In: Dicionário de Conceitos Históricos - Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva – Ed. Contexto – São Paulo; 2006 TRADIÇÃO A palavra tradição teve originalmente um significado religioso: doutrina ou prática transmitida de século para século, pelo exemplo ou pela palavra. Mas o sentido se expandiu, significando elementos culturais presentes nos costumes, nas Artes, nos fazeres que são herança do passado. Em sua definição mais simples, tradição é um produto do passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É um conjunto de práticas e valores enraizado nos costumes de uma sociedade. Esse conceito tem profundas ligações com outro como cultura e folclore. E, em geral, é matéria de estudo das ciências sociais, sendo objeto de pensadores clássicos da Sociologia como Max Weber. A tradição tem, na perspectiva sociológica, a função de preservar para a sociedade costumes e práticas que já demonstraram ser eficazes no passado. Para Weber, os comportamentos tradicionais são formas puras de ação social, ou seja, são atitudes que os indivíduos tomam em sociedade e são orientadas pelo hábito, pela noção de que sempre foi assim. Nessa forma de ação, o indivíduo não pensa nas razões de seu comportamento. O comportamento tradicional seria, então, uma forma de dominação legítima, uma maneira de se influenciar o comportamento de outros homens sem o uso da força. Uma visão clássica da tradição nas ciências sociais acredita que ela teria dificuldades em acompanhar as mudanças e, à medida que o liberalismo e o individualismo foram ganhando espaço no Ocidente, os comportamentos tradicionais teriam perdido espaço. As tradições, nesse sentido, teriam se enfraquecido com a industrialização e o nascimento das sociedades industriais, dando lugar a uma rotina cada vez mais preenchida pela ciência e pela técnica. Mas as tradições evoluem e se transformam com as novas necessidades de cada sociedade, funcionando inclusive para impedir que ela se dissolva. Segundo Dominique Wolton, a tradição não é mais vista pelas ciências sociais como uma coisa arcaica, mas como aprendizagem, reapropriação. Para ele, na medida que as sociedades se modernizam, a tradição aparece para suportar a mudança social, pois nenhuma sociedade muda radicalmente, sendo que cada fase de mudança possui também estabilidade. Outra perspectiva comum é a relação feita entre tradição e modernidade. Para Boudon e Bourricard, é corriqueira a oposição entre sociedades tradicionais e sociedades industriais. O problema dessa oposição é que ela não traz uma definição clara de quais são as características de uma sociedade tradicional. Na verdade, ela engloba sociedades tão diferentes quanto o Sacro Império Romano Germânico e a Babilônia, em contextos históricos totalmente diversos. E, assim, a definição de sociedades tradicionais termina por se basear não nas características que elas compartilham, mas nos elementos que elas não possuem, e existem nas sociedades modernas, como a escrita, a divisão de trabalho com ênfase na produção, as trocas interpessoais. Para esses autores, em vista desses problemas é muito mais interessante hoje o uso do conceito de tradição do que de sociedades tradicionais, pois tradição é algo que pode existir em todas as sociedades, inclusive nas industriais. A tradição como tema de estudos tem também ganhado espaço na História. Eric Hobsbawm, por exemplo, estudando o mundo contemporâneo, utiliza o conceito de tradições inventadas para denominar o conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, regulado por regras aceitas por todos, que tem como objetivo desenvolver na mente e na cultura determinados valores e normas de comportamento, por meio de uma relação com o passado feita pela repetição constante dessas práticas. Para Hobsbawn, uma das características das tradições inventadas é que elas estabelecem uma continuidade artificial com o passado, pela repetição quase obrigatória de um rito. As tradições têm como função legitimar determinados valores pela repetição de ritos antigos (ou de ritos definidos como antigos, no caso das tradições inventadas), que dariam uma origem histórica a determinados valores que devem ser aceitos por todos e se opõe a costumes novos. Hobsbawm defende que um dos aspectos mais fortes da tradição é sua característica invariável, ou seja, seria um conjunto de práticas fixas que, por serem sempre repetidas de uma mesma forma, remeteriam ao passado, real ou imaginado. Mas muitas pesquisas antropológicas recentes, assim como trabalhos sobre o folclore, contestam o caráter fixo das tradições. Para essas, a cultura popular nas tradições e manifestações folclóricas se renova constantemente por meio da criação anônima. No caso de Hobsbawm, ele estuda tradições inventadas pelas sociedades industriais, que, após a Revolução Industrial, tiveram de criar novas rotinas e novas convenções. São rituais e eventos que, segundo ele, são muitas vezes criados por um só personagem, no caso das tradições inventadas. É o caso do escotismo, o corpo dos escoteiros, instituição internacional criada por Baden Powell, em 1909, com o objetivo de aperfeiçoar física e moralmente os jovens. O escotismo está repleto de tradições inventadas, na forma de rituais e normas de comportamento, constantemente repetidos e ensinados aos novos membros. Também a realeza britânica possui muitas tradições mencionadas por Hobsbawm, algumas inventadas e outras autênticas, sempre repetidas, como a cerimônia de coroação ou de sepultamento da realeza na abadia de Westminster, como para reafirmar a Antiguidade e a legitimidade da monarquia. Nesse sentido, tradição também tem uma ligação muito forte com o conceito de Antiguidade como um período de grandes homens, uma Idade de ouro. Sociólogos como Tom Bottomore e William Duthwaite, por sua vez, acreditam que o termo tradição deve ser empregado para as esferas mais importantes da vida humana, como a religião, o parentesco, a comunidade etc., deixando as esferas menores de ritos e costumes cotidianos com o conceito de folclore. Defendem, além disso, que as tradições não são necessariamente estáticas ou imóveis. Para eles, migrações e mesmo revoluções, que são fenômenos geradores de mudança por excelência, algumas vezes estão baseados no desejo de disseminar tradições ou de protegê-las. Eles dão como exemplo a Reforma Protestante, fenômeno que gerou muitas mudanças sociais e culturais, mas que teve como base um desejo de retornar às tradições do Cristianismo primitivo. Por outro lado, poderíamos acrescentar que a colonização da América espanhola vivenciou também tentativas da Coroa, da Igreja e de determinados grupos sociais de transferir para as colônias tradições e costumes antigos na própria Espanha, como o Catolicismo e a cultura da fidalguia. Outro exemplo do trabalho histórico com a tradição é o estudo do pensamento ibérico barroco e moderno, por Rubem Barboza Filho, que por meio da tradição procura entender a constituição das identidades da América Ibérica. Barboza Filho observa a influência da tradição na formação do caráter moderno da Ibéria. Pensa tradição como um elemento vivo e atuante, que aparece na vida social do presente. Afirma que o conceito de tradição foi muito utilizado pelos pensadores ibéricos, como Unamuno, na passagem do século XIX para o XX, como uma forma de crítica à modernidade, de projeto alternativo à modernização da Europa que não incluía a Espanha. Muitos intelectuais espanhóis de então defendiam a revalorização das tradições ibéricas como forma de, mediante elementos culturais puramente espanhóis, tornar possível superar a decadência na qual o país se encontrava. Os elementos que Unamuno caracterizou como tradicionais na cultura espanhola foram a fé, a paixão, a mística. Elementos opostos à modernidade, por sua vez definida pela ciência e técnica. Personagens como El Cid e Dom Quixote, a tradição cultural do Século do Ouro (o século XVI na Espanha, auge do império espanhol), da Arte barroca, da Inquisição e do poderio do Catolicismo e da monarquia foram recuperados na passagem do século XIX para o XX como elementos de tradição úteis para a construção de uma identidade própria e conservadora da Espanha, diante da expansão da modernidade ocidental. Vemos, assim, que tradição possui muitos significados: pode estar atrelada ao conservadorismo e ao resgate de períodos passados considerados gloriosos; pode ser inventada para legitimar novas práticas apresentadas como antigas. Muitas vezes é pensada como imóvel, mas hoje cada vez mais estudiosos percebem suas ligações com as mudanças. Está ligada ao folclore, à cultura popular e à formação de identidades. Assim, é um tema muito prolífico, que dá margem a discussões variadas. No Brasil, onde a cultura popular está sendo recuperada cada vez de forma mais intensa e onde também surge um forte movimento de revalorização das tradições e do folclore, é importante que os professores de História entendam os sentidos dessas noções, assim como suas diferenças: enquanto a tradição está atrelada a costumes, ritos e valores mais abrangentes, o folclore trabalha principalmente com as tradições da cultura popular. VER TAMBÉM Antiguidade; Barroco; Cultura; Discurso; Folclore; Identidade; Imaginário; Indústria Cultural; Memória; Mito; Modernidade; Orientalismo; Patrimônio Histórico; Tecnologia. SUGESTÕES DE LEITURA BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/Ed. IUPERJ, 2000. BOUDON, Raymond; BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993. DUTHWAITE William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.