Entre o Empírico e o Formal - Uma Questão Problemática de Filosofia da Lingüística 1
Jorge Campos
Assuma como suposições (A), (B) e (C) abaixo:
(A) A Lingüística é a teoria da linguagem humana
(B) A linguagem humana é concebida como constituída de estruturas som-sentido
(C) A teoria lingüística descreve tais estruturas e explica o fenômeno da linguagem
E considere a questão (D)
(D) Qual é a forma científica da Lingüística?
Dados (A), (B), (C) e (D), a imediata observação relevante é a de que a resposta
deve naturalmente passar pela consideração de alguma tipologia básica para a
organização do quadro mais geral das atividades científicas. Assumamos, então,
operacionalmente (E)
(E) A classificação mais geral das ciências distingue-as como Formais, Naturais e
Sociais
A questão mais próxima passa a ser, agora, dado (E), sobre que espécie de ciência a
Lingüística é. E, finalmente, chegamos ao ponto, assumindo (F)
(F) O que de mais essencial diferencia as diversas ciências é a natureza de seu
objeto, a metodologia para abordá-lo e, como decorrência, a sua inserção num grupo de
relações interdisciplinares
E, conseqüentemente, o que se coloca como fundamental é, então, a consideração
sobre a natureza do objeto e da metodologia da teoria da linguagem, tópicos que
deveriam constituir o que se poderia chamar de Filosofia da Lingüística.
Bem, a primeira observação que sugerimos, já dentro da recém denominada
disciplina é a de que a Lingüística representa, na verdade, neste século especialmente, um
campo de atividades muito amplo que abriga um conjunto variado de teorias nãohomogêneas. Pode-se falar de Lingüística como Semântica Teórica de Modelos, no
padrão logicista, de Teoria da Gramática, na tradição gerativista, de Análise do Discurso,
no estilo mais francês, etc. Isso para não listar um sem-número de tendências menos
paradigmáticas, mas nem por essa razão menos consideráveis. Tais teorias e linhas de
investigação não coincidem, necessariamente, quanto à forma como seu objeto é
constituído e nem quanto ao modo de abordá-lo, mas nem por isso deixam de pertencer
ao conjunto que identifica uma ciência lingüística. Uma segunda e importante
consideração decorre da anterior. O caráter científico de uma área complexa como a das
disciplinas dedicadas à linguagem não parece poder ser determinado in advance em
relação às teorias em jogo. Isso significa que dizer o que é Lingüística pressupõe precisar,
antes, qual teoria exatamente se está levando em conta, sob pena de a reflexão
permanecer numa indesejada generalidade.
Dadas tais condições, (D), assim como se encontra, não pode ser respondida de
maneira mais informativa. Trata-se de restringi-la como (D)’.
(D)’Qual a forma científica da Lingüística modelo x (por exemplo. Gerativista)
Segue-se disso que o caráter formal, natural ou social da Lingüística dependerá da
opção teórica selecionada. A história da disciplina nos traz, de fato, exemplos de
programas de investigação em cada uma das três formatações. Montague e seus
associados representam uma proposta de Lingüística Formal, Chomsky e grande parte da
escola gerativista têm defendido a existência da Lingüística como ciência natural e
Saussure - com seus fiéis discípulos - foi o pioneiro de um programa de Lingüística como
disciplina social. Mas, se essa organização do problema já nos permite avançar um
pouco, ainda temos pela frente inúmeras perplexidades. A verdade das considerações
anteriores parece acarretar, por exemplo, que, se uma disciplina lingüística depende de
como o seu objeto é constituído e do método assumido para investigá-lo e, se tal
disciplina pode concebê-los em pelo menos três formas distintas de fazer teoria, então em
que sentido pode-se determinar que se trata da mesma disciplina e do mesmo objeto? De
fato, a maneira clássica de se entender ciência passa pela observação de um conjunto de
propriedades a caracterizar um objeto cuja existência não parece estar condicionada à
existência da teoria. Supõe-se que a linguagem humana, objeto da Lingüística, no caso,
existe anteriormente à constituição da teoria, e exteriormente a ela. Aliás, teriam sido a
relevância de tal objeto e sua complexidade os fatores pré-dados a desencadear o
processo teórico. Mas, se isso é assim, estamos diante de um impasse de compreensão.
Afinal, se o objeto da nossa investigação possui propriedades intrínsecas a serem
descobertas pela adequação descritiva de nossa teoria, em que sentido é possível assumirse que ele pode ser construído como conjunto de propriedades formais, naturais ou
sociais? Tal obstáculo parece, de fato, familiar no contexto de disciplinas como a Física.
Afinal, existem, realmente, quarks, ou se trata de uma construção abstrata a modelar
fenômenos subatômicos de natureza puramente matemática? Esse tipo de indagação tem,
na verdade, sido o centro crucial das disputas entre realistas e não-realistas em ciência.
Isso para dizer que a Lingüística, como disciplina que pretende estatuto científico,
também está inescapavelmente sujeita às mesmas perplexidades, ainda que seus
seguidores tenham permanecido um tanto alheios a esse tipo de especulação.
Voltemos ao início. Sem dúvida, (A) pode ser interpretada como plausível,
justamente porque adequadamente vaga. Trata-se de uma suposição inicial de trabalho.
Ela dimensiona o fenômeno, tal como entendido pelo senso comum, a restringir
pragmaticamente o conjunto de possíveis investigações. Em outras palavras, ‘linguagem
humana’ é um rótulo amplo para designar um objeto complexo que pode ser desenhado
em diversos ângulos no interior de uma teoria. Certo. Ninguém negaria que, no seu uso
popular e pré-teórico, aspectos culturais, psicológicos, sociais, biológicos, físicos, etc.,
poderiam ser atribuídos à linguagem humana. Então, exatamente por isso, podemos
construir modelos tão diversos de Lingüística. Assim entendido, demos mais um passo na
organização do terreno para tentar superar o desafio de como deve ser entendido o objeto
de uma ciência, nesse momento instanciado para os interesses da disciplina lingüística.
De fato, afirmar (A) não é inconsistente nem com a idéia de que a linguagem humana
tenha existência extrateórica, nem com a possibilidade de que sejam construídas formas
abstratas capazes de modelar propriedades, preferencialmente universais, atribuídas a tal
fenômeno. Isso significa, em última instância, que a expressão ‘linguagem humana’ é
tomada em pelo menos dois sentidos: um para corresponder ao que se entende na préteoria do senso comum, e outro para identificar a mais ampla possível gama de
fenômenos abrigados pelo conceito referido através da expressão em jogo, capaz de ainda
restringir o conjunto de possíveis investigações relativas a um rótulo disciplinar como
Lingüística, por exemplo.
Quanto à (B), à primeira vista pouco problemática, seu valor informativo parece estar
no fato de que a tradição científica consiste na descrição das entidades básicas,
responsáveis, por hipótese, pelas propriedades mais fundamentais do objeto. No caso da
Lingüística, poucos estariam dispostos a questionar que tais entidades deveriam ser
concebidas com estruturas do nível fonológico ao semântico. Mas o desconforto logo
aparece quando nos perguntamos pela natureza de tais entidades. Num primeiro
momento, parece razoável supor que estruturas são por si mesmas formais. Mas nada
impede que consideremos, como de fato ocorre na disciplina lingüística, o suporte em
que tais estruturas emergem ou se enraízam. Para Chomsky, por exemplo, a linguagem
humana está enraizada na natureza do cérebro/mente; em Saussure, a organização social é
a origem e o fim último da linguagem; Montague, por sua vez, referir-se-ia,
provavelmente, a formas platônicas, abstratas ou matemáticas, como representando a
constituição essencial do código lingüístico. Seja como for, também aqui estamos muito
distantes da unanimidade quanto ao que seriam os objetos últimos da Lingüística. Tudo
parece depender dos fundamentos nominalistas, conceptualistas ou realistas com os quais
uma teoria está comprometida. No máximo, talvez fosse possível considerar-se que, se a
teoria lingüística está essencialmente envolvida com a descrição de propriedades
universais da linguagem, isso parece empurrar, quase necessariamente, para a construção
de objetos abstrato-formais, uma vez que dos enunciados em seus aspectos concretos e
específicos nada de mais relevante se segue. Realmente, mesmo no âmbito da
Pragmática, por hipótese subteoria lingüística cujo objeto é o enunciado e sua relação
com o contexto, tal objeto é modelado de maneira adequadamente abstrata para que sua
generalidade possa ser identificada. Mas passemos a (C).
(C) também parece ser consistente com os princípios comuns às diversas atividades
científicas, que exigem, além de competência descritiva, adequação explanatória.
Descrição refere-se, na verdade, apenas ao primeiro passo, à identificação preparatória de
estruturas locais, para que dela decorra a natural e desejável explicação geral. É o que se
pretende caracterizar freqüentemente com a tensão entre Gramática Particular e
Gramática Universal no contexto gerativista, por exemplo; ou com o que está subjacente
à dicotomia língua-fala na concepção estruturalista ou, ainda, pressuposto na oposição
estrutura gramatical-forma lógica da tradição formalista.
Seja como for, mesmo que se organize, como acima, o quadro das atividades
lingüísticas e seu estatuto científico, o roteiro das perplexidades parece resistir e
centralizar-se numa questão (G), no mínimo, dramática:
(G) Como é possível a conexão entre o empírico e o formal na tradição da lingüística
científica?
De fato, em qualquer das tradições mencionadas, ainda que assumindo-se,
kantianamente, uma concepção de ciência como construindo o seu objeto a partir de seu
método, a relação entre o empírico e o formal parece altamente problemática. Vista como
ciência social, a Lingüística descreve estruturas específicas de uma língua particular para
chegar ao sistema de regras daquela língua. Mas uma língua, qualquer que fosse, não
poderia ser o objeto último da disciplina, sob pena de termos que assumir ou n
disciplinas, ou uma só que ficasse na pura atividade descritiva de n línguas. A
generalização dos fenômenos específicos, via explicação social, requereria, primeiro, leis
sociais bem estabelecidas, depois, canais de conexão entre o concreto-específico das
estruturas lingüísticas descritas e o abstrato-geral das tais leis. Isso sem considerar que a
passagem do número finito de descrições para a generalidade das regras pressupõe uma
aceitação acrítica de uma posição indutivista. Conseqüência disso é que a relação entre o
trabalho empírico de avaliação de enunciados e o formal das generalizações passa, na
concepção social da Lingüística, por um emaranhado de obstáculos; resumidamente, a
generalização indutiva das descrições para as regras, a aceitação de leis sociais que
dependeram, também do mesmo tipo de generalização e, finalmente, a conexão entre os
fenômenos sociais e lingüísticos, questão absolutamente não-trivial. Se acrescentarmos a
isso tudo o fato de que as ciências sociais passam, nos últimos anos, por convulsões
metodológicas graves que ameaçam seriamente a sua estabilidade científica, então a
inserção da Lingüística nessa rede interdisciplinar fica bastante problematizada.
Enquanto ciência natural, a situação da Lingüística, ainda que mais amena, também
envolve não menos complexidade. Se a linguagem é assumida como um fenômeno
natural, ao nível dos fenômenos químicos, biológicos, físicos, etc., então as línguas, em
suas variações sociais, em seus dialetos, em suas peculiaridades regionais, são apenas
produtos epifenomenais de estruturas abstratas universais. Mas, decorrem daí duas
alternativas complicadas. Ou a Lingüística assume-se como ciência natural típica e passa
a investigar diretamente o seu objeto, por exemplo, a faculdade da linguagem em sua
natureza no cérebro/mente, caso em que o conjunto de línguas externas passa a cumprir
papel inexpressivo; ou a Lingüística confirma a sua tradição de pesquisa das línguas
diversas, mas, então, considerando as descrições que faz apenas instrumentos para o
estabelecimento de leis mais gerais. Nesse caso, assume, inevitavelmente, o ônus de
explicar como se dá a passagem da descrição de enunciados particulares em número
finito para o de princípios gerais, ou, se negar o indutivismo clássico, o ônus de mostrar a
plausibilidade dos princípios e sua origem. Isso sem considerar que o roteiro das ciências
naturais se, ao contrário do quadro anterior, é bem mais estável e produtivo, também gera
metodologias concorrentes ao nível de neurosciências, por exemplo, capazes de
investigar a linguagem. Nessa situação, no mínimo, está-se diante do megaproblema de
tratar das conexões entre as duas grandes áreas metodológicas. Só para avaliar-se a
dificuldade do problema apontado, suponha-se a existência de inconsistências entre
resultados oferecidos pela Lingüística e pela neurosciência sobre a natureza da
linguagem. Como saber se o problema é o mesmo? Como estabelecer mapeamentos entre
as investigações? como conectar a tradição das pesquisas sobre línguas e sua riqueza
cultural com a emergência das ciências cognitivas?
No que diz respeito às tendências formalistas, o que se pode dizer é que os
problemas são mais claros mas nem por isso menos dramáticos para a Lingüística.
Realmente, dada uma concepção de linguagem como uma expressão de relações
abstratas, de formas lógicas, a direção programática é mais ou menos previsível. A lógica
e a matemática possuem uma tradição milenarmente segura. Sem o peso das
investigações empíricas das ciências naturais e sociais, as áreas formais dependem
crucialmente da formulação de problemas corretos e de seus desdobramentos técnicos na
direção de metaprincípios tais como consistência, decidibilidade, etc. Entretanto, dada a
modelagem da linguagem natural via estratégia formal, imediatamente se colocam, como
no caso anterior duas perspectivas. Ou a Lingüística assume-se, efetivamente, como
disciplina matemática e, nessa direção, as línguas em suas peculiaridades ficam
praticamente sem função, ou, a Lingüística continua praticando o empirismo da descrição
com o então pesadíssimo ônus de esclarecer as conexões e mapeamentos com as
entidades formais. Dada uma estrutura gramatical e sua forma lógica como garantir, ao
mesmo tempo, a universalidade da segunda e sua correspondência não-arbitrária com a
primeira em sua especificidade de enunciado de uma língua particular?
Uma coisa parece certa: ainda que a Filosofia da Lingüística seja uma disciplina em
alguns aspectos provavelmente pouco reconhecida, o avanço dos programas de
investigação na área da linguagem, praticamente determina a relevância de sua
contribuição. Talvez, até, os problemas que a Lingüística, como ciência emergente forte,
num contexto interdisciplinar tão complexo, apresenta possam trazer alguma elucidação
para a Filosofia da Ciência em geral, especialmente para uma pergunta como (H).
(H) Até que ponto o conceito de ciência é necessariamente vago?
1 Texto-síntese correspondente à palestra inaugural do III CELSUL e do IV Seminário
Internacional de Lingüística.
Bibliografia Mínima:
KATZ, Jerrold, Philosophy of Linguistics,
CHOMSKY, Noam, Knowledge of Language
SAUSSURE, F. Cours de Linguistique Générale
FODOR, F Some notes on What Linguistics is about
COSTA, J., A Lingüística como Ciência Natural
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Entre o Empírico e o Formal Uma questão Problemática de Filosofia