INSTITUTO DE HUMANIDADES
Antropologia e Fotografia:
uma história paralela.
Andreas Valentin
Antropologia e fotografia: uma história paralela.
A partir da segunda metade do século XIX, a fotografia consolidou-se e
aprimorou-se tecnicamente como meio mecânico de registro do mundo. Nesse
mesmo momento, desenvolveram-se as ciências sociais, em particular a
antropologia, buscando as origens e a evolução do ser humano. Com a
expansão das nações imperiais, principalmente a britânica, a fotografia e a
antropologia foram associadas ao conhecimento e o registro do “outro” e do
“alhures”.
Abordaremos aqui três tópicos:
• como a natureza ontológica da imagem fotográfica contribuiu para esse
processo;
• sua estreita associação com a expansão imperialista;
• análise de algumas fotografias antropológicas do século XIX e início do XX.
Natureza da imagem fotográfica
Fotografia: uma das muitas invenções e inovações surgidas na primeira metade
do século XIX.
Aclamada como uma das grandes invenções da época, provocou debates
quanto aos seus usos estéticos e sociais.
Tecnologia como agente de mudança social, como causa e não conseqüência
da cultura. Foi assim com os avanços nas técnicas de representação.
Exemplos:
• Flandres, século XV: desenvolvimento da tinta a óleo e pincéis mais finos
• Alemanha, século XV: Gutenberg – imprensa e tipo móvel
• Florença, Itália, séculos XV, XVI: perspectiva e técnicas de representação
(câmera escura)
Natureza da imagem fotográfica
A imagem fotográfica desloca o objeto do tempo e do espaço.
Ela é o próprio objeto, mumificado, liberto das condições espaciais e temporais
que o regem. (BAZIN)
Objetividade da imagem fotográfica.
Fotografia não cria o eterno, como a pintura. Ela embalsama o tempo,
resgatando-o de sua própria corrupção.
Realidade nua e crua.
Fotografia e o objeto em si dividem um ser comum, como uma impressão
digital.
Natureza da imagem fotográfica
Ao representar a realidade, a fotografia a objetiva; ela transfere a realidade
do objeto para a sua representação. Por isso, a fotografia é testemunho,
prova incontestável de que aquilo que vemos realmente existiu, uma vez que
“a vidência do fotógrafo não consiste em (apenas) ver, mas em estar lá”.
Presença física do fotógrafo. (BARTHES)
Atenção para questões subjetivas: do fotógrafo, das condições sócioculturais da realização da fotografia, etc.
Natureza da imagem fotográfica
Ao mesmo tempo em que a fotografia é um ato do passado (a fração de
segundos do clic do obturador, transforma aquele momento em algo que já
aconteceu), ela preserva um fragmento daquele passado “e o transporta em
aparente totalidade para o presente” (EDWARDS).
Presente etnográfico. Utilização de fotografias antigas como fontes de
informações antropológicas e sócio-históricas.
O fazer da fotografia, o próprio ato de fotografar, guarda informações importantes
para o conhecimento ao qual aquela imagem (ou conjunto de imagens) se refere:
“muitas vezes, são as próprias tensões de uma fotografia, as circunstâncias de
sua criação, que lhe conferem significado, e estas qualidades abstratas são
documentos em si mesmas”. (EDWARDS)
Natureza da imagem fotográfica
Fotografias podem, também, ser lidas como textos que revelam “histórias
ocultas”; ao congelar fragmentos de tempos e espaços, perpetuam a
memória: a “memória do indivíduo, da comunidade, dos costumes, do fato
social, da paisagem urbana, da natureza” (KOSSOY).
A imagem fotográfica possui uma verdade indexical, inerente à sua
essência. “A fotografia conta com uma espacialização de sua anterioridade
temporal dentro do negativo. Estar profundamente enterrado no negativo é
ser verdadeiro” (PINNEY).
Fotografia:ao mesmo tempo icônica (as imagens se parecem com o real que
foi fotografado) e indexical (referência indireta: fumaça/fogo).
Natureza da imagem fotográfica
Fotografias se tornam evidências quando proporcionam informações visuais
significativas ao pesquisador que delas se utiliza: “a essência definidora de
uma fotografia antropológica não é o seu assunto, mas a classificação do
conhecimento ou ‘realidade’, feita pelo usuário, que a fotografia parece
transmitir” (EDWARDS).
As fotografias, enquanto representação, necessitam de uma leitura crítica e
interpretativa; elas só adquirem significado sociocultural relevante quando se
examina e se compreende o inter-relacionamento entre o fotógrafo, o objeto e o
espectador (SCHERER).
Fotografia e Imperialismo
A fotografia desenvolveu-se na era dos impérios (séc. XIX) e se tornou uma
importante aliada do imperialismo: devolveu ao espectador ocidental imagens
de nativos que confirmavam os conceitos (ou preconceitos) de que eles eram
primitivos, estranhos, bárbaros e pitorescos. Ainda não haviam atingido um
nível de civilização como o dos europeus.
Visão de mundo imperialista: materialista, positivista; progresso através do
desenvolvimento tecnológico.
Fotografia e Imperialismo
Império Britânico, começo século XX.
Fotografia e Imperialismo
Apesar das dificuldades de transportar
equipamentos grandes e pesados (câmeras
e laboratórios “portáteis”), fotógrafos
varreram o mundo atrás de imagens de
sítios históricos, lugares sagrados e pessoas
“estranhas”.
Mochila fotográfica, 1855.
Fotografia e Imperialismo
Tenda/laboratório fotográfico, 1875.
Fotografia e Imperialismo
Documentando o real, as fotografias ajudaram a construir, significar e
legitimar o império.
“Através de diversos recursos retóricos e pictóricos, de idéias do pitoresco a
esquemas de classificação científica, de paisagens a ‘tipos raciais’, fotógrafos
representavam a geografia imaginária do Império. Como prática de
representação, a fotografia foi além de apenas familiarizar a sociedade
vitoriana com vistas do estrangeiro: permitiu que ela simbolicamente
viajasse, explorasse e se apoderasse também desses lugares e dessa
gente.”
(James R. Ryan, Picturing Empire: photography and visualization of the
British Empire)
Fotografia e Imperialismo
Fotografia = poder.
A fotografia auxiliou na comprovação
da superioridade do homem branco e
deveres e direitos que esta
superioridade lhe conferia.
Europeus e seus descendentes em
terras estrangeiras podiam afirmar
uma suposta superioridade e
justificar cientificamente essa
posição política.
Fotografia e imperialismo
Segunda metade séc. XIX: início da antropologia como ciência.
Foi através da antropologia científica que o poder do conhecimento foi
transformado em uma verdade racionalizada e observada.
Noções de raça: justificativa e racionalização da dominação colonial, conferiu
peso de verdade científica às hipóteses de caráter racial.
Ainda era dominada pela estreita perspectiva do evolucionismo unilinear:
todas as culturas devem passar pelas mesmas etapas de evolução,
classificando as sociedades humanas numa escala ,da menos à mais
desenvolvida. Selvageria, barbarismo e civilização.
Abraçava idéias como progresso, regressão, recapitulação e sobrevivência
arcaica. Acreditava-se no relacionamento intrínseco entre a natureza biológica e
física do homem e sua natureza cultural, moral e intelectual.
Fotografia e imperialismo
Cultura como biologicamente determinada. Raças não européias, menos
dotadas tecnologicamente representavam a “infância da humanidade”. Nelas, o
homem branco encontraria a resposta para sua própria história e evolução.
Etnocentrismo.
Antropologia utilizava a metodologia científica: observação, classificação e
registro. Conhecimento positivo, científico e empírico.
Fotografia também: fatos observados, o que era concebido como a verdade,
cuidadosamente construídos.
Determinou para a fotografia antropológica o que era fotografado e, portanto,
que fragmentos eram criados, estabelecendo os “fatos”, intencionalmente
registrados e que se tornariam dados históricos.
Fotografia e imperialismo
Paixão vitoriana pelo colecionismo: se estendeu a pessoas, que eram
categorizadas e classificadas de acordo com o “tipo antropológico”.
Antropometria
Lamprey (1869): utilização de uma moldura em madeira trançada com fios
de seda formando quadrículas de duas polegadas. Fornecia uma grade
“normalizadora” dentro da qual “a estrutura anatômica de uma boa silhueta
ou modelo de academia, de mais de um metro e noventa, podia ser
comparado com um malaio de aproximadamente um metro e meio de
altura”.
Confiabilidade indexical e científica da antropometria.
Fotografia e imperialismo
Fotografia e imperialismo
Huxley: “instruções fotométricas”,
aplicadas a uma mulher aborígine da
Austrália (1870).
Sistemas antropométricos foram
absorvidos por uma estética realista
mais geral e referências aparecem nos
retratos de tipo e em fotografias
“exibindo cultura”.
Influenciaram o modo de ver estas
fotografias.
Fotografia e imperialismo
Fotografias tinham também uma
função educativa e elucidativa:
revelando seres humanos num
estágio primitivo de
desenvolvimento, confirmavam as
teorias evolucionistas.
Aborígines, levados para a
Inglaterra: “exibição”, como num
circo.
Fotografia e imperialismo
Exibindo o outro.
Em 1905, pigmeus Batwa, do Congo, foram
levados para a Inglaterra por um explorador
e caçador. Foram exibidos num teatro, junto
com outras “atrações”, como 17 ursos
polares, dançarinos escoceses,
malabaristas e apresentações circenses.
Os anúncios diziam: “selvagens, intocados
pelos costumes europeus, exatamente
como na sua floresta primeva”.
Fotografia e imperialismo
Pigmeus em Londres.
Fotos de Sir Benjamin Stone, 1905.
Fotografia e imperialismo
Construção de um arquivo das realizações do projeto colonial e imperial vitoriano.
Fotografias eram realizadas por aventureiros, exploradores, comerciantes, missionários,
além de fotógrafos profissionais.
Fotografia e imperialismo
Fotografia e imperialismo
Exibindo o outro.
Fotógrafo/antropólogo Príncipe Roland
Bonaparte elogiou a presença de
grupos indígenas e mestiços na
Exposição Colonial de Amsterdam,
1883, porque possibilitava a
observação sem o “desconforto da
viagem”.
Fotografia e imperialismo
A “outra”: imagens da mulher, geralmente em poses que apontavam para
o erotismo e sensualidade.
Fotografia e imperialismo
George Huebner, india paraense.
Albert Henschel, mulher de Salvador
Fotografia e imperialismo
Fotografia e imperialismo
Fotografia e imperialismo
Fotografias cuidadosamente articuladas e construídas eram
consumidas como se fossem imagens do mundo não-mediadas e
neutras.
Não eram, de forma alguma, transparentes e livres da intervenção:
preferências, escolhas e paixões do fotógrafo.
“Tanto a fotografia como meio e a antropologia como disciplina
mascaravam seus pontos de vista ideológicos e seu potencial
conotativo com a aparência da objetividade científica.”
Fotografia e imperialismo
Fotografia e imperialismo
Conhecer para dominar:
Dooneeah, uma das centenas de
imagens da obra “Povo da Índia”,
iniciada por Lord Canning para se
obter uma “memória das
peculiaridades da vida indiana”.
Tornou-se um empreendimento
oficial do serviço colonial indiano.
Foi realizada durante 10 anos, por
oficiais que aprenderam a fotografar.
Foi publicada em oito volumes, entre
1868 e 1875.
Fotografia e imperialismo
Pesquisa de Marco Morel:
Série de 7 daguerreótipos produzidas na França em 1844 por E. Thiesson,
retratando um homem e uma mulher Botocudo trazidos do Brasil.
Provavelmente as primeiras imagens de índios feitas no mundo.
As imagens foram incorporadas ao acervo do Museu de História Natural de Paris,
que começava a tomar forma.
“As imagens foram uma das peças-chave no momento de fixação de parâmetros
científicos no campo do estudo das populações humanas. Estes dois índios
retirados da periferia e da floresta, estiveram no epicentro das Luzes, como novos
Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam paradigmas que
se espalhavam pelo mundo.”
Ar de tristeza, melancolia e abatimento. Como prisioneiros no campo de
concentração.
Fotografia e imperialismo
Imigrante de Lucknow, 1860
Fotografia: “um traçado, uma coisa
reproduzida diretamente da realidade
como uma pegada, ou máscara mortuária
(...) um vestígio material de seu sujeito”.
(Susan Sontag)
George Huebner, postais de Manaus
George Huebner, postais de Manaus
Fotografia e imperialismo
Final do século XIX: modelos mais rígidos do pensamento evolucionário
foram sendo gradativamente substituídos por uma visão mais relativista da
cultura e a observação antropológica extensiva.
Franz Boas: particularismo histórico. Cada cultura segue seus próprios
caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrenta.
Mais tarde, a observação participativa.
Antropólogo se vê constantemente preocupado com o efeito poluente de sua
presença sobre aqueles que estuda.
O fotógrafo-antropológo esforça-se para preservar a pureza do outro cultural
que representa.
Invisibilidade de seu produtor: obliteração de qualquer marca da cultura do
fotógrafo.
A fotografia fornece aqueles detalhes que constituem a própria matéria bruta
do conhecimento etnológico .
Fotografia e imperialismo
Malinowsky: pioneiro da antropologia social – funcionalismo.
Todos os componentes de uma sociedade se encaixam para formar um
sistema equilibrado.
Enfatizava características como: crenças, cerimônias, costumes, religião,
ritos, tabus.
Estudou a população Trobriand na Nova Guiné (1915-1918) e escreveu um
clássico da antropologia, Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922)
Para a Antropologia, é fundamental conhecer as obras de autores (fotógrafos e
antropólogos) que no final do séc. XIX e início do XX utilizaram-se da imagem
técnica – descobrir como a conceberam, como dela se serviram, que lugares lhe
alocavam e a que funções a destinavam.
Lembrar Koch- Grünberg e outros.
Tuiuca com adornos de dança (1903-1905).
Manejo do tipiti,wapixana (1911-1913)
Bronislaw Malinowski (1884-1942)
Considerado um dos fundadores da moderna antropologia social, conhecida
como escola funcionalista, que procura entender um fato social dentro do
conjunto de toda a estrutura social. Existem profundas inter-relações entre
todos os aspectos de uma cultura: religião, economia, política, família etc.
Apesar de não repudiar o
nacionalismo típico do séc. XIX e
ainda fortemente presente no início do
XX, ele descartou o evolucionismo e
desenvolveu um novo método de
pesquisa: a investigação de campo e,
principalmente, a utilização da
fotografia como ferramenta de
pesquisa.
Realizou três importantes pesquisas nas Ilhas Trobiand, no pacífico:
- Os Argonautas do Pacífico Ocidental
- A Vida Sexual dos Selvagens
- Os Jardins de Coral e suas Mágicas
Em setembro de 1914, um mês após o início da I Guerra Mundial, com 30 anos, ele
chegou à Nova Guiné, ainda sob o domínio dos ingleses, para realizar suas
primeiras pesquisas, na Ilhas Mailu.
Diário: Port Moresby, 20/9/1914: ... Uma nova época na minha vida; empreendo
minha primeira expedição em zona trópica.
Quatro anos no arquipélago (Mailu e Trobiand)
Equipamentos fotográficos ainda complexos e pouco práticos: Graflex e Zeiss.
Não era amante da fotografia; preferia escrever e desenhar.
Malinowski: auto-retrato. Contato fotográfico com o “outro”. Ninguém olha para ninguém
nessa fotografia, posada, planejada. Ele finge olhar, através de seus óculos o feiticeiro
Toguguá, usando uma peruca completa, conforme anotado em seu diário.
Gregory Bateson (1904-1980)
e Margaret Mead (1901- 1978)
Trabalho de campo em Bali,
entre 1936 e 1939.
Estudos da cultura como um
sistema de conhecimento e
comportamento, além de
expressão de experiência
pessoal e personalidade.
Fotografias e imagens em
movimento para estudar a
cultura como elemento
incorporado nos mais íntimos
Balinese Character é um dos mais importantes
trabalhos de fotografia antropológica.
detalhes do comportamento.
“Este não é um livro
sobre os costumes
balineses, mas sobre os
balineses – sobre a
maneira pela qual, como
pessoas que vivem, se
movimentam, levantamse, comem, dormem,
dançam e entram em
transe, incorporam esta
abstração (depois de
abstraí-la) chamamos de
cultura.”
Mais de 25 mil fotos em
negativo 35 mm e 22 mil
pés de película.
Bateson fotografava e
Mead fazia as anotações
para cada uma das
imagens, identificando
os sujeitos e os
assuntos.
“Equilíbrio”
Séries de fotografias,
agrupadas por assunto nas
páginas do livro.
Acompanhadas de legendas e
textos descritivos.
“Trance and Beroek ”
Fotografias com a força visual e
expressividade da “boa” fotografia:
composição, atenção a detalhes,
escolha do momento certo etc.
Influências da fotografia jornalística da
década de 30: Cartier Bresson.
Equipamentos mais leves e práticos.
Henri Cartier Bresson, Paris, 1932
Henri Cartier Bresson, México, 1936
Henri Cartier Bresson
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Fotografia e Imperialismo