QUE AMOR NA TRANSFERÊNCIA?
Ana Paula de Aguiar Barcellos1
Na descoberta do inconsciente Freud apontou que a transferência é um fenômeno
espontâneo que adquire status de conceito na psicanálise. Ela é a mola mestra do
tratamento, indicou Freud (1912a), e o amor é parte essencial da transferência.
Nos debruçaremos aqui, sobre a possibilidade de trabalho, guiado pela
transferência e para tal analisaremos fragmentos de um caso clínico atendido pela
mesma analista em duas instituições públicas.
Abordaremos o modo como o amor, parte essencial da transferência, se articula à
possibilidade do trabalho de análise de um sujeito. Para tal analisaremos fragmentos de
um caso clínico atendido pela mesma analista em duas instituições públicas.
Freud (Idem) se referiu a relação entre analista e analisante como dissimétrica,
dizendo que o analista não deve se colocar como semelhante na relação transferencial,
deve “ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o
que lhe é mostrado.” (Ibidem, p.131). Alertando ainda que transferência e resistência
aparecem interligadas e o papel que a transferência desempenha no tratamento analítico
só pode ser compreendido se considerada sua relação com a resistência.
A transferência traz em si essa ambigüidade, ela é essencial para a análise, pois
só se pode interpretar nela, mas ela pode fechar o sujeito aos efeitos da interpretação. Ela
traz à cena o amor que vela o desejo do sujeito. O amor pode, então, encobrir o desejo, já
que no encontro com este impõe-se a falta, para a qual o amor pode fazer borda e, além
disso, como um ganho secundário, o amor pode encobrir o desejo inconsciente. Freud
(1915), alerta sobre o amor de transferência, mostrando que o analista deve acolher este
amor sabendo que não se trata de ter uma relação amorosa com o paciente. Sucumbir ao
amor, ou negá-lo indica a resistência do analista.
Psicóloga especializada em Psicanálise e Saúde Mental pela UERJ (2006). Mestranda em Psicanálise
pela UERJ (2008), onde participa da pesquisa "A psicanálise no campo da saúde mental: a clínica como
política" (UERJ/CNPq), coordenada pela Profª.Drª. Doris L.Rinaldi. Atua na saúde mental como
psicóloga e coordenadora do CAPS de Sumidouro, interior do Estado do Rio de Janeiro.
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Lacan (1960-1961), no seminário sobre a Transferência, mostrou que o analista
é colocado pelo analisante num lugar de agalma2, isto é como o objeto buscado, sendo o
invólucro do objeto de desejo. O que é, então, próprio à posição do analista é
reendereçar a suposição de saber ao analisante.
Chamarei de Pedro o adolescente atendido por mim em duas instituições públicas
do interior do Estado do Rio, o centro de reabilitação e o ambulatório.
O processo analítico se iniciou quando o paciente estava com cerca de 15 anos e
durou até os 21 anos de idade e era atendido semanalmente. Já na primeira sessão ele
havia dito que tinha uma namorada homônima à analista. Numa outra sessão, após uma
intervenção da analista, ele se surpreende, acreditando que ela teria uma “bola de
cristal”, supondo que ela podia ler seus pensamentos, ao cometer um ato falho que foi
por ela pontuado.
Estes dois momentos iniciais já apontam indícios de transferência, pois como
ensina Freud (1912a), o analista é colocado entre a série dos eleitos do paciente. Para
Lacan (1964), há transferência se houver uma suposição de saber, então o Sujeito
Suposto Saber, inicialmente é sustentado pelo analista para que possa, com o decorrer da
análise deslizar para o próprio sujeito. Pedro supunha um saber na analista ao questionar
se ela teria uma “bola de cristal”, por ter apontado, no tropeço da sua fala, um ponto de
indicação do desejo ao falar namorado quando supunha dizer namorada.
Neste trabalho analítico, foi possível sustentar um lugar de causa de desejo,
mesmo com as dificuldades do serviço público, tais como a falta de um trabalho efetivo
em equipe, a dificuldade dos espaços de atendimento, o tempo curto, etc.
Após este tempo de atendimento houve uma interrupção do tratamento, pois a
analista se afastou do serviço por dois anos. Neste período foi oferecida a Pedro a
possibilidade de ser atendido no consultório, tendo ido lá uma única vez.
Nesta última sessão, quase dois anos após o último atendimento no ambulatório,
Pedro dizia que precisava falar como sentia saudade da analista e dos atendimentos no
Centro de Reabilitação, dizendo que “o amor nunca acaba”. Fala que apontou para o laço
transferencial com a analista e também com a instituição onde foi atendido durante sua
adolescência.
Lacan fala do agalma ao analisar no Seminário livro 8, A Transferência, a relação de Sócrates com
Alcebíades, no Banquete. Onde Sócrates é um invólucro daquilo que é o objeto de desejo. O “Agalma bem
pode querer dizer ornamento ou enfeite, mas aqui, antes de mais nada, jóia objeto precioso – algo que está
no interior.”(Lacan, 1960-1061, p.141). Este é o objeto que está no centro da relação de amor, como
objeto buscado.
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Durante todo o tempo de análise Pedro oscilava em colocar a analista no lugar de
“amiga” e “terapeuta”, palavras por ele usadas para referir-se a ela. Nesta sessão Pedro
parecia querer averiguar que a analista continuava no lugar por ele criado, tomando-a
pela via da “amiga” ao fazer perguntas sobre sua vida. Nesta sessão foi necessário que
a analista retificasse para ele que não era sua amiga, mas sua analista, caso ele quisesse
dar continuidade a análise. Repetindo para ele, deste modo, que nem tudo era possível na
relação com a analista, talvez na tentativa de forçar a inscrição do amor limitado e ao
mesmo tempo verificando, o que a transferência apontou, que o inconsciente é realmente
atemporal.
A intervenção analítica visa, portanto, possibilitar algum deslocamento do
sujeito, levando-o ao encontro e construção do seu desejo, de modo que seja responsável
por este. O analista opera calcado no desejo do analista, mergulhando, nos enigmas do
inconsciente que aparecem via transferência, nos lapsos da fala.
Do lado do analisante é a transferência que permite a análise, ao procurar um
psicanalista o sujeito deposita nele uma confiança, supondo um saber sobre sua questão.
Este se dirige ao analista como objeto de seu amor. A suposição do saber está atrelada ao
amor, pois o analisante ama o saber que supõe no analista. Mas se o sujeito se coloca na
posição imaginária como se o outro tivesse algo que o completaria, ele se engana e não
se dá conta da sua falta essencial. O psicanalista, então, sustenta o seu lugar no trabalho
analítico pela transferência, sem, contudo encarnar esse saber, para que análise possa se
dar, por isso não atende a demanda de amor porque sabe, a partir de sua experiência com
o inconsciente, que ignora a verdade do desejo do analisante.
A transferência, como todo processo inconsciente, ocorre nos três registros do
inconsciente, o real, o simbólico e o imaginário 3. Lacan (1953-1954) situa o que
denomina as três paixões fundamentais, o amor, o ódio e a ignorância, em relação com
os três registros do inconsciente. O amor se situa na junção do simbólico e do
imaginário; o ódio na junção do imaginário e o real, pois aí as palavras não tem a função
de mediação; e a ignorância na junção do real e do simbólico, a falta de sentido é radical,
ela se atém a interrogação e não à resposta.
Simbólico, Real e Imaginário são os três registros do inconsciente propostos por Lacan, que ao longo do
seu ensino alternaram em termos de primazia. Esses registros aparecem articulados de forma moebiana , e
ao fim de seu ensino os três são igualmente importantes. O simbólico se constitui como a cadeia
significante. O imaginário como imagem do corpo, onde o eu se forma por meio da linguagem na relação
com o outro. E o real é aquilo que excede aos outros registros, impossível de simbolizar.
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O amor é uma produção de sentido que deixa de lado o real, ele elide a falta de
sentido própria ao real, pois o amor desconhece o tempo e a morte. A paixão amorosa
supõe a junção entre o “eu” e o “outro”. A idéia de complementaridade é uma tentativa
de negar a impossibilidade de fusão com o outro, negando que a castração está presente
para todo ser falante.
Estas paixões se manifestam na transferência, porém a ignorância é seu pivô, no
entanto, a ignorância enquanto paixão, não é incluída nos componentes primários da
transferência.
A ignorância do lado do analisante possibilita a suposição de saber no analista e
na direção do tratamento o analista vai deslocar gradativamente esta posição para o
analisante e passa a ocupar o lugar de ignorância douta, que se difere da posição da
ignorância ocupada pelo analisante. Deste lugar de semblante de não saber, o analista
pode propiciar as construções singulares do sujeito.
É, pois, por estar inserido na lei da castração e saber que não há um ideal de
felicidade alcançável para o homem, que o analista pode fazer a análise acontecer.
Porém o encontro com o próprio desejo não é simples, o que o sujeito tem acesso
em sua análise é a sua forma de gozo, e é via transferência que conquista algo que lhe
confere sua forma a tudo o que ele vive que é a sua própria lei, de acordo com o seu
desejo, que é limitado. A lei da castração constitui o desejo como impossível de ser
satisfeito.
Do lado do analista o que deve operar é o desejo do analista, que se difere do
desejo da pessoa do analista, ele é o desejo advertido, desejo de causar uma análise, caso
contrário, o amor que ali surgir será excessivo, levando-o a resistir. O saber do analista
não é pronto, é um saber que precisa ser inventado relacionado ao desejo inédito no laço
transferencial em cada caso. Sustentar este lugar só é possível pelo desejo do analista,
que permite que ele ocupe o lugar de resto, que é um resto vazio.
Com os fragmentos do caso apresentados, apostamos que foi por estar referida ao
desejo do analista, sem se perder nos engodos do amor transferencial, que construções
do sujeito puderam ser sustentados pela transferência naquele trabalho analítico.
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Transferência - Laboratório de Psicopatologia Fundamental