Pioneira na Engenharia Civil em Curitiba: Memórias de uma
Trajetória Singular
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Maria Aparecida Fleury Costa Spanger
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Tânia Rosa F. Cascaes
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Marília Gomes de Carvalho
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Nanci Stancki Silva
Resumo
Este trabalho pretende trazer à luz os agenciamentos sócio-técnicos que marcaram inextricavelmente
a trajetória pessoal e profissional de uma engenheira civil pioneira, na Curitiba dos anos 1950.
Optouse pelo aporte teórico-metodológico da narrativa autobiográfica, buscando compreendê-la como
fenômeno, como método de investigação, e como processo de auto-formação e de intervenção, na
construção identitária da engenheira civil Conradine Taggesell. O artigo privilegia o registro da
experiência vivida, no percurso de seus trinta anos de carreira, entendendo as relações entre
subjetividade e narrativa, como princípios que a colocam na posição de sujeito e protagonista de sua
própria história. A interpretação da narrativa apontou para questões relacionadas ao parentesco, a
etnia, a cultura de família, e o papel do cônjuge, como marcadores e luminares no processo de
subjetivação desta engenheira, e que nortearam a sua trajetória pessoal e profissional.
Palavras-chave: Pioneiras na engenharia civil; Narrativas autobiográficas; Gênero em carreira
Tecnológica; Engenheira civil.
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Mestre em Tecnologia e doutoranda em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR.
Pesquisadora do GeTec - Grupo de Estudos e Pesquisas em Relações de Gênero e Tecnologia do PPGTE - UTFPR.
Economista, Administradora e professora de ensino superior. [email protected]
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Mestre em Tecnologia, Socióloga, Especialista em Magistério Superior. Pesquisadora do GeTec -UTFPR.
[email protected]
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Doutora em antropologia social pela USP e pós doutora em Multiculturalismo pela Universidade Tecnológica de
Compiègne da França. Professora do Programa de Pós-graduação em tecnologia da UTFPR. Pesquisadora e coordenadora do
GeTec. [email protected]
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Doutora em Política Científica e Tecnológica pela UNICAMP. Professora do PPGTE e do Departamento Acadêmico
de Matemática da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR. Pesquisadora do GeTec. [email protected]
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Introdução
Este artigo é fruto de um desdobramento da pesquisa intitulada “Gênero, Educação Tecnológica e
Trabalho: um Estudo Sobre a Engenharia Civil na cidade de Curitiba-Pr”, desenvolvida no âmbito do
programa de pós-graduação em tecnologia, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná UTFPR, e financiada pela Fundação Araucária de Apoio ao desenvolvimento Científico e Tecnológico
do Paraná.
No caso específico deste artigo trata-se da compreensão da trajetória de uma engenheira, um
percurso de trinta anos de carreira, desde a década de 1950, o que se reveste de importância por
retratar o pioneirismo da mulher na engenharia civil. Por outro lado, justifica-se pela necessidade de
se documentar a experiência vivida pelas mulheres em carreiras tecnológicas, área de pesquisa
ainda pouco explorada, “a fim de que possa emergir não apenas a história da dominação masculina,
mas, sobretudo os papéis informais, as improvisações, a resistência das mulheres”. (DIAS, 1994, p.
374).
O artigo se estrutura em três tópicos após a introdução: a metodologia utilizada na pesquisa
de campo, a narrativa da história de vida propriamente dita, organizada em seis tópicos essenciais e
a conclusão, que traz uma análise de cunho interpretativo.
Metodologia da Pesquisa de Campo
Para fins desta pesquisa, estabeleceu-se a opção pela abordagem qualitativa, cuja utilização é
indispensável quando os temas pesquisados demandam um estudo fundamentalmente interpretativo.
O objeto de estudo requeria o mergulho nos sentidos e emoções, o reconhecimento do ator social
como sujeito que produz conhecimentos e práticas, bem como a aceitação de todos os fenômenos
como igualmente importantes e preciosos, características da pesquisa qualitativa apontadas por
Chizotti, (1991).
A pesquisa qualitativa consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas que
dão visibilidade ao mundo, transformando-o numa série de representações, incluindo as notas de
campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias, gravações e os lembretes. (DENZIN; LINCOLN,
2006, p. 17).
Neste tipo de pesquisa a preocupação do pesquisador não é com a representatividade
numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de
uma organização, de uma instituição, de uma trajetória, etc. (GOLDENBERG, 2007). Mesmo porque
“a vida olhada de forma retrospectiva faculta uma visão total de seu conjunto, e o tempo presente
torna possível uma compreensão mais aprofundada do momento passado”. (PAULILO, 2009, p.5).
Quando se trabalha com história de vida, o importante é a narrativa da vida de cada um, da maneira
como a pessoa a reconstrói e do modo como ela pretende seja sua, a vida assim narrada (BOSI,
1994). O que valida o resultado da história de vida é na verdade o ato de autorização da entrevista, o
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que a faz “verdade em si”, fator significante sem referência natural a outra coisa. (LOZANO, 1996,
p.125).
A escolha da entrevistada se deu por ocasião de uma visita ao instituto de engenharia do
Paraná- IEP, no final de 2008, dia dedicado à mulher engenheira. Na ocasião fomos apresentadas à
Dra. Conradine Taggesell, apontada pelas colegas presentes à cerimônia, como uma das pioneiras
da engenharia do Paraná. Desse encontro surgiu a oportunidade de entrevistá-la, a fim de conhecer a
sua trajetória profissional.
Para tanto se utilizou a técnica da entrevista semi estruturada, centrada no projeto de
pesquisa que lhe deu origem. Foi elaborado um roteiro que passou a ser considerado o “fio condutor”
das entrevistas e que teve os seguintes componentes:
a) a origem da entrevistada, ascendência familiar, local de nascimento, costumes, cotidiano familiar,
relações intrafamiliares e relações intra e intergeracionais, características da cultura familiar;
b) a trajetória do estudo – do ensino básico à faculdade de engenharia em Curitiba – dificuldades,
desafios, métodos de estudo;
c) a trajetória ocupacional da entrevistada - carreira na engenharia, projetos, conquistas,
carreira/profissão dos pais e familiares;
d) as relações conjugais, a divisão de papéis na família, as concepções de homem/mulher e
identidade de gênero – conflitos, ambigüidades, especificidades.
Os relatos, no entanto, transcenderam o roteiro original e tornaram as entrevistas
extremamente ricas em outras informações, também incorporadas na análise.
Foram três encontros com a entrevistada. As falas foram gravadas e o primeiro encontro foi
também filmado, visando a elaboração de um vídeo. Utilizou-se, paralelamente a técnica de um diário
de campo, no qual foram anotadas impressões, emoções, situações diversas durante as entrevistas.
Ao texto final foram acrescidas informações, dados de épocas que marcaram fases importantes da
vida da entrevistada, além das observações naturais das pesquisadoras.
Após a realização das entrevistas, iniciou-se o processo sistemático de codificação, a
organização dos dados empíricos, seguindo as etapas propostas por Meihy (2007) na fase da
transcriação, ou seja, a passagem da história oral para um texto.
1. transcrição absoluta – com as perguntas e respostas, sons, barulhos, toques de telefone.
2. textualização – em que foram eliminadas as perguntas e reparadas as palavras sem peso
semântico. Sons e ruídos foram eliminados. Foram delineados tópicos segundo uma frase guia
escolhida, o “tom vital”, recurso usado para requalificar a entrevista, segundo sua essência. Partiu-se
do princípio que cada fala tem um sentido geral mais importante, e é tarefa importante entender o
significado dessa mensagem e reordenar a entrevista segundo esse eixo. (MEIHY, 2007, p.142).
A análise da transcrição do texto baseou-se nas etapas sugeridas por Queiroz (1988): a
decomposição do texto, a fragmentação em seus elementos fundamentais, a separação dos
componentes, e o recorte, a fim de identificar as categorias de análise que emergiram da narrativa.
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O que se apresenta no tópico a seguir é a narrativa da história de vida como um todo, que
pretende configurar a reconstrução da história sócio-econômica e cultural de uma das pioneiras da
engenheira civil paranaense, e que procura destacar, e centrar sua análise, na visão e versão que
emanam do interior e da experiência da entrevistada como sujeito social, assim como aponta Lozano
(1996, p.16).
A História de Vida Interpretada
Quando se entra no apartamento da Dra. Conradine percebe-se, de pronto, a sensibilidade e o estilo
de vida que marcam a subjetividade da engenheira. Peças raras de mobiliário em madeira entalhada,
florões de madeira, cores suaves, predomínio do rosa. Piano, caixinha de música, miniaturas, laços e
bordados no lavabo, muitas telas nas paredes. Os muitos livros no ambiente denunciam alguém que
aprecia o conhecimento e a arte. O ambiente cuidadosamente arranjado, palavras bem escolhidas,
citações de autores, uma preocupação em apresentar-se bem diante das pesquisadoras. Uma grande
expectativa no ar – a oportunidade de contar sua história, resgatar suas experiências de vida, deixar
um legado do que foi sua existência.
A construção do texto que se segue foi um trabalho de bricolagem, na tentativa de organizar a
fala da entrevistada, o mais próximo possível dos elementos propostos no roteiro original, buscando
certa cronologia, tanto quando possível. Os seis tópicos seguintes narram a história da Dra.
Conradine Taggesell, na sua própria voz.
A Ascendência Alemã – Entre o Orgulho e o Sofrimento
Nasci em Lages – estado de Santa Catarina, em 10 de fevereiro de 1933, onde vivi até os 17 anos.
Vim pra Curitiba fazer o científico, terceiro ano no colégio estadual, em 1950, ano em que foi
reinaugurado. Senti muita diferença, pois estava acostumada a colégios pequenos, onde havia muita
interação com os professores, e entre os alunos. Me senti uma estranha no ninho em Curitiba.
Sou filha de engenheiro alemão. A mais velha de quatro irmãos. Somos em três mulheres e
um homem que era economista, infelizmente já falecido. Meu irmão trabalhava com levantamento de
terras, no escritório de meu pai. A segunda irmã é médica e a terceira é advogada e artista plástica.
Meu pai era agrônomo formado pela escola de agronomia de Berlim. No Brasil ele fez
doutorado em Geodésia. Boa parte dos municípios da região serrana de Santa Catarina foram
levantados e mapeados pelo meu pai. Filho de almirante, meu pai foi um líder natural, pessoa de
muita cultura, falava pelo menos cinco idiomas. Muito alegre, era um grande talento para a música.
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Os imigrantes alemães no Brasil criaram formas de preservar seus bens culturais por meio da manutenção da língua alemã,
música, teatro, imprensa. Eram alfabetizados e a maioria era de confissão evangélica. Duas instituições importantes para
conservar o germanismo no Brasil foram a escola e a igreja. Maiores detalhes na tese de doutorado em história política de
Natália dos Reis Cruz “O Integralismo e a questão racial. A intolerância como princípio”, da Universidade Federal Fluminense,
2004.
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A mãe dele era uma bailarina clássica. Eu gosto de pintura, de beleza. Música e dança para mim
estão na frente.
Ainda hoje tomo aulas de música. A professora vem em casa e utiliza meu piano. Cantei música
erudita, ópera e opereta, já regi e fui solista de coral. Declamava poesia, fui atleta, campeã de salto
em altura, professora. Gostava de costurar, ensinava português e matemática.
Minha mãe chamava-se Hildegard Nerbas, também descendente de alemães, nascida no
Brasil. Minha mãe não falava alemão. Nós não chegamos a falar, pois meu pai em decorrência da
profissão viajava muito. Ela era do lar, não obstante uma intelectual. Apesar de ter só o ensino
fundamental, escrevia muito bem, tinha um português erudito. Nos eventos sociais da cidade, ela é
que discursava. Nos depósitos dos alfarrábios da família devem estar guardados os discursos de
minha mãe.
Minha infância infelizmente foi marcada por algo muito triste: a perseguição aos alemães no
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estado de Santa Catarina por ocasião da segunda guerra mundial. Houve pichação de casas,
apreensão e lacre de rádios. Meu pai tinha um carro – opel - importado, que foi confiscado. Ele foi
preso em 1942 e enviado ao campo de concentração da Trindade, em Florianópolis, onde ficou por
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14 meses. Aquilo foi um tempo triste.
A Convivência Familiar
O Pai – herói
Tudo que sou devo a meu pai. Recebi muitas oportunidades de minha família. De meu pai
particularmente, com aquela cabeça muito avançada que tinha, era meu herói. Devo a meu pai ter
estudado. Minha mãe agia conforme a cultura da época. Ela pensava que era inútil soltar uma menina
de minha idade para fora, para fazer curso superior, para depois voltar para lavar cueiros e panelas.
Mas meu pai dizia: “qual nada, filho se cria e se solta no mundo, porque se der para não prestar nas
barbas da gente apronta. Se absorveu alguma coisa que ensinamos, pode soltar para qualquer lugar
do mundo”. Isso me valeu muito.
Nas conversas com meu pai, onde ele me incentivava, eu sentia com poder para enfrentar
qualquer coisa. Isso ficou programado, de incentivar as pessoas a estudar. Quantos alunos, direta ou
indiretamente eu coloquei na faculdade!
A mãe - pacificação na despedida
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Quando o Brasil entra oficialmente na guerra em agosto de 1942, intensificam-se as perseguições e cresce a cultura da
delação. O inimigo agora possuía nome, voz e imagem. Apedrejamentos, pichações, quebras de placas de ruas e de lojas com
nomes alemães, humilhações e constrangimentos multiplicaram-se contra os imigrantes, aos quais os jornais tratam por
alienígenas, quinta-colunas, sabotadores, etc. (SANTOS, 2009).
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Na conclusão da série Campos de Concentração em Santa Catarina, o repórter Leandro S. Junges resgata a história do
engenheiro Hans Walter Taggesell que foi um dos primeiros alemães a serem presos e enviados ao campo de concentração
da Trindade, em Florianópolis, em 1942. A perseguição só terminou com o fim da guerra, em 1945. (JUNGES, 2003).
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Para mais informações sobre este período há a obra de Marlene de Fáveri. Memórias de uma (outra) guerra. Cotidiano e
medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina. Editado em 2004.
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Minha mãe não tinha paciência comigo. Ela se sentia privada de um auxílio que pretendia com as
lides domésticas e havia ainda uma proibição do meu pai que dizia: “não me tire essa menina dos
livros”. Eu tinha minhas tarefas, que assumia com prazer. Por a mesa, enfeitar os pratos. Minha mãe
tinha suas ajudantes: meninas dos arredores da cidade, a quem ela gostava de ensinar do seu jeito.
E nós, por imposição de meu pai (luterano) as alfabetizávamos.
Minha mãe era de relacionamento difícil. No entanto ela me admirava em muitas coisas.
Quando eu cantava, por exemplo. A grande mágoa que eu tenho dela é o fato dela não ter me
deixado estudar o que queria. Eu queria cursar medicina (emoções). Ela se opôs terminantemente.
No entanto, hoje eu gosto de tudo que estudei, acho maravilhoso.
Eu perdoei totalmente minha mãe, porque penso nas coisas boas que ela me fez. No final da
vida de minha mãe me reconciliei com ela, viajamos juntas, cuidei dela. Ela morreu em 1980. Foi uma
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partida restauradora. Pacifiquei-me com minha mãe.
O irmão – o maior amigo
A maior convivência foi com meu irmão. Ele era do meio, entre minhas duas irmãs. Uma pessoa
encantadora. Quando mais velho, era um cavalheiro à moda antiga. Negócios de família ele tratava
só comigo. Depois eu fazia o papel de embaixadora com minhas irmãs.
Meu irmão foi meu grande amigo. Me elogiava, incentivava. Ele gostava muito da minha voz,
queria que eu cantasse. Depois de formada fui muito entrevistada em Lages. Meu irmão colecionava
as reportagens de jornal. Foi meu maior admirador. Todavia nunca deixou de apoiar e prestigiar as
outras duas irmãs.
As irmãs
Minha irmã Rose Marie é médica. Há ternas lembranças da nossa juventude. Depois a vida mudou
bastante as coisas. Hoje pouco nos falamos, pouco nos vemos.
A caçula Hildegard tem uma brilhante carreira como advogada. Nossa diferença é de dez anos.
Lembro com muito carinho de uma menininha de olhos azuis, que eu punha no colo e para quem fiz
alguns vestidinhos.
Nosso diálogo é rico e amplo, pois pendemos para o lado intelectual. Mesmo assim nossos
contatos não são freqüentes, pois ela fica inteiramente absorvida na atividade profissional. Uma pena!
Os Primeiros Anos em Lages – A Escola era o meu Lugar
A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada
de sentido por eles na medida em que forma um mundo coerente. BERGER; LUCKMANN (2007:35).
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A pacificação com a mãe na despedida encontra paralelo na vida de Simone de Beauvoir, descrita em seu livro Balanço Final.
Dessa vivência final restauradora com a mãe ela depois escreveu o livro “Uma morte muito suave” de 1964. (BEAUVOIR,
1982).
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Tive o privilégio de estudar em excelentes colégios. Estudei no colégio de freiras alemãs – o colégio
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Santa Rosa de Lima, hoje comprado pela rede Bom Jesus.
Fiz o curso científico no colégio
Diocesano, também comprado pelo Bom Jesus. Na época era um colégio de padres só para rapazes,
que abriu para algumas moças. Não sei se tinha meia dúzia de meninas comigo. Eu sempre fui boa
aluna: tinha um excelente relacionamento com todo o corpo docente. Gostava muito do colégio.
Toda minha formação básica foi realizada no interior, em Lages. Por sinal, na época tinha um
ensino excelente (emoções). Professores dedicados, aquilo foi a estrutura, o alicerce, a base. Foi
excelente meu estudo no interior. O que é ruim é o ensino de hoje. Especialmente de matemática.
Eles não sabem ensinar matemática. Falta didática.
Os Anos de 1950 em Curitiba – A Faculdade, os Chás da Engenharia
A cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas,
nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára raios, nos mastros das
bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. “Cidades Invisíveis”
de Ítalo Calvino. (2003:16).
Em 1952 prestei vestibular e passei na Escola de Engenharia da UFPR. Boas notas em matemática e
física. Fui mal em desenho, mas mesmo assim ainda logrei uma classificação razoável. Formei-me
em 1956. Hoje existe no prédio antigo da UFPR, da Praça Santos Andrade, um memorial com os
nomes dos engenheiros que ali se formaram. Meu nome está lá.
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Caí na engenharia porque tinha encantos pela matemática e ainda tenho. Morei em casa de família
em Curitiba, de frente para o hospital de clínicas, em construção, na época. O panorama da cidade,
visto da minha janela na Rua General Carneiro mudou muito, nos cinco anos de curso. A cidade
explodiu na década de 1950, depois da guerra.
Na faculdade de engenharia bem me lembro: éramos uns oitenta alunos e apenas três
mulheres. Apenas eu de mulher me formei naquela turma, as outras duas colegas infelizmente
desistiram. Eu me dava bem com os professores. Naquele tempo a faculdade de engenharia era
reduto masculino. Só tinha professores homens.
Sou arroz de baile. Naquele tempo eu freqüentava os chás dançantes – um baile da
engenharia que era famoso. Eu ia a todos. Eu não era namoradeira, mas gostava de dançar.
Segunda feira estava com calo na sola dos pés. Nos bailes era disputada no palitinho de fósforo.
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Tinha um grupo não sei de quantos me disputando para dançar.
Na foto de formatura (exibida na entrevista) eu era a única mulher, a mascote, entre os
colegas de turma, onde o patrono foi o professor Algacyr Munhoz Maeder, indicado por mim.
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O Colégio Santa Rosa de Lima possui uma história secular, na Educação da comunidade Lageana e da região. Fundado em
1901. Antes era uma escola só para meninas, atualmente é uma escola mista.
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O memorial traz os nomes dos 1.959 engenheiros que estudaram no prédio histórico da UFPR à rua XV de novembro,
durante 44 anos, além dos professores que ali deram aulas. A universidade Federal do Paraná foi a primeira universidade do
Brasil, fundada em 1912 em Curitiba, que contava à época com 65 mil habitantes, dos quais apenas 25 mil na área urbana.
(VAINE, 2007).
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Aqui trechos do discurso de Vaine, na inauguração do memorial de engenharia. “Lembranças de Curitiba com 300 mil
habitantes em 1950; dos bons tempos do “chá de engenharia”; do Diretório Acadêmico, na frente da Escola; da ENG-MED;
da Cinelândia; da Rua XV com automóveis e moças finamente trajadas com vestidos e salto alto; dos bares Cometa, Paraná,
Stuart, Triângulo e outros; das confeitarias Guairacá, Schafer, e da bomboniere Avenida. Da época que os edifícios Garcez e o
Marumby, eram os mais altos da cidade... Que saudade!” (VAINE, 2007).
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Uma Vida Profissional ao Longo da Rede
Quando me perguntam sobre as discriminações sofridas no exercício profissional eu surpreendo as
pessoas, pois normalmente há muita queixa. É fato sabido e notório que as mulheres no mercado de
trabalho são prejudicadas, preteridas pelos homens ou recebem um salário menor. Mas existe uma
coisa: a mentalidade da mulher, sua postura ante o trabalho e a vida, atitude, o modo como se
encara. Eu nunca senti dificuldade, hostilidade. Estava com a corda toda.
Comecei a trabalhar como engenheira em julho de 1959. Fui até à Rede ferroviária
acompanhada de meu primeiro marido – Clion Dória. Soube por um colega que eles estavam
procurando engenheiros. Deixei meu cartão, onde constava, engenheira, professora de português e
matemática. Fui chamada e entrevistada pelo engenheiro Ângelo Lopes, que era diretor. Precisavam
de alguém que soubesse matemática e português, pois o setor onde eu ira trabalhar era responsável
por mandar as aulas por correspondência ao longo da linha para os maquinistas. Tinha que ser
engenheiro, não podia ser professor. Era um tipo de programa de capacitação. Como eu encarnava o
que estavam precisando fui contratada, não me submeteram a concurso. Soube mais tarde que esse
cargo era cobiçado por outras pessoas. Fui substituir ninguém menos que o professor Nilo Brandão,
grande honra para mim. Quando ele soube que eu gostava muito de português, ia com freqüência
conversar comigo, apesar das limitações da doença e da idade, o que era um prazer e honra para
mim.
Trabalhei trinta anos na Rede Ferroviária Federal. Me aposentei em 30 de agosto de 1988.
Hoje já faz vinte e um anos. Fiz cinqüenta anos de formada em 2006. Tive, por pouco tempo,
paralelamente uma firma de construção civil, mas cheguei à conclusão que era “muita banana para
uma macaca só”. Tinha além de duas fontes de trabalho, família. Na Rede Ferroviária Federal iniciei
no Serviço de ensino e orientação profissional (SEOP) e passei depois por diversas áreas.
No final de 1962 veio do Rio de Janeiro um economista e técnico de treinamento, para
ministrar cursos na Rede. Nessa época eu estava me desquitando do meu primeiro marido e ele
também. Gaúcho de nascimento, como meus avós, Luiz Augusto Leite Fisher era de uma família do
nível da minha, em todos os sentidos. Ele trabalhava na administração geral da Rede que ficava no
Rio de Janeiro. Mesmo depois da transferência da capital para Brasília, a matriz da Rede Ferroviária
Federal ficou no Rio.
Assim casamos e lá fui eu transferida para a Administração Geral da RFFSA, no Rio de
Janeiro, em março de 1963. Lá trabalhei em dois setores da Superintendência que enriqueceram meu
leque de experiências.
Em 1967, após a morte de minha filha retornamos a Curitiba. Nos últimos 14 anos trabalhei
na superintendência de Patrimônio. Já no final de minha carreira tive o prazer e a honra de assumir,
paralelamente, alguns encargos de natureza cultural como: Coral Ferroviário, onde participei como
solista e articulista e o Trem da cultura, o Museu Ferroviário, que eu gostava muito (lágrimas, brilho
nos olhos). O Trem da cultura tinha um carro museu e outro com exposição de fotos da construção da
ferrovia, além de vídeo que narrava a história dessa construção.
A gente corria o interior, fazia uma agenda com escolas e as prefeituras, e os estudantes iam
visitar. Eu amava isso. Unia o técnico com o cultural, que é tudo que eu gosto. Quando me aposentei
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senti uma saudade enorme. Ficou uma lacuna em minha vida, sabe? Por vinte anos trabalhei
sozinha, como única mulher engenheira entre homens na rede.
A Domesticidade da Engenheira Conradine – Entre Muitos Amores
Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o organismo humano se transforma.
Nesta mesma dialética o homem produz a realidade e com isso se produz a si mesmo. (BERGER;
LUCKMANN, 2007, p.240-241).
Não fui uma moça namoradeira, mas quando me separei do meu primeiro marido, tive tanta gente do
sexo oposto à minha volta. Aquilo era uma surpresa para mim, primeiro porque eu me achava feia. Eu
sempre fui muito focada nos estudos. Na faculdade era bastante inocente. O que eu tinha de madura
em certas áreas, tinha de ingênua em outras.
Meu primeiro marido, Clion Dória, estava dois anos à minha frente na faculdade.
Conhecemosnos num baile de formatura. Esse baile marcou minha vida. Casamo-nos em cinco de
abril de 1958, já estava formada. Mas houve muitas chuvas e trovoadas nesse intercurso sentimental,
nesse relacionamento. Tivemos uma filha, Cibélia. (emocionou-se). Uma menina de uma inteligência
ímpar. Ela tinha oito meses quando a gente se separou. Na época não havia divórcio, era desquite.
Foi uma separação conflituosa.
Nas minhas duas separações não senti o preconceito da sociedade. O problema foi com
minha mãe. Quando me desquitei do primeiro marido, e estipulei que ia tirar o nome dele e voltar a
assinar o nome de meu pai, ela achou um absurdo. Devo o que sou a meu pai e assino o nome dele
com muita honra, com gratidão, eu disse.
Em seguida conheci o Luiz Augusto Leite Fischer, que também era da rede. Nos casamos e
fomos para o Rio de Janeiro. Tivemos um filho – Guilherme – que era lindo e genial. Uma pessoa
muito especial. Luiz Augusto tinha uma filha excepcional e, acostumado aos cuidados com a filha, foi
“uma mãe” para minha filha Cibélia. Ele era mais mãe do que eu, extremamente cuidadoso. Foi o pai
que ela conheceu. As duas meninas se entendiam muito bem quando estavam juntas. A Cibélia
faleceu de câncer aos seis anos. Meu filho Guilherme em 1995, com 31 anos. Perdi meus dois filhos
(emocionou-se).
Tive um pouco de dificuldades no início para compatibilizar o trabalho com a organização da
casa e filhos. Minha filha ficou um pouco com minha mãe. Depois eu trouxe uma babá de Lages. Era
uma moreninha que tinha um grande talento e um amor especial para cuidar de criança. Ela cuidou
de meus dois filhos. Isso me ajudou muito.
Tive câncer duas vezes. Sobrevivi aos dois. Tive alguns amores na minha vida. Inclusive um
“Amor de Outono”. Nossa diferença de idade era de trinta anos. Foi algo maravilhoso. Viajamos
muito. Ajudei-o a entrar na engenharia.
O relacionamento com mulheres
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Gosto de me relacionar com pessoas de cultura, pois aí há uma troca. Mas no meio comum, essa
troca é mínima e não me sinto estimulada. Sinto que sou incompreendida, invejada. Numa conversa
eu sempre busco um nível mais elevado, uma observação. É quando muitas vezes a conversa flui
mais com os homens e o sorriso foge do rosto das mulheres que os acompanham. Por isso nem me
aproximo muito.
Outro dia numa viagem de navio ocorreu novamente. Por ser engenheira perguntei ao capitão
sobre a prática do “Anodo sacrificial” nos navios. É um dispositivo usado no casco dos navios para
evitar ferrugem. As “gatas” que estavam em torno dele me olharam de um modo esquisito.
Considerações Finais
Uma mulher entre homens, à frente de seu tempo. Uma definição apropriada para a Dra. Conradine?
Foi assim no colégio diocesano, na faculdade, no trabalho. Ambientes onde ela transitou com muita
desenvoltura. Autodidata, perseverante, motivada e orientada para alvos elevados. Fortalecida pela
apreciação que teve do pai e do irmão, duas figuras masculinas marcantes em sua trajetória.
A intelectualidade paterna, em contraposição à domesticidade materna exerceu uma
influência determinante na vida da engenheira, da mulher, Conradine Taggesell, contribuindo para a
formação de sua subjetividade.
Em seus primeiros anos, a influência dos pais, da etnia, a religião, a proximidade com a
segunda guerra, a perseguição política sofrida pela família, foram elementos marcantes no seu
processo de socialização primária. Os estudos se constituíram numa âncora segura, no mundo
fragmentado de sua infância em Lages. Segurança e porta de entrada para sua independência
pessoal e financeira, a dedicação aos estudos, em especial à matemática, serviram de alicerce para a
estruturação de sua vida. Algo em que podia destacar-se por si mesma. Algo que ninguém lhe
poderia confiscar. Seus conhecimentos, sua capacidade intelectual, significam sua afirmação como
sujeito ímpar na sociedade. Sua recompensa, seu reconhecimento.
A discriminação de gênero, presente em sua narrativa não é por ela totalmente percebida.
Aparece camuflada pelas atitudes de excessivo respeito que recebeu dos homens, nos diversos
ambientes que freqüentou. Na faculdade, na rede ferroviária. Discriminação que foi reduzida por sua
capacitação técnica e cultura, que lhe abriram caminhos na profissão. Apenas percebida da parte
materna, uma certa rejeição até. Neste caso, essa discriminação foi amortecida, não visibilizada, pelo
seu modo de ver e viver o mundo.
A única engenheira mulher formada na turma de 1956. Ressalta-se que naquela época a
faculdade de engenharia da universidade federal de Curitiba era um verdadeiro reduto masculino:
tanto de discentes quanto de docentes.
Sendo uma aluna exemplar, voltada ao esporte, Conradine obteve o respeito de professores
e colegas, o que não aconteceu com suas outras colegas que desistiram do curso, por uma série de
razões e discriminações.
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As especificidades culturais da etnia alemã, cultivadas pela família, direcionaram seus
interesses na área da cultura, que a acompanharam desde sempre, na vida e na carreira. A música, a
dança, o canto, o teatro, as viagens, a leitura, as línguas estrangeiras. A conquista do emprego na
rede foi duas vezes marcada pela circunstancialidade: de um lado pela indicação de um amigo da
empresa, e de outro por uma inscrição sui generis no seu cartão de visitas – professora de
matemática e português. Sua entrada no mundo do trabalho revela um pouco do contexto sóciocultural da época – 1958 - quando não era comum uma mulher casada se apresentar só para uma
entrevista. Conradine foi acompanhada de seu primeiro marido, também engenheiro.
A trajetória de trinta anos na mesma empresa pública reflete sua opção pela independência
financeira, segurança. Revela também a pequena mobilidade da mulher na engenharia civil, o que
ainda se observa nos dias de hoje. Fatores como família, filhos, cuidados domésticos, ainda marcam
a carreira de muitas mulheres na engenharia. No caso desta engenheira, onde marido e mulher
trabalhavam na mesma empresa pública, ela se mudou para o Rio de Janeiro para acompanhar o
marido, sediado naquela cidade, e não o contrário. São questões de gênero que perpassam sua
narrativa, porém não devidamente visibilizados pela entrevistada.
No plano interpessoal cabe dizer que a valorização maior de pessoas com os atributos do paiherói, e certo desprezo pelas pessoas mais semelhantes à sua mãe, de certa forma aproxima-a dos
intelectuais e afasta-a das pessoas ditas “comuns”, principalmente das mulheres, com as quais
confessou ter dificuldade de se relacionar. A ambigüidade – “Fragilidade versus Força” – está
presente em toda a sua história. Força que é retirada da fé que professa, dos alvos que se coloca, da
paixão pelos estudos, dos afetos recebidos das figuras masculinas marcantes em sua vida. Uma vida
marcada pela adversidade, mas dirigida pela auto determinação, auto superação. A fragilidade no
aspecto físico e por vezes emocional, relacional. A domesticidade negada, embora vivida, aparece
como um traço não valorizado de sua personalidade. Silenciado.
Para finalizar faço uso de uma das expressões por ela utilizada nas entrevistas. Assim como
os navios, esta engenheira utiliza seu próprio anodo sacrificial, para superar as adversidades que a
vida lhe impôs. Discriminações, separações, mortes, doenças. Ferrugens que não conseguiram
perfurar o casco do navio-vida desta mulher, engenheira civil. Uma grande vontade de viver,
desvendar, compreender, aprender. Sempre. É o que faz seu barco deslizar, em meio às intempéries
da viagem.
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Pioneira na Engenharia Civil em Curitiba: Memórias de