UM GRANDE BRASILEIRO
Antônio Houaiss:
A)
UMA VIDA
Comemorar 80 anos de vida, no Brasil,
constitui de pronto uma efeméride notável, seja
do ponto de vista biológico, seja do social. Efetivamente, boa parte do nosso fluxo demográfico
se vê interrompida em estágios iniciais ou intermédios, seja pela mortalidade infantil e pelas
doenças- "o Brasil é um imenso hospital",
como se dizia no começo do século e ainda hoje,
desgraçadamente, se diz-, seja pela crescente
miséria e violência que dominam nossas grandes
concentrações urbanas, responsáveis, ano após
ano, pelo brutal desaparecimento de centenas
de milhares de pessoas.
No caso particular de Antônio Houaiss,
cujas oito décadas de existência ora festejamos,
esse feito não é invulgar apenas em termos de
singularidade numérica, mas de contéudo, significado e exemplo. Ao longo desse périplo exis-tencial, ele jamais se comprazeu em ver a vida
passar, com natural alternância de bons e
momentos. Muito pelo contrário, atirou-se a ela
disposto a modificar-lhe o processo, alterar-lhe o
curso dando de si o máximo, sempre procurando ver o todo antes da parte, o social antes do
individual.
Manifestando extraordinária competência
em todos os campos de atuação onde marcou
sua presença-o magistério, a diplomacia, a crítica literária e de idéias, a sistematização de
conhecimentos (em dicionários, enciclopédias,
conferências e debates), a tradução de obras
marcantes, a atividade política - , Antônio
Houaiss não se colocou em momento algum
como beneficiário dela. Usou-a sempre a serviço
da comunidade, não apenas a brasileira, mas a
universal também, tanto que, durante sua permanência na Organização das Nações Unidas,
integrando a delegação brasileira, foi extrema-
"
ANTONIO HOUAISS:
Uma vida
Homenagem de amigos e
admiradores em comemoração
de seus 80 anos.
Coordenação de
Vasco Mariz
civilização
brasileira
Antônio Houaiss, o político
I:t"mportant n'est pas ce qu'on a fait de l'homme,
mais ce qu'il fait de ce qu'on a fait de lui
Jean-Paul Sanre
Os filósofos se Hmitaram a interpretar o mundo diferentemente,
cabe transformá-lo.
Marx. 11" Tese contra Feuerbach
Roberto Amaral
Se Antonio Gramsci não houvesse formulado o con ceito de intelectual orgânico. Antônio Houaiss o teria construído, com sua vida, sua existência política de intelectual
permanentemente engajado, comprometido, buscadamente
e ostensivamente comprometido com seu tempo, com sua
história, a história e o tempo de seu povo: a human idade.
Engajado no mais legítimo e profundo sentido sartreano,
porque, acreditando na possibilidade de escolha do homem, sempre se escolheu, se definiu, se inven tou. Por isso, intelectual dos mais possantes, jamais foi um contemplativo. Ao contrário, soube e sabe sempre pôr o acento
nas tarefas imediatas que de todos exige - mas entre nós
exige principalmente dos intelectuais - um mundo de fome e de opressão. A essência de sua vida é determinada
por uma existência de militante, de uma militância q ue
faz da palavra, do texto, sua arma predileta. Talvez por
tudo isso se tenha escolhido como artesão da palavra e ope31
rário do livro, uma e outro meio, objeto, instrumento de
militância, de intervenção política na realidade que busca sempre melhorar. Político da palavra, político do texto, político da tradução, político da filologia, polftico na
política diplomática, político da cultura, político como dirigente partidário e socialista.
Estamos afirmando que a política, na vida desse político que se notabilizou como filólogo, não é uma só tese,
ou um acidente, um acaso, um departamento secundário:
é toda a dimensão de humanismo ditada pela visão crítica
do mundo em que vivemos. É uma definição, com todas
as conseqüências possíveis.
É o humanismo socialista, ou um humanismo socialista, a cuja construção dedicou a práxis e a reflexão dos
últimos anos.
Perdidos Deus e os valores inscritos na eternidade, o
homem , assim livre mas à míngua, foi descobrir ou inventar a liberdade de escolher-se, descobrindo-se e definindo-se
diante dos fatos objetivos; a irresponsabilidade do "estava
escrito" transforma-se na responsabilidade essencial do ser
humano: construir seus próprios atos, definindo-se diante
do mundo e tomando-se responsável por seus atos e pelo
mundo. Responsável pelo que é, pelo que escolheu ser, e
pelo mundo, que já é outro a partir de seu invento, porque o homem responsável não é responsável apenas pela
sua escolha, pela sua estrita individualidade, mas por todos os homens, pelo mundo, pela humanidade, sem a qual
perecem homem e mundo. 'Eu não escolho o mundo nem
o construo para mim, mas, nele, eu me escolho e escolho
para todos os homens.'
Sujeito do processo - isto é, assumindo a responsabilidade de sujeito no processo - assume o indivíduo a
responsabilidade de mudar o mundo em proveito do homem como ser coletivo. É uma decisão radical, porque não
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permite alternativas. Não atuar é comprometer-se com o
statu quo, é conservá-lo, é fazer-se agente da injustiça e
da opressão. Sua opção é por uma humanidade que precisa sobreviver, mas que, antes de tudo, precisa salvar o homem concreto e sua liberdade concreta.
Antônio Houaiss descobriu cedo que para lutar contra a fome e a injustiça social era preciso, primeiro, mexer
no sistema político e econômico que as alimenta e ceva;
daí o engajamento depois da reflexão e a ação como anverso da contemplação; daf os papéis intransferivelmente
transformadores que incumbem ao intelectual e à literatura, independente do papel que esta possa desempenhar
na luta de classes. Mas que é literatura, particularmente
em Houaiss, senão quase tudo além do texto? Assim tento
explicar o caminho de uma definição intelectual determinada pela práxis. Por outras palavras, isso que podemos
chamar de humanismo socialista não resulta , em Houaiss,
de um determinismo da visão clássica classe versus classe,
que não rejeita, mas de uma visão ética da história, de uma
história viva, que não morre, de uma nova ética marxista,
que, por seu lado, é filha da realidade objetiva. Uma ética que salta fora do imponderável foro íntimo dos homens
para construir uma consciência que é sempre social porque determinada pela existência concreta, o ser e pôr-se
no mundo. Os papéis deixam de ser irrecusáveis, e compete ao homem construir o seu mundo, em face do mundo, tal qual é. Não apenas o ser coletivo, mas também o
ser individual , que, escolhendo o melhor para si, também
está escolhendo o melhor para a humanidade, pois nada
pode ser bom para o indivíduo se não o é para todos. O
ser 'individual' e o ser coletivo, assim, não conhecem pa ·
raleias, mas caminhos bifurcados, canais intercomunicantes, instâncias interdependentes. Por outro lado, tudo que
é ruim para a humanidade é também ruim para o indiví33
duo, e ninguém é livre num mundo de escravos, ninguém
desfruta de liberdade num mundo de opressão, ninguém
goza de paz num mundo infeliz, ninguém está alimentado
num mundo de fome. Ou ainda, todo bem, ou todo mal,
é universal, é universal a fome, é universal a opressão, ou,
finalmente, não há liberdade individual. A única forma
de salvar o homem é através da salvação da humanidade.
A unidade de obra e vida em Antônio Houaiss tem
por base esse substrato e por objeto a reconstrução do ser
humano: intelectual comprometido com a reflexão que anima a ação, o conceito que instrumentaliza a revolução, a
liberdade concreta do homem livre num mundo/ humanidade de homens livres. O intelectual é o aríete de um mundo concreto de fome e de opressão.
Relembremos: não basta interpretar o mundo; fundamental é transformá-lo. Esta é a tarefa do intelectual
orgânico.
A política é uma exigência. pois é nela que o homem
pode refazer o que foi feito com ele e dele. Essa reversão
é a única forma ética de fazer a história. A história que
é mudança, desenvolvimento contínuo, revolução, progresso. Por isso, a política é uma onipresença em sua obra, conduzindo as circunstâncias e as contingências. O processo
permanente de escolher-se a cada minuto, diante de cada
fato, reafirmando os compromissos políticos que justificam
a atividade intelectual. O intelectual orgânico, cuja consciência é uma determinação de sua vida, militante no sentido mais prático que se possa extrair da palavra.
Num quadro de estrita força lógica , a formação política desse intelectual maior começa cedo, construída numa lojinha de porta-e-janela da rua Gustavo Sampaio, num
Rio de janeiro que ainda aspira à modernidade (ou o rompimento com o patrimonialismo) pelas mãos e armas de
uma revolução arcaicamente positivista e precocemente rea-
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cionária. Muitos anos seriam necessários para que a sociedade descobrisse que os protestos antioligárquicos geravam
o continufsmo tenentista e que a democracia de 1934 continha o germe da ditadura de 1937. O preceptor de Houaiss
seria o alfaiate português José Alves Machado, anarquista
como quase toda aquela geração de proletários portugueses, espanhóis e italianos imigrados. O ofício do corte e da
costura se cumpria paralelo ao 'curso' que ministrava a três
ou quatro meninos mal entrados na adolescência. Só anos
mais tarde a especulação intelectual começa a tomar forma de associatividade, na Escola Comercial Amaro Cavalcanti, onde o futuro lingüista foi cursar contabilidade, e
o adolescente de 15 anos ingressa na Federação Vermelha
dos Estudantes. Aí a militância se dá de mãos dadas aos
estudos preparatórios para o concurso e o ensino secuJ"Idário como professor da então Prefeitura do Distrito Federal, e a seguir a formação universitária no laboratório que
o gênio de Anísio Teixeira organizara para a Universidade
do Distrito Federal. Tudo isso de par com a militância ao
lado dos sobreviventes do velho Partido Socialista, fundado em São Paulo, em 1902, por alfaiates, marceneiros, fun cionários públicos e outros intelectuais. São os anos de
1930/ 1936 , 1936/ 1940, e são também os anos da resistência à ditadura. Em meio a seus estertores, em 1945, já decadente no mundo o fascismo, morrendo Eixo, ingressa
no Itamarati pela única porta ensejada ao imigrante pobre, o concurso de provas, depois do ministério de professor em curso, cursinho diríamos hoje, para a preparação
de candidatos à nascente carreira diplomática.
Terminada a guerra, vitoriosos os "aliados", começa
a Guerra Fria , de que, recorrente e atrasada , participará
a política externa brasileira. É nela que Antônio Houaiss
vai exercitar o seu papel, primeiro em Genebra (depois de
recusado por Washington ... ), a seguir na República Do-
o
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minicana e finalmente em Atenas, onde foi alcançado pelo braço brasileiro da intolerância e da subserviência ao
Departamento de Estado norte-americano em sua então
fobia anti-soviética. Velhos tempos ...
Em 1964, ao lado de outros patriotas, lutadores da
liberdade, tem os méritos de sua vida política reconhecidos pelo golpe militar que cassou seus direitos políticos e
o expulsou da carreira diplomática.
Mas no seu caso tratava -se de urna punição recorrente.
Em 1952 , servindo em Atenas, uma troca de cartas
entre Londres e Hamburgo, em que se solicitava um estudo sobre a realidade brasileira, vazada pela imprensa (O
Globo e depois Tribuna da Imprensa) deu fogo à nossa
Guerra Fria particular e ao macarthismo caboclo. Estamos próximos de agosto de 1954 e era preciso reacender
a histeria anticomunista do governo Dutra. Se a vida orgânica dos partidos comunistas estava posta na ilegalidade, havia sinais claros de uma certa complacência judicial
e policial, com amparo constitucional. Só era proibida a
vida partidária, permitidas, pelo princípio da liberdade
de opinião, outras atividades. E os comunistas vinham dando mostras de saber agir nessas frinchas de legalidade, junto
aos partidos consentidos, apoiando governos, mantendo
uma imprensa operária, organizações sociais contra isso e
aquilo, a favor disso e daquilo. Atuavam na campanha da
Petrobrás e agora contra a guerra na Coréia. De uma forma ou de outra emprestavam apoio ao governo Vargas, já
na alça de mira. É nesse ambiente que Antônio Houaiss,
ao lado de João Cabral de Melo Neto e outros, é acusado
de atividades subversivas inespecíficas, as quais, reduzidas
a termo, terminam significando atuação em choque com
as diretivas da diplomacia da Guerra Fria. Essas acusações
de 1952, aliás, antecipam a redação do caráter geral das
acusações que em 1964 se abateriam sobre milhares de ci36
dadãos brasileiros, ao final privados do emprego, todos,
da liberdade quase todos, e da vida muitos deles. Diz o dossiê que Houaiss teria sido "membro do extinto Partido Comunista Brasileiro desde 1945", que atuaria na "arrecadação de fundos" destinados ao mesmo partido. Sua esposa
é acusada de "muito inteligente"... Ao final do processo
administrativo, o diplomata e seus colegas são apontados
"como suspeitos ("desde muito") de partidários da doutrina comunista" e fmalmente postos em "disponibilidade inativa sem remuneração", lamentando o funcionário inquisidor que a legislação não armasse, então, "as autoridades
civis, de poderes claros e precisos, para afastar, ou mesmo
eliminar, dos quadros do Serviço Público os funcionários
civis ( ... ) que forem ou se tornarem adeptos de doutrinas
políticas contrárias ao regime democrático, e que possam
tornar-se, por qualquer motivo, perigosos ou mesmo suspeitos à segurança nacional, interna ou externa''. O inquisidor reclama mesmo do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União que em seu artigo 248 declarava: "Por
motivo de convicção filosófica, religiosa ou política, nenhum servidor público poderá ser privado de qualquer de
seus direitos, nem sofrer alteração em sua atividade funcional''. Estávamos em 1952. O punido tem o ato anulado
pelo STF (relator, para honra sua e do direito brasileiro,
o Ministro Orozimbo Nonato) e é reintegrado em suas funções em 1953. Presidindo o segundo inquérito, derivado
do Ato Institucional de 1964, o administrativista, constitucionalista e jurista liberal Themístocles Cavalcanti lamenta que aquelas medidas punitivas tenham sido tomadas inócuas pelo STF "por terem sido preteridas algumas formalidades legais" e saúda o fato de essa "deplorável deficiência" encontrar-se "presentemente em grande parte sanada
por força do Ato Institucional( ... ) que, embora de vigência limitada, permitiu às autoridades do país iniciar o pro-
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cesso de eliminação, dos quadros do funcionalismo público, dos elementos perigosos ou suspeitos à segurança nacionaJ". Estamos em julho de 1964. Agora a penalidade
vai até às últimas conseqüências, insuscetível de apreciação judicial. O diplomata é afastado da carreira, aposentado ex-officio, e terá de aguardar a anistia , parcialíssima , e um Longo processo administrativo para recuperar as
promoções sonegadas. A carreira, porém , estava definitivamente perdida.
Mas, voltemos ao primeiro processo. Reintegrado nas
funções, por força de decisão judicial em última instância , nada menos de três remoções são rejeitadas (Montreal,
Kobe e Estocolmo, depois de Washington, 1947) as respectivas legações apoiadas no escândalo das acusações e do
processo. Depois de uma larga demora no Brasil, onde colaboraria com o serviço de documentação da presidência
da República, governo de Juscelino Kubitscheck , é finalmente Antônio Houaiss designado para a missão permanente junto à ONU. Sua atuação no posto será a acusação
que lhe fará a Comissão de Investigações do Ministério das
Relações Exteriores, e o coroamento de sua carreira, coerente com a história de sua existência e os compromissos
de luta pela liberdade e contra a opressão individual , social e coletiva. O crime básico já não é "ligações com uma
organização extinta", mas seu anticolonialismo, a luta em
defesa da vida de uma extensa humanidade de povos submetidos à mais anacrônica administração colonial dos tempos modernos. A peça de acusação no inquérito aberto para
formalizar as conseqüências decorrentes da cassação de seus
direitos polfticos, imposta pelo Ato Institucional, assinada por Themísocles Brandão Cavalcanti e Antonio Camilo de Oliveira, menciona "sua intervenção desrespeitosa em
relação a Portugal , na IV Comissão da Assembléia Geral
de 8 de novembro de 1961", quando, colocando uma pri-
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meira pedra no edifício futuro de uma política diplomáti·
ca digna, Antônio Houaiss trabalha para pôr o Brasil ostensivamente na polftica anticolonialista e luta para que
nossa delegação pelo menos se abstenha nas questões portuguesas, rejeitando as teses salazaristas das províncias ultramarinas, que ninguém mais aceitava, nem mesmo os
Estados Unidos... É acusado ainda de, na Comissão de Tutela a Territórios Não Autônomos da
Assembléia Geral da ONU (1963), haver votado seis vezes contra os Esta·
dos Unidos...
Expulso da vida diplomática , assim honradamente,
regressa ao seu país para uma nova militância. A resistência à ditadura. No Brasil , vem para a trincheira do Correio da Manhã, ao lado de Moacir Werneck de Castro, Otto
Maria Carpeaux, Newton Rodrigues, Paulo de Castro, Oswaldo Peralva, Carlos Heitor Cony, Edmundo Moniz e mais
tantos outros, de onde só sairia para comandar os projetos
das duas enciclopédias cuja edição coordenaria, fazendo
de suas redações um reencontro e abrigo de intelectuais
e cientistas brasileiros perseguidos pelo regime militar. Lá
de novo com ele, sistematizando o pensamento brasileiro,
Otto Maria Carpeaux, Moacir Werneck de Castro, Alberto Passos Guimarães, Roland Corbisier e um número incontável de jovens de nomes perdidos e futuro roubado,
contratados como fotógrafos, redatores, revisores e colaboradores em geral.
Vencido o projeto das "diretas já", em que se enga ·
jou, mas derrotada a ditadura, concluída a primeira fase
da organização redemocratizante, com o início da transição seguidamente adiada , efetivada a anistia , parcial, res·
trita, retomada a vida política, impunha-se o reordena mento partidário. Passados 20 anos desde a cassação dos
partidos políticos em 1965, os sociaJistas poderiam nova·
mente aspirar à sua organização própria, à militância em
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seu próprio leito, com sua própria cara, seu próprio programa. Era preciso superar a fase das grandes frentes e dos
partidos-ônibus, sem caráter, aglomerados de interesses, e
retomar a orgaruzação partidária ideológica interrompida em 1947 com a cassação do registro do Partido Comunista. Para tal era preciso enfrentar a descrença e o desânimo, a legislação eleitoral e mesmo a reação de largos setores da oposição ao regime militar - ora preocupados
em assegurar a "transição tranqüila", ora preocupados em
ocupar os espaços que adivinhavam no primeiro governo
pós-centúrias - os quais em tudo viam, até na reorganização socialista, razões de sobressalto, ameaça à normalidade que assegurava a retração castrense, pronta todavia
à ressurgência ao menor sinal de ameaça ao estado pactuado. Estamos em abril de 1985 e Antônio Houaiss, arrostando todas as pressões conservadoras, assume, com outros intelectuais e políticos, a difícil - então quase quixotesca - tarefa de reorganização do Partido Socialista Brasileiro, um partido que, sucedendo juridicamente ao velho PSB oriundo da esquerda democrática de 1947 e da
luta anti-Vargas, radicalizava nas opções socialista e democrática, se afastava da social-democracia e mais buscava
suas raízes no experimento de 1902. Renascia retomando
a afirmação política da liberdade como elemento essencial do socialismo e da política de frente como prioridade
da atuação tática; no plano da ação
deflagrava
a luta pela anistia, que então tanto assustava aos mais tímidos. Para esse perfil foi fundamental a liderança de Antônio Houaiss. Seria seu presidente na fase de vida provisória, seu primeiro presidente logo após a organização, presidente da regional fluminense, até hoje membro permanente de seu diretório nacional, sucessivamente candidato a vice-governador e senador da República. Atuaria diretamente em seus primeiros congressos e seria o principal
redator de muitas de suas teses. Em 1989 (pré-candidato
à vice-presidência da República) e em 1994, mero militante,
40
seria um dos artífices da Frente Brasil Popular, e nesses 10
anos de vida partidária correria o país como destacado
ideólogo do socialismo democrático.
À frente de seu partido, ou como simples militante,
vem lutando pela unidade das esquerdas e do socialismo,
não só na resistência aos diversos modelos de administração neoliberal, como na arquitetura do próprio projeto de
poder dos socialistas brasileiros.
Sua obra política, de caráter doutrinário, produzida
nesse período é também fruto de seu papel como militante. Ela encerra uma pedagogia, na resistência ideológica,
na defesa do socialismo, no enfrentamento dos modismos,
no esforço para dotar a militância de instrumentos de reflexão e combate, na diuturna denúncia da social-democracia. Mas é igualmente a tentativa de uma leitura dialética
do marxismo clássico, a construção de um caminho brasileiro para a revolução social, a contribuição para as teses
do socialismo democrático e a afirmação de seu humanismo. Essa obra, esparsa, dispersa em uma série de palestras
perdidas, de discussões não documentadas, está parcialmente salva mediante os poucos artigos publicados e os poucos
textos especialmente redigidos para o debate partidário e
com a sociedade. Publicaria A defesa (1979), Socialismo e
liberdade (1990), Varüzções em torno do conceito de democracia (1992), Socialismo: vz'da, morte e ressurreição (1993)
e A modernidade no Brasü: conciliação e. ruptura (1995).
A pedagogia marxiana, inserta nessa obra, é simplesmente esta: não só é preciso lutar quanto é possível lutar,
romper com a tradição, buscar o sonho e construir a realidade a partir da utopia ...
(RobertO Amaral é jornalista e escritor, vice-presidente do Diretório Nacional do Partido Socialista Brasileiro, e co-autor, com Antônio Houaiss, de numerosos textos políticos e filosóficos.)
41
mente relevante seu trabalho em prol da descer
Ionização e da paz mundial.
Ao lançar ANTÔNIO HOUAISS: UMA VIDA, a
Editora Civilização Brasileira se associa ao bom
número de personalidades que aqui se ocupam
de seu trabalho e de sua persona, ambos admiráveis, e se recorda com prazer da valiosa colaboração que ele lhe prestou quando se encarregou
da tradução de Ulisses, dejamesjoyce, e dos textos anotados das Obras de Machado de Assis. Acres-cente-se a admiração que lhe dedica pelo seu
notável esforço para promover a unificação ortcr
gráfica da língua portuguesa em toda a comunidade lusófona. Quando isso ocorrer, em futuro
próximo, nosso idioma assumirá de direito (o
que já conquistou deJacto) sua posição de sétima
língua culta de maior âmbito universal.
Homem singular na sua pluralidade, ele é
maior do que a soma das partes. Grande brasileiro, 'a pesar da aparente fragilidade física e da circunstância de ser da primeira geração nacional
de uma linhagem ·á rabe, sua vida e sua obra são
estudadas e analisadas por vários ângulos neste
livro. Está claro que nele apenas se encontrará
palavras do alto louvor, mas nenhum leitor deixará de concluir, ao chegar a seu término, que,
além de merecidas, oferecem modesta medida
do muito que nosso povo lhe deve em termos de
apreço e gratidão.
Antônio Houaiss, intelectual brasileiro,
cidadão do mundo, é um marco de inteligência
e dignidade que enaltece o ser humano.
Ênio Silveira
ANTÔNIO HOUAISS: UMA VIDA
Todas as pessoas que se reuniram para homenagear com este livro os 80 anos desse grande
brasileiro, a ele devem não menos que respeito e admiração por sua multifacetada operosidade intelectual.
Ao saudá-lo pelo tanto que já fez, esperam e
desejam ter ainda por muito tempo sua lúcida, generosa e fecunda companhia, para que
o Brasil não pare de se enriquecer culturalmente, rompendo as trevas que em boa parte
ainda o cobrem.
Mais um lançamento de categoria da
civilização brasileira
I I
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