EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES
Recurso Extraordinário 635.659 (repercussão geral reconhecida)
Relator: Ministro GILMAR MENDES
Previsão de julgamento: 24ª Sessão Extraordinária – 13.8.2015 – 5º item da pauta
MEMORIAL
INSTITUTO TERRA, TRABALHO
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE
DE
CIDADANIA– ITTC,
LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS
TRANSEXUAIS – ABGLT e ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
USO
E
DE
ESTUDOS SOCIAIS
E
DO
PSICOATIVOS – ABESUP, entidades habilitadas como amici curiae nos
autos epígrafe, apresentam memorial indicando os pontos fundamentais para o
provimento do recurso interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo,
fazendo-o nos termos a seguir.
O recurso extraordinário em questão, que impugna o art. 28 da
Lei n. 11.343/2006, teve reconhecida a repercussão geral do tema “tipicidade penal
do porte de droga para consumo pessoal” (tema 506) à unanimidade pelo Plenário
Virtual desta Corte.
Em manifestações nos autos foi suficientemente demonstrada,
numa perspectiva teórica, a incompatibilidade da norma penal com os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da lesividade, os
direitos à igualdade, à diferença e à intimidade: em síntese, a conduta descrita no
tipo penal de portar substância psicoativa ilícita para consumo próprio, em razão de
ter como fim especial de agir o uso por quem porta – que compõe o elemento
subjetivo – não lesa ou oferece perigo concreto a direito de outra pessoa, não
apresentando, portanto, a lesividade necessária à legitimidade de sua incriminação.
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Assim, importa neste momento indicar, ainda que sucintamente,
violações concretas a direitos humanos, especialmente de grupos sociais
vulneráveis, decorrentes da criminalização do porte de drogas para consumo
pessoal.
Com efeito, não é falsa a impressão da Ministra Cármen Lúcia de
que a criminalização de usuários “pode gerar mais conflitos, mais fragilidades para
uma pessoa” (voto no HC 110475, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 14.02.2012): para além
da reconhecida seletividade do sistema penal, a criminalização do porte de drogas
para consumo pessoal tem por efeito forte estigmatização que é a mais evidente
barreira ao acesso aos serviços de saúde, estes, aliás, muitas vezes “uma experiência
humilhante, punitiva e cruel”1, que afetam especialmente os grupos mais
vulneráveis da sociedade.
Como mostra pesquisa do Conselho Federal de Psicologia2
realizada em 68 instituições de internação de dependentes químicos em 24 estados
e no Distrito Federal, nessas instituições são constatadas as mais variadas violações
de direitos, como violência física, castigos, torturas e exposição a situações de
humilhação. O documento faz especial menção ao “constrangimento a que são
submetidos os homossexuais, travestis, lésbicas, entre outros, considerados,
todos, como portadores de uma sexualidade desviante”, inegável violação à
dignidade das pessoas LGBT decorrente de uma política de drogas que aprisiona e
mortifica modos singulares de existência.
Também não é sem razão a preocupação do Ministro Roberto
Barroso com o encarceramento da juventude pobre e negra (votos nos
processos HC 112776 e HC 109193, j. 19.12.2013). Embora a norma impugnada
1
Assim afirma o Relator Especial da ONU sobre a tortura e outros tratamentos cruéis e degradantes, Juan
Méndez, no Relatório do Conselho de Direitos Humanos A/HRC/22/53, de 1º de fevereiro de 2013.
2
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de
internação para usuários de drogas. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011. Disponível em:
<http://goo.gl/pXOTLf>. Acesso em: 8 jun. 2015.
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não preveja pena privativa de liberdade, os dados mostram que pessoas
usuárias estão, sim, sendo presas.
Pesquisa do NEV/USP3 realizada com autos de flagrante por
tráfico de drogas ocorridos na cidade de São Paulo entre 2010 e 2011, “em cerca de
7% dos casos a pessoa ficou presa durante todo o processo e, ao final, houve
desclassificação de porte para uso”. O padrão nos flagrantes inclui a apreensão
automática da pessoa, na maioria das vezes sem violência por parte da pessoa
abordada, sendo que quantidade média apreendida é de 66,5ge na maioria das vezes
a única testemunha é o policial que efetuou a prisão.A mesma pesquisa mostrou
que o perfil dos acusados representa parcela bastante específica da população:
homens, jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com escolaridade até o
primeiro grau completo e sem antecedentes criminais.
A violência seletiva da força policial e do sistema jurídico, em
grande medida causada pela proposta de guerra nas políticas sobre drogas, alimenta
um leque de discriminações específicas contra a população negra. O Relator
Especial da ONU para tortura e outros tratamento degradantes observou que a
média das sentenças aplicadas para pessoas negras é maior, assim como a maioria
das vítimas de tortura e discriminação nas prisões são pessoas negras. Jovens
negros são “vítimas de um perfil racial” da força policial brasileira, resultando em
uma das taxas mais altas de homicídios dessa população pela polícia.Outra
pesquisa, esta realizada com a análise de processos que tiveram sentença com
trânsito em julgado no segundo semestre de 2012, nas cidades de Brasília,
3
JESUS, Maria Gorete Marques de. (Coord). Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de
tráfico de drogas na cidade de São Paulo. [recurso eletrônico] / Maria Gorete Marques de Jesus, Amanda
Hildebrando Oi; Thiago Thadeu da Rocha; Pedro Lagatta; Coordenador: Maria Gorete Marques de Jesus. São
Paulo: NEV/USP, 2011. p. 122.
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Salvador e Curitiba, mostra que cerca de 10% das pessoas presas acusadas de
tráfico tiveram a conduta desclassificada para porte para consumo próprio.4
Já pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado da
Bahia5 com processos em tramitação nas Varas de Tóxicos da Justiça Comum
Estadual
da
Bahia
apontou
um
percentual
médio
de
17,73%
de
desclassificações de tráfico para porte para consumo próprio.
Pesquisa recente da Fiocruz apontou inclusive para o fato de que
quase metade da população de pessoas usuárias de crack afirmou ter sido “detida”
no último ano, reforçando a percepção de que a Lei 11.343/2006, com sua
definição pouco clara do crime de posse de drogas para uso pessoal permite uma
neutralização arbitrária da distinção entre usuário e traficantes, aos sabores da
autoridade policial ou judiciária que aprecie o caso.6
A situação se agrava quando analisado o impacto da
criminalização sobre a população feminina, eis que hoje 65% das mulheres
presas são acusadas de tráfico7.Tudo leva a crer que grande parte delas é de
usuárias, principalmente tendo-se em conta que muitas vezes mulheres são presas
por assumir a conduta no lugar de seus companheiros8 e de seus filhos.
A consequência disto é o aprofundamento da exclusão que
sofrem as mulheres, somando-se à assimetria das relações de poder frente aos
homens as formas específicas de discriminação e abusos que sofrem na prisão –
4
GARCIA, Rafael de Deus. O uso da tecnologia e a atualização do modelo inquisitorial: gestão da prova e violação
de direitos fundamentais na investigação policial na política de drogas. Dissertação a ser apresentada ao
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília para a obtenção do título de
Mestre em Direito, Estado e Constituição. Brasília: UnB, 2015. p. 140.
5
NICORY, Daniel (Coord). 1º Anuário soteropolitano da prática penal. Salvador: DPE-BA / ESDEP, 2015. pp. 13/71.
6
BASTOS, Francisco Inácio, BERTONI, Neilane. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack. FIOCRUZ. ICICT, 2014.
7
CNJ. Tráfico de drogas está ligado a 65% das prisões de mulheres no Brasil. Disponível em:
<http://goo.gl/3ZvUiQ>.
8
Brasiliano S, Hochgraf PB. Mulheres e Substâncias Psicoativa. In: Seibel SD, editor. Dependência de Drogas 2. ed.
São Paulo: Atheneu, 2010.
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não são raros os casos de mulheres presas que deram à luz algemadas9, com a
presença de guardas policiais na hora do parto – e em razão da passagem pelo
sistema prisional, especialmente no acesso ao mercado de trabalho.
Ainda que a legislação brasileira seja pautada pela despenalização
do uso, observamos o encarceramento e a adoção de medidas punitivas de pessoas
usuárias, de forma especial quando se trata de mulheres usuárias. É interessante
notar a grande incidência de mulheres com problemas psicológicos, assim como de
usuárias de drogas na prisão11. Mesmo que estas mulheres não devessem estar no
cárcere, uma grande parte declara preferir não ser encaminhada aos hospitais de
custódia e tratamento psiquiátrico e tampouco aos centros de tratamento de
drogadição, por dizerem ser piores que a prisão. Recomendações como a do
Ministério Público de Belo Horizonte, de encaminhar automaticamente para
abrigamento de filhas e filhos de usuárias aponta para uma concepção punitiva do
uso, com agravante violência de gênero. O fato é que se o estigma de usuário de
substâncias ilícitas é altamente negativo para a população em geral, esse estigma se
torna muito maior quando as usuárias são mulheres.
É importante destacar também que a criminalização de usuários
e usuárias afeta a saúde pública, pois dificulta o acesso a serviços de saúde e à
prevenção. Se uma pessoa é tratada pela lei como criminosa ela terá receios de se
dirigir a um posto de saúde com receio de ser presa, o que é reforçado pelo
estigma que afeta especialmente mulheres e grupos marginalizados, como
homossexuais. No caso da AIDS, por exemplo, dados de 1980 a jun/2014 apontam
para uma taxa de prevalência de 0,4% na população em geral, mas tal epidemia se
concentra em homens que fazem sexo com homens (10,5%), trabalhadoras do sexo
(4,9%); pessoas que usam drogas (5,9%) e usuários de crack (5,0%). Além disso,
9
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Em SP, presas dão à luz algemadas. 2014. Disponível em:
http://www.ibccrim.org.br/noticia/13917-Em-SP-presas-do-luz-algemadas
11
Ibidem.
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entre 1998 e 2011, houve mais casos de mulheresdiagnosticadas soropositivasdo
que de homens na faixa entre 13 e 19 anos.12
É assim que a criminalização de usuários de drogas – para além
de configurar por si mesma uma negação da dignidade da pessoa – tem por
consequência violações de direito ainda mais insuportáveis quando recai sobre
grupos socialmente vulneráveis.
Fazendo-se
um
paralelo
com
a
teoria
do
impacto
desproporcional13, há uma violação ao princípio constitucional da igualdade
material em consequência da incidência especialmente desproporcional e nociva da
norma sobre esses grupos, que são apenadas pelo cometimento de infração penal e,
além disso, por suas características pessoais e condição social: orientação sexual,
gênero ou identificação racial.
No
presente
caso
a
inconstitucionalidade
não
resulta
propriamente do impacto desproporcional, mas da citada incompatibilidade da
norma com princípios constitucionais os mais diversos, todavia quando observadas
as consequências da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal sobre
grupos vulneráveis fica ainda mais evidente a inadequação da norma penal para o
alcance do fim almejado (proteção da saúde). Experiências de descriminalização e
tolerância em outros países reforçam o argumento.
Portugal, que descriminalizou o consumo de todas as drogas em
2001, tem experimentado um aumento na procura dos serviços de atenção a
usuários em parte porque “a criminalização fazia com que alguns consumidores de
drogas sentissem medo de pedir ajuda médica com receio de punição, ou com
12
Fonte:
http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/publicacao/2014/56677/boletim_2014_final_pdf_15565.pdf
13
Conferir BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar,
2001.
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medo de um registro criminal que lhes traria dificuldades em termos laborais e de
inserção na sociedade”14.
Pede-se, assim, por tudo que articulado nos autos e consideradas
as peculiaridades aqui expostas, seja dado provimento ao recurso extraordinário
para se declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n. 11.343/2006. Assim
decidindo a Corte, porém, é necessária atenção aos efeitos da decisão.
Uma vez declarada a inconstitucionalidade da norma restará
atípica a conduta de quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo”, bem assim a de quem “semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”
descrita no §1º, tudo quando “para consumo pessoal”, por conta da relação de
acessoriedade e instrumentalidade entre os dispositivos.
A ressalva é necessária, pois são cada vez mais recorrentes
prisões de pessoas usuáriasque optaram por cultivar sua própria cannabis para não
alimentarem o mercado ilegal. Também estas, praticando conduta que não lesa
ou leva perigo concreto a outra pessoa, estão sendo presas, geralmente em ações
espetacularizadas da polícia que os expõem a um linchamento moral.
Por outro lado, alerta-se para o fato de que, caso esta Corte
decida em favor da impossibilidade de criminalização do usuário diante dos
princípios constitucionais, ainda assim haverá riscos da criminalização de usuários
como traficantes, justamente aqueles que pertencem a grupos vulneráveis, como a
população negra que é superrepresentada no sistema penitenciário, caso não haja
uma política efetiva de garantia de direitos destes usuários por meio do
estabelecimento de distinções que orientem os operadores do direito na aplicação
da norma, especialmente policiais.
14
DOMOSŁAWSKI, Artur. Política da droga em Portugal: os benefícios da descriminalização do consumo de
drogas. Varsóvia: Open Society Foundations: 2011, p. 24.
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Um real enfrentamento das violações de direitos decorrentes da
criminalização do porte de drogas para consumo próprio poderá ocorrer a partir de
uma decisão que preze pela dignidade da pessoa usuária, tendo em conta a
pluralidade e peculiaridades de realidades do uso das diversas populações
envolvidas; conforme propõem os objetivos constitucionais rumo à construção de
uma sociedade justa, solidária e livre.
Com estas razões e nestes termos pedem o provimento do
recurso extraordinário.
Brasília/DF, 10 de agosto de 2015.
MICHAEL MARY NOLAN
PRESIDENTE DO INSTITUTO
TERRA, TRABALHO E CIDADANIA ITTC
RODRIGO MESQUITA
OAB/DF 41.509
LUCIANA BOITEUX
OAB/RJ 90.503
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