A Urgente Criação Anunciada:
A Bipolaridade na Obra de Pedro Paixão
Ana Filipa Sousa Pacheco Rocha Garganta
Orientador de Dissertação:
Professor Doutor Luís Manuel Romano Delgado
Coordenador de Seminário de Dissertação:
Professor Doutor António Pires
Tese submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de:
MESTRE EM PSICOLOGIA
Especialidade em Clínica
2012
Dissertação de Mestrado realizada sob a orientação de
Professor Doutor Luís Manuel Romano Delgado,
apresentada no ISPA – Instituto Universitário para
obtenção de grau de Mestre na especialidade de
Psicologia Clínica
I
NOME: Ana Filipa Sousa Pacheco Rocha Garganta
Nº ESTUDANTE: 11920
CURSO: Mestrado Integrado em Psicologia
ÁREA DE ESPECIALIZAÇÃO: Clínica
ANO LECTIVO: 2011/2012
ORIENTADOR: Professor Doutor Luís Manuel Romano Delgado
DATA: Novembro 2012
TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: A Urgente Criação Anunciada: A Bipolaridade na Obra de Pedro Paixão
RESUMO
O objetivo desta dissertação é reflectir sobre a forma como as perturbações psicológicas
transparecem para manifestações artísticas, através do estudo de um caso contemporâneo sobre os
seus mecanismos de criação e a forma como a criatividade serve como canalizador de angústias e
complexos para o entendimento do mundo externo.
Ilustrarei as idéias propostas com exemplos concretos nos textos de Pedro Paixão
Palavras-chave: criatividade, bipolaridade, psicanálise
TÍTULO DA DISSERTAÇÃO EM INGLÊS: An urgent and announced need for creation: bipolar disorder
on Pedro Paixão´s work
ABSTRACT
The goal of this dissertation is to think how psychological disorders can be expressed in artistic
works. We will go through a contemporary case study and learn about their creation impulses to
see how creativity can conduct anxieties and intern complexes with an understanding of the
external world.
We will illustrate the proposed ideas with concrete examples seen on Pedro Paixão work.
Key-words: creativity, bipolar disorder, psychoanalysis
II
AGRADECIMENTOS
Ao meu irmão Rui, pelo título deste trabalho. Pelo talento imenso que tem e de que o mundo
tanto precisa. Pela pessoa fantástica que é e pela força que me deu para o impulso final.
Aos meus pais. Por sempre acreditarem em mim e por terem abraçado comigo uma ideia
desconhecida e estranha que é isto da Psicologia. Obrigada pelo vosso amor e paciência.
Ao Ricardo, que me acompanha nesta viagem. Pelo espaço, pelas palavras de incentivo e pela
força que me deu quando o desânimo chegava. Hoje estou mais forte e culpa disso é muito tua
também. Obrigada.
Ao meu primo e afilhado Miguel. Todo o meu amor é teu e espero pacientemente pelo dia em que
o possas receber. Demora o teu tempo.
Quero também deixar umas palavras ao meu professor e orientador, Professor Doutor Luís
Delgado. Obrigada Professor por ter recebido tão bem a minha ideia. Pela oportunidade de o ter
tido como professor e agora como orientador do meu trabalho final aqui no ISPA.
Ao ISPA por ter sido a força formadora do meu percurso académico. Pelos professores de
excelência que tive e que tornam esta faculdade na melhor faculdade de Psicologia nacional.
III
INDICE
1.
Introdução…………………………………………………………………………........ 1-5
1.1
Perturbação do Humor: Transtorno Bipolar da Personalidade………………….................1
1.2
Literatura, Criatividade e Psicanálise ……………………………………………………..5
2.
Vida e Obra de Pedro Paixão ……………………………………………………......... 8-27
2.1
“Viver todos os dias cansa” ………………………………………………….. ………......8
2.2
Pedro Paixão na Fotografia …………………………………………………………… 13
2.3
Pedro Paixão na Literatura ……………… ……………………………………………... 17
2.3.1 Mãe…………………………………………………………………………………….....18
2.3.2 Um Verão Particular…………………………………………………...............................23
2.3.3 Boa Noite ...……………………………………………………………………………....25
2.3.4 Muito meu amor…………………………………………………………………………. 27
3.
Considerações ……………………………………………………………………............28
4.
Referências Bibliográficas……………………………………………………………… 29
5-
Anexos ………………………………………………………………………………32 - 48
Anexo 1: Entrevista a Pedro Paixão ao Jornal de Notícias…………......………...34
Anexo 2 …………………………………………………………………………..41
Anexo 3 …………………………………………………………………………..42
Anexo 4 …………………………………………………………………………..43
Anexo 5 …………………………………………………………………………..44
Anexo 6 …………………………………………………………………………..45
Anexo 7 …………………………………………………………………………..46
Anexo 8 …………………………………………………………………………..47
Anexo 9 …………………………………………………………………………..48
Anexo 10: Revisão da Literatura…………………………………………………49
IV
V
1 Introdução
1.1 Perturbação do Humor: Transtorno Bipolar da Personalidade
“A característica mais notável da melancolia, e aquela que mais precisa de explicação é a sua
tendência em se transformar em mania.”
Freud, S. (1917)
Ao iniciarmos este estudo sobre a perspectiva dinâmica da perturbação do humor Transtorno
Bipolar, e para compreendermos o seu modo de funcionamento, teremos como ponto de
partida do enquadramento teórico o auxiliar no diagnóstico DSM-IV (2002) e, como base
essencial da nossa reflexão, o texto “Luto e Melancolia” (Freud,1917).
Ao fazer um estudo sobre o panorama histórico desta perturbação, observamos que a relação
entre mania e melancolia foi, por diversas ocasiões, motivo de reflexão. No entanto, somente
no século XIX Baillarger descreve uma enfermidade como “Loucura em forma dupla”. Já em
1850 J.P. Falret, fala por sua vez numa “Loucura Circular” como uma reunião de três estados:
a mania, melancolia e intervalo lúcido, que se sucederiam. Tanto Baillarger como Falret,
consideravam tratar-se de duas doenças distintas que se alternavam, tanto que somente em
1883 surgiu o trabalho de Ritti a indicar a possibilidade de se tratar de uma doença única
(Becherie, 1985).
Em 1889, Emil Kraeplin, citado em Becherie (1985), classifica esta doença como psicose
maníaco-depressiva, uma psicose constitucional, hereditária e endógena.
O termo psicose maníaco-depressiva foi substituído pelo termo Transtorno Bipolar,
caracterizado no auxiliar no diagnóstico DSM-IV (2002) como uma perturbação do humor.
Assim, actualmente a Psiquiatria, como indicado em Ey (1980), divide o transtorno bipolar
em 4 subtipos:
- Transtorno Bipolar I (TBI), quando ocorrem períodos de mania com humor elevado e
expansivo. Este estado será diagnosticado como TBI quando for susceptível de causar
transtorno às relações sociais e profissionais, com a duração de vários dias. O período de
depressão poderá durar semanas a meses, podendo ser necessária hospitalização.
1
- Transtorno Bipolar II (TBII), existem períodos de hipomania com humor elevado e
agressivo, mas de forma mais suave do em TBI não chegando a provocar prejuízos sociais e
profissionais.
- Transtorno Bipolar Misto (TBM), quando num mesmo dia existem alternâncias entre
depressão e mania. Num espaço muito curto de tempo, o paciente poderá ficar deprimido com
crises de choro, baixa auto-estima e passado pouco tempo, sentir-se capaz de tudo, eufórico e
agressivo.
- Transtorno Ciclotímicos (TC), verifica-se uma alteração flutuante do humor, com numerosos
períodos com sintomas maníacos e depressivos alternados. No entanto, neste caso, não serão
suficientemente graves podendo ser confundidos com personalidade instável, com baixa
resistência à frustração.
Tal como referido em Ey (1980), as características do Transtono Bipolar são muito diferente
de indivíduo para indivíduo, sendo, no entanto, possível estabelecer um padrão em cada
sujeito.
No mesmo autor, são tidas como relevantes as seguintes especificações gerais da doença: as
crises isoladas de mania ou de melancolia, que são maioritariamente mais frequentes quanto
menor a idade do paciente; as crises de mania remitente, sem intervalos de lucidez; as crises
de melancolia remitente com evolução subcontínua; as crises de melancolia intermitentes;
dupla forma circular sem retorno à normalidade; evoluções periódicas alternadas entre mania
e melancolia com retorno à normalidade por períodos longos (Ey,1980).
Este autor refere ainda, que vários trabalhos estatísticos assinalam uma predisposição genética
para a doença, sendo esta a perturbação psicológica em que a componente genética é mais
evidente. De tal forma que, apesar de o Transtorno Bipolar ter uma incidência de 4% na
população geral, se um dos pais tiver este transtorno do humor a possibilidade do seu filho
também o ter é de 25 a 50%, e se ambos os pais tiverem transtorno bipolar essa possibilidade
sobe para 70%.
Esta forte componente endógena foi, durante muito tempo, suprimida pelos psiquiatras, que
procuravam respostas para as crises dos pacientes nas experiências infantis (Ey,1980).
No entanto Freud (1917), em Luto e Melancolia, enuncia a possibilidade de as crises
maníaco-depressivas serem desencadeadas por uma intoxicação química do ego.
2
Esta predisposição genética, chamemos-lhe assim, não explicaria no entanto a forma e a altura
em que a crise se despoleta, dado que, existe uma variabilidade tal de paciente para paciente,
que não se torna possível padronizar.
As considerações dinâmicas que reflectem sobre esta perturbação propõem que o desencadear
do ciclo bipolar esteja relacionado com as respostas que o paciente dá na sua relação mortífera
com o outro. Assim, as fases de mania estariam ligadas a um superar da perda do objecto, o
que acarretaria uma grande parte de energia disponível, não mais investida no objecto
perdido, enquanto que na melancolia a sombra do objecto recai sobre o eu, identificando-o
com o objecto da perda, existindo nas duas fases um retorno à realidade de uma forma
devastadora (Freud, 1917).
Compreende-se, segundo Rivas (2006), a exaltação do humor na mania com aceleração do
pensamento, desestruturação do discurso, com ideias delirantes e de grandeza, euforia
excessiva e incontrolada, e a tristeza profunda na melancolia com limitação da vida activa,
auto-recriminação e culpabilidade desestruturante.
Na melancolia temos um sentimento de vazio por perda do ideal do Eu, levando o sujeito a se
identificar com a face opaca do objecto, segundo Miller (2003), o que gera um
despreendimento do laço libidinal do objecto e a um voltar da libido para o Eu sob a sombra
da culpa e desinteresse geral.
Na mania temos uma transgressão geral da vida social. Essa transgressão na mania, como
referido em Freud (1917), pode ser comparada com uma abolição do controle superegóico e
perda da vergonha, sendo esta, segundo Miller (2003), um afecto primário mediado pelo
supereu em relação ao Outro.
Observa-se sempre, tanto na mania como na melancolia, uma disfunção da culpa e modulação
excessiva do humor, para mais ou menos do que o expectável, em relação ao objecto e com
impossibilidade de responder às exigências do Outro, (Miller, 2003). Segundo este autor, essa
impossibilidade desencadeia uma desestabilização, ou mesmo anulação, da relação que
assegura a posição do sujeito ao objecto na fantasia.
Nesta alternância entre melancolia e mania, (Freud, 1927), refere existir uma opressão do Ego
pelo SuperEu e uma libertação do Eu após essa pressão.
3
Do ponto de vista psicanalítico, o transtorno bipolar, e segundo Miller (2003), é
transestrutural, podendo surgir nas estruturas psicóticas, neuróticas ou perversas e a sua
evolução é muito variada, ficando o desafio ao terapeuta de contornar através do subjetivo, o
que existe de real que possa despoletar e manter as crises de mania ou melancolia.
Estes estudos sobre o transtorno bipolar levam-nos até às considerações de Paulon (19812008) onde identifica na fase maníaca as ideias grandiosas e agradáveis, rodeadas de um juízo
desordenado, com a capacidade de concluir pensamentos diminuída, a necessidade de
exprimir de imediato desejos, o que conduz a um modo de falar exuberante e a um erotismo
acentuado, enquanto que na fase depressiva, o sujeito sente-se miserável, com incapacidade
para tomar decisões, com lentificação do pensamento e incapacidade de concentração.
Muitos destes aspectos poderemos ver e (re)visitar na obra de Pedro Paixão, que
procuraremos analisar de seguida.
“A familiaridade, o hábito impedem a criação. Tenho de estar num sítio que é meu mas não é
meu. Como se fosse uma metáfora da vida: uma passagem - nada me pertence num hotel.”
(Pedro Paixão, Entrevista Antena 3 – Prova Oral)
4
1.2 A Literatura, Criatividade e Psicanálise
“Não sabes se aquilo que tu estás a fazer é verdadeiro, e tem valor e é autêntico ou é só
um fruto da tua loucura.”
(Pedro Paixão, Entrevista Antena 3 – Prova Oral)
A literatura encontra o seu sentido epistemológico no latim littera, que significa letra, isto é, a
palavra escrita e/ou impressa, mas para Danzinger e Johnson (1974), o seu significado vai
muito mais além. Para os autores, ao pertencer ao domínio das artes, e sendo o seu meio de
expressão a palavra e a sua base o domínio verbal, pode ter diversas conotações e
interpretações.
No artigo Introdução ao estudo crítico da literatura, Danzinger e Johnson (1974),
relativamente à questão sobre como poderemos saber o que as palavras escritas realmente
significam, contrapõem que, por um lado apenas o autor saberá, mas que, por outro lado, é
legítimo que cada leitor decida que significado lhes atribuir.
No mesmo artigo, os autores, consideram a literatura não só como manifestação artística, mas
principalmente como forma de imitação, “… como meio de reproduzir ou recriar em palavras
as experiências da vida…”, tendo por base as experiências e vivência do Homem. (Danzinger
& Johnson, 1974)
Segundo Kon (2001), no texto De Poe a Freud – o Gato Preto, a relação entre literatura e
psicanálise têm sido constantes desde as primeiras formulações freudianas, sendo a
capacidade criadora o elo entre o acto artístico e o acto psicanalítico. Pegando nas palavras de
Paul Klee, no mesmo artigo, de que a arte não reproduz o visível, faz visível, o autor
estabelece o paralelo de que, também a psicanálise não reproduz o audível/dizível, ela faz
audível/dizível.
Esta ideia é também referida por Willemart (2009) ao mencionar que a prática da arte abre o
artista para o que existe de novo no mundo e que a análise abre o analisando para o seu
mundo desconhecido.
5
Como vemos em Carvalho (2001), no texto Pulsão e Simbolização: Limites da Escrita, o
número de pessoas que procura encontrar uma forma agradável de expressão e transformação
dos seus problemas através da pintura, da escrita literária, da música e de outras actividades
criativas, é imensamente significativo, embora esse possa não ter sido o principal motivo que
as levou a criar. Já Freud no texto “Os Institutos e suas Vicissitudes”, citado por, Carvalho
(2001), relacionava os processos criativos ao conceito de sublimação, onde estes tinham um
papel de organizador construtivo da psique, apaziguando o seu sofrimento.
A criatividade não elimina o sofrimento que, muitas vezes, se encontra na base de uma
manifestação artística mas esta relação entre arte e psicanálise, neste caso em particular a arte
literária, é considerada fundamental pela autora para um entendimento de como pode ser para
alguns, uma forma de evitar a realidade e para outros uma fonte de força criativa (Carvalho,
2001).
Partindo deste pressuposto, procuraremos conhecer, interpretando à luz da dinâmica da sua
personalidade, parte da obra literária de um escritor contemporâneo, Pedro Paixão.
Foi diagnosticado ao autor o transtorno bipolar da personalidade no início da sua vida adulta,
antes de o mesmo ter qualquer livro publicado. Esse diagnóstico foi sempre tornado público
por Pedro Paixão, existindo por isso diversos testemunhos e entrevistas disponíveis, que
contribuirão para um maior entendimento da nossa parte sobre os seus escritos. Entre os quais
destacamos a peça jornalística sobre o Transtorno Bipolar, “Grande Reportagem SIC: Mentes
Inquietas”.
Nesta reportagem, a Dr.ª Luísa Figueira, Directora do Serviço de Psiquiatria do Hospital de
Santa Maria, indica com base na sua experiência que, ao mesmo tempo que o Transtorno
Bipolar pode facilitar a criatividade em sujeitos criativos, pelas percepções mais claras,
pensamento mais acelerado e mais eufórico, pode também ser um factor precipitante de um
episódio maníaco, pois “mexe com os afectos, com as emoções”.
Essa criatividade exuberante, quando a doença se manifesta de forma maciça, é bloqueada
pelas crises graves de depressão e euforia, como indica o Dr. José Manuel Jara, Director do
Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, na mesma reportagem.
6
Torna-se então pertinente a questão de Brandão (2001): “Mas então pode a literatura ser um
sintoma?”
Brandão (2001) diz-nos ser possível e expectável que assim seja, mas que para se falar do
escritor, “deve-se pensar numa escrita-inscrição, em que ele constitui, não de forma
definitiva, pois o escrever se confunde com o viver, pela via do desejo.” Para tal, é essencial
articular a literatura e a psicanálise dado que, segundo o mesmo autor, o acto de escrever, pela
sua complexidade, leva o escritor a se questionar sobre a função desses escritos nas suas
vidas, dando o exemplo de Marguerite Duras: “… não se pode escrever sem a força do corpo.
É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. (…) Não é apenas a escrita,
o escrito é o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães.”
A psicanálise debruça-se sobre o texto, “o texto escrito, reescrito, copiado, invertido”, que
constitui a verdade de cada sujeito e que “o psicanalista, que tem uma escuta especial e vai
pontuando, sublinhando, reescrevendo, por sua vez, esse texto flutuante.” O que o
psicanalista ouve, nesse sujeito, tem uma textura diferente do que o sujeito ouvido pelo
analista literário. É colocado num outro lugar, como ser vivo, como presença do aqui e agora,
guardião de um discurso. (Brandão, 2001)
Será importante salientar que as reflexões aqui apresentadas são somente formas de pensar o
entendimento de uma manifestação artística, não pretendendo reduzir a sintomas uma obra de
inigualável valor para a literatura contemporânea, tomando assim como nossas as palavras de
Brandão (2001):
“não procuro colocar o escritor no divã através de uma psicobiografia que acaba por reduzir
a obra a categorias clínicas”
7
2- Vida e Obra de Pedro Paixão
2.1 “Viver todos os dias cansa”
Se tu soubesses, se tu soubesses… o que eu sofro, a solidão em que vivo, o tormento que
é para mim escrever… não podes adivinhar como são suaves e mornas as tuas palavras.
(Pedro Paixão, Entrevista Antena 3 – Prova Oral)
Pedro Paixão gosta de se definir por aquilo que não é: não é membro de qualquer associação,
clube ou igreja, não é militante de nenhum partido, nunca votou, nunca aprendeu música Não
tem tendência para visões ou alucinações. É casado e tem um filho, do 2º de quatro
casamentos. (Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas, 2009)
Aos 19 anos foi-lhe diagnosticada a doença maníaco-depressiva, hoje chamada Transtorno
Bipolar, e aos 29 anos doutorou-se em Filosofia na Universidade Católica de Lovaine
(Bélgica), escrevendo a sua tese de doutoramento em 2 dias. Depois disso mergulhou numa
depressão profunda, “sem fundo”. Aos 31 anos inicia a medicação para controlar as “descidas
de humor”. (Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas, 2009)
Nesta “Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas”, (2009) Pedro Paixão faz uma
retrospectiva do
seu percurso. A maneira como fala da sua vida, da forma como vai
construindo a sua obra, revela uma capacidade enorme de entendimento do seu modo de
funcionamento. Esta capacidade torna, por um lado, o seu dia-a-dia mais doloroso, mais
questionável, mas por outro lado permite-nos pensar que o autor direcciona a sua obra de
acordo com os estados de humor, como veremos mais à frente.
Pedro Paixão escreveu o seu primeiro livro aos 36 anos, em 1982. Quinze anos depois
contava com mais 22 livros, 2 álbuns de fotografia, duas peças de teatro e um texto para
ópera, além de ter escrito também guiões para filmes.
Em discurso directo para a “Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas”, diz haver alguns
deles, dos livros, que escreveu em 3 dias sem se lembrar minimamente do que está lá escrito.
Nos finais dos anos 80, funda, juntamente com Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, o
jornal Independente e, mais tarde, também com Miguel Esteves Cardoso, cria a empresa de
publicidade Massa Cinzenta.
8
Foi professor universitário de Filosofia, aposentando-se em 2005.
Na reportagem televisiva Pedro Paixão diz que, no início, gostava muito de dar aulas. Que dar
aulas é de certa forma um teatro, um espectáculo. “Depois passou a ser muito doloroso ter as
pessoas a olhar para mim, a ouvir o que eu tinha para dizer.” Indica ainda que a sua
aposentação está ligada à doença, pois existem muitas fobias.
Passou então a dedicar-se integralmente ao estudo e à escrita: “Tenho aquela coisa de ter de
trabalhar todos os dias, sempre, sempre, sempre. Só que depois fico doente, paro. Mas
enquanto não fico doente, estou sempre a estudar. Graças a Deus gosto imenso. Desde tão
pequenino, desde tão pequenino. Até acho estranho A minha vontade de saber é tão grande.
Interesso-me por tantas coisas tão variadas que nunca chego ao fundo de nada.”(Pedro
Paixão, 2009, Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas)
Consideramos que estas peças de Media são fundamentais para uma maior compreensão da
obra de Pedro Paixão, pois leva-nos a reflexões riquíssimas sobre o transtorno bipolar na
primeira pessoa.
Pelo excerto em cima, por exemplo, podemos ver como o sujeito retracta como “doença” os
períodos de melancolia, quando o seu processo interno está empobrecido, como visto em
Freud (1917), por sentimentos de desânimo e tristeza profunda.
Para Pedro Paixão, no entanto, a questão mais pertinente sobre a sua personalidade é o
problema de identidade: “tu és aquele que rebenta as portas, que é capaz de tudo, que faz
tudo em 5 minutos, que domina o mundo, que não tem freio. És esse ou és aquele que está
enviado na cama há 15 dias, sem conseguir ver luz? É fisicamente doloroso, como se o teu
corpo estivesse possuído por fogo” (Pedro Paixão, 2009, Grande Reportagem SIC: Mentes
Inquietas)
É assim sobre as fases melancólicas que Pedro Paixão mais canaliza a sua criatividade, pois é
sobre esta fase que existe uma reacção à perda do objecto amado, como visto em Freud
(1917), uma perda de natureza ideal e sem consciência de o que perdeu do objecto.
Em Luto e Melancolia (Freud, 1917) essa perda desconhecida é vista como um trabalho
semelhante ao do luto embora não se consiga perceber o que o sujeito perdeu na realidade,
sendo completamente enigmática, o que leva a uma diminuição da auto-estima e a um elevado
empobrecimento do Ego e o sujeito vê-se representado como o seu ego: desprovido de valor,
moralmente desprezível e incapaz de qualquer realização. A melancolia – depressão
endógena, sabe que lhe falta alguma coisa mas não sabe o que lhe falta.
9
Pomos como hipótese a ideia de que será nos momentos iniciais das fases melancólicas,
quando o Ego ainda não está completamente dominado, isto é, quando o Ego ainda não
sucumbiu ao “complexo”, (Freud, 1917), que a escrita de Pedro Paixão retracta a forma como
a energia erótica, por um lado retrocede à identificação, e por outro lado, sob a influência do
conflito da ambivalência de amor ódio, regressa à etapa do sadismo (fase oral).
A escrita funcionará aqui como depósito, como recipiente de onde o sujeito poderá sair mais
leve, como podemos ver numa hipótese discutida em Zimerman (1998).
Nesse sentido, Pedro Paixão escreve, como diz na Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas
(2009), na posição cosmonauta: “A maneira de se escrever, a maneira de pensar varia
conforme a posição em que tu estás. Não é por acaso que Freud mandava as pessoas
deitarem lá no sofázinho. As ideias correm de maneira diferente.”
O autor procurará no papel, ou no leitor colectivo, um continente adequado, que o segure,
como forma de não reprimir o conteúdo, não ficando como mau continente de si mesmo. No
entanto, este depósito não serve como continente pois não promove o restabelecimento de
uma relação objectal e assim, tal como refere Zimerman (1998), a função alfa não está
assegurada pois as angústias não são devolvidas de forma desintoxicada, não sendo possível
dar nome às emoções primitivas, preconcepções, conduzindo o autor numa espiral de busca de
um sentido que não consegue compreender, um “terror sem nome”. (Zimerman, 1998)
“Escrever faz-se na solidão e a solidão é cada vez maior. É uma doença.
Eu escrevo para escapar, para fugir do mundo porque o mundo é insuportável, é uma ferida
aberta. Protejo-me escrevendo, dando sentido àquilo que não tem sentido absolutamente
nenhum que é quando não estou a escrever e estou 3 semanas deitado na cama, sem ver luz
nenhuma e a tomar comprimidos à espera que aquilo passe.” (Pedro Paixão, 2009, Grande
Reportagem SIC: Mentes Inquietas)
Podemos pensar aqui que a escrita funcionará como uma “fuga para a frente” e que, por não
ser compreendida em relação, acarreta uma enorme culpabilidade. Esta culpa avassaladora,
tende a que o escritor, quase como se de uma sublimação se tratasse, procure atribuir a
“outro” que não a si a responsabilidade do que escreve, como algo que não controla.
10
Brandão (2001), diz “a percepção da escrita como uma criatura diferente de nós próprios
que nos entrou no corpo e que nos adoece, que produz, dentro em nós e apesar de nós, efeitos
variados, retira do sujeito toda a culpa, poupando-o ao cumprimento social.”
Vemos este mecanismo não só em Pedro Paixão: “É como se fossem 2 pessoas separadas,
diferentes. Às vezes fico completamente espantado de ter escrito, no máximo foram os meus
dedos. Agora eu não. Eu quando estou a escrever não estou a pensar. Se pensar não consigo
escrever. E há sempre uma mulher.” (Pedro Paixão, Entrevista Antena 3 – Prova Oral), como
também em Hélia Corrêa:“Não sou escritora. Sou impressora. Contento-me em passar para o
papel algo que no meu cérebro, ou onde quer que seja, se formou, por mecanismos criadores
que não alcanço” (Brandão, 2001)
É expectável que, ao longo de toda a obra de Pedro Paixão, os relatos sobre a sua melancolia
sejam mais evidentes, e até que seja esta que seja considerada pelo autor como “a doença”,
dado que, como vemos em Freud (1917), nas alturas que surgem episódios de natureza mais
maníaca, o “complexo” é dominado pelo ego, existindo uma enorme descarga psíquica, que se
torna desnecessária ao Self, e que conduz a uma acção desenfreada.
Quando se dá essa acção desenfreada, a pessoa não consegue funcionar. O pensamento está
constantemente a fugir para vários temas e o discurso é incoerente. (Dr.ª Luísa Figueira,
Directora do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria na Grande Reportagem SIC:
Mentes Inquietas, 2009). Esta descompensação é também percebida pelo próprio escritor:
“É demasiado rápido. O que te está a passar pela cabeça é demasiado rápido, portanto não
podes fixar, não podes escrever” (Pedro Paixão, 2009, Grande Reportagem SIC: Mentes
Inquietas)
11
“Talvez por causa da doença, não tive uma vida muito fácil mas não a trocava por mais
nenhuma. Apesar de ter sofrido tanto, tenho muito a agradecer à minha doença, porque foi
por causa da minha doença que me doutorei, que escrevi os livros que escrevi, tive as paixões
que tive. Há um elemento espiritual muito forte. É possível que Jesus Cristo tenha sido
bipolar. Uma pessoa vai ver no Novo Testamento, as mudanças de humor dele são imensas e
muito fortes.
(ri-se) Isto eu nunca ouvi em lado nenhum, isto é uma tese nova. É o meu próximo tema, que é
para ganhar mais, vender mais livros do que aquele aldrabão do Dan não-sei-quê.”
(Pedro Paixão, 2009, Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas)
12
2.2 Pedro Paixão na Fotografia
Poderia pensar-se que durante os episódios maníacos a criatividade do escritor ficaria à
deriva, mas a percepção de Pedro Paixão sobre si próprio leva-o a refugiar-se no imediato, na
fotografia, o que enquanto leitor da sua obra não conseguimos deixar de admirar.
O escritor diz em entrevista ao Jornal de Notícias, (Anexo 1), que “uma imagem é muito
diferente das palavras…. as palavras vêm do silêncio e voltam ao silêncio, não se deixam
capturar, fixar.. A coisa fotografada toma-nos por completo numa espécie de transe…. Eu
não estou numa relação directa com o que é fotografado. Tenho uma máquina pelo meio que
me serve de escudo ou máscara.”, dizendo ainda, no início da mesma entrevista, que se divide
entre a escrita e a fotografia, entre Portugal e Nova Iorque.
É possível pensarmos nesta frase como o estabelecer de paralelos entre os períodos que o
escritor atravessa: na melancolia a escrita e Portugal, país de “O Encoberto” de Fernando
Pessoa, onde o futuro é incerto e o presente nubloso; na mania, a fotografia e Nova Iorque, a
cidade que nunca dorme.
Nestes momentos, Pedro Paixão, dispara instantaneamente detalhes de mulheres, de espaços,
do que lhe capta a atenção, usando máquinas polaroid e, aparentemente, sem fio condutor.
As fotografias são muitas vezes desfocadas, simplistas, sem muito espaço para a
interpretação ou reflexão. É o que se vê. Nada mais. Possível imagem de um desinvestimento
no mundo objectal, revela talvez que o entendimento do outro deixa de ser relevante.
“A última mulher dos meus livros é uma pessoa que eu só vi uma vez e que eu fotografei.
Levei-a para um hotel, ela despiu-se e eu comecei a fotografá-la. E a única coisa que eu
fotografei… lindo, lindo, lindo… ela tinha uma cicatriz no meio do corpo, e eu tirei 30, 40
fotografias à cicatriz. (…)
Eu estou ligado a ela por causa da cicatriz. Não sei o que é. A cicatriz é uma metáfora
fabulosa. A cicatriz pode ser muita coisa. Uma metáfora da vida. Nós somos uma cicatriz.”
(Pedro Paixão, Entrevista Antena 3 – Prova Oral)
Por este excerto parece existir uma forma quase caótica, impulsiva de conduzir a criatividade,
como visto em Abraham (1924) :“Mas é característico que esse ato prazeroso de receber
novas impressões correlaciona-se com um ato igualmente prazeroso de ejetá-las quase
imediatamente após terem sido recebidas”.
13
Podemos assim pensar estar perante um dos momentos em que o desinvestimento na relação
objectal surge, Freud (1917), desinteressando-se pelo outro e existindo simultaneamente uma
identificação projectiva imediata: o que o outro representa é tão insuportável que o sujeito
identifica-se com o que advém do seu interior: uma cicatriz imensa que não consegue reparar.
Esta condução da criatividade em Pedro Paixão poderá surgir como forma de impedir um
surto psicótico, constituindo-se assim como sujeito e objecto na criação de um enlace entre o
simbólico e o imaginário, tal como nos mostra Jacques Lacan, citado por Brandão (2001), no
estudo que fez sobre a obra de James Joyce, tendo por base um possível diagnóstico de
psicose.
Procuraremos de seguida encontrar nas fotografias em anexo (Anexos 2- 9) exemplos que
relatem a forma como esta vertente artística é utilizada por Pedro Paixão.
Ao olharmos para as diferentes fotografias, a primeira percepção que temos é a procura que o
autor tem pelo detalhe. A maior parte da sua obra fotográfica assenta no pormenor, no
detalhe, em fragmentos, raramente existindo uma forma completa de algo ou de alguém.
Esta forma remete-nos de imediato para um mecanismo de fragmentação do Eu, de clivagem,
mecanismo que, por ser comum a várias estruturas, poderá ter uma maior evidência no
transtorno bipolar pois no texto “O Fetichismo” (1927), Freud refere o mecanismo de
clivagem como tendo origem num processo onde duas correntes opostas convivem lado a
lado, mas que não são capazes de se influenciarem ou reconhecerem: uma corrente aceita a
realidade enquanto a outra corrente nega essa mesma realidade.
Este mecanismo, é comum a várias estruturas sendo verificado tanto na psicose como noutros
estados semelhantes às neuroses.
Podemos assim pensar nestas imagens captadas por Pedro Paixão como fragmentos oriundos
de clivagem, provocadoras de conflito interno e consequentemente produtoras de sintomas.
Este facto torna-se particularmente interessante quando pensamos que a “procura” ou
interesse de Pedro Paixão pelos possíveis fragmentos desencadeadores ocorra numa fase mais
maníaca e, aparentemente, menos introspectiva, fazendo pensar ser o seu inconsciente que os
procura numa possível tentativa de catarse.
14
Detalhes do corpo feminino são dos principais temas procurado pelo autor, como vemos nos
anexos 2, 3, 5, 6 e 9, embora seja também evidente a enorme diferença de conteúdo entre elas.
Para basear a nossa análise, partimos do pressuposto de que, segundo Mandet (1993), na
Psicanálise o corpo é referenciado como representação do inconsciente, investido numa
relação de significação, construído com base em fantasmas e histórias do sujeito.
No Anexo 5, Pedro Paixão fotografa um seio de uma mulher. Somente um seio. A mulher
percebe-se deitada numa cama remexida, com vida, que pode ser entendida como um anseio
por um “envelope narcísico”, a noção Eu-Pele de Anzieu (1989), que assegurasse bem-estar,
que retivesse as boas experiências enquanto continente. Em contraponto, vemos em Anexo 9 o
retrato também de um seio mas enquadrado de uma forma que apesar de mostrar mais
fragmentos da mulher (mais pele, cabelo, braço), se assemelha a um corpo sem vida,
inanimado, vazio.
Esta representação de um abandono feminino muito fracturante, também vistos em Anexo 2 e
6, pode indicar-nos que, segundo o mesmo autor, o Eu-Pele não se formou completamente,
prejudicando o desenvolvimento libidinal do autor pois, “a constituição do Eu-Pele é uma das
condições da dupla passagem do narcisismo primário ao narcisismo secundário e do
masoquismo primário ao masoquismo secundário” (Anzieu, 1989).
No Anexo 3 percebe-se uma tentativa de captar o corpo sexual, tentativa porque, como nos
outros exemplos, é somente um fragmento estático que se imagina difícil de ser percorrido por
pulsões, uma libido talvez incompleta, onde o corpo biológico poderia reagir mas onde o
corpo pulsional não tem lugar.
O corpo pulsional estrutura-se na relação com o outro (Freud,1915), e apesar de a pulsão ter
origem no corpo biológico, é no destino dessa pulsão que se encontra significado.
Esta representação do corpo feminino sempre fragmentado, ou inteiro mas sem face,
revelando indiferença ao fotógrafo (Anexo 6), pode remeter-nos para uma impossibilidade de
reter os imagos parentais, o que resvala para crise identitária que envolveria não só o corpo do
sujeito mas também os referenciais intra-psíquicos, o que, quando não existe um narcisismo
bem estabelecido, pode levar a um colapso pela invasão da angústia da fragmentação (Penot,
1995).
15
Estas imagens remetem-nos também para as considerações de Freud (1921), no artigo
“Psicologia de Grupo e a Análise do Ego), sobre a elaboração conceptual do mecanismo de
identificação. Este surgirá a partir da acção narcísica sobre o auto-erotismo que possibilitaria
posteriormente o aparecimento de um eu-organizador, com capacidade de estabelecer ligações
de afecto. Esta capacidade, mediante a temática consistente das fotografias de Pedro Paixão,
parece estar bastante afectada e que o autor parece reflectir com os seus “disparos”
automáticos.
Nos restantes exemplos em anexo vemos representações de bloqueios, obstáculos, situações
sem saída (Anexo 4), de solidão, cegueira, uma neblina que impede a percepção (Anexo 7) e
de um rosto/sujeito deformado por um vidro tosco, uma confusão no reflexo de identidade.
Esta Constituição do Eu confusa leva-nos a pensar tratar-se de uma constituição onde os
limites entre eu/outro e dentro/fora estão debilmente definidos, centrando-se aqui, através da
fotografia, a problemática da unidade do eu (Hornstein, 1989).
Isto é, ao contrário da escrita, que veremos em seguida, e segundo Hornstein (1989),onde
Pedro Paixão se centra na problemática do valor do eu e da auto-estima, ainda que num
contexto edípico débil, aqui na fotografia conseguimos aceder à questão crucial da psicose: a
fragmentação do eu e as suas representações.
16
2.3 Pedro Paixão na Literatura
Segundo críticos Editora Gryphos, a obra de Pedro Paixão poderá ser dividida em duas fases,
na primeira é dada uma maior relevância a relacionamentos ocasionais, de forma muito
introspectiva, e uma crítica subliminar ao dia-a-dia de uma classe média-alta, enquanto que
numa 2ªfase, que é marcada pelo 11 de Setembro, vê-se uma maior preocupação com o
mundo e com a violência global.
Pedro Paixão (de)escreve momentos aparentemente simples, mundanos, de preposições
curtas, quase telenovelísticos, entre diversas reflexões filosóficas eloquentes sobre as relações,
a solidão e a identidade.
Existe na sua escrita uma ficção misturada com relatos autobiográficos que parecem dissipar
fronteiras entre ficção e realidade, dando ao escritor cenários alternativos à realidade.
Em género de prosa poética, Pedro Paixão leva o leitor a uma viagem por aforismos e
paradoxos, que resultam muito bem nos livros de textos curtos, como veremos mais em
adiante mas que se torna em filosofia caótica nos textos maiores, como em Boa
Noite (1993), Muito, meu amor(1996) , PortoKyoto (2001) ou Rosa Vermelha (2008).
Procuraremos aqui, enquanto leitor, encontrar esse paralelismo entre os estados de espírito e
humor do escritor e os seus escritos, tendo como base a premissa da multiplicidade das
personagens referida em Carvalho (2001), a qual assenta na perspectiva freudiana de que as
tentativas de representação na linguagem, apesar de parciais, dada a divisão entre consciente e
inconsciente e a interferência entre o que dizemos e o que é excluído do discurso, incluem
sempre “núcleos de verdade” inerentes ao processo de representação textual do eu.
Estas identidades textuais constituem assim, para a autora, formas indissociáveis da posição
subjectiva da pessoa real do escritor.
17
2.3.1 Mãe
No livro Vida de Adulto (1992), página 79, no texto intitulado “Mãe” encontramos várias
considerações da personagem, novamente não identificada, relativamente à sua mãe, sobre as
quais partiremos para a nossa análise.
“Mãe
Finalmente percebi que a minha mãe morrerá.
Há dois dias que tento ligar para casa dela e não consigo.
O meu filho, que tem um ano e sete meses, deve ter desligado um dos telefones da casa dos
avós e ainda ninguém reparou. Descobri isto assim: quando a minha mãe morrer eu vou
querer falar com ela ao telefone e não vou poder.
Há muitos anos que ouço a minha mãe dizer-me, nas ocasiões mais despropositadas, que um
dia morrerá.
Afinal havia um propósito. Hoje percebi que o que ela me queria dizer nada tem a ver com a
tristeza simples de toda a gente acabar um dia por morrer. Do que ela me queria avisar é que
um dia o mundo seria mil vezes pior que um deserto, porque haveria gente mas ninguém com
quem eu quisesse falar como falo com a minha mãe. Como todos os avisos, também este
chega tarde demais.
Não sei porque penso nisto e porque penso assim. Lembro-me pouco da minha mãe e só
suporto a sua companhia por pouco tempo. Quando a vejo estou sempre de fugida, como se
tivesse muito medo de ficar, e detesto quando à despedida ela me pede para a beijar. Tenho
de fazer um esforço. Há uma luta entre nós que nunca foi resolvida.
A minha mãe não é boa nem má, é justa, que é a coisa mais terrível. Talvez tenha sido ela
quem me fez descobrir o amor, não me lembro, mas sei que foi a primeira pessoa por quem
senti ódio, isso sim. Foi há muito tempo e já passou. Agora estamos em paz. Perdoo-lhe o ter
exigido de mim o impossível.
Há sempre melhor e pior que tu, dizia-me vezes sem fim.
Uma boa nota na escola era sempre recebida por uma pergunta que a punha em relação
com a dos outros. E se eu era sempre o melhor aluno era porque não era difícil. Depois é que
se veria. Esse dia nunca chegou e o impossível é mesmo impossível e assim é que está bem.
18
A minha mãe, que toda a gente considera uma óptima mãe e eu sei que é a melhor mãe, quis
que eu fosse o que ela não foi, mas sem esperança alguma. Não me lembro dos seus carinhos,
lembro-me do que sofria quando me deixava em casa dos meus avós numa aldeia perdida
onde eu chorava noite e dia com terror de ela não voltar
Talvez exagere, mas isso faz parte do que sinto, e não quero que seja de outra maneira.
A sua admiração ia para autores consagrados ou para pessoas desconhecidas que
realizavam proezas ridículas. A vida, aos seus olhos, era triste e sem remédio. E os seus olhos
foram durante muito tempo os meus. Agora estou quase liberto, mas agora já quase não vale
a pena. A sua moral pesou sobre o meu corpo como uma laje de pedra. No dia seguinte a ter
dormido pela primeira vez com uma rapariga sem a desculpa do amor, o que só consegui por
ter bebido, tremia e só pensava na minha mãe. Agora não me arrependo. Estou crescido,
estou pior, já não sou o menino da minha mãe.
No fundo, vejo-o agora, fiz o que ela quis que eu fizesse. E foi bom o caminho que escolheu
para mim. A educação é o que vale. Os prazeres, pequenas ilusões para passar o tempo. A
vida, um intervalo entre o que se não deve saber e o que é. Devo-lhe muito. Vive em mim. Não
quero mais ninguém.
É tarde. O resto fica para depois. Obrigado por seres exactamente assim, minha mãe.”
Neste texto, de uma profundidade avassaladora, conseguimos identificar um medo terrível da
perda do objecto primário, um luto imaginário, que Freud (1917) relaciona com a perda
objectal efectiva mas no inconsciente, provocando um imenso abandono emocional
perspectivado pelo sujeito, “Finalmente percebi que a minha mãe morrerá”; “…quando a
minha mãe morrer eu vou querer falar com ela ao telefone e não vou poder.”
Em Luto e Melancolia (Freud,1917), vemos que o que consome o ego na melancolia não é
visível, é sim uma perda desconhecida, que faz activar um trabalho em tudo semelhante ao
luto mas onde não se consegue distinguir o que absorve o sujeito.
Aqui, o sujeito mostra-se desde muito cedo assombrado por um fantasma transversal, “Há
muitos anos que ouço a minha mãe dizer-me, nas ocasiões mais despropositadas, que um dia
morrerá.” que trespassa para o seu objecto interno que origina, (Freud,1917), uma queda da
sua auto-estima aliada a um empobrecimento egóico em enorme escala e a impossibilidade de
estabelecer algum tipo de relação para além do seu objecto primário: “Do que ela me queria
avisar é que um dia o mundo seria mil vezes pior que um deserto, porque haveria gente mas
ninguém com quem eu quisesse falar como falo com a minha mãe.”
19
Como referido em Freud (1917) um conflito de ambivalência, vivido como um amor pelo
objecto que não é renunciado quando o objecto o é, permite que o ódio entre em rivalidade
com o ego que opera a identificação narcísica. Assim, parte da catexia retrocede à
identificação e a outra é transportada à etapa do sadismo, que se manifesta na crítica:
“Lembro-me pouco da minha mãe e só suporto a sua companhia por pouco tempo.”, “Há
uma luta entre nós que nunca foi resolvida.”, “A minha mãe não é boa nem má, é justa, que é
a coisa mais terrível.”
Esta luta nunca resolvida com o objecto primordial remete-nos automaticamente para as
considerações de Klein (1935) sobre a mobilização de defesa maníaca como forma que o
sujeito tem de impedir ataques aos seus objectos e de lidar com sentimentos de culpa e
desespero: “A defesa maníaca assume tantas formas que, com certeza, não é fácil postular
um mecanismo geral. Mas acredito que temos realmente esse tipo de mecanismo (ainda que
suas variedades sejam infinitas) na dominação dos pais internalizados enquanto, ao mesmo
tempo, a existência do mundo interno é depreciada e negada” (Klein, 1935).
Para Klein (1933), este mecanismo de defesa tem por base um superego primitivo, mais cruel
e implacável do que o mais tardio, que pode conter uma violência excessiva. Esta violência
ocorre na altura em que a criança faz as primeiras introjecções orais do seu objecto, sob a
primazia de impulsos e fantasisas pré-genitais.
Neste texto, o escritor (re)vive este mecanismo de forma muito intensa, “Talvez tenha sido ela
quem me fez descobrir o amor, não me lembro, mas sei que foi a primeira pessoa por quem
senti ódio, isso sim.”
A relação maníaca com os objectos, presente tanto na posição depressiva como na posição
maníaca do sujeito, caracteriza-se por uma tríade de sentimentos, muito presentes neste texto:
o controle, triunfo e desprezo. (Klein, 1933).
Esse controle e trinfo são para Klein (1933) formas de negar a dependência e sentimentos
depressivos, que o escritor faz questão de esclarecer em “A vida, aos seus olhos, era triste e
sem remédio. E os seus olhos foram durante muito tempo os meus. Agora estou quase
liberto…” e “Estou crescido, estou pior, já não sou o menino da minha mãe.”.
20
No desprezo pelo objecto, o sujeito procura negar o facto de o valorizar, agindo como defesa
contra a perda e culpa e encontramos essa referência no texto de Pedro Paixão, nas seguintes
passagens: “A minha mãe não é boa nem má, é justa, que é a coisa mais terrível.”; “A sua
moral pesou sobre o meu corpo como uma laje de pedra” e na fuga constante do objecto:
“Lembro-me pouco da minha mãe e só suporto a sua companhia por pouco tempo. Quando a
vejo estou sempre de fugida, como se tivesse muito medo de ficar, e detesto quando à
despedida ela me pede para a beijar. Tenho de fazer um esforço.”
Outra característica que podemos interpretar deste texto de Pedro Paixão, e com base na
análise das considerações de Zimerman (1998), é a aparente inexistência da função alfa no
continente, com a devolução constante de uma angústia de aniquilação:“Há muitos anos que
ouço a minha mãe dizer-me, nas ocasiões mais despropositadas, que um dia morrerá.”. Um
objecto primordial não contentor que deixa o conteúdo da criança à deriva, não lhe dando
significando , pelo contrário, intensificando-o: “Não me lembro dos seus carinhos, lembro-me
do que sofria quando me deixava em casa dos meus avós numa aldeia perdida onde eu
chorava noite e dia com terror de ela não voltar”
Esta reflexão do escritor devolve-nos, de uma forma muito crua, o fantasma da perda por
morte do objecto amado, característica marcante da melancolia (Freud, 1917). Segundo o
mesmo autor, esta perda remete para uma regressão à fase oral e, consequentemente, a um
conflito pela ambivalência de sentimentos de amor e ódio pelo objecto, isto é, o amor pelo
objecto não é, nem pode ser, renunciado mas o objecto em si é, “No dia seguinte a ter
dormido pela primeira vez com uma rapariga sem a desculpa do amor, o que só consegui por
ter bebido, tremia e só pensava na minha mãe. Agora não me arrependo. Estou crescido,
estou pior, já não sou o menino da minha mãe.”.
Essa renúncia declarada em papel, é no entanto tão insuportável para o sujeito, que, numa
tentativa de fugir ao confronto interno e de sanar a hostilidade directa com o outro, (Freud,
1917) permite-nos pensar que o escritor obriga-se a reparar o que foi escrito: “E foi bom o
caminho que escolheu para mim. A educação é o que vale.”, Devo-lhe muito. Vive em mim.
Não quero mais ninguém.”, terminando o seu ensaio de forma abrupta, com pontuação rígida,
como se não quisesse dar margem para mais pensamentos: “É tarde. O resto fica para depois.
Obrigado por seres exactamente assim, minha mãe.”
21
A mãe, a mulher, toma um papel preponderante na obra de Pedro Paixão, de tal forma que,
pegando no texto Mãe e na personificação do escritor na voz de uma mulher, podemos pensar
na existência de uma omnipotência materna, impeditiva da relação triangular, o pai está
ausente da obra de Pedro Paixão, deixando-o num registo quase fusional.
22
2.3.2 Um Verão Particular
No excerto do texto Um Verão Particular, do livro Amor Portátil (1999), (pp. 139 a 148), o
escritor, na pele de uma personagem não identificada, transporta o leitor para o centro de um
episódio bipolar.
“No verão passado não estive cá, endoideci. (…) Andei a fugir de lugar para lugar, à
procura de onde pudesse ficar, a fugir da dor. Mas levava-a comigo, a dor, não distou ou
daquilo, mas uma pura dor, a absoluta tristeza (…) de não começar nem acabar, de
continuar só, é difícil de dizer, de explicar.
(…) Eu rebolava-me no chão da sala…e não tinha qualquer controlo pelo que passava por
mim, que era terrivelmente assustador, nem que não fosse porque fugia a qualquer controlo.
(…) E de repente passou. Assim como veio assim passou…
(…) A minha mulher nunca me deixou – eu odiava-me demasiado para poder ficar comigo … porque tinha demasiado medo do que ía acontecer, sempre prestes a acontecer e decerto
horrível. Estive sempre acompanhado pela minha mulher ou pelo meu amigo e demasiado
aflito para poder avaliar do meu egoísmo, que era imenso.
Não foi a primeira vez que isto me aconteceu. Isto, quero dizer, o deixar de estar aqui, o
endoidecer (…) eu não conseguia ler, quanto mais escrever, quanto mais amar … porque o
que quer que eu pensasse era infalivelmente, incorrigivelmente associado à maior dor.
(…) Qualquer coisa … fazia disparar uma sucessão de pensamentos dolorosos que não
conseguia controlar. Mais tarde, quando os procurava reaver – para os poder relativizar,
compreender a sua lógica – não me lembrava de nenhum. Eles só existiam no preciso
momento em que tomavam conta de mim para me assustarem e depois não voltavam mais.
Eram cobardes demónios.
(…) trazia na cara a aflição, não de ter perdido isto ou aquilo, mas de não saber mais o que
me ligava ao mundo…
Vemos retratada neste excerto, de forma muito explícita, a teoria de Fairbain (1952) sobre o
processo da melancolia. Quando a personagem refere que se odeia demasiado para ficar
consigo próprio, pensamos na introjecção da malignidade do objecto externo, incorporando
todos os defeitos e maldade no Self.
23
Essa maldade é desconhecida do sujeito, “…a absoluta tristeza (…) de não começar nem
acabar, de continuar só, é difícil de dizer, de explicar…”; “… eu não conseguia ler, quanto
mais escrever, quanto mais amar … porque o que quer que eu pensasse era infalivelmente,
incorrigivelmente associado à maior dor.”, remetendo-nos novamente para o “terror sem
nome” de Bion, referido por Zimerman (1998), : “… trazia na cara a aflição, não de ter
perdido isto ou aquilo, mas de não saber mais o que me ligava ao mundo.”
Essa introjecção orbitrária, presente na formação do Objecto Interno e do Superego, induz
uma culpa desestruturante no sujeito, pois este não consegue compreender de onde ela vem:
“….demasiado aflito para poder avaliar do meu egoísmo, que era imenso”.
É também perceptível neste excerto, uma breve referência a um estrutura circular onde, numa
explicação com base da Experiência Económica Geral (Fairban,1952), o sujeito
momentaneamente consegue libertar-se do objecto causador de sofrimento: “(…) Eu
rebolava-me no chão da sala…e não tinha qualquer controlo pelo que passava por mim, que
era terrivelmente assustador, nem que não fosse porque fugia a qualquer controlo. (…) E de
repente passou. Assim como veio assim passou…”
24
2.3.3 Boa Noite
O livro Boa Noite (1993) ao contrário da maior parte dos livros de Pedro Paixão, é um
romance inteiro, não dividido por textos curtos.
Aqui encontramos um pequeno excerto, que nos remete para um eminente episódio maníaco,
da personagem ou do escritor que se confundem. Permite-nos pensar que, ao escrever textos
demasiado longos, o sujeito encontra a necessidade de bloquear uma melancolia arrasadora,
como vemos em Abraham (1924) a mania é uma defesa contra a depressão, permitindo-se a
uma organização de ideias que não expressam qualquer desejo, sendo apenas reflexos de um
impulso, neste caso do impulso de escrever.
As demonstrações externas do estado maníaco e do estado depressivo podem parecer
completamente opostas, no entanto o complexo interno é idêntico. A mania surge assim como
defesa, indiferente ao complexo, ao esmagamento do sujeito pela melancolia. (Abraham,
1924).
“E então ele começou a escrever, ele que não sabia escrever.
Começar a escrever, parar de escrever, recomeçar a escrever, não parar de escrever,
escrever por escrever, sem ter nada para dizer, deixar de escrever por ter medo de não
conseguir escrever, recomeçar de novo, ter medo de parar de escrever, escrever por não ter
nada para fazer, escrever para morrer, escrever para não morrer, escrever só para continuar
a escrever.
(…) ele não podia ser escritor, porque ele, como outros, afinal não podia ser o que quer que
fosse, ele que tinha sido várias coisas sem em nenhuma se reconhecer, adiando o seu destino
para mais tarde…”
Nesta escrita estéril, muito contrastante com o teor da maioria dos textos do escritor, percebese um certo desinvestimento de uma representação do objecto, (Freud, 1917), que expressa
um vazio interno de representações objectais. A velocidade do texto acompanhará certamente,
a velocidade de pensamento do escritor e a sua necessidade de descarregar e encher um vazio
de aniquilamento que a escrita de um romance inteiro poderá ter despoletado.
25
O escritor continua o texto: “(…) Porque quando ele leu o que as suas mãos escreveram o
que aconteceu foi sentir-se abalado sem saber porquê… O que era, soube-o depois, era o
desinteresse, a indiferença, o não ter nada a ver com aquilo que era contado.
(…) O que ele era, era um perverso, um para quem entre si e as coisas do mundo se
interpunha um contínuo sentido de perda, não uma despedida mas uma fuga, sim, como quem
vê a vida a fugir não para a frente mas do fim para trás”
Deparamo-nos aqui com uma desculpabilização violenta do vazio da escrita, uma possível
inibição melancólica com um reconhecimento de um Ego pobre e vazio, moralmente
desprezível, (Freud, 1917).
O sujeito repreende-se, com um delírio de inferioridade moral onde transparece uma que a
satisfação sádica em relação ao objecto retornam ao sujeito, o ódio entra em acção sobre o seu
Ego.
26
2.2.4 Muito meu amor
Concluiremos esta análise com um texto do livro Muito meu amor, (página 47),onde o escritor
fala sobre o vazio desestruturante, onde se instalou a melancolia que o incapacita de adoptar
um novo objecto de amor (Freud,1917).
“Quero voltar ao tempo em que ninguém gostava de mim. Nem sequer a minha mãe, nem
sequer. (…) Sozinhos, pelo menos, não fazemos mal a ninguém, não achas? Só a nós fazemos
mal, sim, muitas vezes merecemos. Se pudesse levava-te comigo até esse tempo. Não para
ficar por lá muito tempo. Só para tu veres quem eu era quando ninguém gostava de mim, nem
sequer a minha mãe, para saber se tu ias gostar de mim. Para ver se me vias.”
O escritor fala para uma mulher, sem a identificar, uma mulher ideal com quem poderia
estabelecer uma relação de objecto, se, e aqui temos o pensamento um pensamento
contrafactual que inviabiliza à partida essa possibilidade.
27
3-Considerações
Esta reflexão sobre os percursos de uma obra muito marcada por uma caraterística psicológica
específica, neste caso o transtorno bipolar da personalidade, leva-nos a pegar nas ideia de
Bettelheim (1975) sobre a luta pelo sentido da vida, em que a maior necessidade, se
esperarmos viver com consciência da existência, e a realização mais difícil será sempre
encontrar um sentido para a própria vida.
Apercebemo-nos da importância das manifestações artísticas na procura desse entendimento,
quando o seu acesso livre se vê bloqueado por determinada estrutura psíquica. Assim,
podemos falar de uma relação frutífera entre a arte e a psicanálise, por, como Willemart
(2009) indica, utilizarem ambas uma linguagem específica, centrada no sujeito pelo
imaginário, numa tentativa de retirar simbolizações do real complementarmente, pois “A arte
não substitui a análise, nem a análise a arte…”.
A compreensão do que o artista quer transmitir poderá servir como “ponto de abertura do ser
falante” no processo analítico (Willemart, 2009) e que, muito embora a psicose ou neurose
não seja indispensável ao artista, ao surgir não impede a manifestação artística, pois este
conseguirá sempre fazer-se instrumento de desejo do outro.
Para este autor, o importante é ser artista, dado que independentemente da estrutura psíquica,
ser artista é estar suficientemente sensível a si ou ao outro, ou “padecer suficientemente do
real” , para que reactivamente consiga imaginar o simbólico, reconstituído como “pedaço de
real, arrancado do real”. (Willemart, 2009)
28
4 - Referências Bibliográficas
ABRAHAM, K (1924) Short Study of the development of the libido, In The light of mental
disorders (1924) Abraham
BECHERIE, P. (1985), Os Fundamentos da clínica, história e estrutura do saber
psiquiátrico. Jorge Zahar editor, 1985
BETTELHEIM, B. (1975), A Psicanálise dos Contos de Fadas, Bertrand Editora
BRANDÃO, R.S. (2001), A vida escrita: os impasses do escrever. In Psicanálise, Literatura e
Estéticas de Subjectivação, 145-170, Imago Editora
CARVALHO, A.C. (2001), Pulsão e Simbolização: Limites da Escrita. In Psicanálise,
Literatura e Estéticas de Subjectivação, 251-285, Imago Editora
EY, H. (1980), Manual de Psiquiatria. Masson, 1980
DANZIGER, Marlies K. e JOHNSON W. Stacy. Introdução ao estudo crítico da literatura.
São Paulo: Cultrix, 1974. Trad. Álvaro Cabral, com a colaboração de Catarina T. Feldmann
(p. 9-14, 18-21 e 25-26)
DSM-IV-TR – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (Trad.Cláudia Dornelles; 4 e.d. rev. – Porto Alegre: Artmed, 2002
FAIRBAIN, W. R. D. (1952). Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Interamericana.
FREUD, S. (1915). Os Instintos e suas Vicissitudes. Obras Completas, Vol XIV , Imago
Editora
FREUD, S. (1917). Luto e Melancolia. Obras Psicológicas de Sigmund Freud Escritos sobre
a Psicologia do Inconsciente, 1915-1920, 99-116, Imago Editora
29
FREUD, S. (1927). O humor. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, 275-292,
Imago Editora
KLEIN, M. (1933) The early development of conscience in the child. In Love, Guilt and
reparation, London, The Hogarth Press,
KLEIN, M. (1935) A Contribution to the Psychogenesis of Manic-Depressive states. In Love,
Guilt and Reparation. London : The Hogarth press,
KON, N.M. (2001), De Poe a Freud – O Gato Preto. In Psicanálise, Literatura e Estéticas de
Subjectivação, 91-127, Imago Editora
MANDET, E.S.C.. (1993), La fascinacion de los significados una problemática acerca de la
nocion de cuerpo en psiconanalisis., Psicoanalisis com niños e adolescentes, 4, p.114-124.
MILLER, J-A. (2003), “Note sur la honte”, La Cause Freudienne, n.54, 2003, p.6-19.
PAIXÃO, P. , Vida de Adulto (1992), Boa Noite (1993), Muito, meu amor (1996) , Amor
Portátil (1999), 47 w 17 (2000), Rosa Vermelha (2008)
PAULON, W. (1981-2008), Psicose Maníaco-Depressiva, Breves Considerações
RIVAS, E. (2006) Pensar la psicosis, El saber en la psicosis. Grama ediciones, 2006
WILLEMART, P. (2009). Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise,
2009, Imago Editora
ZIMERMAN, D.E. (1998). Bion: aspectos clínicos. In Bion Hoje, 105-141, Editora Fim de
Século
30
MEDIA:
Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas, 2009. Sofia Arêde e Jorge Pelicano
Entrevista Antena 3 – Prova Oral. Jornalista: Fernando Alvim
Entrevista Pedro Paixão ao Jornal de Notícias (Anexo I)
Editora Gryphos, in http://www.gryphus.com.br
31
Anexos
32
Anexo 1
Entrevista a Pedro Paixão ao Jornal de Notícias
33
Anexo 1 – Entrevista
Pedro Paixão: "Democracia é cada vez mais um palavra para esconder a corrupção"
Divide-se cada vez mais entre a escrita e a fotografia, entre Portugal e Nova Iorque. Pedro
Paixão, 52 anos, é considerado uma referência da literatura portuguesa contemporânea, o que
nunca bastou para que se considerasse escritor ou para combater a vontade de desistir.
Preferia ter sido pianista. Acaba de editar “Rosa Vermelha em quarto escuro”.
A sua vida dava um filme?
Não um filme, mas talvez algumas curtas-metragens e dois ou três documentários. Uma
pessoa é muita gente, um personagem é uma abstracção. Nenhuma arte, nem o cinema,
consegue reproduzir a imensidão da vida.
E a sua amizade com Miguel Esteves Cardoso dava o quê?
Tenho um texto chamado “Uma fatalidade. História de uma amizade” que tem a estranha
forma de um só parágrafo de 80 páginas sobre esse encontro. O que não sei é se o hei-de
publicar antes ou depois da morte dele, se a dele for anterior à minha. Porque por um lado,
como chamou a atenção Primo Levi, é delicado falar sobre uma pessoa viva, e se já não está
viva retiramos-lhe a possibilidade de reagir.
O que é que um homem não perdoa a outro homem?
O mesmo que uma mulher não perdoa a outra mulher. Podem ser muitas coisas. Mas viver
sem perdoar é levar consigo um fardo na alma. Faz-lhe mal, como uma doença.
Se houvesse uma máquina do tempo retrocederia ao passado em que ambos escreviam a
quatro mãos em casa aos domingos à tarde enquanto bebiam e riam e eram felizes?
De certo modo, o Miguel e eu, continuamos a escrever a quatro mãos aos domingos à tarde
enquanto bebemos chá preto ignorando que éramos felizes. Há coisas do passado que não
passam. Refugiam-se num canto da eternidade. Os verdadeiros amores são assim.
34
Dedicou-lhe o livro "Vida de Adulto" [1992], onde existe um conto chamado "Ódio". É
a história de dois amigos que viveram juntos e que se amaram apesar de odiarem. A
amizade
não
é
compatível
com
egos
demasiado
insuflados?
No texto “Ódio” o outro não é uma pessoa, mas vários aspectos de várias pessoas
amalgamadas num personagem. Creio que é quase sempre assim. A arte altera, junta, desfaz,
volta a refazer. Não é possível descrever a vida de uma pessoa. Parece-me que um ego
insuflado não consegue entregar-se à amizade porque está preso dentro de si próprio. Mas não
era de modo algum assim. Com os anos, e com os livros, o que acontece é ficarmos cada vez
mais isolados numa solidão que nós próprios tecemos. A partir de certa altura já não há
família, nem amigos. É o meu caso.
Há quanto tempo não lhe dizem que é uma das maiores referências da literatura
portuguesa
contemporânea?
Isso
é
um
fardo
ou
uma
libertação?
Nunca me disseram tal coisa. E se mo dissessem pediria a essa pessoa para me dizer o que
tem a dizer sem empregar juízos sem sentido.
Luiz Pacheco, antes de morrer, disse estar farto de si. Também estava farto dele?
Tanto quanto sei o senhor Luiz Pacheco, um dos meus grandes mestres, nunca disse tal coisa.
O que disse, na última entrevista, foi perguntar, com a ironia que lhe era própria, se eu ainda
estava vivo. Tenho o senhor Luiz Pacheco como uma das pessoas que mais força me deu para
escrever, tanto no que dizia publicamente como no que me escrevia. Mas isso só depois de eu
morrer. O que havia, e continua a haver, entre ele e eu é amor.
Há alguém da nova geração de escritores que inveje?
Sim. Os que ganham prémios, são convidados para ser membros do Pen Club ou da
Associação Portuguesa de Escritores, viajam pelo mundo à custa dos nossos impostos,
representam a nossa língua nas mais variadas feiras. Por outro lado, não os invejo de modo
algum, pois seria incapaz de aceitar qualquer uma dessas benesses. Aquela piada do Freud:
como poderei eu aceitar ser membro de um clube que me aceita como membro.
35
Diz sempre que não é escritor. O que lhe falta para o ser?
Dizer “eu sou escritor” soa-me como “eu sou filósofo”, uma enorme arrogância. Por um lado,
o mais que se pode fazer é continuar a aprender a escrever; por outro lado, continuo sem saber
o que é ser um escritor. O que eu sou é mais parecido com uma escrivaninha.
E também diz que "escrever é uma óptima desculpa para quem na vida não tem
qualquer esperança". A escrita funciona como terapia?
Escrever serve para muitas coisas, das mais reles às mais elevadas. Como em qualquer arte, o
que salva é o mesmo que nos perde. Intensificando a vida intensifica-se a presença da morte.
Mas escrever não é uma coisa que se escolha ou não fazer. E uma pessoa não escreve o que
quer, mas sim o que pode. Escrevo para não morrer e vou morrendo a escrever.
E está sempre a ameaçar deixar de escrever. Existe nessa ameaça o secreto desejo de que
lhe peçam para não o fazer?
Claro. O segredo está em saber quem é essa pessoa que me pede para continuar. É que não se
consegue saber. Ou então seria deus. Mas aqui entramos de imediato em grandes mal
entendidos. O que vou escrevendo está por um lado completo sob a forma de um livro, por
outro lado irremediavelmente fracassado, o que exige que se escreva mais um livro e assim
em diante até ao AVC.
É por isso que escreve como quem "sofre de constante abstinência de amor"?
É.
É um desses escritores que prefere escrever a vida a vivê-la? Por preguiça ou por medo?
Não se trata de uma escolha. O que acontece é que ao viver a vida ela ganha uma distância
através das palavras que se escrevem. Uma pequena distância de morte. Eu vejo a vida, a
minha própria vida, a ser vivida. Estou à espera no dentista e para combater o tédio começo a
escrever dentro da cabeça um assalto ao consultório. A partir de certa altura uma pessoa está
quase sempre a escrever-se. É um vício. Bom e mau.
Também lhe acontece com a fotografia? Estar mais preocupado em registar o momento
do que em desfrutá-lo?
Fotografar é muito diferente de escrever porque uma imagem é muito diferente das palavras.
A imagem permanece no tempo, as palavras vêm do silêncio e voltam ao silêncio, não se
deixam capturar, fixar. A coisa fotografada toma-nos por completo numa espécie de transe.
Todo o mundo se resume a ela. É uma espécie de idolatria, o primeiro pecado no judaísmo.
36
Eu não estou numa relação directa com o que é fotografado. Tenho uma máquina pelo meio
que me serve de escudo ou máscara. Ao escrever estou por completo sozinho, ou com o
mundo que me pertence, o que é o mesmo. Nos dois casos não estou nem preocupado em
registar o momento nem em desfrutá-lo. Estou obcecado.
"Se houvesse um deus chamava-se kodak"? Porquê?
Isso é o que diz um personagem já não sei de que história. Ele deve querer dizer com humor a
sua paixão pelo cinema ou referir-se ao problema central de o nosso deus não ter nome e
assim, também ironicamente, dar-lhe um nome. É fulcral que deus não tenha nome, por que se
tivesse nome seria este ou aquele, ali ou acolá, agora ou depois e o que é indicado por essa
palavra de quarto letras é o inominável, o incognoscível, o omnipotente. Nós amamos o que
desconhecemos. Mais do que tudo é o que desconhecemos, e não podemos vir a conhecer, o
que nos une. O amor vive dessa ignorância.
Colecciona títulos. É ainda a sua veia de publicitário que sabe bem como fazer vender
um livro?
O primeiro intuito não é vender livros. É o segundo. O primeiro é pedir para o texto ser lido e
prometer que vai valer a pena lê-lo. Muitas vezes falha. É curioso notar que os grandes textos
têm em geral grandes títulos. “Um eléctrico chamado desejo”, “A sangue frio”, “Em busca do
tempo perdido”. Antes de começar a escrever preciso de quatro coisas: um título, mesmo que
seja provisório, que serve de tom; ter uma ideia de como vai acabar, porque só assim se pode
começar; guardar segredo do que se está ou vai escrever para impedir as interferências; sentir
que não é um produto da minha vontade, mas antes que é alguma coisa que pede para ser
escrita. Já pensei fazer uma empresa só para vender títulos.
Insiste permanentemente em passar a imagem de um homem desolado, solitário, quase
perdido. Também é uma estratégia de marketing?
Era bem bom. O que acontece é não conseguir, ou precisar, ou desejar esconder o lado
demasiado frágil, profundamente melancólico, tremendamente inseguro, que me domina de
uma forma que não é constante mas é seguramente predominante. É o lugar onde mais tarde
ou mais cedo sempre regresso. Não é uma imagem, é uma forma de vida que a ninguém
recomendo. Mas também não são coisas que se escolham ou que se decida. A partir de agora
decido que vou ser feliz. Não funciona. Vou pintar a parede de branco. Funciona.
37
O que o transformava no alvo predilecto da maldade das crianças quando era também
criança?
Não é preciso ler Freud para saber que a maldade também habita as crianças. Faziam pouco
do meu nome, de facto ridículo. Não me deixavam jogar futebol porque tinha óculos e não
tinha jeito. Tinha muita dificuldade em falar com os colegas por me interessar por coisas que
eles não se interessavam, por exemplo a conquista espacial e a astronomia. Tinha de passar
pela vergonha de ser constantemente o melhor da turma. E sobretudo sentia agudamente uma
violência sempre pronta a manifestar-se e tinha medo. Não tive uma infância feliz mas já não
culpo ninguém de assim ter sido. A minha mãe também não teve uma infância feliz.
Ainda diz muitas mentiras? Ainda são para agradar?
As mentiras, em geral, servem para proteger. Minto demasiado sem ser preciso. Mas há várias
espécies de mentiras. No meu caso têm mais a ver com uma deformação da realidade e não
com a deturpação ou invenção de uma realidade. Muitas vezes as palavras levam-me a dizer
coisas que não desejo dizer e de que depois me arrependo. Claro que deve ter muito a ver com
o escrever. Um texto é uma mentira que é verdade. Ou uma verdade que é mentira. A vida
nunca se deixa fixar de um modo único e definido. E o passado não fica quieto. É alterado
pelo futuro. Mentir no sentido de dizer algo a alguém com o intuito de a enganar é que é
deplorável. Felizmente, não costumo fazê-lo. Talvez porque não preciso. Primo Levi fala na
necessidade de actos imorais, como mentir e roubar, para se poder sobreviver num campo de
extermínio.
Voou para Nova Iorque logo depois do 11 de Setembro, publicando a seguir "A cidade
depois". Parece ser sempre atraído pelo que é triste. As coisas boas da vida não o
inspiram?
A cidade depois. É um bom título. Não fui para Nova Iorque por causa de qualquer tristeza.
Voar para Nova Iorque foi a maneira que encontrei para tentar superar a agonia intensa em
que me encontrava. E resultou. O que serão as coisas boas da vida? Não há nenhuma vida
feliz. Todas as canções de amor são tristes. O humano sofre de um mal que nunca consegue
por completo erradicar. Daí o ópio de que falava o poeta.
38
Nunca votou em Portugal…
Nunca votei porque nunca soube em quem votar. Não aprecio, para não dizer desprezo, a
nossa constituição partidocrática: feita pelos partidos, para os partidos e para os que deles se
servem e a quem servem. Algum português se sente representado no parlamento? Aliás mais
de metade dos eleitos são substituídos pelos substitutos, os primeiros certamente dedicando-se
a actividades mais proveitosas.
Votaria nos EUA? Em quem?
Nos EUA creio que votaria sempre democrata. Uma coisa é poder votar, outra a democracia.
No Irão, na Russia, em Angola também se pode votar. O que define em primeiro lugar a
democracia não é esse privilégio. É ser um estado de direito. E, tristemente, Portugal é cada
vez menos um estado de direito, um lugar onde não se faz justiça e em que a verdade não é
apurada. Democracia é cada vez mais uma palavra para esconder a corrupção.
Imaginar-se-ia pianista de bar? Isso seria um happy end?
Senão for uma ilusão gostaria de trocar definitivamente as já apagadas teclas do computador
pelas maravilhosas teclas de um piano. A música está mais perto dos anjos e dos deuses. Não
sabe mentir. Mas não gostaria de tocar num bar porque me deito muito cedo e não gosto de
álcool. Gostaria de tocar num paquete no alto mar e viver de música, de água e de mais nada.
FONTE: http://jnverao.blogs.sapo.pt/23414.html
39
Anexos 2 a 9
Fotografias por Pedro Paixão
Publicadas no Livro 47 W 17
40
Anexo 2 – Sem Título
41
Anexo 3 – Sem Título
42
Anexo 4 – Sem Título
43
Anexo 5 – Sem Título
44
Anexo 6 – Sem Título
45
Anexo 7 – Sem Título
46
Anexo 8 – Sem Título
47
Anexo 9 – Sem Título
48
Anexo 9 – Revisão da Literatura
A literatura encontra o seu sentido epistemológico no latim littera, que significa letra, isto é, a
palavra escrita e/ou impressa, mas para Danzinger e Johnson (1974), o seu significado vai
muito mais além. Para os autores, ao pertencer ao domínio das artes, e sendo o seu meio de
expressão a palavra e a sua base ser o domínio verbal, pode ter diversas conotações e
interpretações.
No artigo Introdução ao Estudo Crítico da literatura, Danzinger e Johnson (1974),
relativamente à questão sobre como poderemos saber o que as palavras escritas realmente
significam, contrapõem que, por um lado apenas o autor saberá, mas que, por outro lado, é
legítimo que cada leitor decida que significado lhes atribuir. No mesmo artigo, os autores,
consideram a literatura não só como manifestação artística, mas principalmente como forma
de imitação, “… como meio de reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida…” ,
tendo por base as experiências e vivência do Homem. (Danzinger & Johnson, 1974). Segundo
Kon (2001), no texto De Poe a Freud – o Gato Preto, a relação entre literatura e psicanálise
têm sido constantes desde as primeiras formulações freudianas, sendo a capacidade criadora o
elo entre o acto artístico e o acto psicanalítico. Pegando nas palavras de Paul Klee, no mesmo
artigo, de que a arte não reproduz o visível, faz visível, o autor estabelece o paralelo de que,
também a psicanálise não reproduz o audível/dizível, ela faz audível/dizível. Esta ideia é
também referida por Willemart (2009) ao mencionar que a prática da arte abre o artista para o
que existe de novo no mundo e que a análise abre o analisando para o seu mundo
desconhecido. Como vemos em Carvalho (2001), no texto Pulsão e Simbolização: Limites da
Escrita, o número de pessoas que procura encontrar uma forma agradável de expressão e
transformação dos seus problemas através da pintura, da escrita literária, da música e de
outras actividades criativas, é imensamente significativo, embora esse possa não ter sido o
principal motivo que as levou a criar. Já Freud no texto Os institutos e suas vicissitudes,
citado por, Carvalho (2001), relacionava os processos criativos ao conceito de sublimação,
onde estes tinham um papel de organizador construtivo da psique, apaziguando o seu
sofrimento.
A criatividade não elimina o sofrimento que, muitas vezes, se encontra na base de uma
manifestação artística mas esta relação entre arte e psicanálise, neste caso em particular a arte
literária, é considerada fundamental pela autora para um entendimento da forma em como
pode ser para alguns, uma forma de evitar a realidade e para outros uma fonte de força
criativa (Carvalho, 2001).
Partindo deste pressuposto, procuraremos conhecer, interpretando à luz da dinâmica da sua
personalidade, parte da obra literária de um escritor contemporâneo, Pedro Paixão. Foi
diagnosticado ao autor o transtorno bipolar da personalidade no início da sua vida adulta,
antes de existir qualquer livro publicado, e esse facto foi de imediato tornado público sobre o
mesmo, existindo diversos testemunhos e entrevistas disponíveis, que contribuirão para um
maior entendimento da nossa parte sobre os seus escritos
Torna-se pertinente a questão de Brandão (2001): “Mas então pode a literatura ser um
sintoma?”
49
Brandão (2001) diz-nos ser possível e expectável que assim seja, mas que para se falar do
escritor, “deve-se pensar numa escrita-inscrição, em que ele constitui, não de forma definitiva,
pois o escrever se confunde com o viver, pela via do desejo.” Para tal, é essencial articular a
literatura e a psicanálise dado que, segundo o mesmo autor, o acto de escrever, pela sua
complexidade, leva o escritor a se questionar sobre a função desses escritos nas suas vidas,
dando o exemplo de Marguerite Duras : “… não se pode escrever sem a força do corpo. É
preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. (…) Não é apenas a escrita, o
escrito é o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães.”
A psicanálise debruça-se sobre o texto, “o texto escrito, reescrito, copiado, invertido”, que
constitui a verdade de cada sujeito e que “o psicanalista, que tem uma escuta especial e vai
pontuando, sublinhando, reescrevendo, por sua vez, esse texto flutuante.” O que o psicanalista
ouve, esse sujeito, tem uma textura diferente do que o sujeito ouvido pelo analista literário. É
colocado num outro lugar, como ser vivo, como presença do aqui e agora guardiã de um
discurso. (Brandão, 2001)
Será importante salientar que as reflexões que serão apresentadas são somente formas de
pensar e entendimento de uma manifestação artística, não pretendendo reduzir a sintomas uma
obra de inigualável valor para a literatura contemporânea, tomando assim como nossas as
palavras de Brandão (2001):
“não procuro colocar o escritor no divã através de uma psicobiografia que acaba por reduzir a
obra a categorias clínicas”
Este trabalho será apresentado sobre a forma de estudo de caso, tendo como participantes
somente o seu alvo de estudo: o escritor Pedro Paixão.
Pedro Paixão gosta de se definir por aquilo que não é: não é membro de qualquer associação,
clube ou igreja, não é militante de nenhum partido, nunca votou, nunca aprendeu música Não
tem tendência para visões, alucinações.É casado e tem um filho, do 2º de quatro casamentos.
(Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas, 2009)
Aos 19 anos foi-lhe diagnosticada a doença maníaco-depressiva, hoje chamada doença
bipolar, e aos 29 doutorou-se em Filosofia na Universidade Católica de Lovaine (Bélgica),
escrevendo a sua tese de doutoramento em 2 dias. Depois disso mergulha numa depressão
profunda, “sem fundo”. Aos 31 anos inicia a medicação para controlar as “descidas de
humor”.
Numa peça de Media, Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas, (2009) faz-se uma
retrospectiva do seu percurso e a forma como fala da sua vida, da forma como vai
construindo a sua obra, revelam uma capacidade enorme de entendimento do seu modo de
funcionamento. Esta capacidade torna, por um lado, o seu dia-a-dia mais doloroso, mais
questionável, mas por outro lado permite-nos pensar que direcciona a sua obra de acordo com
os estados de humor. Escreveu o seu primeiro livro aos 36 anos, 1982. 15 anos depois contava
com mais 22 livros, 2 álbuns de fotografia, duas peças de teatro e um texto para ópera, além
de ter escrito também guiões para filmes. Em discurso directo para a Grande Reportagem SIC:
Mentes Inquietas, diz haver alguns deles, dos livros, que escreveu em 3 dias sem se lembrar
minimamente do que está lá escrito.
Nos finais dos anos 80, funda, juntamente com Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, o
jornal Independente e, mais tarde, também com Miguel Esteves Cardoso, cria a empresa de
publicidade Massa Cinzenta. Foi professor universitário de Filosofia, aposentando-se em
2005.
50
Passou então a dedicar-se integralmente ao estudo e à escrita: “Tenho aquela coisa de ter de
trabalhar todos os dias, sempre, sempre, sempre. Só que depois fico doente, paro. Mas
enquanto não fico doente, estou sempre a estudar. Graças a Deus gosto imenso. Desde tão
pequenino, desde tão pequenino. Até acho estranho A minha vontade de saber é tão grande.
Interesso-me por tantas coisas tão variadas que nunca chego ao fundo de nada.”(Pedro Paixão,
2009, Grande Reportagem SIC: Mentes Inquietas)
Instrumentos: Por se tratar de um estudo de caso, os instrumentos a utilizar serão os textos de
Pedro Paixão, das suas diversas obras publicas, as suas fotografias também publicadas em
livro e/ou exposições, e as entrevistas dados aos Media pelo próprio.
51
Download

A Bipolaridade na Obra de Pedro Paixão