FORMAR O PROFESSOR CRÍTICO REFLEXIVO: UMA UTOPIA? Maria Salonilde Ferreira RESUMO A profissão de professor tem se transformado profundamente ao longo dos anos. Historicamente as exigências em relação à sua função têm se modificado, seja em decorrências das mudanças e transformações que se operam na sociedade e pressões sociais delas advindas, seja por iniciativa dos próprios professores e das instituições formadoras, seja, enfim, porque os conhecimentos acerca da educação progrediram. Atualmente não faltam argumentos no sentido de demonstrar o interesse e necessidade de incluir a reflexão crítica nos seus processos formativos. Este estudo centra-se na evocação desse modelo presente nos discursos, objetivando retomar essa problemática, destacando as questões nela implícitas, na ótica da formação. Para isso, estamos desenvolvendo um estudo com professores dos diversos níveis de ensino, tendo como suporte metodológico a pesquisa colaborativa, objetivando investigar a viabilidade de a reflexão crítica tornar-se objeto dos processos de formação de professores. Modelo a evocar? Utopia a construir? Palavras-chave: formação de professores – pesquisa colaborativa – reflexão crítica. FORMER L’ENSEINANT CRITIQUE RÉFLEXIF: UNE UTOPIE? La profession ensignante se transforme profondément, depuis quelques décennies: historiquement, le métier d’enseigment change d’image; professionnellement, les missions et les taches de l’ensignent se modifient soit sous la pression de la société, soit à l’initiative des ensignants eux-mêmes et des leurs formateurs, soit enfin parce que les connaissances sur l’education ont progressé. À l’actualité, les arguments ne maquent pas pour montrer l’intérêt voir la nécessité d’inclure la réflexion critique dans leurs processus de formation. Cette étude porte sur l’évocation de ce modèle dans les discours; son but est de repérer la problematique exposée et de soulever les questions qu’elle engage et à sa prise en compte dans une optique de formation. Pour cela, nous avons mise au point une étude dans le sens de chercher en quelle mesure la réflexion critique peut devenir le sujet du processus de formation des enseignants. Modèle à évoquer? Utopie à construire? Mots-clé: formation des enseignants – recherche colaborative – reflexión critique 2 FORMAR O PROFESSOR CRÍTICO REFLEXIVO: UMA UTOPIA? Em história se faz o que se pode e não o que se gostaria de fazer. E uma das grandes tarefas políticas a ser cumprida se acha na perseguição constante de tornar possível amanhã o impossível de hoje somente quando, às vezes, se faz possível viabilizar alguns impossíveis agora. Paulo Freire O professor tem sido objeto de inúmeros estudos e discussões onde permeiam as representações relativas à imagem que dele temos construído, assim como da formação que deve construir para exercer essa profissão. A discussão acerca da formação de professores implica múltiplas abordagens. Neste trabalho abordaremos a questão, fazendo uma breve síntese de sua história, partindo da antiguidade até à perspectiva do que atualmente se coloca como perfil de professor: “[...] um profissional preparado científica, técnica, tecnológica, pedagógica, cultural e humanamente. Um profissional que reflete sobre o seu fazer, pesquisando-o nos contextos nos quais ocorre”. (PIMENTA, 2005, p. 39. Grifo da autora). Sabemos nós o que nós somos? As representações e imagens que temos do ser professor remontam à antiguidade, em particular, à Grécia arcaica, ao imaginário dos antigos poetas gregos que contavam e cantavam os feitos guerreiros e façanhas dos seus heróis. Embora naquela época não existisse a figura do professor, existiam, no entanto, as práticas educativas. Como esclarece Jaeger (1995, p. 23): A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana, que, pela sua própria evidência, leva muito tempo a atingir a plena consciência daqueles que a recebem e praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu primeiro vestígio na tradição literária. O seu conteúdo, aproximadamente o mesmo em todos os povos, é ao mesmo tempo moral e prático. Referindo-se a essas práticas no Egito antigo, Manacorda, (1989, p. 11) afirma: 3 Os ensinamentos mais antigos remontam ao período arcaico, anterior ao antigo reino de Mênfis […]. Eles contêm preceitos morais e comportamentais rigorosamente harmonizados com as estruturas e as conveniências sociais ou, mais diretamente, com o modo de viver próprio das castas dominantes. Nesse contexto, surge a figura do educador que, na Grécia, tem como princípio norteador de sua ação o conceito de arete, o ideal de formação da nobreza grega primitiva – o espírito heroico – corporificado em todos os seus heróis. Essa figura está mais evidente no nono canto da Ilíada, quando o poeta coloca Fênix, no lugar de Quíron1, como educador e mestre do herói Aquiles. (HOMERO, 1996). No entanto, não é qualquer um que poderá exercer essa função. No caso de Quíron, por exemplo, reza a tradição que era o mais justo, sábio e prudente dos centauros. Já Fênix era um ancião nobre, príncipe dos Dólopes que se destacava dos demais pela sua lealdade, experiência e sabedoria. “Ninguém possuía melhores títulos que o velho mestre, cuja fidelidade e afeição a Aquiles todos conheciam [...]”. (JAEGER, 1995, p. 51). A recorrência à mitologia grega demonstra que, apesar de ser exigido daquele que exerce a função de ensinar uma conduta diferenciada, sua formação ocorre pela e na convivência familiar, pelas tradições culturais, pelos hábitos e valores. [...] são socialmente inferiores aos educandos e refletem uma antiga nobreza, hoje mutilada; uma nobreza espiritual despojada do suporte material que lhes seria adequado e até mesmo natural. [...] apresenta traços de forasteiro e de uma vestuta condição social, nobre e culta, que perdera a materialidade da riqueza e do poder político. (NOSELLA, 2005). É evidente que se trata de uma nobreza que sofre uma descontinuidade provocada por algo que a conduz ao exilo. Uma nobreza digna de respeito, mas insuficiente para eximi-la do trabalho. Se a função de ensinar se perde na mitologia, a exigência de uma formação específica para o exercício dessa função é bem mais recente. Isso ocorre a partir da descoberta e evolução de diferentes técnicas, diversificando e tornando mais complexas as formas de organização da sociedade. Dentre essas técnicas, o desenvolvimento da 1 Centauro que vivia nos desfiladeiros das montanhas de Pélion, na Tessália. 4 linguagem escrita é que vai provocar mudanças mais significativas em relação à concepção e à formação do professor. Apesar de que, após a criação do alfabeto, no ensinar e no aprender, predominasse ainda a educação para falar, pois o ensino, nessa época, “[...] visa propriamente o falar bem, e de modo algum o escrever bem, embora a escrita já fosse instrumento essencial da cultura [...]” (MANACORDA, 1989, p. 14), é essa invenção que vai possibilitar o surgimento de espaços apropriados para o ensino e a necessidade de um mestre com formação especifica. No Egito, esse mestre se configura no escriba; na Grécia, o grammatistés, grammaticós e rhétor e, em Roma, o ludimagister, grammaticus e retores. No entanto, tanto na Grécia como em Roma, esses mestres não desfrutam do mesmo prestígio que os escribas, pois exercem essa função por terem sido destituídos da classe social de origem. Nessas organizações sociais, embora sob formas diferentes e peculiares, o trabalho é destinado às classes dominadas e advindo da divisão do trabalho e da relação que se estabelece entre as classes. São instituídas formas dicotômicas de educação permeadas de contradições, o que de certa forma tem se mantido apesar da difusão e da diversificação das estruturas educativas, ao longo do tempo. Em se tratando de formar professores, esses passam a ser preparados sob a égide do Estado, “num espaço ou instituições próprios, organizados para produzir o ensino-aprendizagem de alguma competência” (NOSELLA, 2005, p. 35). Dentre as inúmeras competências atualmente postas, destacamos a criticidade e a reflexividade. Essas têm sido, ultimamente, objeto de múltiplos e variados questionamentos, compreendendo desde os que se situam no âmbito do próprio conceito (PIMENTA, 2005), até aqueles referentes à apropriação apressada dos termos no sentido de considerá-los, mais um dos reducionismos frequentes no pensamento pedagógico brasileiro. (LIBÂNIO, 2005). Apesar dos questionamentos e críticas, há atualmente certo consenso em relação ao papel que a reflexão e a crítica desempenham no processo de formação dos professores, quer seja inicial ou continuada, e os argumentos para demonstrar a sua necessidade são os mais diversos. É impossível negar a contribuição da reflexão e da crítica para a prática docente e valorização da profissão do professor. Todavia, a nossa preocupação é de saber precisamente em que condições o exercício da reflexão crítica poderá tornar-se objeto dos processos formativos. Realidade a construir? Modelo a evocar ou a prescrever? 5 O campo investigativo Na perspectiva de viabilizar nosso propósito, desencadeamos um processo de formação continuada de professores, tendo, como fio condutor, a investigação das práticas pedagógicas e, como suporte teórico-metodológico, os fundamentos do materialismo histórico-dialético como método lógico de análise dos fenômenos. Essa é uma lógica que nos permite apreendê-los em sua mutabilidade, variabilidade, assim como sua uniformidade e estabilidade, buscando a unidade existente entre eles. Nessa direção, optamos por procedimentos investigativos que se coadunam com os princípios norteadores do trabalho, em particular, a investigação colaborativa por considerá-la a modalidade mais apropriada à consecução de nossos objetivos. Isso porque, nessa modalidade de investigação, os atores do processo educativo situam-se no centro das relações que nele são estabelecidas, como agentes da história educativa, tornando-se mais conscientes do seu entorno, amparados por uma visão e uma compreensão crítico-reflexiva do saber-fazer educativo. Desse modo, pesquisar, nessa abordagem, significa refletir criticamente sobre o agir e as teorias que lhe dão sustentação, buscando formas alternativas de modificá-lo. Partindo dessa compreensão, desencadeamos um processo crítico reflexivo com um grupo de professores que atuam no ensino fundamental e superior. Sua composição teve como princípio a adesão dos participantes à proposta de trabalho. O acesso a essa proposta se deu através do convite aos professores de uma Escola, onde havíamos vivenciado experiências conjuntas de pesquisa e da informação de nossa intenção de ampliar a experiência incluindo outras escolas. Assim, no ano de 2006, no dia previsto para a reunião inicial, estavam presentes 13 professores de três escolas da rede pública, três professores universitários e um bolsista de iniciação científica da UFRN. O grupo ampliou-se, sendo atualmente constituído por 20 professores. Naquele momento, discutimos os objetivos do trabalho, expressamos nossos interesses e expectativas em relação a ele, definimos o cronograma de ações e firmamos o nosso termo de compromisso. Coerentes com os princípios que orientam a pesquisa colaborativa, nós fizemos a sondagem das questões que os professores gostariam de abordar de forma mais sistematizada. Na discussão, ficou definida como objeto de estudo a análise crítico-reflexiva da mediação pedagógica, que ocorre na sala de aula. 6 A fim de viabilizar a investigação, selecionamos algumas estratégias, dentre elas, o Relato de Experiências e as Sessões Reflexivas. A escolha do Relato de Experiências ocorreu em função de podermos associar a escrita à atividade reflexiva, propiciando a junção da subjetividade com a intersubjetividade e, assim, nos distanciarmos e ao mesmo tempo nos aproximarmos das nossas práticas, pois, por meio dele podemos registrar nossas ações, como também os fatores que nela intervêm, servindo de contexto para a efetivação da reflexão crítica. A proposta para a elaboração dos Relatos orientou-se pelas ações de descrição, informação, confronto e reconstrução. As Sessões Reflexivas se constituem espaços onde poderá ocorrer a análise das práticas efetivadas nos contextos escolares, relacionando-as com as teorias que as fundamentam, assim como com as questões políticas, ideologias e de poder que as permeiam. Como afirma Magalhães (2002 p. 21) “[...] espaço fundamental para a constituição do profissional crítico reflexivo”. Na nossa compreensão, esse seria o profissional capaz de apreender as interconexões existentes entre as singularidades, as particularidades e as generalidades na perspectiva de sua materialidade, mobilidade e historicidade. No caso do profissional da educação, seria o lócus onde ele possa dialogar com seu entorno, questionando juízos, valores, teorias e experiências, adquirindo mais autonomia para pensar, fazer opções e agir. O processo crítico reflexivo se desenvolve mediado pelas ações propostas por Magalhães (2002): descrever, informar, confrontar e reconstruir, acrescido das ações de escutar e esperar. Para sua efetivação propomos, referendada em Vigotski (1988), três momentos reflexivos, dois intrassubjetivos e um intersubjetivo. O momento intrassubjetivo (o sujeito consigo mesmo) representa a dimensão intrapessoal do processo crítico reflexivo. É o voltar-se para as próprias ações, seja a ação pedagógica relatada, questionando a sua prática e os posicionamentos assumidos, tornando evidente para si mesmo e para seus parceiros o que, porque e como desenvolve o seu fazer pedagógico; seja o processo reflexivo e colaborativo vivido. O momento Intersubjetivo (o sujeito face ao outro) é a dimensão interpessoal do processo reflexivo, desenvolvido de forma colaborativa entre pares. Inclui a análise coletiva das práticas pedagógicas, propiciando momentos interativos e dialógicos com a finalidade de compreender as ações realizadas, em que elas se fundamentam, apontando 7 as possibilidades de desenvolvimento da reflexão crítica e transformação da própria prática. O refletir e criticar não são determinados por fatores biológicos nem psicológicos, nem se identificam com o pensar. Refletir criticamente exprime a relação entre pensamento e ação nas situações contextuais em que os indivíduos se encontram. Como todos os processos mentais, a reflexão crítica não se desenvolve espontaneamente, necessita de uma aprendizagem volitiva, consciente e sistematizada. Nesse sentido, propomos questões que orientam todo o processo de reflexão crítica que se efetiva no contexto de uma investigação colaborativa, visando integrar pesquisa e formação de professores. Formação do professor crítico reflexivo: utopia a construir? A formação do professor tem, ao longo de sua história, se harmonizando com a estrutura das formas de organização social na qual se insere, mas, contraditoriamente apresenta algo que a ela se opõe. No seio dessa contradição, torna-se possível entender o perfil geral de professor que ora se coloca como modelo formativo, como também a criação de nichos que apontem as possibilidades de sua efetivação. A experiência, que estamos vivenciando, demonstra que criar espaços onde os professores possam refletir sobre a sua prática propicia o desenvolvimento dessa capacidade. Inicialmente o processo poderá não se efetivar a contento, como ocorreu conosco, pois nunca houve nos nossos processos formativos, nem no contexto escolar, lugar para uma reflexão crítica. Como foi destacado pela professora F., era a primeira vez que estávamos vivenciando uma experiência dessa natureza. A orientação para a produção dos Relatos teve como suporte as ações que auxiliam o desenrolar da reflexão crítica, conforme colocamos anteriormente: descrever, informar, confrontar e reconstruir. No entanto, o exemplo a seguir é uma ilustração da dificuldade que temos em expor nossas práticas educativas de forma a possibilitar a nós mesmo e aos outros a compreensão do que, como, porque e para que propomos e efetivamos determinadas ações, assim como das lacunas decorrentes dos nossos processos formativos. Trata-se da tentativa de relatar as ações desenvolvidas por uma das professoras partícipe do grupo em uma aula sobre produção textual. O contexto da escola era conhecido e essa Sessão Reflexiva realizou-se na própria escola. 8 Relato de uma aula da professora M. C. S. Eu fiz minha observação, no dia 27 de setembro de 2006, de uma produção de texto com a finalidade de criar no aluno o gosto pela escrita de relatos imaginários e desenvolvimento da imaginação. Para a realização dessa situação de aprendizagem, foi utilizada xérox de uma gravura, lápis de cor e lápis grafite. Essa situação foi aplicada na Escola “X”, na turma “F” do 5º ano do ciclo de sistematização, composta por 25 alunos, onde cada um realizou sua produção individualmente. Iniciei entregando uma folha, contendo a gravura de um terreno com um buraco em um de seus lados. Dentro estava uma onça pintada e, fora, uma anta com um cipó, olhando para dentro do buraco. Pedi que cada aluno observasse bem a gravura imaginando o que está acontecendo na cena e, em seguida, produzisse um texto usando sua imaginação. De início alguns alunos se recusaram a fazer, outros falaram que iriam fazer, mas que não gostavam de produzir textos e outros chegaram a dizer que não sabiam. Eu acho que aqueles alunos se recusaram a produzir porque são desatentos, só gostam de ficar conversando e não gostam de raciocinar, eles só querem fazer cópias. Outros ficam inquietos, desatentos, querendo passear dentro da sala, mexer com os colegas, pegar material dos outros emprestados porque não trazem os seus. Isso complica um pouco o andamento da aula e se torna difícil para o professor controlar um trabalho. Observando o comportamento das crianças, e através das respostas a algumas perguntas que eu fiz, acredito que eles agem dessa forma devido à falta do gosto da aprendizagem, não têm muita vontade de aprender causada pela falta de incentivo da família, dos desajustes e falta de compromisso dos pais para com eles. Isso deixa a criança sem estímulo e muitas vezes revoltada. Como a criança que passa por tudo isso poderá se tornar um ser atuante, observar e reconhecer o mundo, modificar e o transformar? O que se entende frequentemente por imaginação é que é qualquer processo que se realiza através de imagem. Segundo RUBINSTEINS (1973, 97 - 98) GORKI afirma “que precisamente o invento e a intenção elevam o homem sobre o animal”. Pretendo descobrir como a imaginação interfere na aprendizagem do aluno através da escrita, pois esse é o meio pelo qual as pessoas usam sua imaginação, pensamento e emoções com mais facilidade. Segundo INFANTE (1988), ao encadear uma sequência de fatos (reais ou imaginários) em que personagens se movimentam num certo espaço, à medida que o tempo passa você está produzindo uma narrativa escrita, que, justamente por ser escrita, deve prender-se às formas específicas que nossa língua assume nessa modalidade. Pretendo, da próxima vez, refazer essa mesma situação textual em forma de história em quadrinhos, pois o aluno se sente mais motivado para contar a história ilustrando cada cena. Como esclarece Liberali (2008), as ações sugeridas para orientar a reflexão se entrelaçam, porém, é pedagogicamente necessário analisá-las separadamente para entender o papel que desempenham no processo de reflexão. Em se tratando de descrição, a professora inicia o relato informando o que foi feito. Como podemos observar, nessa ação ela sintetiza o contexto no qual sua atuação ocorreu, explicitando quem são os atores, onde e quando os fatos foram vivenciados. Ela também deixa evidente o conteúdo a ser ensinado e aprendido, assim como a finalidade do processo mediador por ela desencadeado e como esse se efetivou. 9 Descreve o processo de forma clara, sem opinar, julgar, valorar ou avaliar. Fato que ocorre na ação de informar. Todavia, sua descrição ressente-se de alguns aspectos que deixariam mais claro e preciso o desencadear da mediação exercida pela professora como, por exemplo, falas dos alunos, de forma a deixar evidente alguns fatos colocados resumidamente: De início alguns alunos se recusaram a fazer, outros falaram que iriam fazer, mas que não gostavam de produzir textos e outros chegaram a dizer que não sabiam. M. C. S. O informar objetiva explicitar os princípios que orientam a atuação, seu significado, motivos, objetivos e razões dos procedimentos escolhidos. Nessa ação, estabelece-se a relação dialética geral/particular/singular. Nesse caso, as informações se centraram em suposições acerca das razões pelas quais as crianças não se interessavam pela produção de textos e muitos deles até se recusavam a fazê-los, fato evidenciado no seguinte extrait: Observando o comportamento das crianças, e através das respostas a algumas perguntas que eu fiz, acredito que eles agem dessa forma devido à falta do gosto da aprendizagem, não têm muita vontade de aprender causada pela falta de incentivo da família, dos desajustes e falta de compromisso dos pais para com eles. Isso deixa a criança sem estímulo e muitas vezes revoltada. M. C. S. As causas se polarizaram nas próprias crianças (são desatentas, inquietas, não gostam de raciocinar, só gostam de conversar, passear na sala, mexer com os colegas, fazer cópias e outros comportamentos que atrapalham o desenrolar da aula) e suas famílias (desajustes, falta de compromisso, não incentivo aos filhos, entre outros), ficando implícito que orienta suas ações, predominantemente, pelos saberes do senso comum. Na ação de confrontar que implica buscar as causas e as explicações teóricas e /ou empíricas que referendam a atuação do sujeito, os valores culturais que as permeiam, suas contribuições e compreensão de sua relevância e consistência, a professora em nenhum momento a questiona o papel da escola como o espaço responsável em promover as condições favoráveis ao desenvolvimento bio-psíquico, sócio-cultural e político do ser humano de forma consciente e sistematizada, nem a sua função de mediadora desse desenvolvimento. No reconstruir, como já apontamos no informar, o foco é o aluno e as alternativas de ações a procedimentos restritos à sala de aula, o que revela restringir-se ao microcontexto. Embora, na ação de informar ela tenha dado um destaque a interferência da família no que ocorre na sala de aula, ao fazer novas proposições ela 10 não faz nenhuma alusão às situações que implique uma atuação conjunta escola /família. Retomando o que foi dito inicialmente, a Sessão Reflexiva visa também criar contextos em que os sujeitos possam aprender a colaborar entre eles na (des) (re) construção de suas práticas. Isso requer o engajamento dos participantes numa dialogia que propicie o questionamento, a negociação, a avaliação, a resistência, a retomada e a transformação da compreensão das vivências e experiências a partir de teorias que auxiliem essa compreensão, assumindo uma postura semelhante no sentido de transformar essas teorias. Nessa perspectiva, vivenciamos o segundo momento considerado como reflexão interpessoal. O extrait, a seguir, sintetiza a participação de cada um e sua relação com as ações implicadas nesse processo. M – O que tinha além da imagem? M.C. S. – Não dizia nada. Simplesmente, observe a figura abaixo e produza um texto bem criativo. Não esqueça, em seu texto não pode faltar: o titulo, os personagens, o fato, o local etc. Use a imaginação. Só tinha isso e a gravura. A partir da gravura foram criar o texto. J.C.N. – Você vai explicar o que é isso, reprodutiva, criativa, não vai?! M.C.S. – É, eu posso explicar. Dentro da classificação de Rubinstein tem a imaginação criativa e a reprodutiva. A reprodutiva é o que já falei há pouco tempo. Na reprodutiva ele vai, simplesmente, reproduzir o desenho, dizer, descrever, e na criativa ele vai criar um texto diferente baseado na figura, sim, mas, ele vai inovar, ele vai criar coisas novas. M. – Você vai considerar reprodutiva, por exemplo, a onça caiu no buraco, chega a anta coloca o cipó e salva a onça. É isso reprodutivo? M.C.S. – É. Exatamente o que ele está vendo. J.C.N. – É o óbvio, não é? O óbvio é o reprodutivo. M.C.S. – É o que faz a descrição da imagem é o reprodutivo. M. – Normalmente na escola não é assim? Coloca a gravura e pede: Faça uma descrição. M.C.S. – Nesse texto que eu li agora, ela não descreveu essa figura. Ela contou uma história, ela imaginou uma história que estava acontecendo, mas que não tinha nada haver com o desenho, assim... com a descrição do desenho. J.C.N. – (fala inaudível). Você repetiu que não tem nada a ver com o desenho. Tem a ver com o desenho. O desenho é o ponto de partida. M.C.S. – É. Tem a ver com o desenho. Agora, só ele olhou para o desenho e criou uma história, imaginou uma história. J.C.N. – A gravura é o ponto de partida pra que ele deixe (inaudível) É bom que isso fique bem claro na sua cabeça. L. – Quando você coloca as dificuldades e acha que é porque os alunos não demonstram interesse, não teria que deixar claro que está dizendo isso intuitivamente, sem fundamentação, sem estar fundamentada em nenhum autor? É porque você chega a dizer assim: falta de compromisso dos pais e tem um monte de coisas que precisaria ir a fundo, dizer por que está dizendo aquilo. Fez algum questionário, fez levantamento dos conhecimentos prévios no início do ano em relação à família? Você está entendendo?! Eu estou preocupada... M.C.S. – Eu só não coloquei porque não foi escrito. Mas quando você tem 21 alunos e marca reunião e vêm duas mães, um avô e um tio... L. – Então você tem um dado que não está aparecendo. M.C.S. – E toda tarefa que você manda pra casa o aluno volta do mesmo jeito, pergunto se o pai olhou o caderno, não, nunca viu, aí eu percebo que é falta também de incentivo da família. 11 L. – Eu estou querendo esclarecer. M.C.S. – Eu sei, estou entendendo, eu não coloquei. L. – Você está dizendo uma coisa e até pelo visto você sabe explicar por que você esta dizendo tal coisa, por que está usando tal argumento, porque às vezes sabe mais não diz. Então, fica um negócio assim, sabe, saiu de onde? Essa sua imagem a respeito dos pais, da família dos alunos, foi com base em que? Com base em conhecimentos prévios? Sua experiência em sala de aula? Essa atitude que você tomou de marcar reuniões? Sabe, só estou querendo ajudar. Esses detalhes não são desnecessários, não, são importantes. M.C.S. – Eu estou entendendo. L. – É para fundamentar suas afirmações sobre o comportamento do aluno porque, senão, fica uma coisa vazia. M.C.S. – Fica uma coisa solta. L. – Exatamente. J.C.N. – É senso comum, as coisas não (inaudível) é um descompromisso da família, não quer nada, os pais não são responsáveis. Isso aí é senso comum. M.C.S. – A gente ainda pode acrescentar, não é? M. – É necessário. Essa discussão é exatamente para acrescentar, melhorar. J.C.N. – E aí entra a fundamentação teórica. A necessidade de leitura. Aí é que entra porque você (inaudível) Como você vai encontrar essa justificativa? É natural que nesse momento seja essa a análise que ela faça. É necessário que a gente entenda isso. Ela não tem ainda a fundamentação. A gente vai fazer mil leituras, não porque alguém pede e diz que a gente tem que fazer. Mas, a necessidade que a gente tem de entender, ver, perceber. Está claro que as coisas estão acontecendo, mas é preciso entender o que é que faz com que as coisas aconteçam dessa forma. E onde é que eu vou encontrar a resposta pra isso?! Nos teóricos. F. – Às vezes eu atrapalho, mas é porque quando eu deixo pra depois eu esqueço.Mas o que eu ia dizer era isso: Eu senti falta quando C. falou de (inaudível). Eu sei por que ela disse isso. Eu também entendi quando L. disse. É como se a gente estivesse querendo como professor se isentar e deixar só com os pais. Mas, realmente, a gente tem toda essa experiência, só que C. não registrou como às vezes eu também não registro. E sempre a gente fala como se estivesse passando a bola. Mas não. O que faltou também a gente dizer é que é a primeira vez que estamos fazendo. M.C.S. – Eu não sei por que, eu tenho mania de falar pela parte que eu sinto. Eu coloco a parte da ajuda dos pais porque eu me esforço demais e só o meu trabalho não rende. Então, acho que se tivesse a ajuda deles com a minha... L. – Eu só queria dar um esclarecimento. A minha posição não é a que F. falou, que C. está querendo se eximir de culpa. Quando a gente é pesquisadora, qualquer coisa que a gente fala, em relação ao aluno ou aos familiares, a gente tem que dizer o porque de estar dizendo aquilo. [...] É ter uma base de sustentação. Não é querendo se eximir. Não é isso que eu quero dizer e, sim, fundamentar. M. – Essa sustentação pode ser empírica ou teórica ou as duas juntas. L.G. – Essa reflexão é rica para a prática do professor e do professor pesquisador. Então, achei muito interessante essa classificação dos tipos de imaginação. A gente é leiga... As professoras são muito leigas nesse assunto das funções mentais. Então a gente passa (inaudível). M. – Bom. Você tocou num ponto chave: essa questão das funções mentais. Como os currículos são organizados, como a escola se estrutura não passa nem por longe colocar isso em foco. Essa preocupação não existe e nem nos cursos de formação. As questões de L. permitiram que a professora explicasse as razões que motivaram o seu posicionamento em relação à família dos alunos, provocando uma discussão a respeito da necessidade de apresentar argumentos que dêem sustentação as nossas afirmações. Esse tipo de questionamento possibilita uma reflexão que propicia a compreensão de que os nossos julgamentos estão, muitas vezes, prenhes do jargão do 12 senso comum que atribui à não aprendizagem do aluno o seu desinteresse ou os problemas de ordem familiar. A discussão restringiu-se à fundamentação teórica sem estabelecer relações com as razões sociais, culturais, políticas e ideológicas que subjazem aos posicionamentos que assumimos, nem com as condições de vida do aluno, pois as questões colocadas permitiram a reflexão avançar nessa direção. O destaque foi o saber sistematizado nas teorias, passando despercebidos os saberes da experiência. Como destaca Pimenta (1999), o saber profissional abrange também o saber adquirido nas vivências e experiências cotidianas submetido a um processo permanente de reflexão. Em nenhum momento foram colocadas questões que conduzissem a professora a refletir sobre as possibilidades de refazer sua prática. As colocações postas em relação à necessidade de fundamentar suas afirmações levaram-na a concluir que deveria refazer o seu Relato. Porém, a reflexão acerca de como a professora reorganizaria sua prática no sentido de superar os problemas apontados não foi desencadeada. Isso talvez possa prejudicar a consecução de mudanças mais efetivas. Apesar das lacunas, o processo vivenciado nos permite considerar a reflexão como processo necessário à formação inicial e contínua de professores, uma vez que, além de propiciar a auto-análise, a intervenção dos pares amplia a compreensão que o professor tem da sua prática, à medida que vai ocorrendo, pois, como afirma Bakhtin (1979, p.382) “[...] o ato de compreensão supõe um combate cujo móbil consiste numa modificação e num enriquecimento recíprocos”. O aprendizado da reflexão da prática pedagógica requer, como ficou evidenciado, a criação de situações em que os envolvidos descrevam suas ações e escolhas diárias, interpretem-nas e repensem compreensões que muitas vezes estão encobertas ou distorcidas por falácias que repetimos sem termos consciência de como as internalizamos. Reflexões que nos façam compreender os objetivos e razões de agir; o contexto específico no qual se efetivam essas ações, nesse caso particular, a escola, os alunos, sua cultura e interesses; o que de fato acontece na sala de aula, sabendo distinguir quem fala e quem escuta; que tipos de atores sociais estão sendo formados e o que isso significa. É o entendimento do significado do seu fazer, dos conhecimentos que estão sendo elaborados, das capacidades a serem desenvolvidas, das atitudes a serem formadas. Aspectos esses enfocados em suas singularidades, porém, sem dissociá-los do contexto sócio-cultural e político no qual se inserem. Uma compreensão que estabeleça 13 a ruptura com a concepção de que os professores transmitem e os alunos assimilam conhecimentos, valores, normas e padrões culturais vigentes na sociedade. Porém, nunca é demais reafirmar que todo aprendizado resulta de uma atividade lenta e progressiva do sujeito que aprende, envolvendo um conjunto complexo de fatores que se encontra imbricado na totalidade histórica na qual esse aprendizado se processa, implicando aspectos que sejam capazes de fazer emergir o anteriormente construído, conduzindo o aprendiz a avanços que possam interferir nas vivências e experiências de modo a transformar perspectivas, formas de pensar e de agir. Gostaríamos de enfatizar que a realização dessas ações, mesmo de forma parcial, representa uma conquista significativa, para o desenvolvimento da capacidade reflexiva. Concordando com Bakhtin (1986), quando afirma que o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social, reafirmamos o papel dos pares no processo de expressão e objetivação da prática, objeto de nossa análise, pois os conhecimentos veiculados pelo grupo e a experiência de vivenciar volitiva e conscientemente o exercício de refletir foram enriquecedores no sentido de criar as condições objetivas de ir superando a cotidianidade, auxiliando a perceber, numa interação ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, os pressupostos que orientam a ação, concretizando-se a possibilidade de formação do professor crítico reflexivo. A percepção das coisas de maneira diferente implica o ganho de outras possibilidades de agir em relação a elas. (VIGOTSKI, 2001). O fato de apontarmos essa possibilidade não significa que essa formação esteja se efetivando em toda sua extensão, embora existam, no nosso país, várias experiências nessa perspectiva efetivadas no contexto de Programas de Pós Graduação (LAEL – PUC/SP; PPGED/UFRN; PPGED/UFPI e outros). Esses são nichos de oposição a um sistema hegemônico que, contraditoriamente, contrapõem a um discurso inovador processos formativos que favorecem muito mais a dimensão técnica do que a dimensão ético-educativa e crítico-reflexiva, haja vista os programas de formação de professores propostos pelo Ministério da Educação. Essa constatação não significa que devemos rechaçar as utopias, ao contrário temos que (re)propô-las. Como nos ensina Manacorda (1989, p. 360): [...] a utopia positiva consiste não em elaborar soluções ou “invenções” [...] mas, em fazer de tudo para que cada passo, por 14 pequeno que seja, proceda rumo ao futuro: sem excluir passos mais largos e tomadas de consciência mais radicais. (Grifo do autor). Face ao proposto por Manacorda só nos resta dizer – caminhemos. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979. ______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: HUITEC, 1986. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. HOMERO. A Ilíada. Tradução de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. Tradução de Artur M. Pereira. São Paulo: Herder, 1995. LIBÂNIO, José C. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, S. G. e GHEDIN, E. (orgs.) Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2005. LIBERALI, Fernanda C. Formação crítica de educadores: Questões fundamentais. Taubaté/SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2008. MAGALHÃES, Maria Cecília. Sessões Reflexivas como uma ferramenta aos professores para a compreensão crítica das ações da sala de aula. In Anais do 5º Congresso da Sociedade Internacional para Pesquisa Cultural e Teoria da Atividade. Amsterdam: Urije University, jul. 2002, p. 18 – 22. 15 MANACORDA, Mario A. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. Tradução de Gaetano L. Mônaco. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989. – Coleção educação contemporânea. Série memória da educação. NOSELLA, Paolo A formação do educador e do professor – um esboço histórico. In: NOSELLA, P. e JARDILINO, J. R. L. (Orgs.) Os professores não erram: ensaios de história e teoria sobre a profissão de mestres. São Paulo: Terras do Sonhar/Edições Pulsar, 2005, p. 23 – 72. – Coleção Educação como práxis e liberdade. PIMENTA, Selma G. Formação de professores: saberes e identidade. In: PIMENTA, S. G.(org.) Saberes Pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 1999. ______. Professor Reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA, S. G. e GHEDIN, E. (orgs.) Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2005. VYGOTSKY, Lev S. Formação Social da Mente. O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução de José Cipolla Neto et al. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ______. A Construção do Pensamento e da Linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.