se não apenas
da formadora, mas do grupo todo e, em especial, de cada componente.
Um aspecto importante do trabalho foi a proposta de que elas escrevessem narrativas
de suas experiências durante o percurso formativo. Esta proposta tinha como objetivos
despertar a tomada de consciência sobre a possibilidade de autoformação e autoria, promover
a constituição de uma relação genuína de cada professora com sua própria aprendizagem a
ponto de transformar sua prática e construir ou reafirmar sua identidade docente, a partir da
produção e análise destes registros e narrativas. Larrosa traduz esta intenção ao dizer:
desse modo, que podemos cada um de nós fazer sem transformar nossa inquietude
em uma história? E, para essa transformação, para esse alívio, acaso contamos com
os restos desordenados das histórias recebidas? E isso a que chamamos
autoconsciência ou identidade pessoal, isso que, ao que parece, tem uma forma
essencialmente narrativa, não será talvez a forma sempre provisória e a ponto de
desmoronar que damos ao trabalho infinito de distrair, de consolar ou acalmar com
histórias pessoais aquilo que nos inquieta? É possível que não sejamos mais do que
uma imperiosa necessidade de palavras pronunciadas ou escritas, ouvidas ou lidas,
para cauterizar a ferida. [...] E cada um dispõe, também, de uma série de tramas nas
quais as entrelaça de um modo mais ou menos coerente. E cada um tenta dar sentido
a si mesmo, construindo-se como um ser de palavras a partir das palavras e vínculos
narrativos que recebeu. (LARROSA, 2010, p. 23).
Os escritos, que aos poucos foram se configurando em narrativas constituíram-se em
valiosíssimo material, à medida que a voz destas professoras ecoou mais alto e mais forte,
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dentro do contexto ao qual estavam inseridas, sobressaindo às vozes ‘oficiais’ dos processos
formativos burocratizados e esvaziados de sentido. Diante dessa constatação, senti-me
estimulada a percorrer outro caminho: não apenas o de formadora, mas também o de
pesquisadora, o que resultou na busca pelo Mestrado em Educação e na realização de uma
pesquisa que apresenta os seguintes objetivos: investigar a relação estabelecida pelas
professoras com seu processo de autoformação /aprendizagem por meio das narrativas e as
influências dessa relação em sua prática pedagógica; localizar na documentação narrativa de
experiências das professoras momentos que contribuíram para apropriação e transformação de
suas práticas pedagógicas e identificar na documentação narrativa movimentos e símbolos
presentes nesse percurso formativo que contribuíram para os processos de construção
identitária docente.
Dentre os objetivos específicos, destacam-se: dialogar com autores que investigam a
utilização de narrativas nos processos de formação de professores; analisar cerca de cento e
vinte narrativas, organizadas em três Memoriais de Formação produzidos no período
compreendido entre 2013 e 2015, um deles coletivamente por sete professoras do Ensino
Fundamental I, de uma Escola Particular de São Caetano do Sul, Grande São Paulo, e dois
escritos individualmente por duas professoras que participaram do processo formativo.
Em busca de parceiros para a caminhada
Esta busca passa pela visitação a diversos autores que vêm circundando o tema
formação e autoformação docente e apontando caminhos mais significativos nesta seara. Aqui
entram em cena a metodologia das Histórias de vida, utilizada por Marie Cristine Josso (2006,
2009) e que se refere a promoção da ampliação de consciência do sujeito a partir da análise de
suas biografias; o conceito de Matrizes Pedagógicas, desenvolvido por Furlanetto (2002,
2003, 2006, 2008), que se refere ao resgate do professor interno de cada um e do
entendimento do processo de sua constituição enquanto educador; os estudos sobre a pesquisa
narrativa, desenvolvidos por Clandinin e Connelly (2011), segundo os quais este tipo ou
modalidade de pesquisa seria uma forma de compreender e dar significado à experiência.
Além da interface com estes autores, também entra em cena a análise das narrativas de
formação e registros biográficos reflexivos. Estas são consideradas potentes instrumentos de
autoconhecimento, apontados como recurso de aprendizagem fundamental por autores como
Jerome Bruner (1998, 2001), John Dewey (1971), Maria da Conceição Passeggi (2006),
Madalena Freire (2014), Elizeu Clementino de Souza (2006a, 2006b), Rosaura Soligo e
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Guilherme do Val Toledo (2007), Idália Sá-Chaves (1997, 2005), António Nóvoa (2009),
Jorge Larrosa (2002, 2010), Gaston Pineau (2006) e tantos outros. Essa circundação teórica
será alicerçada pelos conceitos da Psicologia Analítica, construídos por Carl Gustav Jung, que
me possibilitarão a aproximação dos aspectos simbólicos do processo de formação,
autoconhecimento e individuação, este último apontado como finalidade de nossa existência
num movimento de busca pela ampliação de consciência e chamado do Self, que nos leva a
patamares de amadurecimento pessoal. Furlanetto, acerca da teoria de Jung, afirma que:
para Jung, uma experiência genuína é mais arrebatadora e capaz de produzir
transformações do que uma exposição intelectual a respeito de qualquer tema, pois
ela atinge as profundezas do ser. O saber, por sua vez, está relacionado à
experiência, na medida em que emerge da compreensão do que se faz. O saber não
se reduz a produzir repostas externas e definitivas e, também, não se compromete,
exclusivamente, com o explicar. O saber é produzido por um movimento de
compreensão e de interpretação, fruto de um mergulho profundo em busca de
sentidos. (FURLANETTO, 2008, p. 13)
Acredito que o processo formativo que promove experiências - tanto no sentido
proposto por Jung quanto naqueles sentidos apontados por Larrosa (2002) ou Josso (2009) - é
um caminho para que o professor atribua sentido e assuma sua própria formação como
compromisso pessoal de crescimento e possibilidade de transformação.
Se experiência é a vivência a qual atribuímos o papel de nos ensinar e se o professor é
um adulto em perene processo de aprendizagem, cabe nos indagarmos como se dá este
processo de aprendizagem do adulto professor. Sabemos que a vida não atinge um patamar de
plenitude e estabilidade na fase adulta e que estamos todos expostos frequentemente a
momentos de crises, conflitos e desafios. Podemos então pensar: como estas crises, conflitos,
desafios e escolhas afetam ou vêm afetando a vida e a trajetória profissional do professor?
Como esse adulto comunica todos esses processos? Para quem comunica? Quem os ouve?
Os processos simbólicos desse ato precisam ser observados atentamente e é necessário
que se atribua a eles importância e tempo dentro das instituições escolares para que tais
processos possam, quem sabe se configurar em escritos reflexivos e transformadores de vidas.
Gaston Pineau, em As histórias de vida como arte formadora de existência, nos alerta
de modo belíssimo que:
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os adultos em formação - dos quais pretendo fazer parte - não procuram escrever sua
história para fazer literatura e, ainda menos, como uma atividade disciplinar. Eles
procuram escrever sua história para tentar sobreviver, isto é, em primeiro lugar,
ganhar sua vida, fazê-la ou refazê-la e compreendê-la um pouco. Operações vitais
que não são tão fáceis. Um certo número chega as histórias de vida quando não
sabem mais o que fazer, quando estão à beira do vazio, da queda ou mesmo da
morte. Para eles, a história de vida se inscreve numa busca vital de saber-poder
viver, como uma prática formadora de existência mais ou menos comum, mais ou
menos consciente, mais ou menos formalizada. (PINEAU, 2006, p. 43).
Acredito que o educador deve ter a oportunidade de acessar suas possibilidades de
autoformação, desse modo, pretendo pesquisar de que forma o trabalho de documentação
narrativa de experiências pedagógicas pode se constituir como uma alternativa de formação
docente que vá além da capacitação técnica e metodológica, rompendo a dicotomia entre o
profissional e o pessoal para atingir o ser humano, dando-lhe a possibilidade de
transformações.
O delineamento do caminho
Essa pesquisa está sendo realizada com professores que atuam em uma escola da rede
particular da cidade de São Caetano do Sul. A escola atende alunos da Educação Infantil ao
Ensino Médio e tem cerca de 1.200 alunos de classe média alta. Os sujeitos da pesquisa foram
sete professoras polivalentes, do Ensino Fundamental I, que participaram neste período de
uma Sequência de Formação Docente elaborada e proposta por mim, nesta instituição,
enquanto Coordenadora Pedagógica. O processo ocorreu entre 2013 e 2015.
O referido processo formativo tinha objetivos que se relacionavam à atividade docente
e contemplavam a aproximação de conteúdos específicos referentes àquela série (terceiro ano)
e necessidades daquele grupo de professoras. No entanto, eu também tinha objetivos definidos
e compartilhados com as professoras referentes à ampliação de sua capacidade de autoria,
aproximação de exercícios de reflexão sobre sua prática e assunção de seu próprio processo
de formação. Para tentar contemplar estas expectativas escolhi como uma opção metodológica
para esta sequência a produção de documentação narrativa de experiências pedagógicas
(SUÁREZ, 2008, p. 103) para compor um Memorial de Formação Individual, que foi
produzido no decorrer do processo e que fez parte de nossas atividades formativas. Também
foi proposto que confeccionássemos um Registro Grupal efetuado coletivamente pelas
professoras participantes. Após explicitar às professoras os objetivos desta prática, que
registraria seus processos de constituição docente individual e em grupo, possibilitando um
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processo de autoria e autoformação, as propostas foram aceitas e os materiais foram sendo
tecidos ao longo dos encontros formativos.
A investigação apoia-se na pesquisa narrativa em Educação, que mais que uma
metodologia, consiste em um caminhar por entre as histórias vividas por pessoas no contexto
da Educação. Ao contar e recontar estas histórias, sujeitos de pesquisa e pesquisadores vão
ressignificando-as, tornando-as mais suas, ao mesmo tempo em que as tornam públicas e,
dessa forma, maiores! A pesquisa narrativa, é, sobretudo um modo de encarar e vivenciar a
Educação. É a maneira de dar voz aos sujeitos e a si próprio. É a maneira de criar novas e
promissoras histórias a partir daquelas que são circundadas, contadas e recontadas. É a
maneira de ir além das “narrativas dominantes em pesquisa em ciência social”, segundo
Clandinin e Connelly (2011, p. 26). Ainda segundo estes autores, a pesquisa narrativa é uma
forma de compreender a experiência:
é um tipo de colaboração entre pesquisador e participantes, ao longo de um tempo,
em um lugar ou uma série de lugares, e em interação com um milieus. Um
pesquisador entra nessa matriz no durante e progride no mesmo espírito, concluindo
a pesquisa ainda no meio do viver e do contar, do reviver e recontar, as histórias de
experiências que compuseram as vidas das pessoas, em ambas perspectivas:
individual e social. [...] pesquisa narrativa são histórias vividas e contadas.
(CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 51).
Assim, a opção por esse caminho de pesquisa foi anterior à própria pesquisa e diz
muito a respeito da maneira como entendo a educação e os processos de aprendizagem. Dessa
forma, a narrativa apresenta, segundo Cecília Galvão (2005, p. 342), três potencialidades:
processo de investigação, processo de reflexão sobre a educação e processo de formação de
professores.
Será realizada a análise documental de cerca de cento e vinte narrativas das
professoras, organizadas em dois volumes do Memorial do Grupo, chamado pelas professoras
autoras de “Armazém de Momentos”, e de dois memoriais individuais. Os memoriais
individuais foram escolhidos segundo os seguintes critérios: um deles representa o percurso
de uma professora jovem, iniciante na instituição, que tinha vivido poucas experiências
formativas em escolas. O outro mostra o percurso de uma professora bastante experiente, que
já havia vivenciado diversas propostas formativas em sua vida profissional. Além disso, outro
aspecto que chamou atenção para definir esta escolha foi a maneira como cada uma atribuiu
significados diferentes ao material produzido, desenvolvendo para com ele uma forte relação.
Também foi utilizada a técnica de entrevista narrativa com as professoras envolvidas.
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Um primeiro olhar sobre as narrativas
Empreender um processo de pesquisa narrativa supõe, além de dar voz aos
participantes num percurso de produção escrita, mediado e reflexivo, ora individual, ora em
grupo, também uma cuidadosa análise destes registros de campo e a transformação desta
análise em textos de pesquisa. Para tanto, a análise do material produzido entre 2013 e 2015
por este grupo de professoras está em andamento considerando suas camadas de análise. Isto
significa olhar para o material de modo a enxergar que seu conteúdo se apresenta em níveis de
significado, dependendo da direção em que nos movemos para interpretá-lo. Segundo Bruner,
(2001, p.120) as histórias são produtos dos narradores, que possuem pontos de vistas, formas
de ressignificar o vivido ou o ouvido para criar sua versão daquela narrativa. O mesmo ocorre
com aquele que toma conhecimento da narrativa, por isso, de acordo com o autor, as
narrativas podem ser interpretadas e não explicadas.
Esta análise interpretativa está sendo realizado considerando três movimentos de
análise. O primeiro movimento consiste em voltar aos registros produzidos pela pesquisadora
durante a produção e coleta dos escritos do grupo. Este olhar tem revelado sobretudo a
intencionalidade do projeto formativo desenvolvido com aquele grupo, as opções
metodológicas e teóricas além de reafirmar o papel do formador de professores enquanto
aquele que acredita na “formação como viagem aberta” (LARROSA, 2010, p. 53). Isso pode
ser percebido, por exemplo, através da releitura das pautas formativas dos encontros, das
quais se pode ressaltar como característica marcante a valorização da possibilidade da ação do
professor e mudanças sobre o que estava proposto.
O segundo movimento de análise centra-se nos materiais escritos pelo grupo no
suporte coletivo Armazém de Momentos. São cerca de cento e vinte textos que têm revelado
os movimentos e necessidades subjacentes aquele grupo de professoras. Fica claro, desde o
primeiro registro, que o símbolo que emerge é ‘compartilhar’. Compartilhar as ideias, as
dúvidas, os projetos e sequências didáticas, as emoções, as experiências e os próprios
registros. Já tem sido possível perceber a transformação dos registros iniciais, que eram
relatos de reuniões, em narrativas de formação. Os registros vão tomando corpo diferente a
cada encontro. Nota-se que as professoras realizavam um movimento em mão dupla de voltarse para si ao mesmo tempo que se voltavam para o externo, o outro.
O movimento de auto escuta, de olhar para dentro de si mesma, tem se revelado sob a
forma de particularidades pessoais acrescidas ao relato, como um sentimento expresso, um
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trecho de um poema, ou até um desenho da professora. Coisas que só participaram da reunião
ou da rememoração da reunião no universo daquela pessoa e que, depois, foram
compartilhados com o grupo através daquele escrito, como por exemplo, quando uma
professora escreve: “reler essa entrevista e agora escrever essa síntese me fez pensar na
função social do nosso projeto sobre teatro”. (BERTOLDO, 2014).
Por outro lado, a movimentação para o externo, em busca daquilo que vai se
configurando como ausência, como o não-saber individual e do grupo, vai sendo percebida
em trechos que ampliam o que foi discutido através da contribuição de outras referências:
autores, teorias e curiosidades sobre os temas tratados. Isso fica claro neste registro de outra
professora sobre um encontro em que tinha sido discutida a necessidade de uma abordagem
menos estereotipada sobre os índios: “curiosa, pesquisando sobre os índios, encontrei um
Código de ética do índio americano, que muito nos diz [...]. (BISCOLLA, 2015).
Estes dois movimentos revelam que os registros vão ganhando identidade e estrutura
narrativa. Vão revelando um conhecimento que vai sendo construído e apropriado por aquele
grupo. Então, estas narrativas passam a ir além do compartilhar, que inicialmente emergia
como força nos registros, para abranger também um espaço de “criação, produção de
conhecimentos”.
Bruner (2001, p.45) afirma que a importância da narrativa reside tanto no fato de ser
organizadora da cultura quanto na estruturação da vida do indivíduo. Aqui se insere o terceiro
movimento de análise: o olhar para os memoriais individuais de duas professoras, que foram
sendo produzidos paralelamente ao memorial coletivo do grupo. O esforço e empenho em
compartilhar com o grupo suas experiências foi fazendo nascer também a necessidade de um
espaço no qual aquelas pessoas pudessem escrever suas narrativas individuais. Um espaço
para narrar, e por isso mesmo, narrar-se! A construção da identidade narrativa vai sendo
revelada através dos registros no memorial de cada uma. Aspectos relacionados à construção
identitária e subjetividade também vão se revelando, como no trecho:
foi a primeira vez que me vi atuando como professora. Eu já havia analisado a aula
de outras professoras, o que é bem mais confortável. O dia que a Helena informou
que faríamos uma tematização da minha aula, confesso ter ficado insegura, já que
tratava-se um momento de avaliação, formativa, mas era uma avaliação. Logo me
acalmei e encarei como uma oportunidade de avançar em alguns aspectos. Não era
obrigatório. Aceitei! (BERTOLDO, 2013).
21651
Porém, esta potencialidade de produção de significado a partir da documentação
narrativa das experiências depende de trabalho para que se concretize: a narrativa precisa ser
produzida, lida, analisada, sentida e discutida.
Durante o processo de produção das narrativas pelas professoras nos dois anos em
questão, foi explicitado e relembrado a todo tempo que aquele labor de narrar-se era parte de
uma ação mais ampla que incluiria também movimentos de leituras compartilhadas,
discussões e releituras e novas produções escritas, Este círculo virtuoso foi o suporte da
sequência formativa desenvolvida com aquele grupo.
O processo de análise está apenas começando e seguirá por alguns meses ainda. No
entanto, os resultados parciais já se revelaram bastante carregados de sentidos.
Considerações Finais
Os pesquisadores da área da Educação são, sobretudo, educadores. Aos educadores
interessam as pessoas: sua vida e as diferenças no modo de viver e aprender, de pensar e agir,
sua relação com as instituições, seus valores, crenças, dificuldades e saberes. Aos
pesquisadores-educadores interessa observar, pensar sobre, ler, dizer, escrever, participar do
que as pessoas têm a dizer e mostrar a partir de sua interação com o outro, consigo e com a
educação de modo amplo ou específico (CLANDININ; CONNELLY, 2011).
A forte confiança na capacidade do indivíduo se autoformar a partir da narrativa de
suas experiências, através de um movimento de ressignificação de suas histórias em parceria
com o outro num processo de aprendizagem mediada, impulsionou este trabalho. Furlanetto,
em seu trabalho Formação Contínua de Professores: aspectos simbólicos, reforça esta
possibilidade ao afirmar que:
fui percebendo que, ao recuperar sua trajetória, acontecia uma estimulação do
contato do pesquisador com símbolos do processo de individuação.
Compreendendo-os e elaborando-os, ele ampliava sua consciência a respeito de
como foi se transformando no educador que é hoje. Essas descobertas lhe
proporcionavam um sentido de inteireza e de consistência, que o estimulava a
avançar com mais clareza e determinação. Os pesquisadores que realizavam esse
resgate passavam por um processo de transformação que ia além das dimensões
cognitivas, alcançando dimensões existenciais. Foi se tornando claro para mim que
poderíamos levar essas descobertas também para o campo de formação de
professores. (FURLANETTO, 2004, p. 42).
O processo de análise dos dados está apenas no início, mas fazê-lo tem sido como um
mergulho no universo subjetivo daquelas professoras e, principalmente, na minha própria
subjetividade. E não seria este, afinal, um pequeno passo rumo a individuação? Talvez o mais
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importante seja considerar que, enquanto pesquisadora sou parte desse processo, e não alguém
que se encontra num lugar privilegiado e isolado, olhando para dados coletados como se
representassem uma amostra reduzida de um mundo do qual não faço parte. O compromisso
do pesquisador, sobretudo daquele que empreende pesquisa narrativa, é “oferecer à pesquisa
compreensões que podem levar a um mundo melhor”. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.
97).
Ainda segundo estes autores, “uma verdadeira pesquisa narrativa é um processo
dinâmico de viver e contar histórias, não somente aquelas que os participantes contam, mas
aquelas também dos pesquisadores” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 18). Acredito e
tenho vivenciado esta condição.
Por fim, tomo emprestadas, humildemente, as palavras de Alberto Manguel, em seu
precioso A cidade das palavras: histórias que contamos para saber quem somos, para
finalizar este breve relato:
ao fim e ao cabo, minhas questões seguem sendo questões. [...] Como as histórias
que contamos nos ajudam a perceber a nós mesmos e aos outros? [...] E para
concluir, as histórias serão capazes de mudar quem somos e o mundo em que
vivemos? (MANGUEL, 2007, p. 13).
Sim! Eu acredito que sim.
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