As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia Comics in the training process of Science and Biology teachers Melchior José Tavares Júnior* Universidade Federal de Uberlândia Resumo O objetivo desse texto foi refletir sobre HQ’s como recurso didático no Ensino de Ciências e Biologia. Da experiência como docente do curso de Ciências Biológicas, ministrando a disciplina Metodologia de Ensino desde 2009, inferimos que as HQ’s podem ser úteis na Educação, os futuros professores aprovam sua utilização, proporiam que seus alunos elaborassem suas próprias HQ’s. Alertamos para a adequação conceitual, pois a utilização da HQ pressupõe uma correção absoluta, salvo nos casos em que o professor deseje comparar ao conceito adequado; para a linguagem, uma vez que muitos cartunistas utilizam uma linguagem chula em suas produções; para a imagem, pois os autores constroem personagens que não são facilmente identificados como pessoas ou são animais desconhecidos; para os valores, pois os quadrinhos podem emitir juízos particulares dos autores. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos; Ciências Biológicas; Formação de professores. Abstract The aim of this paper was to reflect on comics as a teaching resource in the Science and Biology teaching. From the experience as a professor in the Biological Sciences course, which we worked in the Teaching Methodology subject since 2009, we infer that comics can be useful in education, the future teachers approve its using and they would propose that their students draw up their own comics. We alert to the conceptual adequation, because the use of comics presupposes an absolute correction, unless in the cases in which the teacher wishes to compare the appropriate concept; for language, considering that many cartoonists use a foul language in their productions; for the image, because the authors build characters that are not easily identified as persons or they are unknown animals; for the values, because comics can show particular judgments from the authors. KEYWORDS: Comics; Biological Sciences; Teacher Training. educação | Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 ISSN: 0101-9031 http://dx.doi.org/10.5902/1984644414164 439 Melchior José Tavares Júnior Introdução Atualmente, as histórias em quadrinhos (HQ’s) fazem parte do cotidiano das pessoas. Estão nos jornais, nas revistas, nos livros, na internet, nas provas do vestibular tradicional, nos concursos públicos e até no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Na medida em que foram capazes de evidenciar aspectos da sexualidade, da alimentação das pessoas, do vocabulário social, dos meios de transporte, da religiosidade e das questões éticas, as HQ’s foram se constituindo como um veículo que retrata a arte e a cultura de uma determinada sociedade. Guimarães define as HQ’s como uma, forma de expressão artística que tenta representar um movimento através do registro de imagens estáticas. Assim, é História em Quadrinhos toda produção humana, ao longo de toda sua História, que tenha tentado narrar um evento através do registro de imagens, não importando se esta tentativa foi feita numa parede de caverna há milhares de anos, numa tapeçaria, ou mesmo numa única tela pintada. [...]. Engloba manifestações na área da Pintura, Fotografia, Desenho de Humor como a charge e o cartum, e até algumas manifestações da Escrita. (GUIMARÃES, 1999, p. 12). Destacamos duas formas assumidas por este tipo de comunicação, a saber, as histórias completas, na forma de revistas ou livros, e as curtas histórias, as chamadas tirinhas, tiras ou historietas. Conforme Carvalho e Martins (2009), as tirinhas, geralmente com três quadros, surgiram pelo pouco espaço disponível nos jornais americanos do início do século passado. No Brasil, destacamos o considerável espaço ocupado pelas tirinhas nos jornais A folha de São Paulo e o Zero Hora, de Porto Alegre/RS. Nos Jornais locais, as historietas vêm sendo produzidas por autores regionais e nos parecem potencialmente educativas, embora o espaço conquistado seja tímido e as publicações ainda em preto e branco podem não chamar a atenção do leitor professor. Assumindo as HQ’s como uma expressão artística contextualizada à nossa época, capaz de exercitar a criatividade e a imaginação da criança, por meio de uma linguagem dinâmica (BIBE-LUYTEN, 1984), consideramos que estas podem ser importantes na educação formal, como recurso didático com potencial capaz de dar suporte às diversas disciplinas escolares, de maneira interdisciplinar, reflexiva e prazerosa (HANZE, 2006). Nessa direção, concordamos com o pensamento de Giesta (2002, p. 165), ao afirmar que as HQ’s podem “servir aos professores como recurso a ser utilizado em sala de aula, em tarefas de casa, oportunizando a análise e a reflexão acerca das temáticas abordadas”. Por outro lado, apesar das HQ’s já serem recomendadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), no volume dedicado à Língua Portuguesa (HANZE, 2006), sua legitimação na escola ainda é tímida, talvez pela predominância de uma forma exclusiva de leitura, conforme nos alerta Bruzzo (2002). Neste texto, buscamos refletir sobre os limites e as possibilidades das HQ’s como recurso didático no Ensino de Ciências e Biologia. O lugar de onde pensamos é o da docência no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), no qual ministramos a disciplina Metodologia de Ensino, desde 2009. Nessa disciplina, trabalhamos as HQ’s tanto como um recurso que o futuro professor pode apresentar aos alunos na sala de aula como um objeto a ser elaborado pelos próprios 440 Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 | educação As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia estudantes da Educação Básica, no desenvolvimento de conteúdos de Ciências e Biologia. Apresentaremos, inicialmente, alguns elementos da trajetória das HQ’s no Brasil, enfatizando aqueles que contribuíram para a relação Quadrinhos-Ciência no século passado e início do atual. A seguir, buscamos refletir sobre o foco das pesquisas que abordam HQ’s no ensino de Ciências e Biologia. Por fim, à luz dessas considerações históricas-conceituais, tecemos as nossas, a partir de nossa experiência com o tema. A trajetória das HQ’s no Brasil: abrindo caminhos para o ensino de Ciências e Biologia As primeiras obras publicadas na forma de HQ’s ocorreram no final do século XIX, porém, só se efetivaram no Brasil no início do século seguinte, com a publicação, em 1905, da revista em quadrinhos O Tico-Tico. Em 1960, a editora Ebal lançou dois volumes de História do Brasil em quadrinhos. Desde então, essa forma de “narrativa quadrinizada” (CIRNE, 1975) ocupou-se principalmente de temas muito específicos de nossa cultura, sobretudo pelo viés da história do descobrimento do Brasil1, da escravatura2, das guerras enfrentadas pelo país3, o que chama a atenção para a riqueza oferecida à disciplina História. Em 1970, Antônio Luiz Cagnin publica um livro que se tornou uma referência sobre a linguagem dos quadrinhos dentro de processos narrativos. A identificação das HQ’s com a educação científica ocorre desde 1950, com o lançamento das revistas Ciência em quadrinhos e Enciclopédia de Quadrinhos. Em 1959, Ziraldo lança a revista Pererê, com ênfase na cultura popular e na fauna brasileira. Em 1990, uma publicação da editora Abril, intitulada Proteus - A aventura da ciência em quadrinhos, responde ao momento histórico da disciplina Ciências que, nessa época, buscava no aluno o desenvolvimento do futuro cientista e a valorização do pensamento científico e da Ciência. Essa publicação era caracterizada por aventuras de ficção científica em quadrinhos e também perguntas e respostas sobre os temas envolvidos. As HQ’s respondem, atualmente, a outros anseios, e os desenhistas buscam provocar a sociedade para uma reflexão crítica, sobretudo quando tratam de temáticas como a saúde, a sexualidade, o controle de natalidade, o preconceito com a terceira idade, a higiene, o consumo de drogas, a domesticação dos animais e a questão ecológica, sendo esta última o carro chefe das mais recentes publicações em quadrinhos, chegando a tornar-se objeto de investigação acadêmica (GIESTA, 2002). Como exemplos dessa tendência, destacamos a Reciclagem em quadrinhos, publicada em 1995 pela editora Casa da Qualidade, apresentando a maneira correta de se praticar o 3R (Redução, Reutilização e Reciclagem), a série Ecologia em Quadrinhos, publicada em 1992 pela editora Brasiliense, e os gibis do personagem Chico Bento, desenvolvido por Maurício de Souza e publicado pela editora Globo. Conforme Danton (1997), essa reorientação dos quadrinistas também implicou numa visão mais crítica sobre a Ciência, especialmente em relação à questão da ética no fazer científico. educação | Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 441 Melchior José Tavares Júnior Esses investimentos, ao longo do século XX, podem ter contribuído para o deslocamento das HQ’s de uma condição marginal para uma maior valorização como recurso didático no início desse século, tanto para o ensino de Ciências como de outras disciplinas. Nos dias atuais, iniciativas bem sucedidas como o Gibiozine4, uma revista de histórias em quadrinhos para divulgação de conceitos científicos, desenvolvida desde 2007 por graduandos do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), bem como o estabelecimento de eventos acadêmicos, como as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, podem consolidar esse reconhecimento da potencialidade didática das HQ’s. Inserimos, também, nesse panorama, livro de Marcos Caruso e Cristina Silveira, intitulado Questões ambientais em tirinhas, publicado em 2007; bem como o livro de Flávio de Almeida, intitulado Darwin no Brasil, publicado em 2009, que retrata de forma não professoral a passagem do famoso naturalista pelo Brasil, especialmente Rio de Janeiro e Recife. Finalmente, a perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) também pode ter contribuído para a valorização das HQ’s no Ensino de Ciências e Biologia, na medida em que contribui para que os conteúdos tradicionais possam ser abordados de modo a inserir o aluno numa dimensão mais crítica da realidade. As HQ’s no ensino de Ciências e Biologia: qual o foco das pesquisas? As pesquisas em HQ’s são recentes no Brasil. Para Vergueiro, a academia nacional sempre foi refratária à legitimação desse objeto de pesquisa. Para o autor: Os intelectuais universitários sempre tiveram uma ressalva quanto aos produtos de massa. Levaram um certo tempo para aceitar os meios de comunicação de impacto mundial incontestável, como o cinema ou o rádio, e para acreditar que pudessem representar um objeto de estudo digno dos bancos acadêmicos ou que pudessem oferecer como resultado verdadeiras obras de arte. (VERGUEI- RO, 2005, p. 15). Atualmente, as HQ’s vêm sendo estimuladas por eventos como a Jornada Internacional de Histórias em Quadrinhos, promovida bianualmente pela Universidade de São Paulo (USP), desde 2011. Note-se o registro na página do evento: As Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos têm como principal proposta servir de ponto focal para as pesquisas sobre histórias em quadrinhos produzidas em diferentes regiões do país e também no exterior. O congresso acadêmico, ao mesmo tempo em que dá visibilidade a tais estudos, contribui para promover um intercâmbio de conhecimento entre os temas abordados e seus respectivos autores. Dentre os eixos temáticos do evento citado, encontramos um intitulado Quadrinhos e Educação, seção onde os artigos relacionados ao ensino de ciências e Biologia encontram-se publicados. Sobre esses artigos, o tema saúde parece ser o foco dos pesquisadores. 442 Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 | educação As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia Destacamos o trabalho de Adriana Couto Pereira Rocha (2011), intitulado Saiba mais: a Turma da Mônica como material paradidático para o ensino de Ciências. O estudo procura analisar o material exibido na coleção Você Sabia?/Saiba Mais, de Maurício de Souza. Conforme a autora, O presente estudo conclui avaliando o material adequado para o uso como recurso paradidático, com algumas ressalvas a respeito dos referidos equívocos presentes ao longo das histórias, aos quais o professor deve permanecer alerta, e sugere que o material passe por uma revisão mais cuidadosa de modo a aumentar sua credibilidade e suas possibilidades de adoção no ensino de ciências. (ROCHA, 2011, p. 59). Outro trabalho apresentado no mesmo evento, e que destacamos aqui, é o de Roberto Elísio dos Santos e Deise Cavignato (2011), intitulado HQ e saúde: o uso das histórias de Maurício de Sousa na prevenção de doenças e promoção da saúde. O estudo da coleção Educar para Prevenir ressalta a importância da utilização das HQ’s no processo educativo: “A partir da análise preliminar realizada nas histórias em quadrinhos elaboradas por Mauricio de Sousa e sua equipe, pode-se considerar que essas narrativas têm o mérito de tratar de doenças e sintomas para leitores que não teriam outra forma de obter essas informações” (SANTOS; CAVIGNATO, 2011, p. 67). Outros estudos também vêm sendo desenvolvidos com o foco na saúde, queremos destacar a pesquisa de Cabello; La Roque; Souza (2010). Os autores perceberam que as HQ’s facilitaram a aprendizagem dos alunos da 5ª e 6ª séries sobre o tema Hanseníase. Conforme os autores, “as respostas dos alunos são descritas e discutidas, mostrando que uma história em quadrinhos pode ser bem utilizada como material educacional para questões de saúde” (p. 225). Outros temas também vêm sendo foco de pesquisas sobre as HQ’s no ensino de Ciências e Biologia. Chamamos a atenção para o estudo de Carvalho e Martins (2009), no qual foi possível perceber que as HQ’s contribuíram de forma positiva para o ensino dos conteúdos força da gravidade, estrelas, satélites e raios no Ensino Fundamental. Nessa mesma direção, destacamos alguns dos livros publicados na série Quiósque, alguns deles resultado de pesquisa acadêmica, que relacionam HQ’s com a Ciência. São eles Ciência em Quadrinhos, de Gian Danton (2005), que aborda as descobertas científicas nas HQ’s, sua evolução e antecipações; Watchman e a teoria do Caos, do mesmo autor, que aborda a obra prima de Alan Moore sob o prisma da teoria do caos; O rasgão no real, de Bráulio Tavares, que aborda a metalinguagem como discurso da ficção científica. Além do tema Saúde, Astronomia, Ciência e Divulgação científica, entendemos pertinente o registro da pesquisa de Lilyane Ramalho Cordeiro, realizada em 2006, intitulada Limites e Possibilidades das Histórias em Quadrinhos como mediadora de Educação Ambiental. Como trabalho de conclusão do curso de Especialista em Ensino de Ciências, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, esse estudo investigou 344 educação | Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 443 Melchior José Tavares Júnior tirinhas do site oficial da turma da Mônica, buscando aquelas potenciais para a Educação Ambiental. Conforme a autora: A partir da análise quantitativa de 344 tirinhas foi verificado que 12 delas (3,49%) apresentaram temas referentes às questões ambientais e que este número aumentou para 24 (6,98%) após uma análise qualitativa, onde foi levada em conta principalmente às características dos desenhos, postura e condutas dos personagens, etc. Com isso, foi possível concluir que as histórias em quadrinhos são uma boa ferramenta para a prática de educação ambiental, embora tenha sido verificado uma baixa incidência de tirinhas relacionadas às questões ambientais. E ainda, seu uso vai depender da observação e análise por parte dos leitores assim como dos educadores que as utilizem para suas práticas pedagógicas. (CORDEIRO, 2006, p. 11). Outro trabalho com foco ambiental foi a pesquisa de Silva; Mata; Oliveira (2011), que investigou a potencialidade das HQ’s na aprendizagem sobre o tema poluição, com 28 alunos do ensino Fundamental de uma escola pública. Para os autores: As HQs motivaram os alunos a participar da aula, aproximou a assunto do cotidiano dos estudantes, facilitou a discussão acerca do tema favorecendo a reflexão, o questionamento e consequentemente proporcionou ao aluno participar ativamente da aula, construindo o conhecimento de maneira mais significativa. (SILVA, MATTA, OLIVEIRA, 2011, p. 01). Para concluir esse tópico, nos alinhamos ao pensamento da pesquisadora Mariana Pizarro (2009), segundo a qual os conceitos da ciência, presentes nas HQ’s, podem contribuir para o ensino da disciplina escolar, ainda que o professor precise ficar atento aos ajustes que se fizerem necessários. As HQ’s na formação inicial: a ação e a reflexão sobre a ação Desde 2009, quando assumimos a disciplina Metodologia de Ensino, componente obrigatório do curso de Ciências Biológicas da UFU, decidimos pela abordagem das HQ’s no planejamento da disciplina. Essa decisão partiu do princípio que a Biologia a ser ensinada na escola não precisa ser tradicionalmente chata, maçante, descontextualizada, cheia de nomes e tabelas para serem decoradas (PENA, 2003; FERNANDES, 1998). Além da dimensão lúdica, o outro suporte para a abordagem das HQ’s foi o princípio da operacionalidade dos conteúdos ou a “aula operatória” (RONCA; TERZI, 1995). Para esses autores, os processos de ensino devem ser organizados de forma que os alunos, de posse de determinados conceitos, possam ser capazes de lidar com a realidade, de resolver questões, o que se dá pela operacionalização desses conceitos. Assim, entendemos que as HQ’s oportunizam desde o contato com o conteúdo até sua mobilização, na medida em que o estudante cria sua própria tirinha. Temos organizado a abordagem das HQ’s em quatro momentos. No primeiro, oferecemos a cada graduando três folhas de papel, nas quais se encontravam 24 tirinhas numeradas. Para cada uma das tirinhas, os graduandos são 444 Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 | educação As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia convidados a buscar conteúdos de Ciências e Biologia, cujo ensino pode ser facilitado por aquela tirinha. Entretanto, não buscamos apenas o ensino de alguns conteúdos possíveis, queremos também alertar os alunos para a presença intencional ou não de determinados aspectos como o racismo, o sexismo, as questões relativas à religião e classe social. Nesse momento inicial, procuramos situar esse recurso didático como sujeito à ação do professor, como exemplo, não se constranger em usar o corretivo para retirar um par de patas de determinado inseto, afinal, pode vir a ser estratégico em determinado momento da prática docente. Voltando à atividade, analisamos a primeira tirinha com os alunos, os quais passam a ter aproximadamente 30 minutos para analisar as demais. Após esse período, discutimos cada uma das tirinhas com a turma, em função do que nos interessa abordar em cada uma delas, conforme mencionado anteriormente. No segundo momento, que ocorre de forma não presencial, informamos aos alunos que devem visitar pela internet os projetos Oficina de Educação através de Histórias em Quadrinhos (Eduhq) e Gibiozine, que propõem aos alunos a construção de HQ’s de próprio punho. Nessa atividade não presencial, os graduandos devem estimar se, na condição de professores de Ciências e Biologia, proporiam aos alunos a elaboração de HQ’s para abordagem dos conteúdos da disciplina. Os graduandos entregam essa atividade por escrito e, num terceiro momento, discutimos o panorama dessas respostas com a turma. O quarto momento constitui-se no oferecimento aos alunos de cinco textos disponibilizados no e-mail da disciplina, nos quais se encontram artigos com resultados de pesquisa sobre HQ’s no ensino de Ciências e Biologia. À luz dos referenciais apresentados anteriormente, as considerações a seguir são resultado de nossa reflexão na ação e sobre a ação (SCHÖN, 1992), no que diz respeito à abordagem das HQ’s na disciplina Metodologia de Ensino, nos últimos cinco anos. Os conteúdos biológicos das historietas Em contato com as HQ’s, os alunos e as alunas do curso de Ciências Biológicas tiveram poucas dificuldades para identificar os conceitos biológicos envolvidos nas historietas. Essa observação nos tranquiliza e nos leva ao encontro de Durham (2006), ao afirmar que o ensino de Ciências pressupõe que o professor possua um domínio básico de conteúdos específicos dessa área de conhecimento. Por outro lado, a imediata rejeição aos erros conceituais presentes nas tirinhas irritam os graduandos. Lembramos-nos do estudo de Gonçalves e Machado (2005), que chamam a atenção para os erros conceituais presentes em HQ’s, os quais podem ser úteis ao professor na mediação entre o senso comum e o científico. Outro aspecto que vem chamando nossa atenção é o fato dos alunos terem menor domínio dos conteúdos de botânica do que os de Zoologia, Ecologia ou Genética, fenômeno recorrente, conhecido como “cegueira botânica” (WANDERSEE; SCHUSSLER, 2001). Destacamos também que, enquanto nosso vocabulário conceitual sempre se remete à expressão já transposta didaticamente e presente nos sumários dos livros didáticos, o vocabulário conceitual dos alunos sempre se remete ao conteúdo biológico, apreendido nas disciplinas específicas do curso. educação | Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 445 Melchior José Tavares Júnior Sobre as personagens das historietas Durante a avaliação das tirinhas como objetos com potencial educativo, observamos que os graduandos encontram dificuldade em entender o comportamento das diversas personagens criadas pelos cartunistas, bem como não identificam de imediato que se trata de determinado animal ou uma pessoa. No início do trabalho com as HQ’s, estimamos que esse estranhamento era decorrente do desconhecimento das personagens e que, portanto, poderia ser superado. Entretanto, nos anos que se seguiram, observamos, à semelhança de Bruzzo (2002), que o antropomorfismo presente nas tirinhas incomoda os jovens biólogos, o que pode se constituir em um obstáculo na opção das HQ’s para utilização pedagógica pelos futuros professores. Por outro lado, os estudos clássicos de Tamir e Zohar (1991) evidenciaram que o antropomorfismo não perturba os estudantes do Ensino Médio. Conforme os autores, “a maioria entende a diferença entre explicação biológica e explicação antropomórfica” (p. 05). Essa contraposição aponta para a relevância de novas investigações no campo da educação. Os conteúdos atitudinais das historietas Menos explícito, mas não menos importante, os futuros professores demonstraram grande dificuldade na percepção dos juízos de valores muito particulares, emitidos pelos autores das HQ’s. Note-se que as HQ’s não são elaboradas com fins de educação; nós que elegemos algumas, por seu potencial pedagógico. De fato, observamos que aspectos como racismo, sexismo e questões relativas à religião e classe social, abordadas de forma inoportuna e deselegante, por vezes passavam despercebidas pelas análises dos alunos, que focavam apenas os conteúdos de Ciências e Biologia presentes na tirinha. Esse olhar objetivado dos graduandos é compreensível, mas deve chamar nossa atenção os conteúdos informais presentes nas historietas, sob pena da tirinha ser excluída da prática pedagógica do professor, em face de seu desserviço educacional. Essa postura rigorosa e estrita em relação ao conhecimento biológico e tecnicista em relação aos aspectos pedagógicos pode ser resultado da profunda influência da formação específica que antecede às disciplinas pedagógicas, aspecto já evidenciado em outras pesquisas (TAVARES JR., 2005). Atualmente, temos avaliado produções paradidáticas cuja finalidade educacional já filtra essas abordagens inapropriadas, como é o caso de Darwin no Brasil. Elaboração das HQ’s pelos alunos da Educação Básica Ao longo dos últimos cinco anos, atuando como docente da disciplina Metodologia de Ensino, observamos que 90% dos graduandos consideram viável a elaboração das HQ’s pelos alunos da escola básica, com fins de contribuir para a aprendizagem dos conteúdos de Ciências e Biologia. Chama a atenção esse percentual em face das considerações anteriores, que apontam para limites e cautela na abordagem desse recurso didático. Os argumentos apresentados pelos alunos foram de que essa atividade coloca os estudantes numa posição ativa e divertida em relação ao conhecimento, diminuindo o cansaço das aulas expositivas. Para muitos graduandos, a elaboração das HQ’s provoca o desenvolvimento de habilidades, bem como promove a interação entre os colegas, por isso mesmo deve ser bem monitorada pelo professor da disciplina. Por 446 Santa Maria | v. 40 | n. 2 | p. 439-450 | maio/ago. 2015 | educação As histórias em quadrinhos (HQ’s) na formação dos professores de Ciências e Biologia outro lado, alguns poucos citam que a atividade pode ser até inviável, pois os alunos que não sabem desenhar podem rejeitar o exercício e até se constrangerem. Outro limite, ainda que raramente mencionado, é a necessidade de muito tempo na elaboração das tirinhas. Na medida em que não vem sendo possível a elaboração das HQ’s pelos próprios graduandos, ficamos sempre a ponderar sobre o espaço das HQ’s em uma disciplina de formação docente, como a Metodologia de Ensino. Conclusão Trabalhando com as HQ’s na disciplina Metodologia de Ensino, percebemos que as mesmas podem ser bastante úteis para o Ensino de Ciências e Biologia, devendo ser contempladas na formação dos professores dessas disciplinas. Note-se, porém, que o entusiasmo pelo tema deve ser acompanhado de moderação e investigação sobre o que ocorre, de fato, na apropriação desse recurso didático pelos futuros professores. Assim, apropriar-se das HQ’s na qualidade de recurso didático requer nossa atenção para aspectos básicos, a saber: (1) a adequação conceitual, pois a utilização didática da HQ pressupõe uma correção absoluta, salvo nos casos em que o professor deseje utilizar como parâmetro de comparação em relação ao conceito adequado; (2) a linguagem, uma vez que os muitos desenhistas utilizam uma linguagem chula em suas produções, e a imagem, pois os autores constroem personagens que não são facilmente identificados como pessoas ou são animais desconhecidos; (3) os valores, pois os quadrinhos podem emitir juízos muito particulares dos autores. Entendemos que essas provocações são novos objetos que surgem após uma fase de consolidação das HQ’s como recurso didático e devem, portanto, ser objetos de investigação científica, cujos resultados, esperamos, possam contribuir para a formação docente nos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas. Referências BIBE-LUYTEN, S. M. (Org.). 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