D OENÇA S OMÁTICA E N EUROSE : SACRIFÍCIO DE UM CORPO , SACRIFÍCIO DE UMA VIDA ... Autora: Cristiana Rodrigues Rua O objetivo deste trabalho é formular algumas hipóteses a partir do relato de uma psicoterapia realizada em uma instituição hospitalar. Este atendimento tem gerado muitos questionamentos, principalmente em relação a uma complicada interação entre uma doença orgânica grave e sintomas neuróticos, notando-se a prevalência de um quadro de histeria, com a presença também de sintomas fóbicos e obsessivos. Márcia, 32 anos, é atendida há 3 anos. Portadora de Diabetes M ellitus, apresentava dificuldades em aceitar o tratamento, pois não seguia as prescrições de insulina e dieta. Ao primeiro contato com Márcia, deparei-me com uma moça, com aspecto de menina, inibida, vestida de maneira a ocultar qualquer forma de seu corpo. Chamava a atenção o uso de um crucifixo de madeira. De início esteve bastante restrita à descrição de seu desconforto por ter diabetes. Descobriu a doença aos 20 anos. Refere inibição em situações sociais, o que ao longo das sessões se caracterizou como uma intensa fobia social. Tem um histórico de muito sofrimento psíquico, permeado não só pela fobia, iniciada na infância, como por pensamentos e rituais obsessivos que eram mais intensos na adolescência. Quando a diabetes surgiu, foi encarada como um castigo, e entrou de forma bastante importante como mais um dos elementos para os rituais que Márcia já exercia. Vou nomear estes rituais como “rituais de sacrifício”. A diabetes tornou-se parte destes rituais na medida em que Márcia inventou uma maneira bastante peculiar de usar a insulina e de se alimentar. Ficava várias horas sem comer, somente para não ter que tomar insulina. Sentia-se muito revoltada por não poder comer a qualquer hora, mas ter que aguardar o momento certo. A relação com a diabetes foi mudando ao longo da psicoterapia e Márcia passou a seguir seu tratamento de forma mais amena, sem colocar seu organismo em risco tão frequentemente. Porém, após esta questão tornar-se mais amena, apresentou uma intensificação da fobia. Não consegue conversar com as pessoas e tem certo pavor de encontrar conhecidos na rua e ter que cumprimentá-los. Devido a esta intensa inibição tem uma vida bastante restrita. A cada sessão queixa-se da angústia que a acompanha em qualquer situação social. Márcia tem outros rituais de sacrifício, como por exemplo, não se permitir dormir a noite por sentir-se culpada, já que deixou de fazer uma série de coisas durante o dia e então deve ficar acordada como forma de punição. Sempre diz que fica com a “cabeça cheia” e que não consegue relaxar. Tem também um sintoma de arrancar cabelos quando se sente muito ansiosa. Sente muita culpa, considerando que os acontecimentos ruins ocorrem por sua causa. 1 O grande desafio deste atendimento é conseguir driblar a barreira imposta pela intensa inibição e cuidar para que a sua vida não seja colocada em risco, já que possui uma doença crônica que, se não tratada traz sérias conseqüências.Na transferência,Márcia está sempre reivindicando compreensão, mesmo quando afirma “temeridades” do tipo: “vou tomar esta insulina com a qual passo mal só para provar para a médica que ela estava errada”. Novamente o sacrifício de um corpo. Estamos no terreno da pulsão de morte e parece que é somente no campo do sacrifício do próprio corpo que a menina inibida religiosa faz as suas contravenções. Márcia lida com estas atitudes como verdadeiros pecados que esconde dos pais. Apresenta uma ligação muito intensa com a mãe e ao ser colocada na escola aos 6 anos ressentiu-se muito, aparecendo este momento de sua vida como potencialmente traumático. Sentiu a sua ida para a escola como um abandono da mãe. A vida de sacrifícios já teve início nesta fase: Márcia diz que não comia o lanche da escola, pois se comesse, pareceria aos adultos que gostava da escola. Márcia traz também uma questão interessante a respeito de seu corpo. Aos 4 anos notou em sua virilha uma espécie de “caroço” que inchava quando fazia esforços. A partir deste momento ninguém mais a viu sem roupa, nem mesmo sua mãe. Márcia tem duas irmãs, sendo que ela é a segunda filha. Percebeu-se diferente das irmãs. Não contou a ninguém deste caroço, com receio de que se fosse ao médico ele pudesse arrancá-lo. Enfim, com este relato, não é difícil pensar em fantasias referentes à castração que podem ter ocorrido. Outro dado curioso é que Márcia só usa saias desde os 4 anos, quando recusou-se a continuar usando calças, o que parece ter relação com as fantasias em relação ao tal “caroço”. Nota-se também, apesar da intensa relação com a mãe, uma identificação importante com o pai, pois o considera tímido como ela, e ele também tem diabetes. Há em Márcia a ausência de traços de feminilidade e inclusive descreve o momento da menarca como algo ruim, do que quis se livrar, utilizando-se de um manejo que também incluía um sacrifício: certa vez houve um atraso na menstruação e quando isto foi dito a um médico, o mesmo disse que comer pouco causava a amenorréia. A partir daí Márcia passou a se alimentar mal para não menstruar. É muito peculiar a forma como Márcia descreve os acontecimentos de sua infância. Parecem atuais, dizendo que não compreende quando as suas irmãs falam “quando éramos crianças”. Apesar de um corpo adulto e da passagem do tempo, não se considera adulta. Márcia não trabalha e nunca teve um namorado. A sexualidade adulta é um assunto evitado. Apresenta em vários momentos pensamentos de morte, de que sua vida não faz sentido, devido aos sintomas limitantes, notadamente a fobia. Uma hipótese válida é que a diabetes entrou na sua vida como mais um dos elementos que a faz sentir-se diferente das outras pessoas. É no manejo de seu tratamento médico que ela se arrisca, cometendo 2 atentados contra si mesma. Pode-se pensar nestes ataques como parte do quadro de histeria, porém isto não significa que ela não possa conseguir êxito algum dia nestes ataques. Após a apresentação do caso farei apenas uma síntese de reflexões teóricas que podem auxiliar na compreensão deste caso clínico que considero muito complexo pela variedade de sintomas e pela dificuldade do manejo analítico. Rosine Debray1, estudiosa da Psicossomática Psicanalítica, que realizou uma pesquisa com portadores de diabetes, constatou que há entre os sujeitos diabéticos certa variedade de organizações mentais. Ela aponta que, além da preponderância de fatores genéticos, para ocorrer o desencadeamento da doença há a ocorrência de alguma mudança no ambiente externo que se dá de forma violenta, atingindo o valor de um trauma. Márcia faz a associação do surgimento da doença com 2 eventos: a morte de um cão de estimação e o casamento de uma das irmãs, pouco antes do aparecimento da doença. Debray lembra-nos que há uma maior fragilidade nos momentos de crise, principalmente no período do conflito edípico e na sua reativação na adolescência. Este segundo ponto parece-me o mais importante, tendo em vista as suas fantasias no momento do conflito edípico e como as mesmas ainda parecem guardar certa atualidade. Inclusive Márcia considera que é portadora de diabetes há muito tempo, antes da descoberta aos 20 anos. Debray formula a hipótese de uma etiologia sexual para a diabetes mellitus. Aponta que nas meninas tem-se na menarca o momento em que o término da infância torna-se uma realidade e reativa conflitos mal elaborados. Aponta para uma sobrecarga econômica relacionada aos remanejamentos sexuais da adolescência que tomam um caráter traumático, gerador de um movimento de desorganização atestado pela diabetes. Cabem também algumas considerações sobre a sexualidade infantil e a histeria que parecem ter uma grande importância no funcionamento psíquico da paciente. Alonso & Fuks 2 nos lembram que um dos destinos possíveis do Complexo de Édipo nas meninas após a constatação da inviabilidade de ter uma relação com o pai é o recalque do desejo ou do complexo como um todo, conduzindo à inibição neurótica da sexualidade ou à frigidez, o que ocorre com freqüência na histeria. O medo de punição em Márcia aparece relacionado com uma possível retaliação por parte de seus pais, o que parece ser o medo da perda do amor, destino descrito por Freud como a principal ameaça após o declínio do Complexo de Édipo nas meninas. Há um combate constante aos desejos edípicos remanescentes e recalcados. 1 2 Debray, R. “O equilíbrio Psicossomático e um estudo sobre diabéticos” (1995) Alonso, S.L. & Fuks, M.P. “Histeria”, Coleção Clínica Psicanalítica (2004) 3 Outro ponto importante é a relação pré-edípica com a mãe que, conforme Freud salientou no texto “Sexualidade Feminina” em 1931, traz consequências tanto para o desenvolvimento da sexualidade feminina quanto para a gênese da histeria. Alonso & Fuks apontam também que, na histeria é como se a castração simbólica de alguma forma fracassasse e a menina ficasse atrelada ao vínculo de idealização e, ao mesmo tempo de ressentimento com a mãe. Em Márcia, a relação com a mãe oscila entre esta idealização, de uma mãe que faz tudo para ela e também da mãe que não a compreende e não é suficiente. Alonso & Fuks retomam as formulações de Freud após 1920 e afirmam que o traumático volta a ter importância, sendo que o sintoma passa a ser considerado a partir de duas perspectivas: de um lado é a mensagem do inconsciente recalcado, de outro é uma defesa contra as intensidades excessivas da pulsão. Ainda segundo Alonso & Fuks: “A intensidade do traumático e a vigência da pulsão de morte fazem-se presentes, contudo, na persistência e fixidez do sintoma e na restrição ou ausência de plasticidade psíquica”(p.116). Após estas breves considerações, concluo que um dos pontos importantes para a reflexão refere-se à complicada relação estabelecida entre os diversos sintomas, sendo o eixo comum para os sintomas físicos e psíquicos a presença do traumático. A diabetes entrou no circuito já bem estabelecido de uma neurose, o que fez com que a doença somática fosse mais um dos elementos para Márcia sentir-se diferente e intensificar sua inibição. Podemos pensar que a neurose foi insuficiente para dar conta dos excessos, daquilo que teve um caráter traumático? E, neste caso temos um prejuízo no real do corpo? Enfim, encerro este trabalho com esta e outras questões... 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alonso, S & Fuks, M. -“Histeria”, Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004 Debray, R. – “O equilíbrio Psicossomático e um estudo sobre diabéticos” São Paulo: Casa do psicólogo, 1995. Freud, S.(1931) – “Sexualidade Feminina”- In: Obras Completas, vol.XXI, Rio de Janeiro, 1994. 5