Conjuntura
Proposta para tornar o
A
Gastão Wagner de Sousa Campos*
pesar das conquistas ao longo de 24
anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo desidratado em virtude de suas próprias contradições e insuficiências. Estudos avaliativos
têm evidenciado que a política de saúde pública
teve impacto positivo sobre a mortalidade infantil, protegeu o País da epidemia de Aids, além
de cuidar dos portadores e doentes; ampliou o
acesso a medicamentos e ao atendimento de
urgência. Contudo, a cronicidade do subfinanciamento, a inadequada política de pessoal e os
descalabros de gestão e de planejamento têm
comprometido a consolidação e, mesmo, a sustentabilidade do sistema.
Outra constatação é a de que o SUS está sendo derrotado no simbólico, ou seja, nos “corações e mentes” dos brasileiros. Estamos nos
desesperando com o emperramento dos serviços públicos e sua baixa sustentabilidade – programas “exitosos” no SUS costumam ter vida
curta pela falta de continuidade administrativa,
descuido, falta de pessoal etc. Nesse contexto,
a tendência é a busca por soluções particulares
e um esvaziamento dos movimentos sociais de
defesa do SUS.
A terceira observação é a de que não há, no
horizonte, nenhum projeto político que se proponha, explicitamente, a enfrentar o conjunto
de impasses crônicos que limitam a plena constituição do SUS e do direito à saúde. Os projetos
governamentais – e mesmo aqueles de vários
movimentos sociais – são focais e parciais, em
geral abandonando a pretensão de construção
integral e ampla do Sistema Único.
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Jirikaderabek/Dreamstime/Moacir Barbosa
Ser Médico
SUS uma utopia possível
Apesar do caráter inovador de várias medidas
de reforma do modelo de gestão já incorporadas ao cotidiano do SUS – gestão participativa,
fundos de saúde, colegiados interinstitucionais
etc. –, elas não foram potentes para se contrapor ao patrimonialismo, à privatização e ao padrão de iniquidade do Estado brasileiro.
Há, portanto, vários obstáculos à plena constituição do sistema. São tantas as transformações, ainda por fazer, que podemos dizer que
será necessário reconstruir um amplo movimento de reforma sanitária capaz de reinventá-lo.
Um projeto que somente adquirirá concretude
se for construído por amplo movimento social
em defesa da democracia e da justiça social. Por
isso, este artigo é somente um ensaio, baseado
em evidência, mas também na intuição política
do autor, cuja proposta precisará ser criticada e
repensada para que haja a constituição de um
projeto coletivo.
Uma diferença radical na organização do SUS
foi o grau de descentralização adotado no País,
elegendo o município como núcleo básico organizacional do sistema. O funcionamento sistêmico seria garantido pela atuação integradora
das Secretarias de Estado e pelo Ministério da
Saúde. Contudo, o resultado desta opção gerou
efeitos paradoxais: propiciou a existência de experiências exitosas em municípios com contexto favorável – que serviu para demonstrar que o
modelo SUS era possível e efetivo –, mas instalou, também, uma fragmentação do sistema, já
que cada município tem autonomia para definir
sua própria política de gestão e de atenção à
Conjuntura
saúde. Essa construção municipal do SUS tem
gerado iniquidade e desigualdade, comprometendo a sua sustentabilidade como um todo e
mesmo das redes locais.
À dificuldade de integração – em rede – das
políticas, programas e serviços dos governos federal, estaduais e municipais, somou-se ainda a
antiga fragmentação típica da tradicional saúde
pública brasileira, que atuava com programas
focais, voltados cada um para um tipo de risco
ou de enfermidade, o que foi ampliado ao longo da existência do SUS.
Esse processo de fragmentação, privatização e
descentralização comprometeu o funcionamento sistêmico e integrado da política de saúde.
Duas das consequências nefastas desse processo foram a precariedade das políticas de pessoal
e a inadequação das estratégias de gestão no
SUS. Diluiu-se a responsabilidade de Estados e
da União, delegando-se aos municípios tarefas
impossíveis de serem levadas a cabo em nível
local e de maneira isolada. Produziu-se, assim,
uma cultura da improvisação, de precariedade
e de maltrato em relação aos profissionais de
saúde e ao cuidado dos usuários. Infelizmente,
esse padrão de simplificação estendeu-se também para a infraestrutura, os equipamentos e o
modelo de atenção e de cuidado.
Propostas
Por tudo isso, o SUS necessita de uma ampla reforma administrativa e organizacional. E,
com base nas premissas anteriores, gostaria de
indicar algumas estratégias para o sistema. Uma
utopia possível?
Primeiramente, é preciso compreender que o
SUS precisa superar a fragmentação, a privatização e a inadequação da política de pessoal,
tendo como núcleo organizacional as Regiões
de Saúde. Com este objetivo, proponho:
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Constituir o SUS Brasil: uma autarquia especial integrada pelo Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. Todos os serviços de saúde
de caráter público, bem como contratos e convênios de todos os entes federados, passariam
a essa autarquia especial. A autarquia deve ter
um modelo organizacional e de gestão próprio
e específico, conforme as singularidades e características da área da saúde.
O SUS Brasil seria organizado por Regiões
de Saúde, que fariam a gestão de uma rede de
atenção integral. Todos os serviços públicos teriam um modelo organizacional autárquico, que
valeria para atenção básica, redes de atenção,
organizações sociais, fundações privadas etc.: o
fim da privatização e a invenção de um novo
modelo público de organização e de gestão.
Todos os profissionais de saúde que trabalhassem no sistema passariam à gestão da autarquia especial por dois caminhos: optariam livremente por integrar as novas carreiras do SUS
Brasil ou seriam cedidos por municípios, Estados
e universidades para o efetivo exercício no SUS
Brasil. Seriam criadas carreiras multiprofissionais
para o sistema nacional, organizadas pelas grandes áreas de cuidado do SUS: atenção básica, vigilância à saúde, urgência e emergência, atenção
hospitalar e especializada, e outros agregados a
serem definidos. O ingresso seria por concurso
por Estado da federação – ou talvez por Região
Ser Médico
de Saúde? –, havendo possibilidade de progresso por mérito e mobilidade antes de novos concursos. Os servidores já concursados por entes
públicos poderiam optar por ingressar na nova
carreira como quadro em extinção.
Para evitar a burocratização e limitar o predomínio de interesses privados no SUS Brasil, o
sistema de cogestão e de gestão participativa seria ampliado e valorizado. O Conselho Nacional
de Saúde e a Comissão Tripartite fariam o planejamento e gestão do sistema nacional, valendose de gestores do Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais
de Saúde. O mesmo modelo seria adotado nos
Estados e nas regiões de saúde.
Ainda para diminuir a interferência político-partidária, todos os cargos de gestão de serviços e de programas deixariam de ser de livre
provimento pelo Poder Executivo e passariam
a depender de um processo de seleção interno
oferecido aos profissionais do SUS Brasil.
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Seria criada a autoridade sanitária e o corpo técnico para as Regiões de Saúde. O secretário regional de Saúde seria indicado pelo
Conselho Regional de Saúde, obedecidos prérequisitos técnico, sanitário e a capacidade de
gestão dos candidatos.
Tudo isso para garantir a devida atenção
em saúde aos brasileiros, ampliando o financiamento para 8% do PIB, a ser gasto em investi-
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mento prioritário para a expansão da Atenção
Básica para 80% a 90% dos brasileiros. Teríamos
equipe básica de qualidade com médico, enfermeiro e apoio matricial multiprofissional para o
conjunto da população. A Atenção Básica não
se destina somente à população de baixa renda,
trata-se de uma estratégia para resolver 80% dos
problemas de saúde, mediante cuidado personalizado e que implique abordagem clínica e
preventiva. Para isso, será necessário aumentar
a sua qualidade, com melhor infraestrutura e
integração com hospitais e serviços especializados. E com a ampliação da liberdade das famílias, garantindo-lhes a possibilidade de escolher
a qual equipe se vincular em uma dada região.
Estima-se a necessidade de 200 novos hospitais gerais em regiões carentes. Para construí-los e equipá-los serão necessários R$10
bilhões. O custeio anual exigirá orçamento semelhante. A recuperação e reorganização da
precária rede já existente custarão outros R$ 20
bilhões anuais. Haveria ainda que se ampliar
o gasto com a Vigilância em Saúde, controlar
epidemias, drogas, violência, a um custo de
cerca de R$ 5 bilhões/ano.
A proposta está lançada. É preciso debatê-la
e aperfeiçoá-la para tornar possível a utopia do
SUS Brasil.
*Professor titular de Saúde Coletiva da Faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp
na íntegra,
*Leia o artigo,
no endereço:
e a bibliografia
g.br
www.cremesp.or
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Proposta para tornar o SUS uma utopia possível