ASPECTOS TÉCNICOS E SOCIO-POLÍTICOS PARA A CRIAÇAO DE UMA FORÇA NACIONAL PERMANENTE Ricardo Vélez Rodríguez, Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF. [email protected] Sumário - Os novos reptos do século XXI: banditização dos conflitos - Insuficiência da hodierna estrutura policial brasileira - Aspectos sócio-políticos para a criação de uma Força Nacional Permanente ABSTRACT It is convenient the creation in Brazil of a National Permanent Force to fill the demand of new emergent conflicts in the context of Globalization, in which organized crime emerges as the first phenomenon. The traditional procedures of acting of State and Federal Police, as well as the merely militarized approach to the issues, do not answer properly the new challenges. It is also convenient that this Force be formed in a civilian-military way in order to fill the demands of democratic life. (Key words: security, organized crime, Special Forces). Resumo É conveniente a criação, no nosso país, de uma Força Nacional Permanente, a fim de responder às exigências dos novos conflitos emergentes ao ensejo da Globalização, dentro os quais emerge como primeiro fenômeno o espectro assustador do crime organizado. As tradicionais formas de atuação das polícias federal e estaduais, bem como a abordagem puramente militarista das questões, não respondem adequadamente aos novos desafios. Para que tal Força responda aos requerimentos da vida democrática, bem como às exigências de salvaguarda dos direitos humanos, é conveniente que seja estruturada à maneira de uma ação cívico-militar. (Palavras-chave: segurança, crime organizado, defesa, forças especiais). Não há dúvida de que é insuficiente a atual estrutura e funcionamento das organizações policiais no país. Os altos índices de criminalidade que apresentam as várias regiões testemunham isso. Reforça essa sensação de inadequação das organizações policiais a falta de confiança, nelas, das comunidades. Sei que é difícil reconhecer isso, em face do sentimento corporativista que, via de regra, se antepõe diante das críticas que se levantam, notadamente nos momentos de maior acirramento das tensões. Não se trata aqui de deblaterar contra as organizações policiais. Trata-se, sim, de ver o problema de frente, para não repetir erros do passado, tomando o caminho das soluções apenas cosméticas. Partamos de um pressuposto fundamental. Não pode haver, no mundo de hoje, segurança pública sem segurança cidadã. E não pode haver segurança cidadã, sem estruturas policiais fortes e modernizadas. Trata-se, portanto, de discutir neste foro, quais deveriam ser as opções a serem seguidas na tentativa de melhor organizar as forças policiais no Brasil, para garantir aos cidadãos a segurança por todos almejada. Ora, este ponto constitui, segundo testemunham recentes pesquisas de opinião, o desideratum maior do eleitorado brasileiro. No processo eleitoral que se avizinha, certamente será aspecto de primeira ordem tudo quanto diga respeito à segurança cidadã. Desenvolverei, na minha breve exposição, três aspectos: 1) Os novos reptos do século XXI, ao ensejo da banditização dos conflitos. 2) Insuficiência da hodierna estrutura policial brasileira. 3) Aspectos sociopolíticos para a criação de uma Força Nacional Permanente. 1 - Os novos reptos para o século XXI, ao ensejo da banditização dos conflitos. O fim da Guerra Fria trouxe uma nova feição das tensões em escala global. A queda do Império Soviético revelou a tremenda fragilidade do Bloco Comunista, no que tange a garantir aos cidadãos as condições mínimas de bem-estar e segurança. Revelou-se a fragilidade de um conceito de segurança imposto desde cima, como era a regra nessa parte do mundo. Passou a ser valorizada uma nova visão de segurança, que partisse da defesa dos interesses dos cidadãos. Nesse contexto, certamente foi encarada com melhores olhos a concepção liberal, que vincula a segurança ao bem-estar dos cidadãos e à defesa dos seus interesses. Houve exageros, sem dúvida, notadamente do ponto de vista dos economistas liberais da Escola Austríaca, que passaram a pensar o mundo unicamente como defesa dos interesses individuais, sem levar em consideração a perspectiva do bem-comum. “Mercado um tudo”, esse era o princípio dos neoliberais do tipo de Hayek ou Von Mises. Mas, na última década foi feita a crítica ao que George Soros passou a denominar de “fundamentalismo de mercado”. Hoje certamente é mais valorizado um liberalismo aberto à questão social, como o professado por Alexis de Tocqueville, que centrou toda a sua defesa da liberdade individual ao redor da idéia de “interesse bem compreendido”. Ao lado dessa revalorização, nas sociedades ocidentais, da perspectiva do indivíduo como centro das preocupações com a segurança, houve uma desarrumação da casa, a nível global, no que tange à administração dos conflitos. Durante a Guerra Fria tinha-se chegado a um conceito de “segurança nacional”, que privilegiava o alinhamento ideológico e político ao redor das duas grandes superpotências. As sociedades latino-americanas sofreram com a bipolaridade das tensões decorrentes dessa feição simplória de enfrentamento dos conflitos. Os vários ciclos autoritários que vivenciaram os países da região (no segundo pós-guerra), dão testemunho da extensão desse esquema, bem como da sua insuficiência para resolver adequadamente os conflitos políticos. Houve uma espécie de congelamento dos mesmos. A sua virulência transpareceu quando o ciclo da bipolaridade chegou ao fim, tendo reaparecido situações conflituosas que pareciam coisa do passado. Em conferência pronunciada no Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, em Março de 20011, analisei sete tipos de conflitos com que se defrontariam os países neste início de novo milênio: o fundamentalismo, o narcoterrorismo, o patrimonialismo, o neonazismo, as guerras pelos recursos naturais, as guerrilhas comerciais e a banditização dos conflitos. A estratégia em face dos conflitos sofreu uma polarização ao redor dos interesses americanos ameaçados, a partir dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, patrocinados pelo fundamentalismo islâmico. Houve uma espécie de ensimesmamento da Super-Potência americana, no que tange à visão que acompanhou a resposta das forças desse país à guerra movida pelo terror. Os Estados Unidos passaram a enxergar unilateralmente as suas preocupações defensivas, alargando as possibilidades de intervenção das forças americanas em qualquer lugar do Planeta, se assim fosse considerado conveniente para salvaguardar os interesses norte-americanos. Tradicionais conceitos como soberania e não-intervenção passaram, conseqüentemente, a ser relativizados. Embora no Brasil estejamos submetidos ao risco de enfrentarmos, de uma forma ou de outra, as situações conflituosas decorrentes do terrorismo internacional, prevalece neste momento, a meu ver, a modalidade de banditização dos conflitos, motivo pelo qual vou lembrar algumas das coisas que destaquei 1 Vélez Rodríguez, 2002, p. 58-81. então na minha conferência. O fim da Guerra Fria produziu um descongelamento de conflitos que tinham ficado sob a camada de gelo da bipolaridade na segunda metade do século XX, especialmente na Europa Oriental e nos Bálcãs. A série de conflitos surgidos, na década dos noventa, na antiga Iugoslávia e em Kosovo mostra a realidade dessa afirmação. A unificação alemã mostrou de que forma o comunismo conseguiu manter numa redoma de vidro, na Alemanha do Leste, antigas idéias nazistas, paradoxalmente misturadas com a ideologia estalinista. De outro lado, o fim da Guerra Fria fez ressurgir alhures a idéia dos regionalismos radicais e do separatismo. Eventos dessa natureza observaram-se na Espanha, com as reivindicações de bascos e catalães; na França, com o ressurgimento da questão corsa, bem como do separatismo bretão; na Inglaterra, com as reivindicações da Escócia em prol de um Parlamento independente, da Irlanda do Norte com o reaquecimento, no final do século passado, da problemática do Ulster; na Rússia, com a questão chechena, etc. Não esqueçamos, de outro lado, a questão da independência do Timor Leste em face da Indonésia, em cuja solução o Brasil participou de perto junto à missão da ONU. Mas o fim da guerra fria colocou a descoberto, também, um fato que antes se mimetizava sob o véu da bi-polaridade: antigas lutas que antes eram atribuídas a reivindicações ideológicas, passaram a se tornar simples banditismo. O caso mais marcante é, sem dúvida, o acontecido com a guerrilha colombiana. Cortada a mesada que o Império Soviético passava aos insurgentes, estes se voltaram simplesmente para o narcotráfico como forma de financiamento das suas atividades, tendo adotado, de outro lado, práticas abertamente criminosas, como o seqüestro regular de cidadãos colombianos e estrangeiros. A Colômbia virou, destarte, paraíso de seqüestradores. O número de pessoas seqüestradas chega hoje a 3.500. As organizações guerrilheiras (FARC/ELN) financiam com o negócio da droga 60% dos seus gastos, ao passo que os 40% restantes provém dos seqüestros. Calcula-se em 500 milhões de dólares anuais o montante dos ingressos da guerrilha colombiana. Ser subversivo, aliás, é um bom negócio: cálculos da Fundação Milênio (com sede em Bogotá) indicavam que um guerrilheiro ganha ao redor de 70 mil dólares anuais, o que equivale a 40 vezes o que ganha um colombiano médio. Mas o banditismo não é apenas uma propriedade dos guerrilheiros colombianos. Com as duas guerras mundiais e a ulterior globalização, houve também uma progressiva universalização do crime, de forma que a indústria ligada às ações à margem da lei cresceu assustadoramente no mundo todo, como destacou Ralph Dahrendorf 2, com motivo da síndrome denominada por ele de "o caminho para a anomia". Este é, sem dúvida, um dos mais sérios reptos para a civilização ocidental no início do novo milênio, especialmente se levarmos em consideração a crescente utilização da tecnologia (como a Internet, por exemplo), nas atividades delitivas. 3 No Brasil, sentimos muito de perto essa problemática, ao verificarmos a força cada vez maior dos narcotraficantes não apenas nos morros, onde tradicionalmente mandaram, mas também nas atividades econômicas 2 3 Dahrendorf, 1987, p. 11-46. Cf. Ilhesca, 1996, p. 17. convencionais, em decorrência do processo de lavagem de dólares. Nas penitenciárias brasileiras é cada dia mais notório o poder das gangues que as controlam, acuando as autoridades e, em muitos casos, sobrepondo-se a elas, como nas rebeliões em cadeia ocorridas há alguns anos no Estado de São Paulo, estrategicamente controladas, via telefones celulares, a partir das penitenciárias pelo autodenominado Primeiro Comando da Capital, que chegou à sofisticação de publicar código de conduta e anunciar na mídia as suas próximas ações, deixando em evidência o despreparo das autoridades e a ousadia e articulação dos bandidos. Na década passada, conseguiram se organizar no Estado de São Paulo cinco facções criminosas com dinheiro proveniente de assaltos, e que passaram a intimidar aos demais detentos e a fazer chantagens à administração dos presídios. Isso sem falarmos do conflito movido pelos traficantes contra as forças da ordem no Estado do Rio de Janeiro, que tem derivado, nos últimos anos, para uma modalidade de guerrilha urbana de média intensidade. A banditização dos conflitos ensejada pelo narcotráfico conta com uma estrutura que supera os limites dos países. A multinacional colombiana das drogas, as FARC, possui hoje com uma dimensão continental e afeta, de forma direta, a nossa segurança. Notícia recentemente divulgada pelo jornal O Estado de São Paulo (edição de 4 de julho de 2005) informava que o juiz federal Odilon de Oliveira, de Ponta Porã, na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, obteve evidências da atuação de guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia no treinamento de bandidos ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e ao Comando Vermelho (CV) para seqüestros. Segundo as apurações de Oliveira, quadrilhas de narcotraficantes do Brasil são os principais clientes da América do Sul na compra da cocaína produzida pela facção colombiana. "Um dos treinamentos foi filmado e dá para se ouvir, no vídeo, a voz de um brasileiro", contou o juiz. Seqüestros com fins econômicos garantem uma receita anual de US$ 250 milhões para as FARC. O juiz acredita que a guerrilha colombiana pode estabelecer bases no País para fazer seqüestros, tanto com fins econômicos como políticos. "Eles já estão estabelecidos no Paraguai e agora miram o Brasil, onde o potencial para esse crime é maior", disse. "Eles treinam brasileiros lá para agir aqui". Segundo Oliveira, os traficantes brasileiros passaram a negociar com a guerrilha a compra de cocaína, eliminando os intermediários colombianos. A droga é levada para o Paraguai antes de chegar ao Brasil. O pagamento é feito em dólares ou armas de guerra. Um exemplo é o bando de 12 integrantes liderado por Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, e Carlos Roberto da Silva, o Charles, que usava sete aviões para levar a droga da Colômbia para o entreposto paraguaio. Ele comprava das FARC e, em menor escala, de produtores da Bolívia e do Peru. A droga entra no Brasil pela fronteira com Mato Grosso do Sul, principalmente pelas regiões de Ponta Porã e Corumbá, e é levada para São Paulo e Paraná, para distribuição no País e no exterior. De acordo com Oliveira, o tráfico por aviões migrou para o Sul por causa da Lei do Abate, que permite à Força Aérea Brasileira derrubar aviões não identificados. "A região amazônica é bastante vigiada pelos sistemas de rastreamento de aeronaves”. Mas a cocaína também cruza a fronteira de carro e ônibus, em pacotes de 10 a 50 quilos. O juiz lembra que os grandes traficantes deixaram de trabalhar com maconha, preferindo a cocaína, que tem menor volume e grande valor agregado. Mas cerca de 80% da maconha que entra no Brasil sai do Paraguai, onde a produção é dominada por brasileiros. Odacir Antonio Dametto, de Dourados (MS), tem 19 fazendas em terras paraguaias usadas para produzir soja e maconha. Extraditado, está no presídio de segurança máxima de Campo Grande. Outro criminoso que seria extraditado, Igor Fabrício Vieira Machado, comparsa do traficante Fernandinho Beira-Mar, conseguiu fugir de um presídio de Assunção assim que soube do pedido de extradição. Teria pagado US$ 50 mil para escapar. O juiz também tem pistas da ligação de traficantes com o terrorismo do Oriente Médio, a partir da prisão de bandidos de origem árabe, como Joseph e Jorge Rafaat Toumani. "Há indícios de remessa de dinheiro para sustentar o terrorismo”. Segundo Oliveira, o Banco Central apontou Ponta Porã como a segunda cidade do País em lavagem de dinheiro, atrás de Foz do Iguaçu (PR). Ele encheu uma sala de 12 metros quadrados com processos sobre esses crimes. Um dos casos, envolvendo o exgerente de banco Elesbão Lopes de Carvalho Filho, revelou a lavagem de R$ 3 bilhões do tráfico. Oliveira o condenou a 172 anos de prisão e multa de R$ 358 mil, a maior pena já aplicada para esse crime. O esquema envolveu somas altíssimas depositadas em contas de laranjas - os principais, como Rodolfo Castro Filho e Pedro Paulo Romero, receberam R$ 1 bilhão em semanas. O juiz suspeita que os laranjas também estivessem a serviço de políticos. Qual é o resultado, para o cidadão comum, desse reforço do crime organizado nas nossas cidades? A banditização dos conflitos traduz-se, no cotidiano das pessoas, numa queda do nível de vida, associada ao temor hobbesiano da morte violenta. A respeito, escreve Ubiratan Macedo: Locke já nos alertava sobre a importância da segurança como responsabilidade pública, principal função do Estado na teoria democrática (...). Um cidadão vitimado por um marginal não está interessado nos bons hospitais e escolas públicas ou na eficiência da previdência social pública, e menos ainda no prestígio e na segurança conferidos ao país pelas Forças Armadas. Primeiro ele quer sua vida e sua integridade física e patrimonial protegidas, e depois a execução de outras funções públicas. 4 2 - Insuficiência da hodierna estrutura policial brasileira. Diante da agressiva realidade representada pela banditização dos conflitos, a sociedade brasileira ainda não conseguiu formular uma clara e eficaz política de segurança pública. Organizadas no contexto do espírito autoritário que prevaleceu na história republicana, as nossas instituições policiais, assim como as judiciais, estão defasadas e precisam de uma urgente modernização, acorde com os princípios da vida democrática. Os estudiosos apontam, hoje, para o caminho da profissionalização das forças policiais, a sua adaptação à complexidade do mundo 4 Macedo, 2001, p. 3. moderno mediante a multiplicidade e especialização das mesmas, criação de uma agência nacional reguladora das polícias privadas, transformação das guardas municipais das cidades maiores em polícia preventiva e ostensiva, criação no ministério da Justiça de um centro de informações que sirva a todas as polícias do país, reforço das organizações policiais de nível federal para guardar as fronteiras, unificação das polícias rodoviária e ferroviária federais, criação de uma polícia fazendária no ministério da Fazenda, criação de uma polícia judiciária, etc. 5 A atual crise política fez parar, no Parlamento, a discussão das leis tendentes a implementar o funcionamento do Sistema Unificado de Segurança, apresentado pelo Presidente Lula, no início do seu mandato. Faltou, a meu ver, um amplo debate em face desse projeto, cuja principal virtude consiste em enfrentar, de forma unitária, todas as questões relativas à segurança pública, tentando consolidar num único todo, a dispersa legislação existente. No entanto, como destaquei em estudo recente sobre o narcotráfico no Rio de Janeiro, a proposta governamental sofre de um vício de origem: a visão de cima para baixo, como se as coisas pudessem ser abordadas diretamente de Brasília, sem levar em consideração a sintomatologia dos problemas onde eles ocorrem, no município. Com mais pé no chão pareceu-me a proposta de segurança pública efetivada pelo atual prefeito do Rio de Janeiro, que tende a propor uma abordagem local das questões, criando os distritos de segurança. Certamente as duas visões seriam passíveis de complementação. Não são incompatíveis os distritos de segurança propostos pelo prefeito carioca, com a formulação de uma política nacional de segurança pública. Mas seria necessário aproximar ambas as visões, a fim de que não briguem entre si. Um dos pontos basilares, a meu ver, consiste, na formação das forças policiais. Permanece inalterada, na mentalidade do policial, a visão autoritária, que o torna elemento desconfiável em face da população. Seria necessário se pensar de que maneira poderia ser reformulada a profissionalização do policial, de forma a gerar nexos de confiança com a população. A desconfiança da sociedade civil em face do policial, não decorre apenas da existência de maus policiais, que agem criminosamente em grupos de extermínio, como na Baixada Fluminense ou na periferia de São Paulo. Decorre, também, do despreparo do policial para lidar com o público. Constitui, em geral, circunstância constrangedora o cidadão ter de se dirigir ao policial de plantão na rua ou nas delegacias. O despreparo, (aliado à revolta causada pela má remuneração), fazem com que os policiais assumam atitudes agressivas, que conduzem os cidadãos a desconfiar das Forças da Ordem. Muito se avançou no nosso país em termos de profissionalização das Forças Armadas. Mas não se avançou, da mesma forma, na formação das polícias militar e civil. Após as reformas iniciadas pelo Marechal Castelo Branco e continuadas no governo Geisel (seguindo provavelmente a trilha civilista aberta por Oliveira Vianna), parece que as Forças Armadas no Brasil enveredaram definitivamente pelo caminho da profissionalização. No entanto, de início não foi assim. O regime republicano tinha deixado um buraco na nossa vida constitucional: acostumada a sociedade brasileira à prática da representação e, no contexto dela, à existência 5 Cf. Macedo, 2001, p. 10-11. de um Poder Moderador (porta-voz dos interesses permanentes da Nação e que entraria como árbitro da disputa para corrigir os desvios da representação, no momento em que os políticos se desentendessem), parece que as Forças Armadas passaram a exercer esse tipo de função moderadora, à margem evidentemente da Constituição escrita, mas não à margem da política costumeira. É a conhecida tese de Alfred Stepan. 6 Esse tipo de função vicária produziu as denominadas "intervenções salvadoras" comandadas pelo que o marechal Castelo Branco denominava de "espírito miliciano", ao longo da República Velha, durante o período getuliano e até 64. A melhor expressão da mentalidade que deu ensejo a esse tipo de intervenção, foram as palavras de Juarez Távora, no início dos anos 30: "Nossa atitude em política é a de quem observa um banquete. Quando o banquete for transformado em rega-bofe, então entraremos com a espada moralizadora". 7 A última intervenção, no entanto, desgastou a Instituição Armada, em decorrência da sua longa permanência no poder. Hoje parece relegado à história esse tipo de intervencionismo na vida do país. A boa aceitação das Forças Armadas, testemunhada pelas pesquisas de opinião ao longo dos últimos anos, revela que a opinião pública apóia a feição profissional não intervencionista em política. O tenente-brigadeiro Murillo Santos definiu a profissionalização seguindo a terminologia adotada por Samuel Huntington, da seguinte forma: O relacionamento correto (entre poder civil e militares) repousa na profissionalização dos militares e a isto é que precisamente denomina de controle objetivo, isto é, aquela situação em que as Forças Armadas têm atribuições claras, relacionadas à defesa, dispondo de um corpo de oficiais rigorosamente profissionalizado. (...). O verdadeiro controle civil é uma decorrência da maximização do profissionalismo militar. (...) O corpo de oficiais altamente profissionalizado encontra-se pronto para sustentar as aspirações de qualquer grupo civil que exerça autoridade legítima no interior do Estado. Com efeito, este conjunto define os limites do poder político dos militares sem referência à distribuição do poder político entre os vários grupos civis. 8 Se foi possível modificar a mentalidade das nossas Forças Armadas, dotando-as de uma disciplina de profissionalização, com a assimilação de valores condizentes com a vida democrática e com os reptos do mundo contemporâneo, também será possível reformular a estrutura e o funcionamento das Forças Policiais, a fim de que respondam eficazmente aos novos reptos. Profissionalização rigorosa e modernizadora das organizações policiais, tanto civis quanto militares. Essa é a palavra de ordem. Essa nova realidade policial exige que sejam pensados os mecanismos orçamentários para tornar realidade o processo de profissionalização e a conseqüente remuneração. A sociedade brasileira, pelo torto caminho da perda da sua qualidade de vida, em decorrência da banditização das nossas cidades e do campo, está chegando à conclusão de que pagar bem aos seus policiais não é questão secundária. Mas, paralelamente a isso, deve ser pensada a questão da profissionalização. 6 Cf. Stepan, 1975. Távora, in: Torres, 1956, p. 181. 8 Santos, 1991, p. 136-137. 7 3 - Aspectos sócio-políticos para a criação de uma Força Nacional Permanente. As atuais circunstâncias estão a mostrar que é imperativa, para o nosso país, a criação de uma Força Nacional Permanente. Valeria a pena discutir, aqui, qual deveria ser a configuração da mesma. Colocarei algumas questões para serem discutidas. Dividirei este item em duas partes: iniciativas em curso e aspectos socio-políticos que deveriam ser levados em consideração na organização e funcionamento da Força Nacional Permanente. A – Iniciativas em curso A.1 - Em face do avassalador crescimento das forças do narcotráfico que, organizadas no Cartel das FARC, começaram a ameaçar a nossa Fronteira Noroeste, as Forças Armadas, sob comando do Exército, deflagraram ações de dissuasão na região amazônica, a mais importante das quais, realizada em 1999, sob o nome de “Operação Querarí”, mobilizou 5 mil homens e 39 aviões de combate, incluindo caças Mirage e Tucano. Estas operações, como é de conhecimento público, vêm sendo realizadas periodicamente todos os anos, sendo as mais recentes as denominadas Tapurú e Timbó III. A.2 - Junto a essas ações tipicamente militares, têm sido realizadas, sob comando do Exército, operações conjuntas entre as Forças Armadas e as Secretarias de Segurança dos Estados, com a colaboração das Polícias Estaduais, Federal e Rodoviária Federal, com a finalidade de reprimir a circulação de entorpecentes, combater as máfias de madeireiros, contrabandistas e traficantes e reforçar a vigilância nas fronteiras. As mais recentes iniciativas desse gênero têm sido as operações Pacajá (realizada no Estado do Pará, no início de 2005) e Jaurú (efetivada nas regiões centro-oeste e sul-oeste do Brasil, em junho de 2005). A.3 - De outro lado, para reforçar o combate ao narcotráfico, que na região do Rio de Janeiro assumiu a feição de guerrilha urbana, em maio de 2003 o Ministério da Justiça informou que seria criada uma Força Nacional (semelhante ao FBI americano). Essa Força estaria integrada por 600 policiais federais, civis e militares de elite, a serem chefiados pelo diretor-geral da Polícia Federal. Para a criação dessa Força certamente contribuíram as experiências obtidas, no combate ao crime organizado, pelos grupamentos de polícia especial criados, no decorrer dos anos 70, pelas Polícias Militares de São Paulo (ROTA) e do Rio de Janeiro (BOPE). A.4 - Outra medida anunciada (em junho de 2003), consistiu no fato de o Exército ter começado a treinar um grupo de elite para atuar na repressão à criminalidade no Rio de Janeiro. O número de militares e a localização da nova força foram mantidos inicialmente em sigilo. A julgar pela forma em que essa unidade foi configurada, selecionando soldados de várias regiões do país, menos passíveis, portanto, de serem pressionados pelos traficantes de uma determinada localidade, parece que o projeto em andamento inspirou-se na bem-sucedida experiência do governo colombiano que criou, no final de 2001, esse tipo de força. Trata-se, no caso do país vizinho, da Fuerza de Despliegue Rápido – FUDRA (ver Anexo I), com quatro mil homens altamente treinados e dotados de modernos helicópteros de combate, graças à qual o governo do Presidente Uribe está infringindo sérias derrotas às FARC. Em relação à nova unidade militar, frisavam os jornalistas Helena Chagas e Francisco Leal: A nova tropa de elite foi concebida a partir do diagnóstico de que, embora as Forças Armadas não devam atuar em segurança pública, a situação é tão grave que o governo não pode abrir mão de ter uma equipe preparada, caso haja necessidade de utilizá-la. Os idealizadores da equipe insistem em que não é competência dos militares fazer o patrulhamento das ruas do Rio e que as Forças Armadas não devem ser encaradas como a solução para todos os problemas de segurança do Estado. O grupo especial só será acionado segundo critérios preestabelecidos pelo governo. (...) A equipe de elite do Exército poderá servir como reforço à Força Nacional que o Ministério da Justiça pretende criar para combater o crime organizado. 9Esta nova Força do Exército já se consolidou e hoje é integrada pela 11a. Brigada de Infantaria Leve – Garantia da Lei e da Ordem, BIL – GLO, com sete mil homens altamente treinados e com sede em Campinas. A finalidade dessa Brigada consiste em se especializar em operações urbanas de garantia da segurança interna, como tomar favelas do narcotráfico e conter rebeliões e distúrbios civis.10 B - Aspectos socio-políticos da Força Nacional Permanente. Levando em consideração as iniciativas apontadas, podemos dizer que a Força Nacional Permanente já existe, embora não suficientemente organizada. Destacarei, a seguir, os aspectos que me parece devem ser levados em consideração, a fim de conferir à mencionada Força suficiente coesão e eficácia. B.1 – A Força Nacional Permanente deveria estar integrada por militares selecionados das três Armas, por soldados de elite das polícias militares e das polícias Federal e Rodoviária Federal, por membros treinados da polícia civil dos Estados e por funcionários públicos civis devidamente preparados. 9 Chagas, Leal, 2003. Cf. Leitão, 2005, p. 32. 10 B.2 - A Força Nacional Permanente deveria ter um comando unificado, presidido por um alto oficial do Exército, que se reporte ao Estado Maior das Forças Armadas e aos Ministérios da Justiça e da Defesa. Assinalo que o comando deve estar em mãos de um oficial de alto escalão do Exército, em virtude do fato de que este é a instituição armada que mais experiência tem, no Brasil, na coordenação de operações de segurança pública de amplo espectro, que abarquem a colaboração de militares e civis. (As recentes operações Pacajá e Jaurú mostram que o Exército tem plena capacidade para gerir esse tipo de atividades, no atual momento democrático que vive o país). B.3 - A atuação da Força Nacional Permanente deveria ser definida no contexto de uma política de cooperação cívico-militar, semelhante à que tem vigência na França na denominada Action Civilo-Militaire (ACM), e que é reconhecida no seio da OTAN como Civil-Military Cooperation (CIMIC).11 Isso daria ao Estado brasileiro a possibilidade de desenvolver, a partir das intervenções da Força Nacional Permanente, ações de promoção humana e social, necessárias, sobretudo, em áreas tradicionalmente carentes, como as favelas nas nossas grandes cidades. Ao adotar essa característica de cooperação cívicomilitar, a Força Nacional Permanente teria, outrossim, a possibilidade de se abrir à cooperação das Organizações não-Governamentais dispostas a prestar a ajuda. B.4 – A Força Nacional Permanente deveria ter uma Escola de preparação para o seu pessoal civil e militar. Isso possibilitaria a formação de elementos civis de alto nível, bem como a preparação dos quadros militares para um trabalho em equipe. Essa Escola Serviria, também, para preparar os membros que iriam participar de atividades relacionadas às missões de paz no exterior. O Brasil, de fato, em virtude da vontade política de ocupar um lugar no seio do Conselho de Segurança das Nações Unidas, vem se comprometendo com as Nações Unidas nesse tipo de missões, como tem ocorrido no Timor Leste, no Haiti e em outros lugares do Planeta. B.5 – Em decorrência do fato de a Força Nacional Permanente ser uma resposta aos desafios do crime organizado, possuiria um núcleo de militares de elite, que deveriam ser treinados com o que de mais sofisticado há no terreno das estratégias e táticas de combate. Esse núcleo armado constituiria uma força de intervenção rápida, capaz de se deslocar em questão de horas para qualquer canto do país. É obvio que esta exigência pressupõe uma adequada logística, que implicaria na aquisição de aviões e helicópteros de combate de última geração. B.6 – Quanto ao número de militares profissionais de que deveria constar essa Força Nacional Permanente, não poderia ser inferior a cinco mil homens, em decorrência do tamanho e das necessidades do país. 11 Cf. Brito Filho, 2005, p. 2. B.7 – A presença de elementos civis altamente qualificados, obedece à necessidade de atender às comunidades no seio das quais se desenvolvam as ações armadas da Força Nacional Permanente, a fim de que a presença do Estado não seja apenas vista como repressiva ao crime organizado, mas também como promotora do desenvolvimento humano, econômico e social dos mais diretamente afetados pela criminalidade. ANEXO I FUERZA DE DESPLIEGUE RAPIDO (FUDRA) DEL EJÉRCITO COLOMBIANO (Samuel Yecutieli – Javier Ignacio Mayorca. Portal Segured.com – Cidade do México). [Consultado em 9 de Setembro de 2005] La Fuerza de Despliegue Rápido – FUDRA - es la unidad símbolo de la modernización del Ejército y de las Fuerzas Militares. Es una unidad de lucha antisubversiva compuesta por tres Brigadas Móviles y una Brigada de Fuerzas Especiales, dotada con helicópteros Black Hawk y M-I de la aviación del Ejército y el apoyo permanente de la Fuerza Aérea Colombiana con aviones de ala fija tanto de transporte, como de combate. Su misión es la de realizar operaciones ofensivas de combate contra la guerrilla y grupos de autodefensa, combatiendo el terrorismo y el narcotráfico, en forma rápida, en del territorio y en cualquier lugar colombiano donde se presente una acción de la guerrilla o de cualquier otro grupo armado ilegal. El 7 de diciembre de 1999, en el marco de la celebración del Día de la Infantería Colombiana, el señor Presidente de la República Doctor Andrés Pastrana Arango, activó en una imponente parada militar en las instalaciones del Batallón de Helicópteros con sede en la Base Militar de Tolemaida, lo que se llamaría a partir del momento la FUERZA DE DESPLIEGUE RAPIDO, La Fuerza de Despliegue Rápido – FUDRA - es una unidad entrenada y preparada para actuar en las selvas o los llanos, en el páramo o en el desierto, tal como lo reza su lema Cualquier misión, en cualquier lugar, a cualquier hora, de la mejor manera, listos para vencer. Con esta nueva unidad operativa mayor se complementa la estrategia militar operativa del Ejército y se optimizó la capacidad de reacción que ha permitido desde el momento de su creación una mayor eficiencia en los resultados operacionales, fortaleciendo de esta manera la voluntad y capacidad de lucha de nuestras Fuerzas Militares. Desde el mismo momento de su creación la responsabilidad de esta unidad cayó sobre los hombros del Brigadier General Carlos Alberto Fracica Naranjo, quien durante dos años, tuvo la misión de comandar esta nueva unidad de combate. El actual comandante, quien asumió el mando de la Fuerza de Despliegue Rápido en diciembre de 2001, es el Brigadier General Hernando Alonso Ortiz Rodríguez. Referencias Bibliográficas: AFP. Guerrilla y militares se disputan las zonas más ricas de Colombia. Boletim Informativo. Paris, 3 de agosto de 1997. BRITO FILHO, Francisco Mamede de, Ten Cel Inf. Assuntos civis, demanda crescente dos conflitos contemporâneos – A proposta francesa. Rio de Janeiro: ECEME, 2005. CHAGAS, Helena; LEAL Francisco. Exército prepara grupo para atuar no Rio. In: O Globo, Rio de Janeiro, edição de 10 de junho de 2003. DAHRENDORF, Ralph. A lei e a ordem. (Tradução de Tâmara D. Barile). Brasília: Instituto Tancredo Neves; Bonn: Fundação Friedrich Naumann, 1987. ILHESCA, Marlise. 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