A RST em análises do português em uso: uma trajetória Maria Beatriz Nascimento Decat1 1 Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Av. Antônio Carlos, 6627 - CEP 31.270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil [email protected] Resumo. Neste trabalho descrevo a trajetória, desde 1993, de minhas pesquisas baseadas na RST, realizadas com dados orais e escritos do português em uso, em suas variedades brasileira e europeia. São apresentadas, inicialmente, as relações retóricas emergentes na microestrutura do texto, especialmente nas orações adverbiais e nas relativas apositivas, com ou sem conectivo, bem como estruturas, oracionais ou não, que ocorrem como um enunciado independente. A seguir discuto, numa interface entre a RST e a Linguística Textual, a ocorrência de relações retóricas na macroestrutura de gêneros textuais diversos e sua equivalência com funções textual-discursivas. As análises basearam-se na hipótese de que as relações retóricas que emergem em um texto contribuem para caracterizar os gêneros textuais. Abstract. In this work I describe the way I have been analyzing, since 1993, oral and written Brazilian and European Portuguese, based on RST. Firstly, I present the rhetorical relations that emerge in the micro level of text organization, with special focus on adverbial clauses and appositive relative clauses, introduced or not by a connective; and I also discuss structures which occur as independent clauses, or as 'floating NPs'. Secondly, I present the emergence of the rhetorical relations in the macro level of different genres of texts, trying to establish an equivalence between these relations and the textual-discourse functions performed by such structures, pointing to an interface between RST and Textual Linguistics. My claim is that RST can be considered a useful way to contribute for the characterization of textual genres. Resumo expandido Neste trabalho apresento uma visão geral das análises que venho realizando sobre o português em uso, à luz da Teoria da Estrutura Retórica - RST, especialmente embasada em Mann e Thompson (1983), Mann e Thompson (1988) bem como Mann, Matthiessen e Thompson (1992). Os dados aqui discutidos são retirados de um corpus de tamanho não delimitado, portanto sempre em construção, dinâmico, o qual faz parte de um banco de dados informatizado que venho organizando desde 1993. Esse corpus reúne dados orais e escritos do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE), de diferentes gêneros textuais. Inicialmente é mostrada a análise das relações retóricas na microestrutura textual, mais especificamente na articulação de orações ou em 1 Anais do IV Workshop “A RST e os Estudos do Texto”, páginas 1–5, Fortaleza, CE, Brasil, Outubro 21–23, 2013. c 2013 Sociedade Brasileira de Computação porções de texto que não constituem oração, e são menores que essa. Para essa análise foi considerada a noção de "unidade de informação" (idea unit), nos termos de Chafe (1980), ou "unidade entonacional" [CHAFE 1994], adaptada para a segmentação de dados orais e escritos utilizados no presente trabalho. A seguir apresento a análise da macroestrutura de textos de alguns gêneros textuais, procurando estabelecer uma interface da RST com os postulados da Linguística Textual. A hipótese que vem norteando as pesquisas que venho realizando é a de que, por um lado, as relações retóricas podem se manifestar através de construções que se mostram maiores, ou menores, que uma oração complexa; e, por outro, que tais relações (ou "proposições relacionais") que emergem em um texto contribuem para a caracterização dos gêneros textuais. Na análise da microestrutura textual venho discutindo as relações retóricas que se estabelecem no contexto de ocorrência de dois tipos de orações: as adverbiais e as relativas apositivas (ou explicativas, segundo a Gramática Tradicional), tanto em sua forma canônica (com ou sem conectivo expresso) quanto em sua ocorrência isolada, como um enunciado independente, a que denomino de estruturas "desgarradas", como mostram os exemplos a seguir: (1)"...claro que eu levava uns travesseirinhos quando não tinha ônibus LEIto...essas coisas" (NDO8F, 14, 495-504) - PB - (rel. ret. de 'condição') (2)"Lá pelas tantas, quando eu já estava bem lá para a frente, eu notei que tinha muita correnteza e que eu não estava conseguindo voltar." (NE9M, 1, 15-18) PB- (relação retórica de 'circunstância') (3)"tinha que ter um assunto qualquer e eu peguei esse"(NDO7M,19, 692-696)PB- (relação retórica de 'justificativa') (4)"Os textos que mandei de Nova York foram publicados pelo Globo num caderno especial sobre os atentados, mas não foram distribuídos pela agência. Levando alguns dos meus 17 leitores a suspeitarem que eu estava num processo patológico de rejeição da realidade, o que não é o caso. Ainda." (L.F.Veríssimo - Fundamentalismos - OPINIÃO - ESTADO DE MINAS 18/09/2001 - p.7) - PB- (relação retórica de 'avaliação') (5)"Na sua santa burrice, os propagadores do estreitamento, da separação e do isolamento, do nivelamento por baixo, ao que parece desejam que não sejamos continente, mas uma ilha no meio da civilização ocidental. Que talvez nem seja lá grande coisa, mas é o que temos." (Lya Luft - Ponto de Vista - Revista VEJA, ano 38, nº 6, 09/02/05, p.21) - PB- (relação retórica de 'elaboração') (6)"Para essas pessoas - para si - existe um banco especial: o Banco 7. Onde tudo é tratado pelo telefone ou pela Internet. Onde a moderna tecnologia existe para servir as suas necessidades." (VISÃO - nº 343, 7 a 13 de outubro de 1999 - p.79) - PE - (relação retórica de 'elaboração') (7)"Levantar cedo, acordar os filhos, seguir para o trabalho, fazer compras, ir buscar os filhos, fazer o jantar, sorrir ao marido. Sempre com boa disposição. Mesmo sabendo que, amanhã, vai ser tudo igual, igual, igual..." (VISÃO, nº 343, 7-13/10/99, p.79) - PE- (relação retórica de 'concessão') 2 Em minhas análises venho considerando como diferença entre orações relativas restritivas e relativas apositivas o fato de que as primeiras funcionam como argumento de um nome, estando 'em constituência' com ele, isto é, formando com o antecedente um só sintagma; já as segundas não são argumentos, referindo-se não só a um antecedente específico mas ao texto anterior ou a uma situação, constituindo, assim, uma unidade por si mesmas, como evidencia o exemplo (8), abaixo, no qual a oração satélite sublinhada mantém com o núcleo uma relação de 'elaboração'; ou também em (4), dado acima, em que a oração relativa apositiva, sublinhada, refere-se a um fato materializado como núcleo por todo o trecho anterior no texto do exemplo. (8)"Um dos passageiros, chinês, desesperou-se. Tentou abrir a porta de emergência assim que anunciaram o assalto. Foi contido sem violência pelos bandidos, que fizeram piada sobre a tentativa de fuga pouco convencional." (REVISTA ÉPOCA - 104 - 15/05/2000 - NOTÍCIAS) - PB Como decorrência desse status das relativas apositivas é frequente, em português, seu uso como um segmento independente, constituindo uma estrutura "desgarrada", tal como exemplificado em (5) e (6) acima. Também na microestrutura textual são analisadas ocorrências de SNs 'soltos' - ou unattached NPs, conforme Ono e Thompson (1994), ou floating NPs, nos termos de Thompson (1989) - constituindo o que a gramática tradicional chama de frases nominais. Tais SNs não fazem parte de uma estrutura oracional, não tendo relação com a "gramática da cláusula", não constituindo predicados gramaticais e nem sendo argumentos deles; mas mantêm uma relação retórica com um enunciado anterior ou posterior. Assim, no trecho dado em (9), a estrutura sublinhada é satélite do núcleo constituído por todo o trecho anterior, com o qual estabelece uma relação retórica de 'avaliação', nomenclatura também utilizada no âmbito da Linguística Textual para descrever uma função textual-discursiva. (9)"Formada, dedicou-se a ensinar poesia para estudantes e a fazê-los escrever versos. Uma tarefa árdua." (Gilberto Dimenstein, "A reinvenção da biblioteca", FOLHA DE SÃO PAULO, 12/10/05, Caderno COTIDIANO, p.C2) - PB Na interface da RST com a Linguística Textual, evidencia-se, no exemplo dado, que a estrutura sublinhada exerce a função textual-discursiva de avaliação. A equivalência de relações retóricas com funções textual-discursivas tem sido estabelecida, nas análises por mim empreendidas até o momento, na maneira seguinte: estruturas com funções textual-discursivas de avaliação, retomada, adendo e foco (podendo haver sobreposição de funções, como retomada com foco, ou adendo com foco) materializam, de modo geral, as relações retóricas de 'elaboração', 'explicitação' e 'explicação', dentre outras. Por exemplo, exercem a função textual-discursiva de avaliação tanto um satélite de 'elaboração' - como mostra o exemplo (05), visto acima quanto um que mantenha com seu núcleo uma relação retórica de 'concessão', como comprova o exemplo (10): 3 (10)"Já estou mais bem-humorado, pode ficar tranqüila. E deixe de ser chata, pois você escreveu apenas quatro palavras no último e-mail. EMBORA ESTIVESSEM EM DESTAQUE!!!! (G.F., e-mail de 13/01/08 - destaque em caixa alta feito pelo autor do e-mail) - PB Por outro lado, um satélite de 'elaboração' pode estar servindo à função textualdiscursiva de retomada, como aponta o exemplo (11): (11)"Um dos itens do último censo que mais provocaram comentários de especialistas e palpiteiros em geral foi a queda da "popularidade" da Igreja Católica no Brasil. Queda que vem se acentuando de censo a censo e que aparentemente coloca a chamada Nau de Pedro à beira do naufrágio no encapelado mar da modernidade." (Carlos Heitor Cony, "O gênero e o grau", FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno OPINIÃO, 26/05/02, p. A2) - PB A estrutura destacada em (11) é uma retomada anafórica de um referente - no caso, o referente queda) - tendo sido materializada por uma oração relativa apositiva desgarrada. Para a análise da macroestrutura textual vêm sendo examinados textos de diferentes gêneros, objetivando apontar para o fato de que o tipo de relação retórica que neles emerge pode auxiliar na caracterização do gênero, ao mesmo tempo em que são por ele (o gênero) determinadas. Assim, as pesquisas até agora por mim realizadas têm mostrado que, nos gêneros que manifestam sequências tipológicas narrativas (como, por exemplo, no gênero "notícia de jornal"), são frequentes as relações retóricas de 'circunstância' e de 'background'; nos gêneros de tipologia injuntiva (como "receita culinária", "dicas", "manuais de instruções") , por manifestarem ordens, orientações, são veiculadas relações retóricas de 'propósito', 'circunstância' e, em especial, as relações de 'sequência' e de 'habilitação'/'capacitação'; no gênero "horóscopo", predominam as relações que servem à argumentação, como 'tese-antítese', 'motivo', 'elaboração', dentre outras; no gênero "anúncio classificado", também de tipologia argumentativa, emergem relações que visam ao convencimento, como as de 'elaboração' e 'especificação', como evidencia o anúncio abaixo. (12)(RELAX) ISABELLA ESTILO CAPA REVISTA!!! Uma explosão de Beleza!! Loiraça Malhada c/ Marca Biquine, Olhos Azuis, Pêlos Dourados, BB Sexy, Curvas Irresistíveis e Deliciosamente Sensuais! Fascinante!!! ( Número do telefone) A estrutura retórica em termos de organização das unidades de informação (uma UI em cada linha) desse anúncio é a que se segue: a) ISABELLA b) ESTILO CAPA REVISTA!!! c) Uma explosão de Beleza!! d) Loiraça Malhada c/ Marca Biquine, Olhos Azuis, Pêlos Dourados, BB Sexy, Curvas Irresistíveis e Deliciosamente Sensuais! 4 e) Fascinante!!! f) (Número do telefone) A emergência da relação retórica de 'elaboração' entre o satélite constituído das porções (b-e) e o núcleo (a); e da relação de 'especificação' entre o satélite formado pelas unidades (d-e) e o núcleo (c) favorece a caracterização desse texto como de tipo argumentativo, uma vez que se procura convencer o leitor das vantagens expostas no anúncio. No texto de (12) as relações retóricas não se dão entre orações, mas entre sintagmas 'soltos'. A trajetória aqui exposta permite confirmar a hipótese de Matthiessen e Thompson (1988), segundo a qual a gramática da articulação de orações reflete a organização do discurso. Por outro lado, é de se destacar a RST como uma fundamentação teóricometodológica profícua para explicar parte dos elementos que intervêm na compreensão de um texto. Referências CHAFE, W. (1980) The deployment of consciousness in the production of a narrative. In: CHAFE, W. (Ed.) The pear stories: cognitive, cultural, and linguistic aspects of narrative production. Norwood: Ablex Publishing Company, p. 09-49. CHAFE, W. (1994) Discourse, Consciousness and Time: The flow and displacement of conscious experience in speaking and writing. Chicago: University of Chicago Press. MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. (1983) Relational propositions in Discourse. ISI/RR 83/115, 1-28. MANN, W. C.; THOMPSON, S.A. (1988) Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text 8(3): 243-281 MANN, W. C.; MATTHIESSEN, C. M. I. M.: THOMPSON, S. A. (1992) Rhetorical Structure Theory and Text Analysis. In: MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. (Eds.) Discourse description: diverse linguistic analyses of a fund-raising text. Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., p. 39-78. ONO, T.; THOMPSON, S. A. (1994) Unattached NPs in English Conversation. Proceedings of the Twentieth Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society. Berkeley, p. 402-419. THOMPSON, S. A. (1989) A discourse approach to the cross-linguistic category "adjective". In: CORRIGAN; ECKMAN; NOONAN (Eds.) Linguistic categorization. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co. 5